políticas públicas e reforma educacional no rs: o papel do cpoers

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POLÍTICAS PÚBLICAS E REFORMA EDUCACIONAL NO RIO GRANDE DO SUL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX: O PAPEL DO CPOE/RS. Claudemir de Quadros 1 Centro Universitário Franciscano Introdução A constituição de uma problemática de pesquisa se, por um lado, apresenta-se como uma primeira dificuldade, em função das operações que envolve, por outro, possivelmente se constitua no procedimento inicial mais significativo de um trabalho de investigação pelas implicações que traz consigo. Em função do modo como venha a se constituir ou, melhor dito, em função da perspectiva teórica a partir da qual pretende se orientar definem- se, talvez decisivamente, os rumos a serem seguidos no desenrolar do processo. De certa forma, essa definição tem um caráter prospectivo na medida em que projeta não apenas as intenções ou os rumos da pesquisa; ela aponta, ou mesmo define, a forma de apresentação e de análise a ser desenvolvida. Aliás, iniciar um trabalho pela constituição ou mesmo proposição de uma problemática de pesquisa já traz implícita uma opção teórica e metodológica. É, pois, na perspectiva de abordar pelo menos alguns elementos que possam contribuir para a constituição de uma problemática de pesquisa vinculada à história da educação do Rio Grande do Sul, que apresento considerações iniciais formuladas a partir de uma tentativa de aproximação com o pensamento de Michel Foucault. Sinalizações teórico-metodológicas. Há algumas décadas percebe-se, no âmbito da historiografia, uma espécie de mal- estar provocado a partir de proposições que, de certo modo, questionaram os referenciais até então mais comumente aceitos e que, de uma forma ou de outra, definiam não somente os modos de fazer história, mas a própria epistemologia da disciplina. Charthier (1994, p. 100), se refere a essa inquietude nos seguintes termos: tempo de incerteza, crise epistemológica, virada crítica: estes são os diagnósticos, geralmente inquietos, feitos sobre a história nos últimos anos... Eles denotam, creio, essa grande mutação que representa para a história o desaparecimento dos modelos de compreensão, dos princípios de inteligibilidade que foram de modo geral aceitos pelos historiadores (ou ao menos pela maior parte deles) a partir dos anos 1960.

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  • POLTICAS PBLICAS E REFORMA EDUCACIONAL NO RIO GRANDE DO SUL NA SEGUNDA METADE DO SCULO XX: O PAPEL DO CPOE/RS.

    Claudemir de Quadros1

    Centro Universitrio Franciscano

    Introduo

    A constituio de uma problemtica de pesquisa se, por um lado, apresenta-se como

    uma primeira dificuldade, em funo das operaes que envolve, por outro, possivelmente

    se constitua no procedimento inicial mais significativo de um trabalho de investigao

    pelas implicaes que traz consigo. Em funo do modo como venha a se constituir ou,

    melhor dito, em funo da perspectiva terica a partir da qual pretende se orientar definem-

    se, talvez decisivamente, os rumos a serem seguidos no desenrolar do processo. De certa

    forma, essa definio tem um carter prospectivo na medida em que projeta no apenas as

    intenes ou os rumos da pesquisa; ela aponta, ou mesmo define, a forma de apresentao

    e de anlise a ser desenvolvida. Alis, iniciar um trabalho pela constituio ou mesmo

    proposio de uma problemtica de pesquisa j traz implcita uma opo terica e

    metodolgica.

    , pois, na perspectiva de abordar pelo menos alguns elementos que possam

    contribuir para a constituio de uma problemtica de pesquisa vinculada histria da

    educao do Rio Grande do Sul, que apresento consideraes iniciais formuladas a partir

    de uma tentativa de aproximao com o pensamento de Michel Foucault.

    Sinalizaes terico-metodolgicas.

    H algumas dcadas percebe-se, no mbito da historiografia, uma espcie de mal-

    estar provocado a partir de proposies que, de certo modo, questionaram os referenciais

    at ento mais comumente aceitos e que, de uma forma ou de outra, definiam no somente

    os modos de fazer histria, mas a prpria epistemologia da disciplina. Charthier (1994, p.

    100), se refere a essa inquietude nos seguintes termos:

    tempo de incerteza, crise epistemolgica, virada crtica: estes so os diagnsticos, geralmente inquietos, feitos sobre a histria nos ltimos anos... Eles denotam, creio, essa grande mutao que representa para a histria o desaparecimento dos modelos de compreenso, dos princpios de inteligibilidade que foram de modo geral aceitos pelos historiadores (ou ao menos pela maior parte deles) a partir dos anos 1960.

  • Ainda segundo Charthier (2001), essa inquietude com o seu regime de verdade ou a

    crise de inteligibilidade histrica, amplamente manifesta, teve por razes a perda de

    confiana nas certezas da quantificao; a renncia s definies clssicas dos objetos

    histricos, ou a crtica de noes (mentalidade, cultura popular), de categorias analticas

    (classes, classificao scio-profissional) ou modelos de compreenso (marxista,

    estruturalista, neomaltusiano). Infere, ainda, que as tradies historiogrficas perderam sua

    unidade, se fragmentaram entre perspectivas diversas que multiplicaram os objetos de

    investigao, os mtodos, as histrias.

    Para Popkewitz (1994), no se trata apenas um mal-estar. Operou-se, efetivamente,

    uma virada lingstica que projetou a superao do historicismo e da filosofia da

    conscincia. Popkewitz desenvolve o argumento de que esta virada lingstica provocou

    um desconcerto ou mesmo uma ruptura no mbito das teleologias ou das tradies

    histricas que haviam dominado a construo da disciplina no ltimo sculo. Tanto o

    historicismo, que pretendia objetivar toda a vida social e explicar a realidade tal como

    realmente aconteceu, por meio da ordenao cronolgica e progressiva de eventos ou dos

    pensamentos singulares dos indivduos, quanto filosofia da conscincia que analisava o

    mundo a partir de estruturas vinculadas que funcionam em relao umas s outras numa

    sucesso (p. 180) e que tinha o progresso como o resultado racional da razo e do

    pensamento humanos, aplicados a condies sociais (epistemologia kantiana ou lockeana)

    ou como a identificao de contradies das quais uma nova sntese pode ser organizada

    (epistemologia hegeliana ou marxista) (p. 181), viram-se confrontadas com uma proposta

    epistemolgica que advoga, no fundo, o fim das metanarrativas educacionais, que tm

    servido freqentemente apenas para que certos grupos imponham suas vises particulares,

    disfaradas como universais, s de outros grupos (Silva, 1994, p. 257).

    Talvez seja pertinente referir, ainda, que esse tempo de dvidas e de incertezas

    relacione-se com a emergncia da Nova Histria que, segundo Burke (1992, p. 13), se

    constitui como uma reao deliberada contra o paradigma tradicional:

    segundo o paradigma tradicional, a histria deveria ser baseada em documentos. Uma das grandes contribuies de Ranke foi sua exposio das limitaes das fontes narrativas e sua nfase na necessidade de basear a histria escrita em registros oficiais, emanados do governo e preservados em arquivos. O preo dessa contribuio foi a negligncia de outros tipos de evidncia. O perodo anterior inveno da escrita foi posto de lado como pr-

  • histria. Entretanto, o movimento da histria vista de baixo por sua vez exps as limitaes desse tipo de documento. Os registros oficiais em geral expressam o ponto de vista oficial. Para reconstruir as atitudes dos hereges e dos rebeldes, tais registros necessitam ser suplementados por outros tipos de fontes.

    Porm, a contestao ao paradigma tradicional e, em conseqncia a uma histria

    com perspectiva totalizadora e homogeinizadora, pode ter sinalizado sua emergncia num

    passado um pouco mais longnquo que as dcadas de 1970 e 1980. Burke cita vrios

    exemplos que confirmariam a antigidade da perspectiva da Nova Histria. Em resumo,

    Burke procura demonstrar que a Nova Histria tem uma ancestralidade razoavelmente

    longa (ainda que os antepassados pudessem no reconhecer seus descendentes). O que

    novo no a sua existncia, mas o fato de seus profissionais serem agora extremamente

    numerosos e se recusarem a ser marginalizados (1992, p. 19).

    nesse contexto que situo o pensamento de Michel Foucault. Parece-me, no entanto,

    que o empreendimento foucaultiano imps uma radicalidade das rupturas. Rago (1995)

    se refere a isso nos seguintes termos:

    indubitavelmente presos a um sistema de pensamento que nos havia organizado to adequadamente o mundo, ao longo das dcadas de 1960 e 1970, localizando de um lado, as classes sociais e os seus conflitos nas inmeras formas assumidas pelas relaes socioeconmicas, vigentes no modo de produo dominante no interior de nossa formao social; e de outro, munindo-nos com as intrincadas tarefas tericas da sntese das mltiplas determinaes, havamos esquecido de ler no prprio Marx, que o passado pesa e oprime como um pesadelo o cerbro dos vivos (p. 68).

    O prprio Foucault especialmente mordaz ao comentar sobre essa suposta idia

    bem magra do real:

    como se a onde estivramos habituados a procurar as origens, a percorrer de volta, indefinidamente, a linha dos antecedentes, a reconstituir tradies, a seguir curvas evolutivas, a projetar teleologias, e a recorrer continuamente s metforas da vida, experimentssemos uma repugnncia singular em pensar a diferena, em descrever os afastamentos e as disperses, em desintegrar a forma tranqilizadora do idntico. Ou mais exatamente, como se a partir desses conceitos de limiares, mutaes, sistemas independentes, sries limitadas - tais com so utilizados de fato pelos historiadores - tivssemos dificuldade em fazer a teoria, em deduzir as conseqncias gerais e mesmo em

  • derivar todas as implicaes possveis. como se tivssemos medo de pensar o outro no tempo de nosso prprio pensamento (1995, p. 14).

    Rago (1995, p. 70) infere que Foucault defendeu uma histria-problema, ou seja,

    um trabalho de pesquisa histrica que servisse para iluminar e responder a uma

    problematizao colocada pelo historiador e que desenharia, no percurso aberto, o

    prprio objeto da investigao. No fundo, essa proposta opera uma considervel

    mudana de atitude em relao modo de se fazer histria, na medida em que se deixa de

    atribuir-se um objeto e tentar resolver sucessivamente os problemas que este coloca para

    partir de um problema e procurar determinar a partir dele o mbito do objeto que seria

    necessrio percorrer para resolv-lo (Rago, 1995, p. 71). Procura-se estabelecer, enfim,

    uma relao diferenciada entre problema e objeto de pesquisa, na medida em que

    sua relao com a histria estabelecida a partir de um problema que se coloca no presente e, para a resoluo, necessita-se voltar ao passado; mas, tambm, aqui, de uma nova relao com o passado que se trata, um passado no mais visto como origem embrionria, com germe a partir do qual tudo evolui, mas, nietzschianiamente falando, como origem baixa, lugar do acontecimento, da emergncia em sua singularidade, a partir da disputa de foras em conflito (Rago, 2002, p. 263).

    O que est em questo, portanto, a prpria dimenso epistemolgica do fazer

    histria, do objeto da histria, ao menos se perspectivada a partir das noes clssicas de

    totalidade, continuidade e causalidade. Nesse contexto, poderia caber genealogia,

    entendida como uma forma de histria que d conta da constituio dos saberes, dos

    discursos, dos domnios de objetos, etc., sem ter que se referir a um sujeito, quer seja

    transcendente em relao ao campo de acontecimentos, quer flua sua identidade vazia ao

    longo de toda a histria (Foucault apud. Carthier, 2002, p. 181), desfazer-se dessas

    noes para compreender adequadamente as rupturas e variaes (Carthier, 2002, p.

    127), bem como rejeitar o que seria uma descrio total, que pretende reunir todos os

    fenmenos ao redor de um nico centro - um princpio, um significado, uma viso de

    mundo, uma configurao geral; uma histria geral, ao contrrio, mobilizaria o espao da

    disperso (OBrien, 1992, p. 45).

    Nessa perspectiva, ao historiador caberia, portanto, redimensionar a sua prtica, pois

    o grande problema que se vai colocar - que se coloca - a tais anlises histricas no mais saber por que caminhos as continuidades se puderam estabelecer; de que maneira um nico e mesmo projeto pde-se manter e constituir, para tantos espritos

  • diferentes e sucessivos, um horizonte nico; que modo de ao e que suporte implica o jogo das transmisses, das retomadas, dos esquecimentos e das repeties; como a origem pode estender seu reinado bem alm de si prpria e atingir aquele desfecho que jamais se deu - o problema no mais a tradio e o rastro, mas o recorte e o limite; no mais o fundamento que se perpetua, e sim as transformaes que valem como fundao e renovao dos fundamentos. V-se, ento, o espraiamento de todo um campo de questes - algumas j familiares - pelas quais essa nova forma de histria tenta elaborar sua prpria teoria: como especificar os diferentes conceitos que permitem avaliar a descontinuidade (limiar, ruptura, corte, mutao, transformao)? (Foucault, 1995, p. 6)

    Ou, em resumo, as sucesses lineares, que at ento tinham sido o objeto da

    pesquisa, foram substitudas por um jogo de interrupes em profundidade (Foucault

    1995, p. 3).

    Uma tentativa de constituio de uma problemtica da investigao: o CPOE com centro da ateno.

    Nesse momento, sinto-me desafiado com a seguinte questo: em que medida os

    referenciais sugeridos por Foucault e apontados nesse texto, mesmo que de forma um tanto

    quanto sumria, podem servir de orientao para a proposio de uma problemtica de

    pesquisa e, consequentemente, para o desenvolvimento de um trabalho investigativo

    vinculado histria da educao do Rio Grande do Sul? Ou, de outro modo, quais as

    possibilidades da proposio de uma problemtica de pesquisa a partir desses referenciais?

    De incio, quero dizer que me envolvi com o estudo da histria da educao do Rio

    Grande do Sul a partir do trabalho que desenvolvi entre 1997 e 1999 junto ao Programa de

    Ps-Graduao em Educao da Universidade de Passo Fundo - UPF - e que resultou na

    dissertao de mestrado intitulada A educao pblica no Rio Grande do Sul durante o

    governo de Leonel Brizola (1959-1963): Nenhuma criana sem escola no Rio Grande do

    Sul.2

    Na medida que toda pesquisa um processo em construo que, se por um lado,

    supre algumas lacunas, por outro, permite antever outras questes, esse estudo sugeriu

    possibilidades de novos projetos qui relevantes para a histria da educao no Rio

    Grande do Sul. Dentre as possibilidades antevistas, uma, em particular, despertou

    interesse: a histria e a ao do Centro de Pesquisas e Orientao Educacional - CPOE,

  • rgo de assistncia tcnica especializada da Secretaria da Educao e Cultura do estado

    do Rio Grande do Sul que atuou, entre 1942 e 1971, como responsvel pelo estudo e

    pesquisa de propostas educacionais implantadas no estado e pela orientao didtico-

    pedaggica do corpo docente.

    O Centro de Pesquisas e Orientao Educacionais iniciou as suas atividades de

    orientao tcnico-pedaggica s escolas do estado do Rio Grande do Sul como Seo

    Tcnica da Diretoria Geral da Instruo Pblica, criada em 1929, pelo decreto 4.258, de 21

    de janeiro de 1929. Em 1942, o decreto-lei 246, de 13 de outubro, deu nova organizao a

    Secretaria de Educao e Sade Pblica, denominada a partir de ento Secretaria da

    Educao e Cultura, e transformou a Seo Tcnica em Centro de Pesquisas e Orientao

    Educacionais - CPOE, subordinado ao Departamento de Educao Primria e Normal. A

    partir da, at 1971, quando foi extinto pelo ento secretrio de Educao e Cultura, Mauro

    da Costa Rodrigues, desempenhou um papel proeminente no ensino primrio do Rio

    Grande do Sul, intervindo diretamente na organizao do ensino, na formao dos

    professores, na funo normativa da rede pblica estadual de ensino e na orientao das

    atividades didtico-pedaggicas.

    Institucionalizado em 1942, o CPOE sobreviveu a oito governos de partidos e

    matizes ideolgicos diferentes e atuou num perodo em que as principais marcas do campo

    educacional do Rio Grande do Sul, e do Brasil, combinam, de um lado, forte expanso e,

    de outro, precariedade, seletividade e desarticulao, com altos ndices de evaso e

    repetncia e um corpo docente parcamente qualificado.

    Ao tomar como referncia o que foi exposto acima como possibilidade para a

    definio de um problema de pesquisa na rea da histria da educao do Rio Grande do

    Sul, algumas implicaes so merecedoras, no mnimo, de ateno.

    Primeiro: no creio que seja pertinente eleger o Centro de Orientaes e Pesquisas

    Educacionais como o objeto originrio em si, constitudo e, a partir dele, perspectivar as

    decorrncias para a histria da educao ou para o desenvolvimento do sistema

    educacional do Rio Grande do Sul.

    Isso implica, tambm e necessariamente, em no ter como inteno inicial

    simplesmente descrever a histria e a ao do CPOE entre 1942 e 1971, o que

    possivelmente acontecer como decorrncia do desenvolvimento do trabalho mas, isto sim,

    partir de um problema e procurar determinar a partir dele o mbito do objeto, j que o

    CPOE no representa uma evoluo natural do processo educativo e nem, tampouco, a sua

    emergncia situa-se apenas, e to somente, num ato legislativo, ou seja,

  • no h objetos histricos preexistentes s relaes que os constituem, no h campo de discurso ou de realidade delimitado de maneira estvel e imediata: as coisas so apenas as objetivaes de prticas determinadas, visto que a conscincia no as concebe. Ento, identificando as divises e as excluses que constituem os objetos que estabelece para si que a histria pode pens-los, no como expresses circunstanciadas de uma categoria universal, mas, bem ao contrrio, com constelaes individuais ou mesmo singulares (Carthier, 2002. p. 149).

    Nesse sentido, o essencial no a inveno do CPOE enquanto um novo objeto na

    historiografia educacional do Rio Grande do Sul, mas sim a sistemtica colocao em

    jogo do descontnuo que rompe fundamentalmente com a histria imaginada ou

    sacralizada pela filosofia - uma histria que narrativa das continuidades e afirmao da

    soberania da conscincia (Carthier, 2002, p. 128) e a construo de novas

    problematizaes para o presente. Logo, pe-se em dvida a possibilidade de totalizao,

    da homogeinizao ou a cronologia contnua da razo, pois sucedem-nas abertura

    fundadora, escalas s vezes breves, distintas umas das outras, rebeldes diante de uma lei

    nica, freqentemente, portadoras de um tipo de histria que prpria de cada uma, e

    irredutveis ao modelo geral de uma conscincia que adquire, progride e que tem

    memria (Foucault, 1995, p. 9).

    Segundo: projeta-se como o elemento central da anlise as formaes discursivas,

    entendidas enquanto um grupo de enunciados sobre os quais pode-se determinar e

    descrever um referencial, um tipo de variao enunciativa, uma rede terica, um campo de

    possibilidades estratgicas (Carthier, 2002, p. 130).

    Assim, a problemtica da pesquisa talvez possa assumir a perspectiva de focalizar o

    CPOE como um problema histrico especfico a fim de compreender como o poder

    produzido por meio da produo de regras e padres de verdade. Nessa concepo,

    investigar a histria do CPOE, consiste em investigar o que conta como evidncia, as

    regras pelas quais a verdade estabelecida e os efeitos de se ter algumas coisas contando

    como evidncia e verdade enquanto outras coisas so desautorizadas e consideradas

    falsas (Popkewitz, 1994, p. 205). Trata-se, enfim, de mostrar as suas condies de

    emergncia, de insero e de funcionamento na educao do Rio Grande do Sul.

    Procura-se introduzir um olhar sobre as multiplicidades, j que infere-se que as

    condies de emergncia do CPOE possam estar ligadas a diferentes movimentos da

    sociedade. Desde os meados do sculo 20 projetam-se, no Brasil, movimentos de

  • importante envergadura da sociedade e do Estado no mbito do campo educacional. Esses

    movimentos parecem articular-se a partir dos seguintes elementos: a) a circulao de

    discursos pedaggicos e a ao de intelectuais. Desde meados do sculo 20 a presena de

    intelectuais que discutem a realidade nacional cada vez mais expressiva no Brasil e a sua

    participao como mediadores entre a nao e o povo busca, no geral, reforar a funo

    educativa do Estado; b) um maior aparelhamento do Estado para promover a educao,

    especialmente a partir dos anos 1930; c) a instalao da universidade moderna e a

    constituio da escola de massa no Brasil.

    Com isso, quero dizer que preciso buscar o comeo, a emergncia do CPOE muito

    antes da sua criao formal dada por meio de um ato legislativo. Quero dizer que no

    decorrer do processo histrico, ou no decorrer da constituio do campo educacional do

    Rio Grande do Sul, desenvolveram-se formaes discursivas das quais os intelectuais do

    CPOE se constituram nos porta-vozes.

    Nesse contexto, a idia de campo discursivo parece assumir uma significativa

    relevncia, na medida em que

    a importncia da idia de campo discursivo (o que Foucault chama de regio) est no fato de que ela nos permite focalizar a forma como discursos historicamente construdos em locais fisicamente diferentes juntam-se para formar uma plataforma a partir da qual a individualidade definida. A individualidade parece transcender eventos e ancoragens geogrficas sociais particulares (Popkewizt, 1994, p. 203).

    Terceiro: se a perspectiva da anlise a investigao das formaes discursivas,

    quais documentos utilizar para atender a essa problemtica? Ou, mesmo antes disso, qual

    a concepo a partir da qual os documentos disponveis sero abordados? O prprio

    Foucault sinaliza alguns elementos essenciais dessa questo:

    por uma mutao que no data de hoje, mas que, sem dvida, ainda no se concluiu, a histria mudou sua posio acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, no interpret-lo, no determinar se diz a verdade nem qual seu valor expressivo, mas sim trabalh-lo no interior e elabor-lo, ela o organiza, recorta, distribui o que pertinente do que no , identifica elementos, define unidades, descreve relaes. O documento, pois, no mais, para a histria, essa matria inerte atravs da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no prprio tecido documental, unidades, conjuntos, sries, relaes. preciso desligar a histria da imagem com que ela se

  • deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava sua justificativa antropolgica: a de uma memria milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para reencontrar o frescor de suas lembranas; ela o trabalho e a utilizao de uma materialidade documental (livros, textos, narraes, registros, atas, edifcios, instituies, regulamentos, tcnicas, objetos, costumes, etc.) que apresenta sempre e em toda a parte, em qualquer sociedade, formas de permanncias, quer espontneas, quer organizadas. O documento no o feliz instrumento de uma histria que seria em si mesma, e de pleno direito, memria, a histria , para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaborao massa documental de que ela no se separa. (Foucault, 1995, p. 7-8).

    Alm disso, ainda, segundo Foucault (2003, p. 326), se se pretende tratar de um

    problema surgido em dado momento, deve-se escolher o material em funo dos dados

    do problema; focalizar o da anlise sobre os elementos suscetveis de resolv-lo;

    estabelecer as relaes que permitem essa soluo.

    Assim, se a perspectiva da anlise a investigao das formaes discursivas, alguns

    dos principais documentos at o momento localizados podem ser dispostos em, pelo

    menos, quatro conjuntos ou grupos:

    a) um conjunto que rene os documentos produzidos por organismos

    governamentais e que so portadores de informaes e de um discurso oficial acerca do

    tema objeto do estudo. Nesse conjunto arrolam-se:

    - Dirio Oficial do Estado do Rio Grande do Sul;

    - Anais da Assemblia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul;

    - anurios estatsticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - IBGE;

    - anurios de estatsticas educacionais e culturais da SEC/RS;

    - mensagens do governador do estado Assemblia Legislativa.

    Esses documentos podem ser encontrados no Centro de Documentao da Secretaria

    da Educao, na Biblioteca Pblica e no Arquivo Solar dos Cmara, na Assemblia

    Legislativa.

    b) Um conjunto integrado por documentos provenientes do prprio CPOE, com

    destaque para os boletins anuais do Centro de Pesquisas e Orientao Educacionais. Foram

    localizados os boletins dos anos 1947, 1948-1949, 1950-1951, 1952-1953, 1954, 1955,

    1956-1957, 1958, 1959, 1960, 1961-1962, 1963-1964, 1965-1966. Essas publicaes

    podem se constituir em mananciais importantes para o estudo em funo da riqueza e da

    quantidade de informaes disponibilizadas.

    c) Imprensa peridica e imprensa educacional.

  • d) Finalmente, um quarto conjunto de documentos - os documentos orais -, dentre os

    quais autobiografias, biografias, memrias, dirios, correspondncias, assim como

    registros escritos e as vivncias/itinerrios de vida de agentes do ensino, de alunos e de

    outros atores sociais. Nesse contexto, pode-se constituir um acervo da memria oral do

    CPOE, que envolva questes da educao, do ensino e dos diferentes atores.

    Em sntese, esse projeto de pesquisa, que encontra-se em fase inicial de

    desenvolvimento, procura, por um lado, prestar ateno a um tema e a um perodo pouco

    privilegiados pela historiografia da educao do Rio Grande do Sul e, por outro, fazer isso

    a partir de uma perspectiva foucaultiana.

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    RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. In: Tempo social, Revista de sociologia da USP, So Paulo, v. 7, n. 1-2, 1995, p. 67-82.

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    SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.) O adeus s metanarrativas educacionais. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. O sujeito da educao. Petrpolis: Vozes, 1994, p. 247-258.

  • 1 Professor no Centro Universitrio Franciscano de Santa Maria, RS; doutorando em Educao na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    2 Esse estudo se props a descrever e analisar o projeto educacional Nenhuma criana sem escola no Rio Grande do Sul, executado como prioridade do governo de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul entre 1959 e 1963 e centrou-se em analisar a ao governamental de implantao do projeto, com vistas a identificar e detalhar o conjunto das aes educacionais desenvolvidas pelo governo e os seus resultados quantitativos e qualitativos. Nessa perspectiva, analisou-se o Servio de Expanso Descentralizado de Ensino Primrio - Sedep, que funcionava em convnio com os municpios, com o objetivo de levantar dados, elaborar projetos e disponibilizar recursos para os municpios; a Comisso Estadual de Prdios Escolares - Cepe, encarregada da construo dos prdios escolares; a contratao de professores; a cedncia de professores e a concesso de bolsas de estudo. Foi constituda uma importante base de dados que permitiu identificar e detalhar o conjunto das aes desenvolvidas pelo governo e os seus resultados. Os resultados desse trabalho foram publicados em QUADROS, Claudemir. As brizoletas cobrindo o Rio Grande: a educao pblica no Rio Grande do Sul durante o governo de Leonel Brizola (1959-1963). Santa Maria: UFSM, 2003.