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A D IVERSIDADE DA G EOGRAFIA B RASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 3969 POLÍTICAS PÚBLICAS E PROCESSO URBANO: A CONSTITUIÇÃO ESPACIAL DE JUIZ DE FORA NO FINAL DO SÉCULO XIX YURI AMARAL BARBOSA 1 Resumo O presente trabalho pretende discutir o papel do Estado, mais especificamente da esfera municipal, enquanto gestora ativa no planejamento e na constituição do espaço urbano no final do século XIX. A transição do Império para a República no Brasil trouxe consigo mudanças constitucionais extremamente relevantes, entre elas, está a autonomia conferida ao município, que, a partir deste ponto, apodera-se com maior afinco da responsabilidade sobre as transformações do cotidiano citadino. Os municípios começam, então, a se mobilizar formulando as primeiras políticas públicas que visam nortear o desenvolvimento urbano. Tendo a cidade de Juiz de Fora como pano de fundo, pretendemos analisar como se sucedeu a formulação e aplicação do primeiro “plano diretor” da cidade, o Plano Howyan, em 1892. Palavras-chave: Geografia Histórica; Políticas Públicas; Esfera Municipal; Juiz de Fora. Abstract This paper discusses the role of the State, specifically the municipal level while managing active in planning and setting up of urban space in the late nineteenth century. The transition from Empire to Republic in Brazil brought extremely relevant constitutional changes, among them is the autonomy given to the municipality, which, from this point, seizes with greater determination of responsibility for the transformation of the urban daily life. Municipalities begin then to mobilize formulating the first public policies to guide urban development. Having the city of Juiz de Fora as a backdrop, we intend to analyze how was the formulation and implementation of the first "master plan" of the city, the Howyan Plan, in 1892. Key Words: Historical geography; Public Policy; Municipal Level; Juiz de Fora. 1 Introdução É muito comum entre pesquisadores de geografia histórica ter o urbano enquanto objeto de estudo. Ao propor investigar os processos ocorridos no passado espacial das cidades, deparamo-nos, quase que de imediato, com um problema que, muitas vezes, não nos ocorre a priori. Enquanto geógrafos de formação, alcançamos certo sucesso na compreensão das estruturas e dos processos que regem o desenvolvimento sócio espacial. O que não nos damos conta é o fato de que, na 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail de contato: [email protected].

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

3969

POLÍTICAS PÚBLICAS E PROCESSO URBANO: A CONSTITUIÇÃO ESPACIAL DE JUIZ DE FORA

NO FINAL DO SÉCULO XIX

YURI AMARAL BARBOSA1

Resumo

O presente trabalho pretende discutir o papel do Estado, mais especificamente da esfera municipal, enquanto gestora ativa no planejamento e na constituição do espaço urbano no final do século XIX. A transição do Império para a República no Brasil trouxe consigo mudanças constitucionais extremamente relevantes, entre elas, está a autonomia conferida ao município, que, a partir deste ponto, apodera-se com maior afinco da responsabilidade sobre as transformações do cotidiano citadino. Os municípios começam, então, a se mobilizar formulando as primeiras políticas públicas que visam nortear o desenvolvimento urbano. Tendo a cidade de Juiz de Fora como pano de fundo, pretendemos analisar como se sucedeu a formulação e aplicação do primeiro “plano diretor” da cidade, o Plano Howyan, em 1892. Palavras-chave: Geografia Histórica; Políticas Públicas; Esfera Municipal; Juiz de Fora.

Abstract

This paper discusses the role of the State, specifically the municipal level while managing active in planning and setting up of urban space in the late nineteenth century. The transition from Empire to Republic in Brazil brought extremely relevant constitutional changes, among them is the autonomy given to the municipality, which, from this point, seizes with greater determination of responsibility for the transformation of the urban daily life. Municipalities begin then to mobilize formulating the first public policies to guide urban development. Having the city of Juiz de Fora as a backdrop, we intend to analyze how was the formulation and implementation of the first "master plan" of the city, the Howyan Plan, in 1892.

Key Words: Historical geography; Public Policy; Municipal Level; Juiz de Fora.

1 – Introdução

É muito comum entre pesquisadores de geografia histórica ter o urbano

enquanto objeto de estudo. Ao propor investigar os processos ocorridos no passado

espacial das cidades, deparamo-nos, quase que de imediato, com um problema que,

muitas vezes, não nos ocorre a priori. Enquanto geógrafos de formação, alcançamos

certo sucesso na compreensão das estruturas e dos processos que regem o

desenvolvimento sócio espacial. O que não nos damos conta é o fato de que, na

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora.

E-mail de contato: [email protected].

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maior parte das vezes, aplicamos nossas categorias de análise somente no tempo

presente, na sociedade atual que já nos está dada e que nos habituamos a

interpretar ordinariamente. De certo que é possível, como propõe Abreu (2000,

p.18), transferir nossas categorias de análise através do tempo para interpretar o

passado, contudo, o “ambiente” com o qual nos deparamos ao transporta-las nos é

completamente estranho. É um país estrangeiro, na representação de David

Lowenthal2.

Portanto, a pesquisa em geografia histórica demanda uma análise que vai

além do objeto em si. Pressupõe uma assimilação apurada de todo o contexto

político, econômico e cultural do período no qual o objeto está inscrito, que, no mais

das vezes, é deveras distinto do que se apresenta nos tempos hodiernos. Tal

particularidade impõe aos geógrafos que se debruçam sobre o passado das cidades

uma dupla tarefa. Primeiro, compreender, através da pesquisa histórica, sobre quais

alicerces se estruturava o espaço urbano. Isso implica em entender desde como

funcionava a hierarquia e as ações de cada esfera governamental sobre a cidade,

até mesmo perscrutar acerca da superestrutura que permeava o comportamento

social do período. Segundo, munido deste conhecimento prévio, estabelecer as

respostas pretendidas no problema de pesquisa, no objeto central da investigação.

Entre as ferramentas conceituais que apoderam os geógrafos de uma análise

refinada do espaço está a discriminação dos agentes sociais que atuam,

independentes ou em conjunto, na configuração urbana. Sob diferentes

perspectivas, vários autores já se empenharam em enumerar estes atores partícipes

do processo urbano. Em Justiça Social e a Cidade (1980), buscando identificar os

grupos que operam no mercado de solo urbano, Harvey elenca (i) os usuários de

moradia, (ii) os corretores de imóveis, (iii) os proprietários, (iv) os incorporadores, (v)

as instituições financeiras, e (vi) as instituições governamentais. Mais adiante,

preocupado com a realidade brasileira, Roberto Lobato Corrêa redige O Espaço

Urbano (1989), onde destaca as ações e estratégias de cinco grupos na organização

espacial das cidades: (i) os proprietários dos meios de produção, (ii) os proprietários

2 Sobre tal representação, ver: LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Proj. História, nº17,

nov., São Paulo, 1998.

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fundiários, (iii) os promotores imobiliários, (iv) o Estado, e (v) os grupos sociais

excluídos.

É, contudo, necessário mencionar que a maior parte dos autores que

empenharam-se em pensar essa cidade enquanto o palco, sobre o qual os atores

disputam o poder e, neste embate dialético, se reproduzem e produzem espaço, o

fizeram tendo o nosso mundo contemporâneo como referência. Ou seja, pensaram

este processo na segunda metade do século XX, sob a égide de um intenso

processo de integração econômica e cultural. Algo sem precedentes na história da

humanidade. Por conseguinte, seus elaborados arcabouços conceituais produzem

distorções quando se almeja aplica-los sobre arranjos espaciais pretéritos, fazendo-

se necessário adotar lentes específicas para se ter uma visão acurada quando o

objetivo do trabalho é dar foco ao passado.

Ao analisar a conformação urbana de várias cidades brasileiras no período

colonial, Pedro de Almeida Vasconcelos (1997) busca sanar esta assincronia entre

os modelos contemporâneos de configuração urbana e seu objeto, as cidades

coloniais. Neste sentido, seu trabalho elencou e descreveu as ações dos agentes

modeladores das cidades durante o período colonial, revelando uma miríade de

atores sociais que, se não desapareceram na história (apesar de sua memória e seu

legado permanecer presente em nossa sociedade), atualmente participam de uma

forma completamente distinta da configuração urbana. São eles: (i) a Igreja, (ii) as

ordens leigas, (iii) o Estado, (iv) os agentes econômicos e (v) a população e os

movimentos sociais.

Embora a lógica capitalista de uso e ocupação do solo seja secular, essa

comparação demonstra que seus agentes e suas estratégias de poder sobre o

espaço urbano foi se modificando (e refinando) ao longo dos séculos. Mudaram-se

não somente os atores, mas também os papéis que cada um desempenha nesta

complexa obra que é a cidade. Tomemos o Estado3 como exemplo. Suas atribuições

mudaram sobremaneira entre aquelas descritas por Vasconcelos (1997), voltadas

para a conformação e proteção de um território colonial ultramarino, daquelas

desenvolvidas por Corrêa (1989), referente à uma nação soberana, cuja autonomia

3 Ao nos referirmos ao Estado aqui, aludimos precisamente à esfera municipal, por ser aquela que

está ligada de forma mais estreita com o processo de urbanização.

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é legitimada no cenário mundial. Entre estes dois modelos existe um ponto de

inflexão extremamente relevante, ponto a partir do qual passa a germinar as

primeiras políticas públicas municipais, conformando um novo período no processo

urbano. Nos referimos, precisamente, à transição do período Imperial para a

República, período do qual nos ocuparemos nesta comunicação, tendo como pano

de fundo a cidade de Juiz de Fora, fundada no ano de 1850, na Zona da Mata de

Minas Gerais.

2 – O ponto de inflexão: a transição do Império para a República

A primeira década republicana busca sanar um problema de longa data da

administração pública brasileira: a questão da autonomia municipal. Ou seja, a

possibilidade conferida aos municípios de gerirem seus próprios territórios com suas

próprias rendas, assegurados pela Constituição – questão negligenciada em todo o

período imperial.

O desprestígio da esfera municipal fica patente desde a Constituição da

Mandioca4, a primeira do país, promulgada em 1824. Em todo seu conteúdo, o único

ponto em que menciona o município é com o intuito de caracterizar a composição

das câmaras, detalhando que, posteriormente, seria decretada uma Lei

Regulamentar para especificar suas funções (BRAZIL, 1824). A referida Lei, de 1º de

outubro de 1828, almejava dar forma às câmaras municipais, definir suas

atribuições, e seu processo eleitoral, neste sentido, decreta em seu artigo nº 24 que

“as Camaras são corporações meramente administrativas, e não exercerão

jurisdicção alguma contenciosa” (BRAZIL, 1828). Em outras palavras, observamos

que as câmaras não gozavam de influência política, nem, tampouco, de soberania

na gestão de seus interesses.

Segundo Meirelles (1985, p.5), as elites provinciais desconfiavam da

capacidade administrativa dos municípios, outrossim, receavam que suas câmaras

se transformassem em um reduto de efervescência e aspiração política de camadas

4 Tal denominação é oriunda do caráter censitário do pleito, composto apenas por aqueles cidadãos

que possuíssem uma renda anual equivalente a 150 alqueires de farinha de mandioca, limitando, assim, o voto às elites agrárias do país.

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desprestigiadas da população (LEAL, 1976, p.74). Sujeitas ao Império e às suas

respectivas províncias, as casas legislativas ficaram reduzidas ao imobilismo

administrativo, econômico e político, ceifando sua autonomia.

No contrapasso, suas responsabilidades administrativas eram inúmeras: tinha

que “cuidar do centro urbano, estradas, pontes, prisões, matadouros, abastecimento,

iluminação, água, esgotos, saneamento, [...] inspeção de escolas primárias,

assistência a menores, hospitais, cemitérios, sossego público, polícia de costumes”,

etc. (LEAL, 1976, p.75).

Com o advento da República, a Constituição modificou-se significativamente:

apesar de reservar apenas o artigo nº68 para se referir à esfera municipal, o tópico

consagrou sua autonomia, embora ficasse ainda sujeito à Constituição específica do

estado. Neste artigo, observa-se que “os Estados organizar-se-ão de forma que

fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu

peculiar interesse” (BRAZIL, 1891, grifo nosso).

Na interpretação do jurista Hely Meirelles, tal legislação afirmou o princípio da

autonomia e discriminou as atribuições municipais, contudo, tais determinações

ficaram limitadas à tinta no papel, de modo que “durante os 40 anos em que vigorou

a Constituição de 1891, não houve autonomia municipal no Brasil” (1985, p.7). Nesta

perspectiva, os municípios ficaram sujeitos aos ditames dos estados, e, amiúde, dos

grandes latifundiários locais, conduzindo o país à expressão mais aguda do

coronelismo5. À asserção de Meirelles, faz-se mister um contraponto: a despeito da

forte presença do coronelismo no Brasil reforçar o fato de a Constituição ter ficado

“apenas no papel”, o que percebemos é que a Constituição específica do estado de

5 Conceituando este período, Leal afirma que o habitat destes “coronéis” eram os municípios

predominantemente rurais, do interior, cujo isolamento constituía-se apanágio de primeira ordem. Neste sentido, as atividades comerciais e industriais eram inversamente proporcionais à vigência da prática política do coronelismo no Brasil (1976, p.251 et seq.). Leal faz ainda uma interessante análise sobre a fonte de poder destes “coronéis”: para o autor, não deve-se reduzir este episódio de nossa história à simples afirmação anormal de poder privado, ao contrário, o coronelismo pressupõe certa decadência deste poder. “Este sistema político é dominado por uma relação de compromisso entre o poder privado decadente e o poder público fortalecido”, compromisso este que exprime certa debilidade de ambas as partes. Se por um lado a Constituição Republicana institucionalizava os poderes dos estados para conter a insubmissão da esfera privada, por outro, este poder paralelo fortalece-se na medida em que a abolição e o sufrágio, estendido à todos que pudessem assinar seus nomes, conferem o poder de voto aos trabalhadores rurais: massa de manobra na mão dos grandes latifundiários (LEAL, 1986, p.251).

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Minas Gerais garantia, ao menos em teoria, a autonomia dos órgãos públicos

municipais espelhada numa descentralização administrativa.

No artigo nº 75 da referida Constituição, observamos tal cenário explicitado

através de seus incisos (MINAS GERAES, 1907, p.141-142):

II. A administração municipal, inteiramente livre e independente, em tudo quanto respeita ao seu peculiar interesse, será exercida em cada município por um conselho eleito pelo povo, com a denominação de Camara Municipal. IV. O orçamento municipal, que será anuo e votado em época prefixada [...], a creação de empregos municipeas, a instrução primaria e profissional, a desapropriação por necessidade ou utilidade [são] objetos de livre deliberação das camaras municipaes, sem dependência de approvação de qualquer outro poder, guardadas as restrições feitas nesta Constituição. VI. O governo do Estado não poderá intervir em negócios peculiares do município, senão no caso de perturbação da ordem pública.

Salientamos ainda o artigo nº 76, onde fica declarado que “é da exclusiva

competência das municipalidades decretar e arrecadar os impostos sobre immoveis

rurais e urbanos e de industrias e profissões” (MINAS GERAES, 1907, p. 144), fato

que facultava aos municípios a criação suas próprias fontes de renda. Deste modo,

acreditamos que, ao menos nos centros mais urbanizados do estado, gozava-se de

certa autonomia, seja ela política, administrativa ou financeira.

Comunga deste posicionamento a obra publicada por Barbosa (2013, p.77),

ao afirmar que as novas atribuições dos municípios e o acréscimo às receitas dos

mesmos, estribados na descentralização administrativa outorgada pela Constituição

de 1891, propiciou não só maior autonomia aos órgão públicos municipais, como

fomentou o surgimento de uma nova figura, um novo agente na cidade: o político

profissional. O autor endossa esta interpretação afirmando ainda que “a organização

dos municípios aprofundava ainda mais a tendência de descentralização, ao tornar o

distrito a base da organização administrativa estadual” (2013, p.38).

3 – As políticas públicas em Juiz de Fora

É, portanto, através da Constituição estadual de 1891 que será possível

consolidar neste cenário o papel da esfera pública. A partir da estatização dos

instrumentos de intervenção, a municipalidade apodera-se da responsabilidade

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sobre a transformação do cotidiano citadino, passando a ser legitimamente o órgão

fomentador das infraestruturas indispensáveis para o desenvolvimento urbano.

Neste sentido Miranda afirma que, “salvo em circunstâncias muito peculiares e

passageiras, não é possível falar, antes de 1892, em formulação de políticas

públicas” (1990, p.103). 1892, pois, somente em março deste ano tomava posse a

primeira câmara eleita após a proclamação da República, contando quinze

vereadores eleitos pelo povo, sendo um, Francisco Bernardino, ocupante da cadeira

de presidente da câmara, o primeiro agente executivo do município.

Atendendo aos anseios republicanos, as medidas implantadas a partir deste

momento gestavam a esfera municipal, que assumia, doravante, maior

protagonismo no processo de desenvolvimento urbano. Consequentemente, eram

planejadas vultuosas obras para este primeiro mandato (BARBOSA, 2013, p.89),

sobretudo aquelas ligadas ao saneamento urbano, prioridade de sua campanha. A

situação endógena, por sua vez, era propícia: (i) – Havia uma demanda real da

população por melhorias em infraestrutura, seu número, afinal, havia alavancado de

6.456 habitantes em 1854 (SOUZA, 1998, p.41) para 22.586 em 1890 (BRAZIL,

1898, p.55), e constantes reclamações eram registradas nos jornais acerca das

condições sanitárias do município, como a existência de regiões pantanosas, e

frequentes inundações do rio que corta a cidade, o Paraibuna. (ii) – Atrelado à essa

demanda, havia um desinteresse da esfera privada por investimentos desse cariz,

visto que eram necessários vultuosos recursos cujo retorno não se dava diretamente

em lucro, mas em qualidade de vida para a população. (iii) – A nova Constituição

alavancara a arrecadação municipal de modo que, no orçamento de 1893 havia

dobrada a receita em relação ao ano anterior, possibilitando, deste modo alavancar

uma possível arrecadação extraordinária6. (iv) – A Sociedade de Medicina e Cirurgia

de Juiz de Fora é outro fator que irá pressionar a demanda por obras públicas na

cidade desde sua fundação, em 1889. Os critérios de ação da sociedade,

6 Sobre estes empréstimos, a Constituição Estadual de 1891 reservava o artigo nº 79 para tratar

sobre os créditos adquiridos pelas câmara. Em parágrafo único, enuncia que “não serão contrahidos novos empréstimos, quando o encargo dos existentes consumirem a quarta parte da renda municipal” (MINAS GERAIS, 1907, p.145).

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respaldado na teoria miasmática7, eram baseados na transformação e normatização

dos espaços. Neste sentido, “atuou para organizar e tornar salubre o espaço público

e privado no município visando impedir a propagação das doenças” (BARROSO,

2008, p.61).

Esta miríade de fatores coadunar-se-ia num projeto de saneamento e

expansão de Juiz de Fora que entrou para a história como o Plano Howyan, muitas

vezes referido na historiografia local como o primeiro “plano diretor” da cidade.

Enquanto agente executivo municipal, Francisco Bernardino convidou o

engenheiro francês Gregório Howyan8 para assumir o cargo de diretor de obras

municipais. Episódio que ganhou reconhecimento da imprensa, que afirmou ser uma

decisão acertada, já que o engenheiro “gosa de elevada reputação pelos seus

variados conhecimentos scientíficos e pelos importantes trabalhos que já tem

executado em diversas cidades” (O PHAROL, 12 ago. 1892). Desde então passa, o

engenheiro, a sugerir melhorias na estrutura urbana, como no abastecimento

d’água, na construção de estradas, na indicação de técnicos especializados em

saneamento e na autoria de um projeto de saneamento e expansão da cidade

(OLIVEIRA, 1966, p.164). Suas pretensões eram grandes, segundo a câmara,

através da execução deste projeto seria “conseguido o saneamento completo desta

cidade, tornando-a ao mesmo tempo, pelo embelezamento como pela salubridade,

sem rival na América do Sul” (O PHAROL, 8 ago. 1894).

A reforma urbana aparecia de forma impetuosa na senda da nova

administração republicana, e, por conseguinte, na autonomia conferida ao município

pelas constituições federal e estadual. A ambição centrava-se na transformação da

cidade de Juiz de Fora seguindo o modelo dos grandes centros urbanos europeus

7 Segundo esta teoria, o ambiente era determinante no processo de dispersão das doenças. Desta

forma, as enfermidades eram provenientes dos solos e da atmosfera insalubres, que, ao entrar em contato com os habitantes dessas localidades, provocavam todo tipo de moléstias. 8 O engenheiro era formado pela École des Ponts et Chaussées de France, e, em 1891 fora

convidado para integrar a comissão de técnicos que iria escolher o local da nova capital do Estado de Minas Gerais. Passando por Juiz de Fora naquele ano, afeiçoou-se tanto à cidade que resolveu, por conta própria, elaborar um plano revolucionário de abastecimento de água e esgoto. Era, amiúde, visto pelos morros da cidade com seus auxiliares aferindo com instrumentos de engenharia e anotando em cadernetas as características morfológicas da cidade. Francisco Bernardino, na época membro do Conselho de Intendência, impressionara-se com o arrojo do trabalho apresentado, assim, quando eleito e de posse do poder executivo do município, convidou o mesmo para tal cargo (OLIVEIRA, 1966, p.162).

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(BARBOSA, 2013, p.95). O projeto do engenheiro francês guardava fortes traços de

monumentalidade, não era, portanto, exequível no período de um mandato, ao

contrário, exigiria todo um esforço e planejamento a longo prazo. Howyan, então,

discrimina as ações previstas em seu trabalho elencando-os na ordem prioritária de

execução: “É preciso, primeiramente, tirar a umidade das ruas e para isso, fazer

canais de cintura que deverão recolher a parte mais agressiva das águas”

(HOWYAN, 2004, p.151), preocupado com a salubridade da cidade, Howyan

enfatiza o fato de que, embora as águas do rio invada superficialmente as ruas da

cidade, ela acaba propiciando a eliminação de focos de miasmas ao limpar as

tubulações subterrâneas de esgoto. Posteriormente,

é indispensável baixar levemente o leito do rio e elevar a parte baixa da cidade cujo terreno insalubre é composto, em grande parte, de matérias orgânicas, encontrando-se enlameado, sem oferecer a solidez necessária que permita edificar construções firmes. É necessário desvencilhar-se da vegetação que o obstrui, desinfeta-lo com uma certa camada de cal, e executar, nesse local, trabalhos de aterro e, só então será possível construir boas habitações (HOWYAN, 2004, pp.151-153).

Em seguida, é a vez da retificação do rio e a drenagem dos pântanos, o

engenheiro planejava uma derivação do rio Paraibuna, para, com isso, amenizar a

sinuosidade de seu canal no trecho urbano, aumentando a velocidade de

escoamento das águas e evitando, consequentemente, o transbordo de sua calha. O

projeto previa, ainda, a criação de uma Polícia Sanitária, com o intuito de fiscalizar

as condições de higiene do município, sobretudo das habitações. Por fim, o autor

comenta de forma mais breve acerca da construção de uma rede completa de

esgotos e de uma rede de distribuição d’água para a cidade, que goza de

“abundante recurso hídrico potável de fácil captação e de módica execução”

(HOWYAN, 2004, p.153). Sem dúvida alguma seu projeto era, senão ambicioso,

pelo menos vultoso para a jovem “Princesa de Minas”, transparecendo o desejo do

engenheiro de dotar Juiz de Fora com todo o aparato das grandes cidades

europeias, tendo como modelo Paris, recém-reformada pelo Barão de Haussmann9.

9 Sobre a reforma de Paris no século XIX, recomendamos fortemente a obra de David Harvey, ainda

sem tradução no Brasil: Paris, capital of modernity (2003).

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Na prática, o Plano Howyan esbarrou numa série de empecilhos para

consubstanciar a totalidade de seu projeto. Alguns de ordem prática, como a demora

na compra e importação de matérias-primas essenciais, como o cimento, que vinha

da França, e a contratação de mão-de-obra especializada, como indicam os

anúncios dos periódicos da época. Outros de ordem financeira, já que as obras

foram financiadas pela venda de títulos da dívida pública municipal, e somente cerca

da metade das apólices foram vendidas, não alçando, portanto, o total da verba

necessária para a execução do plano. Um erro aritmético do engenheiro, que

superdimensionava a obra, também fez parte do pacote de problemas que o plano

apresentou, tornando-o passível à variadas críticas nos jornais locais. Decorrente

deste, veio, em tom mais agudo, críticas que colocavam em xeque a competência do

presidente da câmara, Francisco Bernardino. Comandada, sobretudo, pelo diretor

Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora, João Penido, as críticas, na

realidade, refletiam dissensões maiores, inerentes ao jogo político da época, que

envolvia “tanto monarquistas e republicanos como frações da elite local contrárias a

grupos no poder a nível municipal e estadual” (MIRANDA, 1990, p.185). Esses

variados problemas acabaram por prejudicar a imagem do político na cidade, que

acabou sendo derrotado nas eleições posteriores, e o Plano Howyan,

consequentemente, foi suspenso.

4 – Considerações Finais

Não obstante, o plano de saneamento e expansão da cidade de Juiz de Fora

é um marco em sua história. Reflete precisamente o momento em que o papel do

município cambia, passando de um agente que realiza intervenções pontuais,

esporádicas, no espaço urbano, para um gestor ativo de seu processo, responsável

pelo seu planejamento e desenvolvimento. Destacamos que esta mudança foi

possível somente por meio das condições políticas do período, que garantiu

autonomia política, administrativa e financeira dos municípios, que passaram a

formular suas primeiras políticas públicas. A pesquisa geográfica que pretende se

debruçar sobre estas formas pretéritas de organização espacial deve buscar dar

conta dessas particularidades inerentes a cada região ou mesmo a cada núcleo

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urbano, demandando um esforço considerável para percorrer os caminhos, muitas

vezes tortuosos, do passado.

5 – Referências Bibliográficas

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