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POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA: CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA E DIREITOS HUMANOS Prof Gesiel Oliveira – drgesiel.blogspot.com 1) História do sistema penal brasileiro: 1.1 - Introdução Neste ano de 2016, o “Massacre do Carandiru”, tragédia na qual 111 detentos foram assassinados e 130 feridos pela polícia, que invadiu o local para conter uma rebelião no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, completa 24 anos dia 2 de outubro. A tragédia foi marcada pelo exagero da força policial para controlar a rebelião, que entrou no pavilhão não para contê-la, mas para “acabar” com ela e os presos que ali estavam. A violência sempre esteve presente no sistema penitenciário e, mesmo após o massacre, é comum nos depararmos com notícias envolvendo violência e morte dentro dos presídios, seja entre os próprios detentos ou dos agentes do Estado contra eles. A realidade carcerária do Brasil é uma mescla de condições cruéis, desumanas ou degradantes; tortura como método de interrogatório, punição, controle, humilhação e extorsão; a superlotação de presos; controle dos presídios por facções criminosas; e altos níveis de corrupção. O surpreendente é a extensão do problema, que não é recente, ele sempre esteve presente no sistema penitenciário nacional. Esses problemas vão desde a falta de vagas e consequente superlotação das prisões, como a falta de estrutura básica nos estabelecimentos, má-condição do preso dentro da prisão, violência praticada pelos agentes do Estado contra os presos, e a falta dos estabelecimentos adequados para o cumprimento das penas definidas pela lei. Por várias vezes se vê uma tentativa do legislador de inovar em matéria de pena, mas esse avanço acaba sendo freado pela realidade do sistema carcerário, que não acompanha esse desenvolvimento. A Penitenciária do Estado (conhecida comumente pelo bairro onde se localizava: Carandiru) em sua origem era considerada uma prisão modelo para toda a nação, era assim considerada por “servir de modelo de disciplinamento do preso como trabalhador, ajustando assim ao momento de avanço da industrialização e urbanização pelo qual passava o Brasil e, em particular, a cidade de São Paulo”. Mesmo considerada um modelo prisional, a Penitenciária do Estado sofria de certos males que sempre estiveram presentes dentro da prisão. A violência é algo muito comum em ambientes como esse, a arbitrariedade dos funcionários e responsáveis, principalmente no caso de punições disciplinares, já que a penitenciária seguia um regime rigoroso de disciplina. É fácil observar que a prisão, por si mesma, acaba sendo uma violência contra o indivíduo; seria essa violência estatal justificável? Além disso, a prisão tem como objetivo a ressocialização do preso na sociedade, mas é possível dizer que ela consegue cumprir seu papel? Talvez na sociedade atual o contrário seja mais real, ao invés de reinserir o preso na sociedade, a prisão acaba se tornando um impedimento maior para a tal ressocialização. Nota-se atualmente uma tendência para a diminuição dos casos de prisão e um aumento para as chamadas penas alternativas, que visam tirar essa taxatividade do Direito Penal, tão perigosa para a ressocialização do preso.

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA: CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA E DIREITOS HUMANOSProf Gesiel Oliveira – drgesiel.blogspot.com

1) História do sistema penal brasileiro:1.1 - IntroduçãoNeste ano de 2016, o “Massacre do Carandiru”, tragédia na qual 111 detentos foram assassinados e 130 feridos pela polícia, que invadiu o local para conter uma rebelião no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, completa 24 anos dia 2 de outubro. A tragédia foi marcada pelo exagero da força policial para controlar a rebelião, que entrou no pavilhão não para contê-la, mas para “acabar” com ela e os presos que ali estavam.A violência sempre esteve presente no sistema penitenciário e, mesmo após o massacre, é comum nos depararmos com notícias envolvendo violência e morte dentro dos presídios, seja entre os próprios detentos ou dos agentes do Estado contra eles. A realidade carcerária do Brasil é uma mescla de condições cruéis, desumanas ou degradantes; tortura como método de interrogatório, punição, controle, humilhação e extorsão; a superlotação de presos; controle dos presídios por facções criminosas; e altos níveis de corrupção. O surpreendente é a extensão do problema, que não é recente, ele sempre esteve presente no sistema penitenciário nacional. Esses problemas vão desde a falta de vagas e consequente superlotação das prisões, como a falta de estrutura básica nos estabelecimentos, má-condição do preso dentro da prisão, violência praticada pelos agentes do Estado contra os presos, e a falta dos estabelecimentos adequados para o cumprimento das penas definidas pela lei. Por várias vezes se vê uma tentativa do legislador de inovar em matéria de pena, mas esse avanço acaba sendo freado pela realidade do sistema carcerário, que não acompanha esse desenvolvimento.A Penitenciária do Estado (conhecida comumente pelo bairro onde se localizava: Carandiru) em sua origem era considerada uma prisão modelo para toda a nação, era assim considerada por “servir de modelo de disciplinamento do preso como trabalhador, ajustando assim ao momento de avanço da industrialização e urbanização pelo qual passava o Brasil e, em particular, a cidade de São Paulo”. Mesmo considerada um modelo prisional, a Penitenciária do Estado sofria de certos males que sempre estiveram presentes dentro da prisão. A violência é algo muito comum em ambientes como esse, a arbitrariedade dos funcionários e responsáveis, principalmente no caso de punições disciplinares, já que a penitenciária seguia um regime rigoroso de disciplina.É fácil observar que a prisão, por si mesma, acaba sendo uma violência contra o indivíduo; seria essa violência estatal justificável? Além disso, a prisão tem como objetivo a ressocialização do preso na sociedade, mas é possível dizer que ela consegue cumprir seu papel? Talvez na sociedade atual o contrário seja mais real, ao invés de reinserir o preso na sociedade, a prisão acaba se tornando um impedimento maior para a tal ressocialização. Nota-se atualmente uma tendência para a diminuição dos casos de prisão e um aumento para as chamadas penas alternativas, que visam tirar essa taxatividade do Direito Penal, tão perigosa para a ressocialização do preso.

1.2. A origem do sistema penitenciárioO Direito Penal, até o século XVIII, era marcado por penas cruéis e desumanas, não havendo até então a privação de liberdade como forma de pena, mas sim como custódia, garantia de que o acusado não iria fugir e para a produção de provas por meio da tortura (forma legítima, até então), o acusado então aguardaria o julgamento e a pena subsequente, privado de sua liberdade, em cárcere. “O encarceramento era um meio, não era o fim da puniçãoFoi apenas no século XVIII que a pena privativa de liberdade passou a fazer parte do rol de punições do Direito Penal, com o gradual banimento das penas cruéis e desumanas, a pena de prisão passa a exercer um papel de punição de facto, é tratada como a humanização das penas. Já segundo Foucault a mudança no meio de punição vêm junto com as mudanças políticas da época, com a queda do antigo regime e a ascensão da burguesia a punição deixa de ser um espetáculo público, já que assim incentiva-se a violência, e é agora uma punição fechada, que segue regras rígidas, portanto muda-se o meio de se fazer sofrer, deixa de punir o corpo do condenado e passa-se a punir a sua “alma”. Essa mudança, segundo o autor, é um modo de acabar com as punições imprevisíveis e ineficientes do soberano sobre o condenado, os reformistas concluem que o poder de julgar e punir deve ser melhor distribuído, deve haver proporcionalidade entre o crime e a punição já que o poder do Estado é tipo de Poder Público.É no fim do século XVIII que começam a surgir os primeiros projetos do que se tornariam as penitenciárias. Primeiro com John Howard (1726-1790), que após ser nomeado xerife do condado de Bedfordshire, conhece a prisão de seu condado e decide conhecer a realidade das outras prisões da Inglaterra. É então em 1777 que

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publica a primeira edição de The State of Prisons in England and Wales (tradução livre: As condições das prisões da Inglaterra e Gales), ele faz uma crítica à realidade prisional da Inglaterra e propõe uma série de mudanças, sendo a principal a criação de estabelecimentos específicos para a nova visão do cárcere, antes o prisioneiro ficava na prisão aguardando a punição, a prisão tinha um caráter temporário, agora a prisão era a punição em si, portanto as prisões por toda a Europa e Estados Unidos não tinham a infraestrutura ou eram pensadas nessa nova realidade punitiva.Outro autor importante foi o inglês Jeremy Bentham (1748-1832), entre suas contribuições para a reforma do sistema punitivo, ele era adepto de uma punição proporcional, “a disciplina dentro dos presídios deve ser severa, a alimentação grosseira e a vestimenta humilhante”, mas todo esse rigor serve para mudar o caráter e os hábitos do delinquente. Em 1787 escreve “Panóptico”, concebido como uma penitenciária modelo, é um conceito em que um vigilante consegue observar todos os prisioneiros sem que estes o vejam. A prisão seria uma estrutura circular, com as celas em sua borda, e o meio vazio se encontra a torre com o vigia “onipresente”.Foucault usa o panóptico em sua obra como uma metáfora para as sociedades ocidentais modernas e sua busca pela disciplina, no modelo panóptico não é necessário as grades, correntes ou barras para a dominação, a visibilidade permante é uma forma de poder própria, e segundo ele não só as prisões evoluíram conforme esse modelo, mas todas as estruturas hierárquicas como escolas, hospitais, fábricas e os quartéis.No final do século XVIII e início do século XIX surge na Filadélfia os primeiros presídios que seguiam o sistema celular, ou sistema da Filadélfia como tambem é conhecido, era um sistema de reclusão total, no qual o preso ficava isolado do mundo externo e dos outros presos em sua cela, que além de repouso servia para trabalho e exercícios.Em 1820 outro sistema surge nos Estados Unidos, conhecido como “Sistema Auburn” ou “Sistema de Nova Iorque”, continha uma certa similaridade com o sistema da Filadélfia, a reclusão e o isolamento absoluto, mas neste novo sistema esta reclusão era apenas durante o período noturno. Já durante o dia as refeições e o trabalho eram coletivos, mas impunha-se regra de silêncio, os presos não podiam se comunicar ou mesmo trocar olhares, a vigilância era absoluta.É em Norfolk, colônia inglesa, nasce um novo sistema prisional que combina os outros dois sistemas e cria a progressão de pena. O regime inicial funcionava como o Sistema da Filadélfia, ou seja, de isolamento total do preso; após esse período inicial o preso então era submetido ao isolamento somente noturno, trabalhando durante os dias sob a regra do silêncio (sistema de Auburn). Nesse estágio, o preso ia adquirindo “vales” e, depois de algum tempo acumulando esses vales, poderia entrar no terceiro estágio, no qual ficaria em um regime semelhante ao da “liberdade condicional” e, depois de cumprir determinado prazo de sua pena, seguindo as regras do regime, obteria a liberdade em definitivo.Após essa expêriencia em Norfolk, o sistema é levado para a Inglaterra e aperfeiçoado na Irlanda. No novo sistema irlandês, há uma quarta fase, antes da “liberdade condicional”, na qual o preso trabalhava em um ambiente aberto sem as restrições que um regime fechado compreende. Após esse período, vários outros sistemas de prisão foram surgindo, como o Sistema de Montesinos na Espanha que tinha trabalho remunerado, e previa um caráter “regenerador” na pena. Na Suíça criam um novo tipo de estabelecimento penitenciário, em que os presos ficavam na zona rural, trabalhavam ao ar livre, eram remunerados e a vigilância era menor.

1.3. As prisões no BrasilO Brasil, até 1830, não tinha um Código Penal próprio por ser ainda uma colônia portuguesa, submetia-se às Ordenações Filipinas, que em seu livro V trazia o rol de crimes e penas que seriam aplicados no Brasil. Entre as penas, previam-se as de morte, degrado para as galés e outros lugares, penas corporais (como açoite, mutilação, queimaduras), confisco de bens e multa e ainda penas como humilhação pública do réu; não existia a previsão do cerceamento e privação de liberdade, posto que as ordenações são do século XVII e os movimentos reformistas penitenciários começam só no fim do século seguinte, os estabelecimentos prisionais do Brasil seguiam o antigo entendimento de prisão como meio de evitar a fuga para a pena que viria e não como fim, como pena.Em 1824, com a nova Constituição, o Brasil começa a reformar seu sistema punitivo: bane-se as penas de açoite, a tortura, o ferro quente e outras penas cruéis; determina-se que as cadeias devem ser “seguras, limpas e bem arejadas havendo diversas casas para a separação dos réus, conforme a circunstâncias, e natureza dos seus crimes”. A abolição das penas cruéis não foi plena, já que os escravos ainda estavam sujeitos a elas.

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Em 1830, com o Código Criminal do Império, a pena de prisão é introduzida no Brasil em duas formas: a prisão simples e a prisão com trabalho (que podia ser perpétua); com o novo Código Criminal a pena de prisão passa a ter um papel predominante no rol das penas, mas ainda se mantinham as penas de morte e de galés (trabalhos forçados e também poderia ser perpétua). O Código não escolhe nenhum sistema penitenciário específico, ele deixa livre a definição desse sistema e do regulamento a ser seguido a cargo dos governos provinciais.Em seu art. 49, já se notava a dificuldade de implantação da pena prisão com trabalhos na realidade brasileira.“Art. 49. Enquanto se não estabelecerem as prisões com as comodidades, e arranjos necessários para o trabalho dos réus, as penas de prisão com trabalho serão substituídas pela de prisão simples, acrescentando-se em tal caso á esta mais a sexta parte do tempo, por que aquelas deveriam impor-se.”O artigo mostra como a situação penitenciária da época era precária, o próprio Código já apresentava uma alternativa para a pena de “prisão com trabalho”, se esta não estivesse disponível para o réu.As penitenciárias do Brasil ainda eram precárias e sofriam de variados problemas; em 1828 a Lei Imperial de 1º de outubro cria as Câmaras Municipais e, entre suas atribuições, têm em seu art. 56 o seguinte:“Art. 56. Em cada reunião, nomearão uma comissão de cidadãos probos, de cinco pelo menos, a quem encarregarão a visita das prisões civis, militares, e eclesiásticas, dos cárceres dos conventos dos regulares, e de todos os estabelecimentos públicos de caridade para informarem do seu estado, e dos melhoramentos, que precisam”.Essas comissões que visitavam as prisões produziram relatórios de suma importância para a questão prisional do país, trazendo a realidade lastimável desses estabelecimentos. O primeiro relatório da cidade de São Paulo, datado em abril de 1829 já tratava de problemas que ainda hoje existem, como falta de espaço para os presos, mistura entre condenados e aqueles que ainda aguardavam julgamento. Já no relatório de setembro do mesmo ano, a situação relatada pela comissão é ainda pior. Ao descrever o sórdido ambiente, imundo e cheio de fumaça, deixa-se claro que os presos faziam pequenos objetos (pentes, colheres) com chifres de boi. Assistência médica precária, alimentação ruim e pouca, mistura de presos condenados e não condenados, falta de água, acúmulo de lixo fizeram a comissão concluir que tal era “o miserável estado da Cadea capas de revoltar ao espírito menos philantropo”.Os relatórios dos anos seguintes apresentam, em sua maioria, a mesma realidade já apresentada, criticando a precariedade dos estabelecimentos prisionais, constando ofensa clara à Constituição de 1824, que trazia instituições prisionais “limpas, seguras e bem arejadas...”, no relatório de 1841 a comissão já tratava a Cadeia como uma “escola de imoralidade erecta pelas autoridades, paga pelos cofres públicos”. A comissão desse ano apresenta um olhar mais crítico, trazendo sugestões para a futura Casa de Correção de São Paulo (inaugurada em 1852) assim como propostas imediatas, como tirar daquele ambiente os presos considerados “loucos”, a separação dos demais presos por ambientes e a melhoria na higiene e na alimentação.É nessa época que se inicia o debate no Brasil quanto aos sistemas penitenciários estrangeiros, principalmente o Sistema da Filadélfia e o Sistema de Auburn, já que no ano de 1850 e 1852 as Casas de Correção do Rio de Janeiro e de São Paulo seriam inauguradas, respectivamente. Foram influenciadas pelo estilo panóptico de Jeremy Bentham, notável era a preocupação em criar um ambiente favorável para o cumprimento das penas que o Código de 1830 trouxe (prisão simples e prisão com trabalho) e para o Sistema de Auburn, que foi escolhido para as duas prisões, elas continham oficinas de trabalho, pátios e celas individuais.Ambas as cadeias apresentavam um quadro deslocado comparado com a situação das outras prisões do país, elas não provocaram um mudança nas outras prisões que mantinham aquele padrão violento e com ambientes impróprios para uma cadeia. As duas novas cadeias foram bem sucedidas considerando-as como um sistema único, mas não suficiente para mudarem o panorama das outras prisões do Brasil, que continuou terrível. Elas abrigavam todo tipo de preso, desde presos condenados à prisão com trabalho, prisão simples, presos condenados às galés, presos correcionais (não sentenciados) como também vadios, mendigos, desordeiros, índios, africanos “livres” e menores.É a partir de 1870 que começam as críticas a Casa de Correção de São Paulo e principalmente ao sistema de Auburn que era adotado. Até então, no Brasil, marcado pela escravidão, o sistema Auburn se encaixava muito bem com a mentalidade da época: “O modelo auburniano tributa suas esperanças de regeneração no trabalho fora da cela, duro e sob silêncio. [...] Há uma concepção aqui de que o crime é o avesso do mundo do trabalho. É pensado como a consequência de um alheamento do indivídui das virtudes que o trabalho proporciona. Ócio e vícios de toda sorte o predispõem ao crime. Para os defensores do modelo Auburn, a regeneração, assim, é menos a consequência de uma conversão da alma que brota da meditação [Sistema da Filadélfia] e mais o resultado de um condicionamento do corpo promovido pelo trabalho na prisão”.

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O País sofria influência de várias doutrinas norte-americanas e europeias, relativas ao crime, criminoso e o próprio sistema carcerário, essas influências lentamente influenciaram os operadores do Direito Penal no Brasil até sua consagração em 1890 com o novo Código Penal. O sistema da Filadélfia é cogitado para ser implantado no País por alguns defensores, mas o sistema irlandês prevalece, já que conciliava o sistema de Auburn (em vigor até então) e o sistema da Filadélfia.O novo Código aboliu as penas de morte, penas perpétuas, açoite e as galés e previa quatro tipos de prisão: a prisão celular, a maioria dos crimes previstos no Código tinha esse tipo de punição (art. 45); reclusão em “fortalezas, praças de guerra ou estabelecimentos militares” destinada para os crimes políticos contra a recém-formada República (art. 47 do Código); prisão com trabalho que era “cumprida em penitenciárias agrícolas, para esse fim destinadas, ou em presídios militares” (art. 48 do Código); Prisão disciplinar “cumprida em estabelecimentos industriaes especiaes, onde serão recolhidos os menores até á idade de 21 annos” (art. 49), uma inovação do Código foi o limite de 30 anos para as suas penas.O Código, em seus arts. 45 e 50, assume claramente o Sistema Progressista Irlandês, notadamente pela progressão de pena presente no regime prisional do mais fechado, até o regime aberto:“Art. 45. A pena de prisão cellular será cumprida em estabelecimento especial com isolamento cellular e trabalho obrigatorio, observadas as seguintes regras:a) si não exceder de um anno, com isolamento cellular pela quinta parte de sua duração;b) si exceder desse prazo, por um periodo igual a 4ª parte da duração da pena e que não poderá exceder de dous annos; e nos periodos sucessivos, com trabalho em commum, segregação nocturna e silencio durante o dia.Art. 50. O condemnado a prisão cellular por tempo excedente de seis annos e que houver cumprido metade da pena, mostrando bom comportamento, poderá ser transferido para alguma penitenciaria agricola, afim de ahi cumprir o restante da pena.§ 1º Si não perseverar no bom comportamento, a concessão será revogada e voltará a cumprir a pena no estabelecimento de onde sahiu.§ 2º Si perseverar no bom comportamento, de modo a fazer presumir emenda, poderá obter livramento condicional, comtanto que o restante da pena a cumprir não exceda de dous annos”.Desde a promulgação do Código Criminal de 1830, já se percebia uma escassez de estabelecimentos próprios para o cumprimento das penas previstas no Código. A realidade no novo Código de 1890 é a mesma, enquanto a maioria dos crimes previa pena de prisão celular (que envolvia trabalhos dentro do presídio) não existiam estabelecimentos desse tipo para o cumprimento e havia um déficit de vagas enorme. Novamente o legislador se vê obrigado a criar alternativas para o cumprimento dessas penas como se vê no art. 409:“Art. 409. Emquanto não entrar em inteira execução o systema penitenciario, a pena de prisão cellular será cumprida como a de prisão com trabalho nos estabelecimentos penitenciarios existentes, segundo o regimen actual; e nos logares em que os não houver, será convertida em prisão simples, com augmento da sexta parte do tempo.§ 1º A pena de prisão simples em que for convertida a de prisão cellular poderá ser cumprida fóra do logar do crime, ou do domicilio do condemnado, si nelle não existirem casas de prisão commodas e seguras, devendo o juiz designar na sentença o logar onde a pena terá de ser cumprida”.Existia um grande abismo entre o que era previsto em lei com a realidade carcerária; por exemplo, no ano de 1906, foram condenados 976 presos, no estado de São Paulo, à prisão celular, existiam apenas 160 vagas para esse tipo de prisão no estado, portanto 816 presos (90,3%) cumpriam pena em condições diversas àquela prevista no Código Penal vigente. Essa disparidade entre pena e lei dava-se pela grande quantidade de crimes com previsão de pena celular, e uma absoluta falta de estabelecimentos próprios para o cumprimento dessa pena.O problema da falta de vagas nas prisões da Capital criava outro grave problema de deterioração do ambiente dos presos. E como demonstra Salla este quadro todo era agravado por uma prática comum das comarcas do interior, a transferência dos presos para a Cadeia da Capital, quando a comarca não tinha uma prisão própria para o cumprimento da pena. A prática torna-se tão comum que o chefe da Polícia, João Baptista de Mello Peixoto, emite uma circular, em novembro de 1895, pedindo para os juízes priorizarem a transferência dos presos para comarcas vizinhas em vez da Cadeia da Capital.No final do século XIX o problema penitenciário no estado de São Paulo é aparente, inicia-se um movimento para a modernização de todo o sistema penitenciário, não só dos estabelecimentos, mas também das leis e a “criação de várias instituições que comporiam uma rede de prevenção e repressão ao crime e de tratamento ao criminoso”. Um dos envolvidos nesse projeto era o Senador Paulo Egydo do Senado paulista, ele é o precursor de um grande projeto que modificaria todo o sistema penitenciário estadual “previa a construção,

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ou adaptação quando já existentes, de casas de prisão preventiva em cada uma das circunscrições judiciárias em que se dividia o estado”, criação de novos cargos para a administração penitenciária, criação de prisões no interior, “determinava uma distribuição geográfica na administração das penas” (condenados com pena de prisão celular por um tempo menor de oito anos cumpririam a mesma no interior, caso fosse maior, cumpririam na própria capital), o projeto ainda inova com a criação de novos procedimentos e principalmente com a vinculação da medicina com a vida no presídio “sob a influência das ideias então predominantes na criminologia, de desenvolver um “tratamento penitenciário”, também previa a criação de um órgão fiscalizador dos presídios estaduais, assim como a Sociedade Protetora dos Condenados, que seria uma espécie de ouvidoria para as reclamações do preso, assim como para acompanhar este durante o cumprimento da pena e prestar auxílio a ele e sua família. O projeto, por ser considerado caro, acaba não sendo aprovado.Desde que o Código Penal de 1890 entrara em vigor, percebia-se a necessidade de um estabelecimento mais adequado para o cumprimento das penas. Mas é apenas em 1905 que é aprovada uma nova lei para a substituição da antiga penitenciária e consequente construção de uma nova. A nova penitenciária, a Penitenciária do Estado, em seu projeto original, de Samuel das Neves, iria conter 1.200 vagas, teriam oficinas de trabalho, tamanho de celas adequado, assim como boa ventilação e iluminação das mesmas. O projeto então é passado para estudo de Ramos de Azevedo, sofrendo pequenas adequações em sua estrutura e é inaugurada em 1920, mesmo não estando completamente concluída.

1.4. Penitenciária do Estado (São Paulo) de 1920 a 1940, os anos em que fora considerada modelo: verdade ou utopia?Todos nós vivemos um “Sonho de Liberdade” com Morgan Freeman e Timm Robins, o experto “Andy Dufresne”. O filme retrata as agruras e as feridas da alma que uma penitenciária pode proporcionar. A obra é singular no sentido de mostrar a questão penitenciária, por assim dizer, por um ângulo diverso do que o Estado e as doutrinas positivistas nos propõem. Não pretendemos, e como não fizemos ao longo do artigo, defender essa ou aquela teoria sobre as prisões, apesar de muitas ideias apresentadas terem respaldo em alguma doutrina.Fato é que a questão suscitada – PRISÕES – sempre foi tratada de forma pouco séria, inexistindo, no plano científico, extensas obras e estudos. Por isso, assiste razão Cavallaro e Carvalho (2000) quando disse se tratar de uma “miséria acadêmica”. Esse desinteresse pode ter vários motivos: políticos, sociais, etnocêntricos etc. Porém, não entraremos nas discussões acerca dos motivos que ensejaram tamanha abnegação.A Revista Liberdades toma uma frente interessante e inovadora nesse sentido, qual seja, a de mostrar a questão penitenciária, de conferir sua devida importância, seja no viés político (em última análise), seja no viés científico-acadêmico (precípuo). Baseado neste intróito sobre a delicada e tênue questão social das instituições prisionais, é que buscaremos mostrar mediante pouca, porém honrosa produção científica deste tema, os 20 (vinte) anos (período compreendido entre 1920 e 1940) que a Penitenciária do Estado foi considerada um modelo a ser seguido.Como a questão em comento é social, cumpre-nos salientar que existe uma doutrina que postula que a lei penal é a mais importante de uma sociedade após as leis constitucionais, portanto, a primeira consideração é que a Penitenciária do Estado fora criada, entre outros motivos, para atender as disposições do Código Penal de 1890. Como já abordamos a referida lei, cabe, neste momento, memorar que esta adotou o regime progressivo de reclusão, que consistia em quatro estágios: (i) reclusão absoluta, diurna e noturna; (ii) isolamento noturno, com trabalho coletivo durante o dia, mas em silêncio; (iii) cumprimento em penitenciária agrícola, com trabalho extramuros; e (iv) concessão de liberdade condicional ao sentenciado.

1.5. Projeto arquitetônicoA arquitetura é outro ponto que merece a devida atenção. É do saber popular que toda edificação necessita de um projeto arquitetônico de forma a cumprir suas finalidades. Com a Penitenciária do Estado não foi diferente. Havia uma necessidade óbvia dessa ordem. Diferentemente do que vivemos no Direito Administrativo atual, apenas foi submetida a um concurso público a criação de um projeto. A execução do projeto ficou a cargo do famoso arquiteto e engenheiro Ramos de Azevedo, que recebeu um convite para tanto. Há divergência entre os estudiosos, imprensa e o próprio Museu da Administração Penitenciária de São Paulo sobre quem foi o vencedor do concurso para a criação do projeto, confundindo-se com a autoria da execução. O nome de maior destaque que se tem notícia é de Ramos de Azevedo (como já citado), mas há parte da imprensa que dá a autoria do projeto à Samuel das Neves e a execução àquele. O que é pacífico nesta contenda é que o projeto vencedor seguia o modelo prisional francês – ainda existente nas cidades aos

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arredores de Paris, o famoso “Labovari Fidenter” (baseado no Centre pénitentiaire de Fresnes). José Eduardo Azevedo, citando Foucalt, observou, em contundente análise que: “Essa visibilidade de arquitetura da prisão é uma armadilha, pois se permite a direção aos guardas vigiarem qualquer tentativa de evasão coletiva, de projeto de novos crimes para o futuro, recorrerem à força para obrigar o preso a cumprir as normas instituídas, induz no preso um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder de que eles mesmos são portadores. A prisão, diferente do que se convencionou conceituar, teoricamente, como local de punição e recuperação do preso, na verdade pune e intimida. A despeito disto, o preso age compulsivamente contra esta submissão e obediência cega. Acrescenta-se a isso a hipocrisia das autoridades que fingem ignorar esta realidade”.

1.6. Escolha do local:São Paulo atualmente é uma das maiores cidades do mundo, sendo a maior da América Latina. É difícil imaginarmos que há cerca de um século atrás, São Paulo fosse pouco habitada (apesar de já apresentar sinais de que seria uma metrópole). O bairro do Carandiru, zona norte da capital, situa-se a 6 quilômetros de distância do centro da cidade de São Paulo, portanto, tomadas as proporções da época, estava perifericamente relacionada, sendo excluída da zona urbana. Há argumentos de ordem técnica para justificar a escolha deste local, pois apesar de não estar no centro da cidade, em 1908 o bairro já dispunha de bondes movidos à eletricidade, o que facilitaria toda a logística de materiais e a condução de presos. A navegação pelo Rio Tietê foi outro atrativo para a escolha do local. O bairro começara, no início do século XX, a atrair povoamento, pois os terrenos eram vendidos a um preço baixo. Historiadores revelam que essa facilidade imobiliária atraiu a classe média e a população operária. O bairro da escolha e os seus vizinhos tinham um aspecto rural em função de características como o relevo e o isolamento da cidade pela própria natureza. Isto demonstra que a elite paulistana não residia nesta localidade, onde cabe o ponto crítico da questão da escolha do local. Autores afirmam que a elite paulistana – como qualquer elite econômica e social – influenciou esta escolha, pois queriam manter longe de suas vistas os martírios de uma penitenciária. Obviamente que se resguardaram de indeléveis argumentos que seduziram a todos para justificar seu ato cognitivo. As palavras do governador do Estado no ano de 1909 (Manuel Joaquim de Albuquerque Lins) são irrefutáveis para demonstrar com clareza esta sedução de discurso:“(...) dirigiu o governo as suas vistas para o bairro de Santana, já servido de bondes, com luz elétrica e água, e cortado pelo Tramway da Cantareira, de propriedade do Estado.Esta última circunstância influiu decisivamente, porque, dada a feição industrial do novo edifício, o transporte das matérias primas e dos produtos manufaturados, assim como a condução de presos e de soldados de guarnição serão feitos por esse caminho de ferro, a que o governo poderá dar horários mais convenientes às necessidades penitenciárias, e prover de vagões celulares e de ramais que penetrem mesmos nos estabelecimentos penais”.

1.7. Pedra fundamentalVoltando no tempo, especificamente em 1905, a construção da Penitenciária do Estado foi autorizada pela Lei 267-A, de 24 de dezembro do mesmo ano. A pedra fundamental fora lançada em meio de 1911. Em face das dificuldades políticas e técnicas encontradas, a Penitenciária do Estado foi inaugurada nove anos depois (1920), no governo de Altino Arantes, tendo começado a funcionar cerca de três meses depois.

1.8. A penitenciária “modelo”Cumpre-nos, antes de qualquer coisa, relembrar alguns motivos teórico-pragmáticos que deram ensejo a estas considerações benéficas à Penitenciária do Estado. Os estabelecimentos prisionais, em especial os advindos da época do Código Criminal de 1830, deixaram uma péssima impressão deste instituto (vide Casa de Correção etc). Quando se tem um quadro social destes e se depara com um projeto de penitenciária daquela monta, em que – ao menos se esperava – o indivíduo preso teria um pouco mais de dignidade no aspecto da saúde, onde não teriam celas com pessoas amontoadas como se objetos inanimados fossem e onde, precipuamente, regenerar-se-iam seres humanos, de sorte que poderiam recompor o corpo social, cria-se a melhor das expectativas.A organização laboral foi um dos carros-chefes para a boa opinião. Nada melhor aos olhos da sociedade (frise-se: a elite paulista, em especial) do que um preso trabalhando, produzindo, estando fora do estado ocioso para pensar no cometimento de novos crimes ou algo do gênero (pensamento ainda constante na sociedade brasileira). Esta organização se deu em escala industrial, com uma grande produção de bens. Além de auxiliar a economia paulista, tinha-se a ideia de autossustentabilidade econômica (instituições dessa natureza custam

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muito ao erário público) da Penitenciária e, de forma subsidiária, ao próprio Estado, fornecendo riquezas e produtos aos órgãos públicos. Voltando à esfera pedagógica, entendia-se que a disciplina laboral auxiliava a própria disciplina do preso com seus pares e com a própria administração e, em um plano futuro, com a sociedade. Outra característica positiva era, ainda na organização laboral, o cultivo de alimentos naturais via horta cultivada pelos próprios presos e que servia o presídio em quase sua totalidade. Isto conferia ao Dr. Franklin de Toledo Piza (diretor à época) o título de bom administrador penitenciário.Notabilizou-se este feito (de um marketing positivo) com um artigo publicado no ano de 1912 (quase uma década antes de sua inauguração) por Plínio Barreto (jornalista, bacharel e político brasileiro do século XX), no qual advogou que a penitenciária era um modelo. Registros mostraram que, após este marketing difundido, a Penitenciária do Estado virou parada obrigatória para o turismo, uma espécie de cartão postal para os que visitavam São Paulo. Seu público de maior relevância foram as autoridades e personalidades nacionais e internacionais que, além da visita, deixavam registros “padrão” de admiração. Destacam-se, entre os visitantes: Jimenez de Asúa (grande penalista e político espanhol), Claude Levi-Strauss (antropólogo, professor e filósofo, considerado o fundador da antropologia estruturalista) e Stefan Zweig (filósofo, escritor, jornalista e dramaturgo austríaco exilado no Brasil).

1.9. A desconstrução do mitoO ponto de incongruência na postulação de que fora uma penitenciária modelo nestes 20 anos, reside em um triste fato que acontece ainda hoje no Brasil: a omissão e manipulação de informações por parte de vários agentes sociais, principalmente da imprensa. A penitenciária era considerada “como algo inquestionável”, ou seja, não existiam sérias críticas destinadas àquela realidade. Fato é que nada ou quase nada fugiam aos frígidos muros que cerceou liberdades por tanto tempo. As informações que chegavam à sociedade nem sempre eram a verdade dos fatos, e sim “verdades” afáveis, utópicas, no mais das vezes. A título exemplificativo, podemos citar que “as condições de encarceramento mudaram, mas não de imediato”, ou seja, havia resquícios de prisões de outrora. Um ponto controverso – ora criticado ora agraciado, por nós criticado – era a construção de uma biografia dos presos. Os defensores dessa prática defendem que é necessária tal construção para analisar o perfil psicológico do preso e, a partir das considerações ali registradas, trabalhar os aspectos medicinais para sua regeneração. Os problemas que residem nessa prática são as máculas criadas, constrangendo o preso a ficar com aquele registro por toda a sua existência, confluindo, entretanto, de modo contrário à regeneração. Havia uma manipulação da vida do preso, de modo a tentar moldá-lo, demonstrando a face autoritária de controle do preso pelo Estado, como o que acontece no filme “Laranja Mecânica” (A Clockwork Orange) ou, mais extensivamente, o que propunha o Grande Irmão em “1984” (neste caso, com toda a sociedade).As punições internas por atos de “rebeldia individual” são outro ponto de crítica. Há relatos na obra de Salla que mostram punições de confinamento (popularmente conhecidas como “solitária”) por razões pouco compreensíveis para tanto, como, v.g., o preso que recusou os sapatos doados pelo zelador, pois estavam velhos, ou o preso que se recusou a trabalhar com ferramentas pesadas no “jardim” que rodeava a Penitenciária do Estado. O pior: tais punições eram severas, constrangendo ainda mais o âmago de liberdade do preso e sua dignidade de pessoa humana.Entretanto, a diretoria da penitenciária era “caridosa” ao atender os pedidos formulados por presos e por seus familiares, por vezes fundamentais e que jamais deveriam sequer ser proibidos, conforme transcrição literal de passagem citada por Salla: “Esse rapaz é conhecidíssimo dos demais perigosos ladrões que tem estado em contato com a policia de S. Paulo. Tem dezenas de passagens e cumpre, atualmente, seis condenações por crime de roubo. Finalmente – atendendo aos insistentes rogos de sua mãe, eu permitirei que ela venha visitar seu filho no dia 23 do mês próximo de Dezembro, vésperas do Natal, procurando-me na Diretoria do Estabelecimento. É mais uma caridade que cumprimento a lei e eu pratico sempre a caridade, quando não fere de frente a lei”.Outra citação é fundamental para mostrar as agruras de uma penitenciária considerada “modelo”:“Certas evoluções eram acompanhadas de canto, mas notamos o soturno das vozes, a ausência de entusiasmo. Ao terminarem as evoluções por uma figura complicadíssima, espécie de quadro vivo ou de apoteose, o comandante deu o sinal de dispensar e cada qual procurou um sitio onde pudesse passar ao Sol da hora de recreio. Em qualquer outro meio, os indivíduos, deixando as fileiras, formariam imediatamente pequenos grupos e passariam a conversar, entretendo-se de qualquer assumpto. Nada disso, ali. Rompidas as fileiras, silenciosas como dantes, cada qual sacou do bolso o cigarro já preparado e sem si aproximar dos outros, entregou-se às delicias do tabaco”.

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A liberdade de expressão era suprimida na Penitenciária do Estado. Em análise histórico-documental, autores afirmam a existência de movimentos de presos a fim de reivindicar algo (ato de expressão natural, inerente à pessoa humana), mas não de forma violenta, apenas de forma petitória. Tais manifestos eram a “força motriz deflagradora” para a imposição de punições internas (notem: em contraposição à lei penal da época), como privação de alimentos, submissão à degradação da pessoa mediante a enclausuração por tempo indeterminado ou, a mais branda de todas, perda de vantagens regulamentares.A saúde dos presos é um ponto preocupante desta análise histórica. Já salientamos que um dos slogans da “penitenciária modelo” era as edificações que atenderiam melhor à necessidade básica de saúde dos que lá viviam ou sobreviviam. Pois bem, reside aqui um dos pontos de maior incongruência. A Penitenciária do Estado já antecedia o quadro deficitário da saúde dos presos que percebemos nestas últimas décadas. Em um breve levantamento de ordem estatística, é notável que 12% dos presos (em uma escala de 2.000 indivíduos) faleceram por tuberculose. O fato de a doença ser respiratória acaba por agravar seus efeitos em um local onde muitos compartilham dos espaços comuns e até dos não comuns. Obviamente que, vistas as condições da época, muitos presos já traziam a doença de fora – e que era agravada lá dentro. A responsabilidade do Estado perante esta triste realidade está na ausência de um local próprio para o tratamento. Além de atuar em omissão, o Estado atuou em comissão, visto que submetia presos doentes a regimes disciplinares que deflagravam o estopim para sua morte, e.g., as punições internas em celas fechadas a pão e água e por tempo indeterminado.Os estágios do regime progressivo nem sempre eram concedidos de “ofício” pelo juiz. Muitas vezes o preso ou seus representantes legais requeriam ao Magistrado a progressão do regime. Quando deste pedido, é de rotina que se expede um exame criminológico do preso, ora requerente. No caso da Penitenciária do Estado, tais exames eram exarados pelo competente da área médica designado e pela diretoria. Espera-se, do Estado – ora aprisionador ora detentor – que adote, no mínimo, justos critérios ao expedir tal exame, reservadas as ordens técnicas do instituto em comento. A diretoria, durante o período observado, utilizou critérios espúrios, quando não eram apócrifos, nos pareceres tendentes a rejeitar a maioria dos pedidos de progressão de regime, em especial a liberdade condicional. Salla cita trecho de documento histórico que retrata com exatidão esta situação dos critérios adotados no parecer de um preso requerente:“(...) colérico, impulsivo, alcoólatra, não envolvendo, nesta data, elementos que atestem a sua melhoria”.Procuramos demonstrar, nesta breve análise das questões históricas e penais das penitenciárias e seus congêneres, a involução de um instituto cada vez mais criticado e ineficaz. Meio de defesa de um controle social perverso por parte do braço autoritário dos modernos “Estados Democráticos de Direito” e outros com denominações distintas, que é famigerado pelos que impõem um estado de terror por assustadoras amostragens da evolução dos índices de criminalidade.A liberdade é um coração que bate forte em um âmago humano. A liberdade pode ser cartesiana, pode ser aristotélica, pode ser sartreana ou ainda de qualquer célebre do pensar humano. A liberdade, acima de tudo e de todos, é o que o homem tem, aliado à vida, de mais necessário. Constitui-se natural e positivamente. Pode ser imaginária ou fática. Liberdade só não pode ser suprimida, e se, em última instância, for suprimida, que essa supressão seja feita de modo humano, de modo menos avassalador aos anseios e sentimentos.

2) Formação da norma e bens jurídicos constitucionais, aplicação e interpretação da norma penal

PRINCÍPIOS PENAIS CONSTITUCIONAIS2.1. Noções introdutóriasO Direito Penal tem suas bases solidificadas nos preceitos constitucionais, por meio dos princípios e ditames que a Constituição impõe ao legislador, visando assegurar os direitos e garantias fundamentais de toda pessoa ali previstos, orientando o Estado no exercício da aplicação da lei penal.Entendendo princípios como critérios introdutórios na interpretação e aplicação inerentes a qualquer norma, pode-se conceituá-los conforme doutrina Nucci, como "(...) uma ordenação, que se irradia e imanta os sistemas de normas, servindo de base para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo." (16), denotando portanto, como regras interpretativas que norteiam a aplicação das normas, os quais serão apresentados nos tópicos seguintes.

2.2. Princípios em espécie2.2.1. Princípio da reserva legal e da anterioridade

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Em um contexto histórico, a doutrina entende que tais princípios têm suas raízes na Magna Carta Inglesa de João sem Terra, do ano de 1215, na qual o art. 39 desta, conforme cita Masson, apregoava que: "(...) nenhum homem livre poderia ser submetido à pena sem prévia lei em vigor naquela terra." (17)O princípio da reserva legal estabelece toda a estrutura basilar das leis penais brasileiras, estando intrinsecamente ligado ao princípio da anterioridade, tendo ambos, previsão legal na CF, no art. 5º, inc. XXXIX, o qual: "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (18), bem como de outro modo, no que dispõe CP, pelo art. 1º, caput : "Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal." (19)Tais dizeres que transpõe a essência dos princípios elencados são extraídos conforme transpõe Prado, da "(...) formulação latina – Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege (...)" (20) do filósofo alemão Feuerbach, que pode ser entendido como, não haverá crime sem que haja prévia cominação legal.De forma a englobar as duas previsões legais, cumpre ressaltar os entendimentos de Paulo e Alexandrino sobre tais princípios:Observa-se que, além da exigência expressa de lei formal para tipificar crimes e cominar sanções penais, deflui do dispositivo que a lei somente se aplicará, para qualificar como crime, aos atos praticados depois que ela tenha sido publicada. Da mesma forma, a previsão legal abstrata da pena (cominação da pena) deve existir, estar publicada, antes da conduta que será apenada. (21)Estes princípios estabelecem acima de tudo, proibição de aplicação retroativa de lei penal maléfica ou incriminadora, vedando também, conforme Greco entende: "(...) analogia in malam partem para criar hipóteses que de alguma forma, venham prejudicar o agente, seja criando crimes, seja incluindo novas causas de aumento de pena (...)" (22).Em síntese, com base nesses princípios, as leis devem ater-se a prever condutas taxativas em suas formas, assegurando as garantias da liberdade pessoal de todo cidadão, de forma a não obstruir os preceitos constitucionais, regulando a aplicação da norma, mantendo por fim, a segurança jurídica na imposição estatal.

2.2.2. Princípio da intervenção mínima e da ofensividadeA Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, prevê em seu art. 8º conforme é observado por Capez (23) que, a lei deve somente estabelecer penas que sejam evidentemente necessárias, entendimento pelo qual se tem a origem assentada da intervenção mínima do Estado.Sobre a observância que o Estado deve ter na tipificação penal, vale ressaltar o entendimento brilhante transposto que Beccaria já advertia, apud Lopes, que: "proibir uma enorme quantidade de ações indiferentes não é prevenir os crimes que delas possam resultar, mas criar outros novos". (24)A atuação estatal em sua função legisladora, bem como ao interprete do Direito, devem ser dirimidos pelos diversos princípios dispostos no ordenamento pátrio. Não bastam apenas os preceitos dispostos pelo princípio da legalidade como supracitado, mas também, outras normas que se possa valer antes da aplicação penal, conforme já elucidado pelo princípio da fragmentariedade decorrente deste.Nesse contexto, Masson cita decisão já proferida pelo Superior Tribunal de Justiça:A missão do Direito Penal moderno consiste em tutelar os bens jurídicos mais relevantes. Em decorrência disso, a intervenção penal deve ter o caráter fragmentário, protegendo apenas os bens mais importantes e em casos de lesões de maior gravidade. (25)Nessa sistemática, o Direito Penal mostra-se como ultima ratio , conotação essa também atribuída ao princípio em comento, que se aplica na intervenção do Estado na sociedade, tendo caráter subsidiário as normas que visam assegurar os bens jurídicos.Exaurindo esse entendimento primário, Muñoz Conde, citado por Greco, preleciona que:O poder punitivo do Estado deve estar regido e limitado pelo princípio da intervenção mínima. Com isto, quero dizer que o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico são objeto de outros ramos do Direito. (26)Infere-se de tais explanações que, o Direito Penal deve ser utilizado na proteção dos bens jurídicos mais relevantes, empregando-o quando não restem outras normas que possibilitem maior eficácia sem punibilidades extremas. Ou seja, nos dizeres de Prado: "Aparece ele como uma orientação político-criminal restritiva do jus puniendi e deriva da própria natureza do Direito Penal e da concepção material de Estado democrático de Direito." (27)De outro modo, tem-se o princípio da ofensividade, ou lesividade que, encontra correlação direta com o princípio da intervenção mínima, ou seja, o Direito Penal é tido como ultima ratio, e em virtude disso, por ele serão tipificadas as condutas mais lesivas aos bens jurídicos assegurados.

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Outra característica é que não haja punição aos pensamentos internos não aflorados do íntimo de cada pessoa, devendo haver a concretização destes para que sejam considerados atos ilícitos. Nos dizeres de Greco, esse princípio se expressa: "(...) pelo brocardo latino cogitations poenam nemo partitura , ou seja, ninguém pode ser punido por aquilo que pensa ou mesmo por seus sentimentos pessoais." (28)Assim, pode-se entender que tal princípio no que observa Capez, tenha como função principal: "(...) limitar a pretensão punitiva estatal, de maneira que não poderá haver proibição penal sem um conteúdo ofensivo a bens jurídicos." (29)

2.2.3. Princípio da culpabilidade e da presunção de inocênciaO art. 18 do CP prevê expressamente a aplicação desse princípio, observando que também se encontra disposto implicitamente em diversos artigos da CF, possuindo relação direta com o princípio da intervenção mínima, como forma de assegurar os direitos fundamentais elencados nessa.Culpabilidade entende-se segundo cita Damásio de Jesus, " Nullum crimen sine culpa. A pena só pode ser imposta a quem, agindo com dolo ou culpa, e merecendo juízo de reprovação, cometeu um fato típico e antijurídico." (30) Tal imputação recairá ao indivíduo que, podendo comportar-se de forma diferente, e tendo consciência da ilicitude do fato, não se abstém de pratica-los, sujeitando-se a aplicação das normas, como modo de punição, salvo havendo causas de exclusão da punibilidade, também chamadas de dirimentes, que afetem ao sujeito agir de modo contrário sem que fira a lei.Desta forma, o juízo aplicado pela ocorrência do princípio, observará como ensina Damásio de Jesus (31), como fundamento e medida da pena, repudiando a responsabilidade penal objetiva, ou seja, reponsabilidade penal sem culpa.Já o princípio da presunção de inocência, está relacionado em sua essência, como oposto ao princípio da culpabilidade, encontrando previsão legal expressa na CF, no art. 5º, inc. LVII, nos seguintes termos: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (32).Deste entendimento, decorre o termo jurídico in dubio pro reo , que, segundo Paulo e Alexandrino: "(...) existindo dúvida na interpretação da lei ou na capitulação do fato, adota-se aquela que for mais favorável ao réu." (33)Cumpre ressaltar que, na aplicação desse princípio, não serão afastadas normas que visem medidas cautelares, tais como prisão preventiva ou temporária disposta na nova Lei nº. 12.403, de 4 de maio de 2011, que manterá o entendimento anterior do Código de Processo Penal. Tais normas serão aplicadas com intuito de assegurar questões processuais ou investigatórias, mesmo que ainda não tenha ocorrido o transito em julgado de sentença condenatória que seja favorável ao réu.

2.2.4. Princípio da imputação pessoal e da individualização da penaTambém denominado como princípio da responsabilidade pessoal, o princípio da imputação pessoal, encontra previsão legal no art. 5º, XLV da CF o qual convém colacionar:XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido. (34)Como se pode observar, as penas serão aplicadas tão somente ao condenado, sem que ocorra sua transmissão, diferente do que o artigo preceitua em relação à obrigação de reparar o dano que, pode estender aos sucessores.Sinteticamente, pode-se conceituar o principio da imputação pessoal de modo que, a culpabilidade dos atos será imputada a quem os tenha praticado, bem como aqueles, que de alguma forma tenham incorrido em participação, visando à punibilidade aplicada de forma individual a cada sujeito, na medida de sua ação.De outro modo, Mason doutrina que: "(...) não se admite a punição quando se tratar de agente inimputável, sem potencial consciência da ilicitude ou de quem não se possa exigir conduta diversa" (35)Já, quanto ao princípio da individualização da pena, Luisi cita o magistério de Nelson Hungria que límpido o entende como: "Retribuir o mal concreto do crime, com o mal concreto da pena, na concreta personalidade do criminoso." (36)Esse princípio, também possui respaldo na CF, no art. 5º, XLVI, pelo qual desenvolve segundo ensina Mason (37), questões relativas às sanções adequadas, limites de aplicação máximos e mínimos, bem como circunstâncias que aumentem ou diminuam sua aplicação.Desta seleção, conforme entendimento doutrinado por Greco (38), o legislador visou dividir as diversas formas de aplicação de sanções, intrinsecamente relacionadas à medida de importância dos bens jurídicos tutelados, ou seja, impor o Direito Penal na proporção da lesão praticada.

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2.2.5. Princípio da proporcionalidade e da limitação das penasA proporcionalidade encontra correlação com os princípios anteriormente citados, observando que, a pena deverá ter como parâmetro de aplicação o grau de responsabilidade do autor, funcionando como forma de medição da imposição penal.Conforme entendimento do STJ que observa o princípio elencado:Na fixação da pena-base, além do respeito aos ditames legais e da avaliação criteriosa das circunstâncias judiciais, deve ser observado o princípio da proporcionalidade, para que a resposta penal seja justa e suficiente para cumprir o papel de reprovação do ilícito. (39)Coadunam-se com esse entendimento, os comentários de Nucci no sentido de que, "(...) as penas devem ser harmônicas com a gravidade da infração penal cometida, não tendo cabimento o exagero, nem tampouco a extrema liberalidade na cominação das penas nos tipos penais incriminadores." (40), ou seja, em sentido estrito, deve haver relação entre o ilícito praticado e a medida punitiva aplicada, de modo proporcional.Vale ressaltar, de forma a exaurir a temática Prado leciona que:"Para a cominação e imposição da pena, agregam-se, além dos requisitos de idoneidade e necessidade, a proporcionalidade. Pela adequação ou idoneidade, a sanção penal deve ser um instrumento capaz, apto ou adequado à consecução da finalidade pretendida pelo legislador (adequação do meio e fim). O requisito da necessidade significa que o meio escolhido é indispensável, necessário, para atingir o fim proposto, na falta de outro menos gravoso e de igual eficácia." (41)Destas explanações, extrai-se a correlação ora mencionada com o princípio da individualização da pena anteriormente explicado, pois, a proporcionalidade, quando aplicada pelo magistrado, segundo a doutrina de Greco (42), será imposta conforme preceitos do CP, em seu art. 68, que dispõe sobre o critério trifásico de aplicação da pena, o que, dispõe ao juiz, meio de individualizar a pena do agente, de modo proporcional ao ilícito por este cometido.Em conexão, tem-se na aplicação das penas, o limite que a legislação impõe ao operador do Direito, o que, se insere o princípio da limitação das penas, visando um "efeito cliquet" (43), em que não haja retrocesso do legislador na cominação das penas. De modo a impor o respeito a tais regras, a CF em seu art. 5º, XLVII, preceitua o princípio da limitação das penas. Vejamos:XLVII - não haverá penas:a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;b) de caráter perpétuo;c) de trabalhos forçados;d) de banimento;e) cruéis. (44)De modo geral, o princípio em questão tem como intuito, assegurar os direitos asseverados na CF, quanto à dignidade da pessoa humana, orientando o legislador no implemento de novas normas punitivas do Direito Penal, devendo observar também, os preceitos de tornar as penas proporcionais em relação aos atos praticados, sem que se fira de algum modo, direitos já pré-estabelecidos na Constituição.

2.2.6. Princípio da humanidade e da proibição de pena indignaA dignidade da pessoa humana está consagrada na CF como princípio fundamental em eu art. 1º, III. A humanidade como princípio penalista, encontra base nos ditames constitucionais em diversos dispositivos, dos quais se pode citar como exemplo, o art. 5º, III, o qual prevê: "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" (45). Da mesma forma, o inc. XLIX, também preconiza que: "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral" (46).Relacionado a tal princípio, encontra-se atrelado, a proibição de pena indigna, conforme o inc. XLIX supracitado, o qual não permite penas que agridam a integridade física e moral do sujeito. De outro modo, em consonância com a humanidade, tal princípio terá aplicação efetiva em todos os demais princípios citados anteriormente.Pode-se afirmar quanto a essa relação, segundo entendimento lecionado por Prado que: "Apresenta-se como uma diretriz garantidora de ordem material e restritiva da lei penal, verdadeira salvaguarda da dignidade pessoal, relacionando-se de forma estreita com os princípios da culpabilidade e da igualdade." (47).Assim, tem-se que a imposição de penas, deverá observar os preceitos constitucionais, de modo que, não haja aplicação penal que exceda tais limites, não impondo penas que visem tão somente à punibilidade, como ocorreria no caso de penas de modo vexatório, humilhante e mesmo degradante em relação ao acusado. É necessário possibilitar a correção das ações ilícitas no limite do possível, como modo de respeito às normas

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legais inerentes a qualquer pessoa, tendo o intuito de inserção do readaptando condenado no convívio social, sem que se criem sentimentos deste, de continuidade da vida criminal posteriormente ao cumprimento da pena.

2.3- Instituições do sistema penal: Polícia, Ministério Público e JudiciárioAs polícias são, no Brasil, órgãos do Estado que têm a finalidade constitucional de preservar a ordem pública, de proteger pessoas e o patrimônio, e realizar a investigação e repressão dos crimes, além do controle da violência.A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144, estabelece que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida através dos seguintes órgãos: 1) Polícia Federal; 2) Polícia Rodoviária Federal; 3) Polícia Ferroviária Federal; 4) Polícias Civis; 5) Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares.Origens:A palavra "polícia" tem origem no termo grego polites, de onde vêm também as palavras "política" e "polidez". Na Grécia Antiga, a pólis era a cidade-Estado e as mais poderosas e famosas eram Esparta, Atenas, Corinto e Tebas. Os gregos chamavam de polites o cidadão que participava das tarefas administrativas, políticas e militares da pólis.A história da polícia como a conhecemos hoje é, no entanto, relativamente recente, não remontando além do século 17, quando o rei francês Luís 14 cria a figura do tenente-general de polícia em Paris, no ano de 1665.Porém, é a Inglaterra, na primeira metade do século 19, que estabelece o modelo das polícias modernas, quando o duque de Wellington força o governo a criar um órgão de força interna para evitar a utilização do Exército na repressão das revoltas sociais.Desde então, a polícia tornou-se parte do Estado-nação moderno, voltada para manter a ordem interna dos países que a constituíram. A polícia, assim, é hoje uma instituição fundamental para manter a incolumidade das pessoas, do patrimônio e da ordem pública na sociedade moderna.Tipos de políciaHá vários tipos e modelos de polícia, conforme a peculiaridade e a história de cada país. As polícias de tipo "gendarme" (termo que vem do francês e significa "gente de armas") são as polícias de cunho militar. Todas as polícias militares do mundo são desse tipo e têm como base a presença ostensiva e a prevenção dos crimes.Há ainda os tipos de polícia estatal, ainda predominantes, e os de policia privada, cada vez mais crescentes. São comuns no mundo anglo-saxão, onde predomina o liberalismo e a cultura dos direitos civis. Esse tipo de polícia é eminentemente civil e tem como base a investigação. Basicamente os modelos são de duas ordens: o preventivo ou ostensivo e o repressivo ou investigatório.

Polícias no BrasilO Brasil é uma República Federativa, que reúne vários Estados. O Brasil como um todo é chamado de União (governo federal). As divisões seguintes são os Estados (governo estadual). E os Estados se dividem em municípios (governo municipal).Existem órgãos policiais no âmbito da União e dos Estados. A União tem, dentre outras, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal, enquanto os Estados têm a Polícia Civil e a Polícia Militar. Vamos observar um pouco de cada uma delas:Polícias militares: dão forças de segurança pública de cada uma das unidades federativas. Têm como principal função a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública nos Estados brasileiros e no Distrito Federal. Subordinam-se, juntamente com as polícias civis estaduais, aos governadores. São forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro e integram o Sistema de Segurança Pública e Defesa Social brasileiro. Cada Polícia Militar é comandada, em cada Estado, por um oficial superior do posto de coronel, chamado de comandante-geral.Polícias civis: presentes em todos os Estados da federação, são chefiadas por delegados-gerais, que comandam por sua vez os delegados de polícia locais, responsáveis por cada distrito policial. Cabe à Polícia Civil dos Estados atuar como polícia judiciária, ou seja, auxiliando o Poder Judiciário na aplicação da lei, nos crimes de competência da Justiça Estadual. É responsável pelas investigações desses delitos (excepcionalmente poderá apurar infrações penais de competência da Justiça Federal, caso não haja unidade da Polícia Federal no local) e pela instauração do inquérito policial e ações de inteligência policial.Polícia Federal: subordinada ao Ministério da Justiça e responsável por investigações dos crimes julgados pela Justiça Federal, onde também exerce a função de polícia judiciária. Exerce ainda funções de polícia marítima e aeroportuária, responsável pela fiscalização de fronteiras, alfândegas e emissão de passaportes.

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Polícia Rodoviária Federal: responsável pela fiscalização de trânsito e combate à criminalidade nas rodovias federais, sendo de sua alçada os fatos gerados nessa circunscrição.Polícia Ferroviária Federal: órgão permanente, como as demais polícias federais, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira. Destina-se ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.Polícia Legislativa: órgão da Câmara dos Deputados, exerce as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais nas dependências da Câmara dos Deputados, além das atividades de polícia ostensiva e preservação da ordem e do patrimônio nos edifícios da Câmara dos Deputados. É encarregada também da segurança do presidente da Câmara e dos deputados federais.Polícia do Exército: é a força que tem como missão zelar pelo cumprimento dos regulamentos militares.Força Nacional e guardas municipaisA Força Nacional de Segurança Pública, subordinada à União, é uma força de ação rápida e de ação localizada. Por isso, não se enquadra no conceito de polícia, que deve ser uma força permanente.

As guardas municipais são responsáveis pela guarda e manutenção do patrimônio público municipal e pela segurança dos logradouros públicos. São forças de ação localizada que, para especialistas, também não se encaixariam no conceito de polícia.

Estruturas e problemasAntes de 1988, as polícias praticamente não existiam na ordem constitucional e por longo tempo eram como um apêndice do Estado e não parte da administração pública. A estruturação da polícia no Brasil teve notória ingerência das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) em sua composição e administração. A força policial estatal era encarregada da "segurança interna", conceito comum em épocas ditatoriais.

Essa marca na constituição da polícia brasileira, oriunda do estigma da segurança nacional, em especial nos períodos de governos ditatoriais no Brasil, provocou verdadeiras "anomalias" no sistema de segurança pública nacional.

Um dos aspectos mais discutidos na atualidade é a existência de duas polícias no âmbito estadual: Polícia Militar (também chamada de polícia administrativa ou ostensiva), responsável pela preservação da ordem pública através do policiamento ostensivo e preventivo, e Polícia Civil (conhecida também como polícia judiciária), responsável pela investigação (encontrar autoria e materialidade) dos crimes que a outra polícia não "conseguiu" prevenir, tudo para que o Ministério Público inicie a ação penal.Para o advogado e jornalista Hélio Bicudo, "trata-se de um modelo esgotado e que fora montado, nos anos da ditadura militar, para a segurança do Estado, na linha da ideologia da segurança nacional". Estudiosos e analistas criticam a forma como ficou delineada a área de segurança pública pela Constituição de 1988. Seu artigo 144 discrimina de forma sucinta a atribuição dessas duas polícias estaduais, instituindo a obrigatoriedade em manter duas polícias de modo "padrão" no âmbito das unidades federativas, subordinadas aos governadores.

Essas duas polícias são constituídas, porém, com aspectos diferentes, a começar por atividades distintas, estrutura hierárquica e disciplinar também diferente, sem contar a remuneração, que causa atrito entre os membros das duas corporações. É importante frisar que ambas têm objetivos iguais: o controle da criminalidade. Sem a soma de esforços, porém, o controle e o combate à criminalidade tornam-se muito mais difíceis.

Ciclo completo de políciaO chamado "ciclo completo de polícia" é, segundo o especialista em segurança pública Rondon Filho, a execução das funções judiciário-investigativa e ostensivo-preventiva pela mesma instituição policial. Para isso tornar-se possível no Brasil, seria inevitável a reestruturação do subsistema policial através de emenda ao texto constitucional de 1988, precisamente o artigo 144.

Estruturas policiais diferentes que atuam no mesmo espaço sobre o mesmo problema tendem a constante rivalidade e atrito. Por isso, os altos índices atuais de criminalidade impõem a urgência de uma reforma gerencial e da racionalização do sistema, em benefício da implantação de políticas capazes de aprimorar a eficiência policial, diminuindo a impunidade. Essa reforma deve ser compatível com os valores democráticos de respeito aos direitos humanos e civis.

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Além disso, é importante notar que as relações sociais evoluem diariamente e as instituições policiais, para acompanhar a sociedade, devem aprimorar-se para evoluir junto, racionalizando meios e recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos, com o objetivo de melhorar a prestação de serviço de segurança pública à sociedade, de forma eficiente e eficaz.

Ministério PúblicoMinistério Público, uma instituição com a incumbência de defender os interesses da sociedade brasileira no seu todo, com obrigação de ser apartidária, isenta e profissional nas causas da sua competência.A Constituição Federal, no seu artigo 127, delegou ao Ministério Público a defesa “ da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. É uma instituição de fundamental importância nas funções jurisdicionais do Estado.O Ministério Público tem autonomia para organizar as suas funções administrativas e independência para gerir e executar o seu orçamento, estando sujeito unicamente à Constituição e à legislação vigente.Os órgãos que compõem o Ministério Público são:Ministério Público da União (MPU), que engloba o Ministério Público Federal;Ministério Público do Trabalho (MPT);Ministério Público Militar (MPM);Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDTF);Ministérios Públicos dos Estados (MPE).O responsável pelo Ministério Público da União e pelo Ministério Público Federal é o procurador-geral da República, que é nomeado pelo Presidente da República após aprovação do Senado Federal.O Ministério Público (MP) é instituição que existe há séculos em numerosos países, inclusive no Brasil, com diferentes características e finalidades em cada um deles e ao longo do tempo. Em nosso país, teve suas garantias e instrumentos de ação profundamente redefinidos e ampliados pela Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, ao ponto de alguns juristas dizerem que foi a instituição que mais avançou com a nova Constituição.A finalidade principal do Ministério Público é defender o Direito e o interesse da sociedade. Não é função sua, no Brasil, a defesa dos interesses de governos e de órgãos da administração pública. Esta função é da advocacia pública. Este texto busca explicar como o Ministério Público atua.O Ministério Público e o artigo 127 da ConstituiçãoO artigo 127 da Constituição do Brasil é a norma jurídica que dá as linhas gerais das funções do MP. Segundo ele, o “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” Vejamos o que isso significa.Instituição permanenteAo determinar que o Ministério Público é instituição permanente, a Constituição estabelece que ele não pode ser extinto por outras normas jurídicas nem pode ter suas funções essenciais esvaziadas por normas jurídicas inferiores à Constituição (pois isso seria o mesmo que o extinguir).Essencial à função jurisdicional do EstadoDe acordo com o art. 127, o MP é também essencial à função jurisdicional do Estado. Isso quer dizer que o Ministério Público é indispensável à atividade principal do Poder Judiciário, que é a de exercer a jurisdição. Este termo vem dos termos em latim juris (= Direito) edicere (= dizer) e corresponde ao papel fundamental dos juízes e tribunais, que é o de declarar o direito (“dizer o direito”) aplicável aos casos que lhes sejam submetidos.Apesar da forma como a Constituição associa o MP à função do Poder Judiciário, isso não significa que o Ministério Público tenha de estar presente em todos os processos judiciais. Ele intervém em um processo em três situações, basicamente:a) quando uma norma jurídica assim determine, de forma expressa;b) quando a participação do MP decorra da interpretação conjunta de normas jurídicas;c) quando ocorra a presença de uma forma especial de interesse público, ligado à sociedade e conhecido como interesse público primário, que não é simplesmente o interesse dos órgãos da administração pública.Exemplo da letra a acima é a Lei do Mandado de Segurança (Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009), cujo artigo 12 prevê que todo processo de mandado de segurança seja remetido para exame (que é escrito em um documento denominado parecer) do Ministério Público, e este deve devolver o processo no prazo de dez dias. Portanto, todo processo dessa espécie deve ser enviado para avaliação do MP. Apesar disso, o representante do Ministério Público poderá entender que não há presença do interesse público primário e devolver os autos

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sem se manifestar sobre o litígio. Pessoalmente, entendo que essa devolução sem exame do conflito não deva ocorrer, como regra.O artigo 82 do Código de Processo Civil é outra norma que determina de maneira expressa casos nos quais o Ministério Público deve acompanhar o processo:Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir:I – nas causas em que há interesses de incapazes;II – nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade;III – nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.Exemplo do segundo caso (letra b acima) é a participação do Ministério Público nos processos de natureza criminal. Como se verá, a Constituição atribui ao MP papel fundamental na aplicação do direito do Estado de punir alguém quando este pratique crime. Devido a essa função, o Ministério Público deve ter conhecimento e acompanhar todos os processos penais em andamento no Judiciário, mesmo que não apareça neles como o autor do requerimento.O terceiro grupo de casos nos quais o Ministério Público acompanha um processo (letra c acima) é aquele no qual ocorre a presença do interesse público primário, mesmo que não haja norma específica para determinar esse acompanhamento. Exemplo disso são as ações que discutem algum direito ou interesse difuso, como a defesa do ambiente, dos consumidores, do patrimônio público etc.Atuação extrajudicial do Ministério PúblicoEmbora a Constituição associe a atuação do Ministério Público à do Poder Judiciário, como se viu acima, o MP também age em muitos casos sem a necessidade de existir processo judicial. É o que se chama de atuação extrajudicial.Em diversos casos, aliás, essa atuação extrajudicial produz resultados tão ou mais eficientes do que a atuação judicial, isto é, em processos decididos por juiz ou tribunal, principalmente por causa da demora no julgamento definitivo dos processos (a morosidade judicial). Um dos muitos exemplos de atuação do MP sem necessidade de processo judicial são os inquéritos civis que o MP instaura, com a finalidade de defender interesses relevantes da sociedade.Imagine-se, por exemplo, que o Ministério Público tenha conhecimento de uma escola desrespeitar o direito de alunos e submetê-los a constrangimento pelo fato de seus responsáveis estarem em atraso no pagamento das mensalidades. O MP pode instaurar inquérito civil para investigar o fato e propor à escola um acordo para interromper a prática ilegal. Se a escola concordar, ela e o Ministério Público podem assinar um documento denominado “termo de ajustamento de conduta” (também conhecido como TAC).O TAC é importante instrumento de atuação do MP, previsto na Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, no artigo 5.º, § 6.º [o símbolo “§” lê-se como “parágrafo”]). Tem justamente a finalidade de permitir que o Ministério Público e a pessoa que feriu a lei firmem compromisso para evitar novas ofensas ao Direito e para reparar os danos que ela tenha causado, sem a necessidade de processo judicial.Existem diversos outras situações de atuação extrajudicial do Ministério Público, que às vezes consegue reparar casos de ofensa à lei sem a necessidade de processo judicial.Defesa da ordem jurídicaA Constituição também atribui ao Ministério Público a “defesa da ordem jurídica”. Significa que compete à instituição atuar, sempre que for necessário e tiver competência jurídica para isso, com o objetivo de o Direito ser corretamente aplicado. Por esse motivo o MP é tradicionalmente conhecido pela expressão latina “custos legis”, que significa “fiscal da lei”.Nessa função, o Ministério Público tem liberdade para atuar e para requerer ao Judiciário que profira a decisão que parecer mais correta ao MP, independentemente de a quem ela beneficie ou prejudique. O MP não precisa obedecer a ordens dos órgãos superiores de sua carreira, pois não há hierarquia para essa finalidade. É o que a Constituição denomina de independência funcional, uma das principais garantias dos membros do Ministério Público.Isso significa que nem o chefe de cada ramo do Ministério Público (o procurador-geral), nem os órgãos superiores do MP (os conselhos superiores), nem mesmo o Poder Judiciário podem, como regra, determinar ao membro do Ministério Público como atuar em determinada situação.Defesa do regime democráticoNa defesa do regime democrático, uma das funções mais importantes do Ministério Público é acompanhar o processo eleitoral, para que a escolha dos representantes do povo seja feita da maneira correta, do ponto de vista jurídico. Com isso, busca assegurar o funcionamento legítimo da democracia representativa.

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A fiscalização dos atos dos representantes do povo e de outros agentes públicos, em todos os órgãos e entidades da administração pública, é igualmente forma que o Ministério Público adota para defender o regime democrático, uma vez que os representantes do povo e os gestores públicos devem agir sempre na defesa do interesse da sociedade.Defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveisEm geral, o Ministério Público não tem a função de defender interesses estritamente individuais. Se alguém contratar um marceneiro para serviço em sua residência e este atrasar o trabalho, por exemplo, não cabe ao MP envolver-se no litígio entre as partes, pois o caso não terá dimensão suficiente para caracterizar interesse público.Alguns direitos, porém, mesmo no plano individual, têm relevância especial, seja porque atingem parcela relevante da sociedade, seja porque eles mesmos envolvem interesse público. É o caso, por exemplo, do direito à saúde e à vida. Se uma pessoa tiver doença grave e precisar de medicamento ou tratamento essencial que a rede pública de saúde não forneça, poderá, em determinados casos, pedir ao Poder Judiciário que ordene o fornecimento, pois a Constituição do Brasil garante aos cidadãos o direito à saúde (em vários artigos, especialmente no art. 196).Portanto, quando está em causa algum desses interesses especiais, o Ministério Público tem legitimidade jurídica para adotar providências, judiciais ou extrajudiciais, mesmo no interesse de uma só pessoa ou de um pequeno grupo delas. Exemplos desses interesses são os direitos das crianças e adolescentes, o direito ao ambiente equilibrado, o direito dos consumidores, a proteção do patrimônio público, a proteção da moralidade administrativa etc.Não há critério predefinido para identificar quando ocorrem essas situações. Elas precisam ser avaliadas caso a caso.

Atuação do MP na área criminalOutro dispositivo (= norma) constitucional relevante a respeito do Ministério Público é o artigo 129, inciso I. Segundo ele, cabe ao MP promover a ação penal pública, nos termos da lei. Sobre a diferença entre ação penal pública e privada, veja este texto no blog.Com base nessa determinação constitucional, é papel do Ministério Público participar de todas as fases da atuação pública relativa à quase totalidade dos crimes. Para isso, o MP deve: (a) supervisionar o trabalho de investigação da polícia (e pode também realizar suas próprias investigações); (b) oferecer denúncia ao Poder Judiciário quando houver indícios e outras provas suficientes do crime e de sua autoria; (c) promover o arquivamento da investigação, se não for o caso de promover ação penal (vide abaixo atalho para texto sobre as providências que o MP pode adotar ao final de investigação criminal); (d) acompanhar todos os atos do processo criminal; (e) ao final do processo, requerer a absolvição ou a condenação do réu ou outra medida legalmente apropriada; (f) recorrer das decisões judiciais que lhe pareçam equivocadas, para serem reexaminadas pelo tribunal competente; (g) acompanhar o processo de execução penal, para que o réu condenado cumpra a pena aplicada pela justiça, de forma correta.Devido à sua função essencial de custos legis (fiscal da lei), como mencionado acima, o Ministério Público, no processo penal, atua de forma diferente da dos advogados. Enquanto estes precisam sempre defender seu cliente (e deveriam fazer isso de maneira ética, embora nem sempre o façam), o Ministério Público não está obrigado a perseguir cegamente a condenação do acusado. Além de promover o arquivamento da investigação, quando não haja elementos suficientes para acusar, o MP pode (e deve) pedir a absolvição do réu, se não estiver convencido da culpa dele ou se não houver provas suficientes, pode pedir decisões judiciais favoráveis ao réu, como a declaração da prescrição, e pode recorrer ou impetrar (= requerer) habeas corpus em favor do réu. Por isso se diz, com razão, que hoje em dia, no Brasil, o Ministério Público não é mais “acusador sistemático”.A Constituição ainda atribui ao Ministério Público outra importante função na esfera criminal, que é o controle externo da atividade policial. Embora a maioria dos policiais brasileiros seja de mulheres e homens dignos e dedicados, infelizmente são frequentes, ao longo da história, episódios de desrespeitos os mais variados aos direitos dos cidadãos, por parte das várias polícias. Com a finalidade de reduzi-los e de cooperar para que as polícias respeitem as leis, o MP deve realizar esse controle – e é área, por sinal, na qual o Ministério Público ainda tem atuação deficiente.

Judiciário: Poder Judiciário é um dos três poderes do Estado a qual é atribuída a função judiciária, ou seja, a administração da Justiça na sociedade, através do cumprimento de normas e leis judiciais e constitucionais.

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O Poder Judiciário ou Poder Judicial é constituído por ministros, desembargadores, promotores de justiça e juízes, que têm a obrigação de julgar ações ou situações que não se enquadram com as leis criadas pelo Poder Legislativo e aprovadas pelo Poder Executivo, ou com as regras da Constituição do país.A principal função do Poder Judiciário é defender os direitos de cada cidadão, promovendo a justiça e resolvendo os prováveis conflitos que possam surgir na sociedade, através da investigação, apuração, julgamento e punição.No entanto, este poder não está unicamente centralizado nas mãos do Judiciário. A Constituição Federal Brasileira garante meios alternativos às quais todos os cidadãos podem recorrer, como: Ministério Público, Defensoria Pública e advogados particulares (devidamente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil - OAB).A ideia do modelo de três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), que forma o Estado Democrático Brasileiro, foi proposto pelo político e filósofo francês Montesquieu, em seu estudo sobre o Estado Moderno, através da "teoria da separação dos poderes".Em grande parte dos regimes democráticos contemporâneos, o Poder Judiciário é subdivido em órgãos que atuam em áreas específicas, como: Supremo Tribunal Federal; Superior Tribunal de Justiça; Tribunais Regionais Federais; Tribunais do Trabalho; Tribunais Eleitorais eTribunais Militares.Por sua vez, estes órgãos são responsáveis em tratar de diferentes situações ou questões, que podem ser classificados em: Civis: conflitos entre pessoas físicas (todo cidadão) e pessoas jurídicas (empresas, instituições e etc). Penais: relacionados com os mais variados tipos de crimes (homicídios, sequestros, roubos e etc). Eleitorais: relacionado com campanhas eleitorais e às eleições. Trabalhistas: conflitos entre empregados e patrões no âmbito do trabalho. Federais: casos relacionados diretamente ou que diz respeito a administração e organização política do país. Militares: que envolvem as Forças Armadas - Aeronáutica, Marinha e Exército.

3)Teorias sobre a aplicação da pena e seus resultados:

3.1. TEORIA RETRIBUTIVA DA PENA (Teoria Absoluta).

A Teoria retributiva considera que a pena se esgota na idéia de pura retribuição, tem como fim a reação punitiva, ou seja, responde ao mal constitutivo do delito com outro mal que se impõe ao autor do delito. Esta teoria somente pretende que o ato injusto cometido pelo sujeito culpável deste, seja retribuído através do mal que constitui a pena. Ensina HASSEMER e MUÑOZ CONDE que existe uma variante subjetiva da Teoria retributiva que considera que a pena deve ser também para o autor do delito uma forma de "expiación", ou seja, uma espécie de penitência que o condenado deve cumprir para purgar (expiar) seu ato injusto e sua culpabilidade pelo mesmo.

A teoria retribucionista (teoria absoluta) considera que a exigência de pena deriva da idéia de justiça. Neste diapasão, KANT exemplificava:

"Si una sociedad tuviera que disolverse y sus miembros debieran espacirse por el mundo, antes de llevar a cabo dicha decisión el último asesino que se encontrara en prisión debería ser ejecutado (téngase en cuenta que Kant no cuestinaba la pena de muerte), para que así todo el mundo supiera el valor que merecían sus hechos y se hiciera justicia, por más que obviamente si una sociedad está a punto de perecer carezca de utilidad el hecho de que todavia se ejecute al último asesino que quedara en sus carceles". Menciona MUÑOZ CONDE: "Pocas veces se há hecho valer en la historia del pensamiento la idea contenida en la frase latina "fiat justicia, pereat mandamus" (hágase la justicia, aunque perezca el mundo) de forma tan gráfica y contundente como en este ejemplo Kantiano de la isla."

Enfim, a pena retributiva esgota o seu sentido no mal que se faz sofrer ao delinqüente como compensação ou expiação do mal do crime; nesta medida é uma doutrina puramente social-negativa que acaba por se revelar estranha e inimiga de qualquer tentativa de socialização do delinqüente e de restauração da paz jurídica da comunidade afetada pelo crime. Em suma, inimiga de qualquer atuação preventiva e, assim, da pretensão de controle e domínio do fenômeno da criminalidade.

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3.2. TEORIAS PREVENTIVAS DA PENA (Teorias Relativas). As teorias preventivas da pena são aquelas teorias que atribuem à pena a capacidade e a missão de evitar que no futuro se cometam delitos. Podem subdividir-se em teoria preventiva especial e teoria preventiva geral. As teorias preventivas também reconhecem que, segundo sua essência, a pena se traduz num mal para quem a sofre. Mas, como instrumento político-criminal destinado a atuar no mundo, não pode a pena bastar-se com essa característica, em si mesma destituída de sentido social-positivo. Para como tal se justificar, a pena tem de usar desse mal para alcançar a finalidade precípua de toda a política criminal, precisamente, a prevenção ou a profilaxia criminal.

A crítica geral proveniente dos adeptos das teorias absolutas, que ao longo dos tempos mas se tem feito ouvir às teorias relativas é a de que, aplicando-se as penas a seres humanos em nome de fins utilitários ou pragmáticos que pretendem alcançar no contexto social, elas transformariam a pessoa humana em objeto, dela se serviriam para a realização de finalidades heterônimas e, nesta medida, violariam a sua eminente dignidade. Neste sentido, segundo KANT: "O homem não pode nunca ser utilizado meramente como meio para os propósitos de outro e ser confundido com os objetos do direito das coisas, contra o que o protege a sua personalidade inata." Também são criticadas em virtude de justificarem a necessidade da pena para que ocorra a redução da violência e a prática de novos crimes. Deste modo, não existiria limites ao poder do Estado, com uma certa tendência ao "Direito penal do terror". Ou seja, quem pretendesse intimidar mediante a pena, tenderia a reforçar este efeito, castigando tão duramente quanto possível.

3.2.1. TEORIA PREVENTIVA GERAL A teoria preventiva geral está direcionada à generalidade dos cidadãos, esperando que a ameaça de uma pena, e sua imposição e execução, por um lado, sirva para intimidar aos delinqüentes potenciais (concepção estrita o negativa da prevenção geral), e, por outro lado, sirva para robustecer a consciência jurídica dos cidadãos e sua confiança e fé no Direito (concepção ampla ou positiva da prevenção geral). Deste modo, por uma parte, a pena pode ser concebida como forma acolhida de intimidação das outras pessoas através do sofrimento que com ela se inflige ao delinqüente e que, ao fim, as conduzirá a não cometerem fatos criminais (prevenção geral negativa ou de intimidação). Por outra parte, a pena pode ser ser concebida, como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal; como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, apesar de todas as violações que tenham tido lugar (prevenção geral positiva ou de integração). 3.2.2. TEORIA PREVENTIVA ESPECIAL A teoria preventiva especial está direcionada ao delinqüente concreto castigado com uma pena. Têm por denominador comum a idéia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do delinqüente, com o fim de evitar que, no futuro ele cometa novos crimes. Deste modo, deve-se falar de uma finalidade de prevenção da reincidência.

Essa teoria não busca retribuir o fato passado, senão justificar a pena com o fim de prevenir novos delitos do autor. Portanto, diferencia-se, basicamente, da prevenção geral, em virtude de que o fato não se dirige a coletividade. Ou seja, o fato se dirige a uma pessoa determinada que é o sujeito delinqüente. Deste modo, a pretensão desta teoria é evitar que aquele que delinqüiu volte a delinqüir. A doutrina da prevenção especial, segundo FERRAJOLI, segue tendências, dentre elas, a "doutrina teleológica de la diferenciación de la pena" que FRANZ VON LISZT expõe em seu célebre Programa de Marburgo (1882). Segundo esta visão, a função da pena e a do Direito Penal é proteger bens jurídicos, incidindo na personalidade do delinqüente através da pena, e com a finalidade de que não volte a delinqüir. Nesta tendência, a prevenção especial pode subdividir-se em duas grandes possibilidades, cuja diferenciação está baseada nas distintas formas de atuar, segundo o tipo de delinqüente. Deste modo, podem ser: prevenção positiva (ou ressocializadora) e prevenção negativa (ou inocuizadora).

A prevenção positiva persegue a ressocialização do delinqüente, através , da sua correção. Ela advoga por uma pena dirigida ao tratamento do próprio delinqüente, com o propósito de incidir em sua personalidade, com efeito de evitar sua reincidência. A finalidade da pena-tratamento é a ressocialização.

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Por outro lado, a prevenção negativa, busca tanto a intimidação ou inocuização através da intimidação – do que ainda é intimidável - , como a inocuização mediante a privação da liberdade – dos que não são corrigíveis nem intimidáveis. Ou seja, a prevenção especial negativa tem como fim neutralizar a possível nova ação delitiva, daquele que delinqüiu em momento anterior, através de sua "inocuização" ou "intimidação". Busca evitar a reincidência através de técnicas, ao mesmo tempo, eficazes e discutíveis, tais como, a pena de morte, o isolamento etc.

3.3. TEORIAS MISTAS OU UNIFICADORAS. As teorias mistas ou unificadoras tentam agrupar em um conceito único os fins da pena. Essa corrente tenta recolher os aspectos mais destacados das teorias absolutas e relativas. Deste modo, afirma MIR PUIG: "Entende-se que a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial são distintos aspectos de um mesmo complexo fenômeno que é a pena".As teorias unificadoras partem da crítica às soluções monistas (teorias absolutas e teorias relativas) . Sustentam que essa unidimensionalidade, em um ou outro sentido, mostra-se formalista e incapaz de abranger a complexidade dos fenômenos sociais que interessam ao Direito Penal, com conseqüências graves para a segurança e os direitos fundamentais do homem.(10) Esse é um dos argumentos básicos que ressaltam a necessidade de adotar uma teoria que abranja a pluralidade funcional da pena.

3.3.1. TEORIAS QUE REENTRAM A IDÉIA DE RETRIBUIÇÃO. Esta teoria define a pena retributiva no seio da qual procura dar-se realização a pontos de vista de prevenção, geral e especial; ou diferentemente no que toca a hierarquização das perspectivas integrantes, para todavia se exprimir no fundo a mesma idéia, como o de uma pena preventiva através de justa retribuição. Numa e noutra formulação estará presente a concepção da pena, segundo a sua essência – e nesta acepção primariamente – como retribuição da culpa, e subsidiariamente, como instrumento de intimidação da generalidade e, na medida possível, de ressocialização do agente. Deste modo, no momento da sua ameaça abstrata a pena seria antes de tudo, instrumento de prevenção geral; no momento da sua aplicação ela surgiria basicamente na sua veste retributiva; na sua execução efetiva, por fim, ela visaria predominantemente fins de prevenção especial.

3.3.2. TEORIAS DA PREVENÇÃO INTEGRAL O ponto de partida destas teorias é o de que a combinação ou unificação das finalidades da pena ocorre exclusivamente a nível da prevenção, geral e especial, com total exclusão, por conseguinte, de qualquer ressonância retributiva, expiatória ou compensatória. Deste ponto de vista se tentou lograr a concordância prática possível das idéias de prevenção geral e de prevenção especial, a sua otimização à custa de mútua compreensão, de modo a atribuir a cada uma a máxima incidência na prossecução de um ideal de prevenção integral.

4) Persecução penal e dignidade da pessoa humana: limites da atividade persecutória.

DA PERSECUÇÃO PENAL: CONCEITOS GERAIS4.1 Direito e sociedadeO homem não consegue viver senão em sociedade. Embora a dificuldade técnica na conceituação de sociedade, preferimos, grosso modo, caracterizá-la como organizações de pessoas reunidas na busca de satisfação de interesses próprios e coletivos.Modernamente, predomina no universo jurídico o entendimento de que não há sociedade sem direito. Com efeito, tal assertiva é largamente aceita em virtude da função predominante do direito nas sociedades contemporâneas, qual seja a função ordenadora, tanto que, em posição extremada, disserta Nader (1995, p.31) “Direito e Sociedade são entidades congênitas e se pressupõem. O Direito não tem existência em si próprio. Ele existe na sociedade”.Deste modo, é comum na doutrina pátria a indicação do direito como uma das formas mais eficientes de controle social, esse entendido como o conjunto de mecanismos de que a própria sociedade dispõe para solução de conflitos, imposição de valores morais e todo o necessário para a possibilidade de existência de uma coletividade.

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Nesse diapasão, fácil imaginar que se cada membro de um agrupamento social fizesse o que bem quisesse e entendesse, recorrente seria a invasão da esfera de liberdade individual pelos demais integrantes do agrupamento, ou, ainda, por parte do ente estatal.Assim, fácil a visualização de que incumbe ao ordenamento jurídico harmonizar as relações sociais visando à continuidade da vida em sociedade, à defesa das liberdades individuais, em suma, ao bem estar geral da coletividade.

4.2 Da evolução da administração da justiçaNos primórdios do desenvolvimento da civilização dos povos, não há como falar em um Estado forte o suficiente para impor, de forma cogente, normas jurídicas. Nessa esteira, Cintra, Dinamarco e Grinover asseveram (2003, p.21) “não só inexistia um órgão estatal que, com soberania e autoridade, garantisse o cumprimento do direito, como não havia sequer as leis”.Por conseguinte, quem desejasse algo que outrem o impedisse de obter, seja como forma de relação negocial ou pessoal, haveria de buscar por si só, com seus esforços e na medida de seu poder, a satisfação de seus interesses sem qualquer mecanismo de freio ou limitação nessa atividade, sendo que a própria repressão aos atos criminosos se fazia em regime de vingança privada.Assim, inicialmente a solução dos conflitos aponta pela reação direta e pessoal do próprio interessado, sendo este, na visão de Ovídio Baptista (2006, p.34) inegavelmente o primeiro ímpeto do homem, havendo o que o autor chama de solução direta entre os conflitantes, sem participação de um terceiro na composição.Este sistema precário, de certa forma impensável no conceito moderno de Estado, é usualmente chamado de auto-tutela. Em verdade, realizava seu desejo aquele que tivesse força ou poder para tanto, com ações completamente desvinculadas, objetivamente, dos ideais de justiça.De outra banda, importante ressaltar a existência no ordenamento pátrio contemporâneo de casos esparsos de reconhecimento legal da auto-tutela, como nos esforços para cessação de turbação ou esbulho da posse, ou ainda, na seara penal, da excludente da ilicitude legítima defesa.Outra forma de composição dos litígios praticado nos sistemas primitivos, ainda permitido e até estimulado, é o chamado de auto-composição, através do qual um dos interessados abriria mão do bem disputado, submeter-se-ia à vontade do outro, ou, ainda, no caso de concessão recíproca, sendo esses concernentes, respectivamente, à desistência, submissão e transação.Esta forma de resolução, no entanto, é desprovida de garantia de cumprimento senão pelo uso da própria força do interessado, persistindo, assim, os inconvenientes de sua adoção.É nesse diapasão que Cintra, Dinamarco e Grinover aduzem (2003, p.21) que:“Quando, pouco a pouco, os indivíduos foram-se apercebendo dos males desse sistema, eles começaram a preferir, ao invés da solução parcial de seus conflitos [...], uma solução amigável e imparcial através de árbitros, pessoas de sua confiança mútua em quem as partes se louvam para que se resolvam os conflitos.”Essas funções arbitrais eram confiadas, em geral, aos anciãos e aos representantes de associações religiosas ou ligadas às divindades, sendo, de qualquer sorte, desprovida da imposição das decisões que hoje caracterizam a atividade jurisdicional.Portanto, gradativamente, e ressaltemos que de forma não linear e lado a lado com a afirmação do ente Estatal, consolidou-se a solução dos conflitos de forma quase exclusiva pelo Estado, havendo verdadeira proibição do exercício da auto-tutela pelo chamado monopólio da jurisdição estatal.Por conseguinte, se apenas o Estado administra a justiça, por meio do Poder Judiciário, elementar que em havendo lesão de direito do cidadão, estando este impossibilitado de fazê-lo valer pelo uso da força, pode dirigir-se ao Estado, reclamando a prestação jurisdicional e, conseqüentemente, o respeito aos seus interesses.Hodiernamente, a realização dessa tarefa definida como jurisdição é obtida pelo processo, definido com clareza por Tourinho Filho (2005, p.7) como forma de composição de litígios, havendo sucessão de atos coordenados visando à chamada composição da lide, estando completa quando o Estado-Juiz, depois de sopesar o obtido na instrução, ditar sua resolução forçosamente.

4.3 Da norma abstrata e impessoal à concretização de seus efeitos secundáriosNo desempenho da atividade jurisdicional, o Estado regula as relações jurídicas ou intersubjetivas, partindo da premissa de um dos pilares básicos das funções estatais, qual seja a atividade legislativa. Desse modo, poder-se-ia afirmar que são estabelecidas normas jurídicas, fundadas no senso comum, regendo as mais variadas relações que necessitam de proteção ou reconhecimento estatal, definindo o lícito ou o ilícito, atribuindo direitos, poderes, deveres, faculdades, consistindo, segundo Cintra, Dinamarco e Grinover (2003, p. 18), em:

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“normas de caráter genérico e abstrato, ditadas aprioristicamente, sem destinação particular a nenhuma pessoa e a nenhuma situação concreta; são verdadeiros tipos, ou modelos de conduta (desejada ou reprovada), acompanhados ordinariamente dos efeitos que seguirão à ocorrência de fatos que se adaptem às previsões”.Deste modo, são estabelecidas regras que regulamentam a convivência entre as pessoas e as relações destas com o próprio Estado. Nesse diapasão, Mirabete leciona que (2005, p.25) “Esse conjunto de normas, denominado direito objetivo, exterioriza a vontade do Estado quanto à regulamentação das relações sociais, entre indivíduos, entre organismos do Estado e entre uns e outros.”Em momento posterior à edição das normas jurídicas, atividade estatal representada pela função legiferante, o Estado, através da Jurisdição, busca a realização prática destas normas em caso de conflitos entre pessoas ou órgãos, declarando, segundo própria orientação contida no ordenamento, qual o preceito pertinente ao caso concreto, desenvolvendo medidas visando a efetivação de tais preceitos. Nessa órbita é que para Cintra, Dinamarco e Grinover (2003, p.38) “a jurisdição é considerada uma longa manus da legislação, no sentido de que ela tem, entre outras finalidades, a de assegurar a prevalência do direito positivo do país”.Dessa atribuição valorativa da conduta, exposta na classificação em legalidade ou ilegalidade da ação, surge a definição do ilícito, que consiste, concorde Nader (1995, p.397) “na conduta humana violadora da ordem jurídica”. Em outras palavras, resulta que o lícito é um comportamento que está autorizado ou não vedado pelo ordenamento jurídico.Portanto, grosso modo, os atos jurídicos dividem-se em lícitos ou ilícitos . Os definidos como lícitos são os atos aos quais a lei defere os efeitos almejados pelo agente, e, se praticados em conformidade com as normas jurídicas, produzem efeitos jurídicos voluntários. Já os ilícitos, por serem praticados em desacordo com o prescrito no ordenamento jurídico, produzem efeitos jurídicos involuntários, impostos pelo próprio ordenamento jurídico.De outra banda, embora o ato ilícito ontologicamente tenha entendimento único, pode ter seus efeitos atribuídos pela norma penal ou civil. Portanto, conceitualmente, o ilícito penal ou o ilícito civil recebem a mesma definição, divergindo, entretanto, no atinente aos chamados efeitos involuntários produzidos em conformidade com a gravidade do ocorrido.Não obstante quem se afaste do imperativo das regras jurídicas fique submetido à coação estatal pelo descumprimento de seus deveres, tornar-se-iam inócuas tais normas se não estabelecessem sanções para aqueles que as desobedecessem, pondo em risco a finalidade de ordenação almejada.Por conseguinte, a sujeição de todos às normas estabelecidas pelo ordenamento jurídico somente pode ser obtida com a “cominação, aplicação e execução das sanções previstas para as transgressões cometidas, denominadas ilícitos jurídicos” (Mirabete, 2005, p.26). Inicialmente, essas sanções são o ressarcimento dos danos e prejuízos causados pela conduta proibida, residindo, neste ínterim, a distinção entre o ilícito penal e o ilícito civil.O direito civil, embora a existência de compartimentos não patrimoniais, é eminentemente patrimonial, no que resulta dizer, segundo Venosa (2005, p.572) que “Quando se fala na existência do ato ilícito no campo privado, o que se tem em vista é exclusivamente a reparação do dano, a recomposição patrimonial”. Assim, quando se condena o agente ao pagamento de indenização, objetiva-se o reequilíbrio patrimonial, desestabilizado pela conduta do causador do dano.Inobstante tal assertiva, ocorre que, por vezes, tais sanções se mostram insuficientes para coibir determinados ilícitos, pois há certos deveres que, por sua transcendência social e pela própria valoração atribuída pelo agrupamento social, devem ser reforçadas com outras normas, destinadas a fazer possível a convivência dos indivíduos em sociedade, sendo correta, então, a afirmação de que em caso de transgressão desses deveres, a exigência de sanção do ilícito transcende a esfera jurídica do interesse particular para afetar a própria comunidade social e política.Daí decorre a função de tutela jurídica do chamado direito penal, porque sua função precípua consiste na proteção dos bens jurídicos mais elevados, assim considerados aqueles aos quais o grupamento social, através do ordenamento jurídico, alçou a categoria de ilícito penal. Resumidamente, quando falamos em ilícito penal temos de ter em mente que, se tal conduta foi tipificada em seara penal significa que a consciência coletiva entende tal bem jurídico como dos mais importantes do ser humano, como a vida e a integridade física dos cidadãos. Tal entendimento vem exposto no chamado princípio da intervenção mínima, que é assim descrito por Jesus (2003, p.10):“Procurando restringir ou impedir o arbítrio do legislador, no sentido de evitar a definição desnecessária de crimes e a imposição de penas injustas, desumanas ou cruéis, a criação de tipos delituosos deve obedecer à

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imprescindibilidade, só devendo intervir o Estado, por intermédio do Direito Penal, quando os outros ramos do Direito não conseguirem prevenir a conduta ilícita.”Ora, como já dissemos, se o ilícito penal é aquele que viola bem jurídico elevado ao topo da hierarquia de valores, fácil compreender que este não mais afeta apenas a vítima ou o ofendido, mas sim toda a coletividade.Nesse diapasão, cumpre destacar a visão de Tourinho Filho (2005, p.9):“Dos bens ou interesses tutelados pelo Estado (por meio das normas), uns existem cuja violação afeta sobremodo as condições de vida em sociedade. O direito à vida, à honra, à integridade física são exemplos. Tais bens e muitos outros são tutelados pelas normas penais, e sua violação é o que se chama ilícito penal ou infração penal. O ilícito penal atenta, pois, contra os bens mais caros e importantes de quantos possua o homem, e, por isso mesmo, os mais importantes da vida social.”E é este ilícito penal, entendido como a transgressão de um tipo penal anteriormente definido, que nos interessa neste trabalho. Na ocorrência de um ato ilícito elevado à categoria de norma penal, surge em toda a coletividade um anseio de aplicação de uma sanção estabelecida conforme a gravidade do bem jurídico violado, baseado, também, nos próprios valores estabelecidos pelo grupamento social.Como já tivemos oportunidade de manifestar, o Estado prevê, através de lei, quais são os fatos que constituem infrações penais, e comina, também, as sanções correspondentes criando o que a doutrina conceitua como o direito penal objetivo. A título elucidativo, interessante destacar a visão de Basileu Garcia (apud Mirabete, 2005, p.26) que o conceitua como o “conjunto de normas jurídicas que o Estado estabelece para combater o crime, através de penas e medidas de segurança.”Por sua vez, tais normas distinguem-se das normas morais, religiosas e consuetudinárias, na medida em que se tornam cogentes, emitindo imperativos sob pena de uma sanção concreta.Ante o exposto, se o Estado avocou para si o monopólio da distribuição da Justiça impedindo o particular de resolver seus conflitos pela autotutela, bem como se tutelou os bens jurídicos tidos como os mais importantes na sociedade humana dentro do direito penal, fácil visualizar que incumbe ao próprio Estado a imposição de uma sanção pelo descumprimento de tal norma penal.Não mais podendo o particular exercer a punição, a titularidade do direito de punir do Estado surge no exato instante em que é suprimida a vingança privada e são implantados os critérios de justiça. Nessa esteira, Lopes Júnior sintetiza que (2006, p.3) “O Estado, como ente jurídico e político, avoca para si o direito (e também o dever) de proteger a comunidade e inclusive o próprio delinqüente como meio de cumprir sua função de procurar o bem comum”.Na medida em que há o crescimento estatal, consciente dos problemas causados pela autodefesa, o Estado assume o monopólio da justiça, produzindo senão a proibição expressa para os particulares de tomarem a justiça por suas próprias mãos, não cabendo, concorde Lopes Júnior (2006, p.3) “outra atividade que não a invocação da devida tutela jurisdicional”, impondo-se, assim, a necessária utilização da estrutura já anteriormente construída por este agora fortalecido Estado, qual seja o processo judicial.Então é correto afirmar que quando da ocorrência de um ilícito criminal surge para o Estado o direito-dever de punir o infrator, representando a justa reação do próprio ente estatal contra o autor da infração em nome da defesa da ordem e da boa convivência entre os cidadãos, sendo essa chamada de pretensão punitiva.

4.4 Da pretensão punitivaEm sendo o direito penal objetivo o conjunto de normas que descrevem os delitos e estabelecem as sanções, e, correspondendo o direito de punir à imposição dessas sanções, costuma a doutrina pátria distinguir o direito de punir em abstrato e concreto, nomeando-os como jus puniendi in abstracto e jus puniendi in concreto. Em clara lição, assim os define Tourinho Filho (2005, p.10):“Observe-se, contudo, que o jus puniendi existe in abstracto e in concreto. Com efeito. Quando o Estado, por meio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a transgredir o mandamento proibitivo que se contém na norma penal, surge para ele o jus puniendi num plano abstrato e, para o particular, o dever de abster-se de realizar a conduta punível. Todavia, no instante em que alguém realiza a conduta proibida pela norma penal, aquele jus puniendi desce do plano abstrato para o concreto, pois, já agora, o Estado tem o dever de infligir a pena ao autor da conduta proibida.”Nesse diapasão podemos afirmar que, paralelamente com o surgimento do chamado de direito de punir concreto, nasce, também, a pretensão punitiva.Por sua vez, esse direito punitivo concreto é também chamado pela doutrina de direito subjetivo estatal, baseado na relação jurídica criada pelo infrator penal para com o Estado, qual seja a imposição da sanção penal. Este direito subjetivo, por sua vez, é clara manifestação da soberania estatal em plano interno.

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Portanto, a prática do ilícito penal acarreta a dicotomia existente ente o direito de liberdade do infrator e o poder punitivo estatal. Dessa exigência de subordinação do interesse alheio ao interesse próprio resulta a existência de uma pretensão, sendo que, no processo penal, “da exigência de subordinação do interesse do autor da infração penal ao interesse do Estado, resulta a pretensão punitiva” (Mirabete, 2005, p.27).Sem embargo da grande controvérsia acerca da existência de lide no processo penal, somos partidários da corrente majoritária que defende sua ocorrência, pois que o Estado, na aplicação da lei penal, deve sempre observar, paralelamente ao seu direito punitivo, o direito de ir e vir do cidadão, havendo clara oposição de uma parte à pretensão à outra.Mesmo quando o autor da conduta punível não opõe resistência à pretensão estatal, deve o Estado fazê-lo já que também tutela o direito de liberdade do paciente, esse eivado à posição de direito fundamental do homem.Em clara lição doutrinária, Tourinho Filho (2005, p.10) aponta “Desse modo, o Estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em conservar a sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringir o jus libertatis com a inflição da pena”.Não obstante, embora revelada a lide penal no conflito teórico existente entre direito de punir e direito de liberdade, cumpre destacar não ser pacífico tal entendimento. Isto porque, segundo minoritária parcela da doutrina, por ser o Estado o titular do direito de punir, e sendo o bem-estar social a maior de suas finalidades, não se pode dizer que a aplicação de pena ao criminoso seja o desejo íntimo do ente Estatal, mas, pura e simplesmente, que tal fato seja atribuído e submetido ao crivo do Estado-Juiz que em sua apreciação determina merecer ou não a aplicação da punição prevista no preceito secundário da norma penal, como vimos. Sustenta-se, desse modo, a inexistência da lide penal, posto o único interesse nessa atividade seria o de apuração ou não da recepção da reprimenda.Adotamos, entretanto, o entendimento da existência da lide penal, pois o Estado acaba por permanentemente vigiar e decidir acerca de interesses diametralmente opostos, quais sejam o poder-dever de punir, nascedouro do monopólio do jurisdição, e o direito fundamental de liberdade, oriundo da positivação dos direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão.Clara, assim, a posição de Nucci (2006, p.74) de que “O processo penal lida com liberdades públicas, direitos indisponíveis, tutelando a dignidade da pessoa humana e outros interesses dos quais não se pode abrir mão, como a vida, a liberdade, a integridade física e moral etc.”

4.5 Da necessidade do processo penalPartindo da premissa da existência do conflito teórico acima descrito surge o questionamento da forma como poderia o Estado tornar efetivo seu direito de punir infligindo ao culpado a devida sanção penal. Embora seja mais fácil a visualização da imposição direta da sanção penal do Estado, razoável concluir que da mesma forma que não seria possível a vida em sociedade com a manutenção da auto-tutela, impossível também conceber um modelo estável de sociedade em que a imposição da pena ao suposto criminoso ficasse a cargo exclusivo do próprio titular do direito de punir.Nesse ínterim, consolida-se com a evolução da sociedade moderna a fixação dos direitos fundamentais, em especial àqueles atinentes ao nosso estudo, quais sejam os diretamente vinculados ao direito de liberdade e do devido processo legal dentre outros.Nesta esteira, discorre Nucci que (2006, p.61) “O Estado deve respeitar os direitos do indivíduo, mas precisa também limitá-los, em nome da democracia”.Embora não seja possível o desenvolvimento desta idéia neste estudo monográfico, o fato é que nessa realidade incontrastável o Estado auto-limitou seu poder repressivo. Na visão de Tourinho Filho (2005, p.12) “Apesar de o Estado deter o direito de punir, ele próprio não pode executá-lo. Submete-se, assim, ao império da lei”. E o instrumento a ser utilizado para dirimir tal posição antagônica entre a liberdade e a punição é o devido processo legal, que mesmo na seara penal é indispensável para a imposição da pena, haja visto a proteção auferida aos cidadãos contra os abusos do poder público.Nesse diapasão, Lopes Júnior assevera (2006, p.2) “o Direito Penal é despido de coerção direta e, ao contrário do direito privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo correspondente.” Assim sendo, para a aplicação da pena, não é suficiente a ocorrência de um evento definido como ilícito penal, mas também a ocorrência de um processo penal, havendo, nesse, amplo rol de direitos e garantias fundamentais.Com efeito, clara a disposição defendida por Lopes Júnior (2006, p.2) no sentido de que “A pena não só é efeito jurídico do delito, senão que é um efeito do processo; mas o processo não é efeito do delito, senão da necessidade de impor a pena ao delito por meio do processo”.

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Portanto, pelo respeito à dignidade humana e à liberdade individual é que o Estado fixa a manifestação de seu poder repressivo não apenas nos chamados pressupostos jurídico-penais materiais, exposto nos brocardos nullum crimen nulla poena sine lege, como também assegura a aplicação da lei penal ao caso concreto, de acordo com as formalidades prescritas em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais, como depreende-se dos princípios da nulla poena sine judice, nulla poena sine judicio.Isto equivale a dizer que as leis materiais, o processo e o órgão jurisdicional são fatores indispensáveis nas relações jurídico-penais, como bem disserta Lopes Júnior (2006, p.2) “Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena.”Frente à violação de um bem juridicamente protegido que se tutelado na esfera penal é porque tido como um dos mais valiosos da sociedade contemporânea, não há falar em outra atividade que não a invocação da tutela jurisdicional. Há caráter impositivo em um Estado democrático de direito para a necessária utilização do processo judicial, cuja atuação mediante um terceiro imparcial não corresponde à vontade das partes e resulta da imposição da estrutura institucional, atribuindo, assim, os efeitos devidos ao imputado e solucionando os conflitos surgidos.Isso posto devemos ressaltar a finalidade do processo penal. Superando alguns dogmas do processo penal, entendemos defasada a definição do processo penal como direito adjetivo, colocado em existência para a correta aplicação da lei penal. Em nosso entendimento, à luz da moderna teoria constitucional, em especial no concernente aos direitos e garantias fundamentais, não basta atribuir ao processo penal uma função de política de segurança pública, ou apenas de comprovação da necessidade de imposição de sanção penal ou não ao suposto autor de delito.Em verdade, hodiernamente o processo penal é um instrumento colocado à disposição do cidadão para conferir eficácia às liberdades tidas como negativas, quais sejam aquelas representadas por uma conduta negativa do Estado em respeito à liberdade individual do cidadão.Com efeito dispõe o inc. XXXV do art. 5o da Constituição Federal que “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Assim, sendo a liberdade um direito individual alçado à tutela constitucional, e se a imposição de uma pena inflige tal direito, não pode a lei nem ninguém suprimir a apreciação de tal lesão do Poder Judiciário, concluindo Tourinho Filho que (2005, p.14) “Só o Juiz e exclusivamente o Juiz é que poderá dizer se o réu é culpado, para poder impor a medida restritiva do jus libertatis”.Nesse sentido, define Nucci o processo penal como (2006, p.73):“o corpo de normas jurídicas cuja finalidade é regular o modo, os meios e os órgãos encarregados de punir do Estado, realizando-se por intermédio do Poder Judiciário, constitucionalmente incumbido de aplicar a lei ao caso concreto.”Do mesmo modo, dispõe o inc. LIV do art. 5o da Constituição Federal que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, de onde resulta a forçosa conclusão de que a imposição de pena ao pretenso culpado não pode prescindir de um regular processo presidido por um Juiz natural, ficando as partes em um mesmo plano processual de direitos e deveres a fim de que a justiça não fique menoscabada em benefício de parte melhor situada processualmente.Logo, quando alguém comete uma infração penal, o Estado, impossibilitado de exercer seu direito punitivo diretamente pelas razões expostas, vai a Juízo, tal qual o particular quando tem seu interesse atingido pelo comportamento ilícito de outrem, e deduz a sua pretensão.Nesse diapasão, curial a conclusão de que o Estado necessita de órgãos para desenvolverem a necessária atividade, visando obter a aplicação da sanção ao culpado. Essa atividade é denominada de persecução criminal, definida por Tourinho Filho (2005, p. 15) como a atividade de investigar o fato infringente à norma penal e pedir, em juízo, o julgamento da pretensão punitiva.Assim, segundo esse mesmo autor (2005, p.16) a persecução criminal “apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal.” Esta consiste no pedido de julgamento da pretensão punitiva, conquanto aquela exprime-se na atividade preparatória da ação penal, de caráter preliminar e informativo.Nesse diapasão, para que o titular da ação penal possa exercer seu direito de ação, levando ao conhecimento do Juiz a notícia sobre um fato que se reveste de aparência criminosa, apontando-lhe também o autor, é curial deva ter em mãos dados indispensáveis à propositura da ação.Atualmente, e levando em conta a realidade brasileira, em determinados casos o processo penal acaba por refletir uma verdadeira forma de imposição de sanção. Embora a existência de um estado de inocência esculpido no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira, a ocorrência de um processo penal na vida de um cidadão pode ser um fardo doloroso de ser carregado pela expansiva e marcante exposição dos imputados nos meios de comunicação.

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Fatores como prestígio profissional, status familiar, boa fama, honra, são facilmente maculados pela ocorrência de uma denúncia penal. Sob esta óptica, cresce a posição da investigação preliminar ao processo penal, que tem caráter dualista nitidamente demarcado. De um lado, buscar indícios suficientes de autoria e materialidade do delito, de outro, impossibilitar, por questões lógicas, denúncias infundadas seriamente prejudiciais ao cidadão.Cabe ressaltar quanto à função de filtro processual, a louvável lição de Lopes Júnior (2006, p.25):“entendemos ser imprescindível destacar a existência de verdadeiras penas processuais, pois não só o processo é uma pena em si mesmo, senão também que existe um sobrecusto inflacionário do processo penal na moderna sociedade de comunicação de massas. Existe o uso da imputação formal como um instrumento de culpabilidade preventiva e de estigmatização pública, e, por outra parte, na proliferação de processos a cada ano, não seguidos de pena alguma e somente geradores de certificados penais e de status jurídico-sociais”.Deste modo, fácil concluir a importância da investigação preliminar ao processo penal, em conseqüência do destaque conferido à posição do próprio processo penal na sociedade moderna.

4.6 Da terminologia conferida a fase pré-processual de investigaçãoComo titular do direito de punir, quando alguém infringe a norma penal deverá o Estado, para fazer valer o seu direito, procurar os elementos comprobatórios do fato infringente da norma e os de quem tenha sido o seu autor, entregando-o, a seguir, ao titular da ação penal.Essa tarefa de levar ao juízo o fato criminoso é chamada de persecução penal em juízo, notadamente a segunda fase do aludido instituto. Mas tal assertiva é precedida de um procedimento que vise à busca dos elementos comprobatórios do fato e da respectiva autoria.No Brasil, como a investigação preliminar está afeta à Polícia Judiciária, optou o legislador, sendo seguido pela doutrina pátria, em nomeá-lo como inquérito policial. Isto porque, concorde Lopes Júnior (2006, p.37) “No Brasil, denomina-se inquérito policial, atendendo basicamente ao órgão encarregado da atividade”.Todavia, em nosso trabalho, em decorrência da análise de outros sistemas de investigação baseados no direito comparado, a terminologia não pode ser determinada pelo órgão encarregado, razão porque preferirmos título que caiba às demais modalidades de investigação, não apenas as realizadas pela polícia judiciária. Ademais, outras modalidades de investigação são também permitidas no direito pátrio, tais quais aquelas promovidas pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, pelas autoridades florestais e por agentes da Administração em sindicâncias e processos administrativos, dentre outras.Lopes Júnior (2006, p.38), em análise cuidadosa, aponta a preferência pelo termo instrução preliminar, assim discorrendo:“O termo que nos parece mais adequado é o de instrução preliminar. O primeiro vocábulo [...] significa ensinar, informar. Serve para aludir ao fundamento e à natureza da atividade levada a cabo, isto é, a aportação de dados fáticos e elementos de convicção que possam servir para formar a opinio delicti do acusador e justificar o processo ou o não-processo.”Aduz ainda o aludido doutrinador que o termo instrução seria também mais amplo do que investigação porque atinente à atividade judicial ou policial, bem como ressalta a existência de uma instrução posterior, qual seja a processual penal. Por essa razão a preferência pelo termo instrução preliminar, destacando ainda que o uso dessa nomenclatura (2006, p.38) “Também servirá para apontar o caráter prévio com que se realiza a instrução, diferenciando sua situação cronológica.”Todavia, entendermos não ser possível a utilização do termo instrução preliminar, porque, na medida do possível, as provas devem ser repetidas no curso do processo judicial. Preferimos o termo investigação preliminar, nos reservando ao uso da terminologia de instrução processual para o processo judicial.

4.7 Natureza jurídica do procedimento investigativoA natureza jurídica da investigação é determinada, em geral, pela análise de sua função, estrutura e órgão encarregado. Isso porque segundo Lopes Júnior (2006, p.40) “A natureza jurídica da instrução preliminar é complexa, pois nela são praticados atos de distinta natureza (administrativos, judiciais e até jurisdicionais.”Devemos, assim, levar em conta para a respectiva classificação a natureza jurídica dos atos predominantes, que mesmo em procedimentos notoriamente administrativos como o inquérito policial podem apresentar atos jurisdicionais que necessitem da intervenção do Juiz, como por exemplo a adoção de medida restritiva de direitos fundamentais como a prisão preventiva.Com efeito, as duas correntes principais acerca da natureza jurídica da investigação são aquelas que a definem ora como um procedimento administrativo anterior ao processo ora como um procedimento judicial pré-

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processual. Destarte, a altercação se resume ao fato de ser ou não judicial a coléta de dados preparatórios para a propositura ou não da ação penal.Embora pareça questão superficial, a classificação como procedimento judicial acarreta diversos efeitos, em especial no concernente ao sigilo e a participação o sujeito passivo, o indiciado, em tal procedimento. Tal Idéia resta clara na seguinte lição de Santin (2001, p.133):“A definição das características processuais jurídico-processuais do inquérito policial e demais procedimentos investigatórios é importante para a aplicação das normas constitucionais relativas à participação dos interessados no desenvolvimento das fases de investigação, tendo em vista que o constituinte determinou o exercício dos princípios da ampla defesa e do contraditório nos processos judiciais e administrativos”Deste modo, passemos a analisar as duas principais correntes doutrinárias.

4.7.1 Procedimento administrativo pré-processualEsta corrente considera a investigação preliminar como uma fase preparatória, um procedimento prévio e preparatório do processo penal, sem que seja, por si mesma, uma espécie de processo.Será, então, eminentemente administrativo quando estiver a cargo de um órgão estatal que não pertença ao Poder Judiciário, isto é, um agente que não possua poder jurisdicional. Cabe ressaltar a adoção do termo procedimento administrativo pela não ocorrência de processo administrativo. Nesse diapasão, discorre com propriedade Santin (2001, p.139) “Não se trata de processo administrativo, porque ainda não há acusado, litigante ou conflito de interesses nem há imposição de sanção ou decisão sobre um direito do investigado”.Destarte, quando a investigação estiver a cabo da autoridade policial será eminentemente administrativa, embora possam decorrer atos de natureza diversa, tais como os já citados jurisdicionais. Nesse diapasão, importante trazer a lume a visão de Mirabete (2005, p.82), discorrendo sobre o caráter administrativo do procedimento no direito pátrio:

“Não é o inquérito ‘processo’, mas procedimento administrativo informativo, destinado a fornecer ao órgão da acusação o mínimo de elementos necessários à propositura da ação penal. A investigação procedida pela autoridade policial não se confunde com a instrução criminal, distinguindo o Código de Processo Penal o ‘inquérito policial’ [...] da ‘instrução criminal’. Por essa razão não se aplicam ao inquérito policial os princípios processuais já mencionados [...] nem mesmo o contraditório.”

A atividade, nesses casos, carece da direção de uma autoridade com potestade jurisdicional, não podendo, assim, ser considerada coma atividade jurisdicional e tampouco de natureza processual. Isto porque são práticas que podem ser realizadas fora do procedimento judicial e por autoridades com poderes meramente administrativos, inclusive porque conforme Lopes Júnior (2006, p.41) “são inerentes ao poder-dever de garantia da segurança pública a que estão vinculados o Estado e os órgãos da administração.”Questão bastante controvertida é a atribuição da natureza jurídica da investigação presidida pelo Ministério Público. Embora a doutrina majoritária afirme seu caráter administrativo, principalmente porque a investigação se realiza antes de proposta a ação penal, não podemos aduzir a unanimidade deste entendimento.Com efeito, aponta Fonseca Andrade que (2006, p.56) “Como era de se esperar, a soma destes fatores levou a doutrina a afirmar, sem qualquer titubeio, que a investigação criminal realizada pelo Ministério Público possui natureza administrativa ou pré-processual.”Não obstante, o aludido autor, prosseguindo na digressão sobre o tema, aponta (2006, ps.60-61) que a atribuição dirigida ao procedimento realizado pelo Parquet dependerá da posição adotada pelo legislador, mormente no tocante ao sistema processual adotado, quais sejam o acusatório, inquisitivo ou misto, que analisaremos em momento oportuno.Continua o referido autor indicando que nos países que adotam o sistema misto e a investigação pelo Ministério Público poderá o legislador estabelecer caráter administrativo ou processual.Inobstante tal assertiva, ousamos discordar do citado doutrinador. Para nós, como já dito, o que determina a natureza jurídica da investigação preliminar é a natureza jurídica dos atos predominantes, que, em síntese, decorre primeiramente da posição do agente no cenário jurídico, decorrendo de investidura de poder jurisdicional ou administrativo.Tanto é assim que em sistemas comparados a investigação realizada pelo Ministério Público pode apresentar caráter administrativo ou até judicial. Entretanto, nos casos de natureza judicial, tal classificação decorre do fato de o órgão ministerial integrar o Poder Judiciário e não pela escolha do sistema processual, como veremos quando da análise do direito comparado.

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4.7.2 Procedimento judicial pré-processualA investigação preliminar toma a forma de atos concatenados e logicamente organizados, visando subsídios para a propositura da ação penal, que, como já dito, constitui um segundo momento da persecução penal, podendo seus atos predominantemente serem administrativos, judiciais ou jurisdicionais.Concorde Lopes Júnior (2006, pág. 43) caracteriza-se como judicial o procedimento quando “a investigação preliminar está a cargo de um órgão que pertence ao poder judiciário e dirige a investigação com base na potestas que emana do fato de pertencer ao poder judiciário.” Nesse modelo, podemos indicar como paradigmas aqueles adotados em países como Itália e Portugal que atribuem a investigação preliminar à um Ministério Público independente do Poder Executivo e constitucionalmente incluído no Judiciário, que analisaremos no próximo capítulo.Cabe destacar que ainda nestes casos em que o Ministério Público integre o Poder Judiciário não há qualquer dúvida de que os membros do Parquet não realizam, nessa atividade investigativa, qualquer espécie de atos jurisdicionais, mas apenas judiciais. Isto porque, embora integrantes do Poder Judiciário, não realizam atividades típicas da magistratura, mormente aqueles decorrentes da aplicação do direito objetivo ao caso concreto. Aos integrantes do Ministério Público incumbe colaborar no exercício desse poder jurisdicional, sem, contudo, exercê-lo.Nesse diapasão podemos afirmar que seus atos não são meramente administrativos, mas sim judiciais. Isto porque seu poder decorre não mais da investidura do executivo, mas sim do judiciário.De outra banda, consideramos também como procedimento judicial pré-processual a investigação comandada pelo Juiz Instrutor, não considerando-o como parte integrante do processo, pois faltam-lhe, também, requisitos para ser definido como processo, como os apontados por Lopes Júnior (2006, pág.44) tais como o exercício de uma pretensão, a existência de partes contrapostas, a garantia do contraditório, a existência de uma sentença e a produção de coisa julgada.Destarte a investigação preliminar tem a característica de ser um procedimento prévio ao processo penal, e, por isso mesmo, de natureza pré-processual e com função preparatória do processo ou do não processo, este entendido como a não iniciação da ação penal por ausência de fundamentos.Nessa esteira geralmente a primeira fase da persecução penal é escrita e secreta, contrariando a oralidade e a publicidade que devem predominar no processo penal como forma de garantir uma solução justa dos conflitos.Cabe destacar o exposto por Lopes Júnior (2006, p.45) “Em definitivo, a natureza jurídica da investigação preliminar, quando levada a cabo por membros do Poder Judiciário [...] será de procedimento judicial pré-processual.”Todavia, convém ressaltar que embora sejam os responsáveis pela investigação preliminar integrantes do poder Judiciário, sejam membros do Ministério Público ou Juízes instrutores, não a podemos considerar como processo judicial por ausência de requisitos para assim defini-la, como já tivemos oportunidade de discorrer.

5) Preservação dos direitos na investigação criminal, processo e cumprimento da pena e 6) Investigação criminal e participação das partesSempre que operações policiais são deflagradas, surge a tensão entre o direito ao sigilo e o direito à informação. Esta tensão é ainda mais aguda quando tais diligências policiais envolvem buscas domiciliares e prisões cautelares. As pessoas gostam do espetáculo. Alguns policiais, membros do Ministério Público e juízes também.Segundo o artigo 20 do CPP: “A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade“.São duas as razões para a decretação de sigilo sobre inquéritos criminais em andamento: a primeira delas é o interesse da própria apuração. Em segundo lugar, o sigilo protege a presunção de inocência daqueles que são ainda meros investigados, direito cuja garantia primeira é o sigilo, ao menos na fase primária da persecução criminal.De fato, o artigo 5º, inciso X, da Constituição, diz que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação“, e o inciso LVII do mesmo artigo assevera que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (presunção de não-culpabilidade).

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Observe-se que o art. 220, §1º, da CF, dispõe que “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social“, observado, entre outros, o mencionado inciso X do art. 5º da CF.Até aqui, vemos que o sigilo judicial de investigações criminais é compatível com a Constituição de 1988.O quadro é o mesmo diante da Lei de Acesso à Informação (LAI), quenão revogou o artigo 20 do CPP, que se aplica especificamente a investigação criminal. De fato, diz oart. 22 da Lei 12.527/2011, que suas regras não excluem “as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça“.De igual modo, o art. 23, inciso VII, da LAI, determina que “são consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.“Resta claro, assim, que a preservação do sigilo legal do inquérito (reforçado, às vezes, por decisão judicial) existe em favor do interesse público da própria elucidação do crime. Porém, deflagrada a ação penal, isto é, uma vez iniciado processo, todo o caso deve tornar-se público, com pleno acesso aos seus elementos e provas.Em algumas ocasiões, a violação do sigilo de uma investigação criminal é tão grave e pode ter consequências tão funestas que o legislador alçou este tipo de vazamento à condição de crime. É o que se vê, por exemplo, nos artigos 18 e 20 da Lei 12.850/2013 (Lei do Crime Organizado), que regula os meios operacionais para a investigação de organizações criminosas:Art. 18. Revelar a identidade, fotografar ou filmar o colaborador, sem sua prévia autorização por escrito:Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.Art. 20. Descumprir determinação de sigilo das investigações que envolvam a ação controlada e a infiltração de agentes:Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.Em tais casos da LCO, o propósito do sigilo é a proteção da integridade física e da vida do réu colaborador ou do agente infiltrado ou do sucesso dessas operações assim comoo êxito de uma ação controlada.Contudo, a regra geral de sigilo na LCO está em seu artigo 23, segundo o qual: “o sigilo da investigação poderá ser decretado pela autoridade judicial competente, para garantia da celeridade e da eficácia das diligências investigatórias, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento“.Do mesmo modo, o artigo 7º, incisos IV e VIII, da Lei 9.807/1999 (Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas) garante a preservação da identidade, imagem, dados pessoais ou do paradeiro de testemunhas protegidas, quando inseridas em programa de proteção, nos moldes do Provita, com o objetivo de assegurar a a vida e a integridade física destas. Confira-se:Art. 7o Os programas compreendem, dentre outras, as seguintes medidas, aplicáveis isolada ou cumulativamente em benefício da pessoa protegida, segundo a gravidade e as circunstâncias de cada caso:IV – preservação da identidade, imagem e dados pessoais;VIII – sigilo em relação aos atos praticados em virtude da proteção concedida;Em investigações de lavagem de dinheiro (rectius: no sistema de prevenção), também há regra específica de sigilo (art. 10, inciso V, da Lei 9.613/1998), que impede o sujeito obrigado, detentor da informação sobre uma operação potencialmente suspeita, de revelar a terceiros que registrou um informe junto ao COAF ou ao Banco Central, para prevenção da reciclagem de capitais.Algumas vezes, o acesso prematuro da imprensa a dados da investigação criminal pode por tudo a perder. Foi o que ocorreu na Operação Satiagraha, que foi comprometida e invalidada pela justiça, entre outros motivos, porque a autoridade policial federal permitiu a participação de funcionários de uma emissora de TV na gravação de uma ação controlada.Tais exemplos revelam que, do mesmo modo que o sigilo da fonte é necessário ao exercício profissional do jornalista (artigo 5º, XIV, CF), o sigilo da investigação é fundamental para o sucesso desta e para a proteção da honra e da imagem de pessoas que podem ser (e muitas vezes são) inocentes.Repita-se ainda que tais leis limitadoras do direito à informação são absolutamente constitucionais, porquanto não conflitam com o artigo 5º, inciso XXXIII, da Constituição, que assim dispõe:“Art. 5º.XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade,ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

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Em democracias mais longevas e estáveis que a nossa, também há restrições à informação nas etapas iniciais da investigação criminal. É o que ocorre na França e nos Estados Unidos da América. Evidentemente há ampla liberdade de imprensa nessas nações, mas seus sistemas criminais comportam exceções célebres.De fato, o artigo 11 do Code de Procédure Pénale da República Francesa determina o sigilo durante a enquête (inquérito).

Sauf dans le cas où la loi en dispose autrement et sans préjudice des droits de la défense, la procédure au cours de l’enquête et de l’instruction est secrète.Toute personne qui concourt à cette procédure est tenue au secret professionnel dans les conditions et sous les peines des articles 226-13 et 226-14 du code pénal.Toutefois, afin d’éviter la propagation d’informations parcellaires ou inexactes ou pour mettre fin à un trouble à l’ordre public, le procureur de la République peut, d’office et à la demande de la juridiction d’instruction ou des parties, rendre publics des éléments objectifs tirés de la procédure ne comportant aucune appréciation sur le bien-fondé des charges retenues contre les personnes mises en cause.

Também nos Estados Unidos, há limitações relevantes. As “gag orders“ ou “suppression orders” não são raras nos EUA, algo que aqui chamaríamos de “mordaças judiciais“. No caso Sheppard v. Maxwell, de 1966, a Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS)admitiu a validadedas gag orders, que se prestam a restringir prejulgamentos (pretrial publicity) e impedir a divulgação de informações parciais ou incompletas, que poderão influenciar o futuro corpo de jurados e violar o direito do réu a um julgamento justo e isento (fair trial). Nesse julgado, a SCOTUS anulou a condenação de Sam Shephard, médico acusado de matar a própria esposa, devido à publicidade opressiva, que contaminou seu julgamento desde o início, num claro e famoso exemplo de trial by media.Todavia, em Nebraska Press Ass’n v. Stuart, a SCOTUS determinou que tais “mordaças” somente podem ser impostas às partes e demais participantes do julgamento, e jamais a veículos de comunicação social, sob pena de violação da liberdade de imprensa.Há várias espécies de gag orders, previstas no título 18 do US Code e nas leis estaduais de processo penal dos Estados Unidos, onde cada unidade federada tem legislação própria.Normalmente, tais mandados judiciais podem ser impostas aos jurados, à Polícia,às partes, ao Ministério Público (prosecutor ou district attorney ou assistant U.S. attorney) e aos advogados que patrocinam a causa, para evitar sensacionalismo, prejulgamentos e potenciais erros judiciários (trial by media). Tais sujeitos processuais ficam proibidos de falar à imprensa ou a terceiros sobre os fatos da investigação ou da causa.Algumas vezes, tais determinações em prol do sigilo são reforçadas mediante oisolamento dos jurados durante o julgamento (“jury sequestration“), para que os integrantes do conselho de sentença não sofram influências externas nem comentem o caso com terceiros, algo semelhante à incomunicabilidade dos jurados que existe noprocedimento do júri brasileiro (artigos 466, §2º, e 497, VII, do CPP).Ainda nesta linha e tendo em mira os juízes togados brasileiros, o artigo 36, inciso III, da Lei Complementar 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura) cria uma espécie de gag ordergeral imponível a todos os magistrados:

Art. 36 – É vedado ao magistrado:III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.

Voltando ao modelo norte-americano de sigilo judicial em procedimentos criminais, ébom lembrar que tudo o que é apurado perante o “grand jury” (câmara de acusação) é sigiloso, não podendo ser revelado pelos promotores, investigadores ou advogados, salvo após o indictment (formalização da acusação), quando, então, o caso se torna público (public trial). No particular, vale mencionar a Regra 6(e)(2)(B) das Federal Rules of Criminal Procedure, que impõe o dever de sigilo (secrecy) a todos quanto atuam perante o “primeiro conselho de jurados” (grand jury), quando há sessões fechadas ou in camara(closed hearings), sendo assegurada a confidencialidade dos registros e atos do procedimento (sealed records, orders and subpoenas). A violação de tais deveres legaisde sigilo pode importar a prática decontempt of court, uma espécie de desacato ou desobediência.Ademais, mesmo na fase plenária (“petit jury” ou câmara de julgamento), em regra não se admitem imagens nem vídeos das sessões de instrução e julgamento, tanto que nos Estados Unidos se desenvolveu uma forma específica de arte, a pintura forense. Há artistas que se especializaram em fazer essas ilustrações a mão (“courtroom sketches“), algumas das quais se tornam valiosas, chegando a ser expostas em galerias de arte.

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O dever de sigilo que impera na fase preliminar dos procedimentos criminais nos Estados Unidos provocou um fenômeno peculiar, facilitado pelas policias americanas, que, apesar da presunção de inocência dos suspeitos, sempre dão jeito de mostrar o preso famoso à imprensa quando toma o rumo do tribunal, invariavelmente com algemas. Deu-se até um nome a este espetáculo midiático: “perp walk”, algo como o desfile do prisioneiro/suspeito. Contudo, lá seria inimaginável a tal “apresentação do preso à Polícia”, cerimônia jornalística degradante e, ao mesmo tempo, prática abominável da Polícia brasileira, que alimenta os programas de TV mundo-cão e jornais fuleiros– como o antigo “Notícias Populares”, aquele que “se espremer sai sangue” – que sempre têm como alvo bandidos pés-de-chinelo. Esta moderna exposição dos suplícios, como diria Foucault, é por muitos chamada de “datenismo“. E com razão.Em maio de 2011, a corriqueira prática de “perp walk” gerou grande polêmica nos EUA e na França quando o então diretor do FMI, Dominique Strauss-Kann, foi preso em Nova York, sob suspeita de crime sexual, e exibido às câmeras do mundo inteiro.Ainda nos EUA, há uma espécie de sigilo que pode durar mesmo após a condenação. Na sentença, pode o juiz proibir o sentenciado de escrever livros ou de vender direitos para roteiros de filmes. Vários Estados têm leis para impedir que criminosos lucrem com as histórias de seus crimes. Tais normas são apelidadas de “leis Filho de Sam” (“Son of Sam laws“), em referência ao serial killer David Berkowitz, que usava esta alcunha na Nova York dos anos 1970.Enfim, diante do quadro legal brasileiro e de exemplos semelhantes do direito comparado, pode-se concluir que não é o juiz quem proíbe a divulgação de certos fatos no curso de uma operação policial; é a lei que proíbe, pois a divulgação de informações de inquérito policial pode inviabilizar o seu resultado prático. Afinal, ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei (art. 5º, II, CF).O sigilo imposto à Polícia e ao Ministério Público durante a investigação criminal serve apropósitos nobres, na proteção dos direitos à imagem e à honra e na preservação do interesse público de se concretizar a cabal apuração dos fatos, sem permitir a antecipação de movimentos dos suspeitos (especialmente dos que são culpados), a supressão ou a destruição de provas, a combinação de versões, ou a montagem de álibis que servirão para ludibriar a Polícia e o Ministério Público e enganar os juízes. Esta aliás é a razão por trás da Súmula Vinculante n. 14, que, ao assegurar ao investigado e ao seu defensor o acesso aos elementos de prova de uma investigação, ressalva, isto é, protege com sigilo, as diligências ainda em andamento.SV 14: É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.De igual modo, o cumprimento do dever legal de sigilo do artigo 20 do CPP evita marketing institucional, a pura “propaganda” (no pior sentido da palavra) e a promoção pessoal daqueles que querem se cacifar para cargos mais elevados ou que pretendem se eleger para mandatos no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas ou aceder ao Poder Executivo, às custas de pessoas que não ainda foram condenadas e que sequer foram denunciadas pelo Ministério Público, para a sujeição ao devido processo legal. Delegacias e Promotorias não são lugares de espetáculo nem de pirotecnia jurídica, e, como todos sabem, o bom verbo “investigar” só se conjuga no passado. Depois, no processo penal, a publicidade deve ser ampla e irrestrita, como quer o artigo 93, X, da Constituição: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade“Tal regra constitucional se harmoniza com a célebre frase de Louis Brandeis (1856-1941), ministro da Suprema Corte americana: “Sun light is said to be the best of disinfectants“, no sentido de que lançar luz sobre os fatos e dar-lhes publicidade contribui para o esclarecimento da verdade. Enfim, a transparência é amiga da democracia, enquanto o sigilo absoluto é companheiro das ditaduras.Porém, como certa feita bem lembrou o procurador José Schettino, do Rio de Janeiro, é de Hannah Arendt uma lição que se encaixa perfeitamente neste debate. Nas primeiras páginas do seu “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal“, ao criticar o estrepitoso comportamento do procurador-geral de Israel, Gideon Hausner, a famosa escritora nos ensinou que a “Justiça não admite coisas desse tipo; ela exige isolamento, admite mais a tristeza do que a raiva, e pede a mais cautelosa abstinência diante de todos os prazeres de estar sob a luz dos refletores”.

7) Sistemas de cumpribilidade penal: Sistema da Filadélfia, Sistema de Auburn e Sistema Inglês ou progressivo7.1- INTRODUÇÃO: Há muito tempo vem se debatendo a eficácia do Sistema Progressivo de Regime, existem debates acalorados no meio social, onde se afirmam que este modelo de sistema é um dos responsáveis pela

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grande onda de violência que assola a nossa sociedade, e que a progressão de regime traz ao delinqüente uma sensação de impunidade, tendo em vista que o retorno ao convívio social é rápido.A Jurisprudência pátria, trás uma posição contraria e favorável a manutenção do sistema de progressão de regime, afirmando que a sociedade não pode renegar os cidadãos que cometeram uma infração penal. Afirmam que o retorno ao convívio social é necessário e precisa ser feito de forma gradativa.Serão apresentados diversos pontos sobre o tema, inclusive a apresentação de outros modelos de sistema de cumprimento de pena. Estabelecidas essas premissas será proposta uma solução para tal impasse.

7.2-SISTEMAS DE CUMPRIMENTO DE PENAA doutrina majoritária dentre elas a de Alexandre de Moraes e Gianpaolo aponta que nos diversos ordenamentos jurídicos existem três tipos básicos de sistemas de cumprimento de pena, que são: Filadélfia, Auburn e o Inglês ou Progressivo.O Sistema Filadélfia é aquele onde o sentenciado cumpre toda sua pena em uma cela, sem dela nunca sair. No Sistema Auburn, o preso pode sair de sua cela para realizar trabalhos durante o dia e retornar a noite. Esse trabalho é realizado intramuros. Já no Sistema Inglês ou Progressivo há um período inicial de isolamento, após essa fase o sentenciado é autorizado a sair da cela durante o dia para realizar trabalhos intramuros ou externos, retornando para o confinamento durante a noite. Na última fase o condenado é posto em liberdade condicional, voltando ao convívio social, mas tendo que obedecer algumas restrições.O ordenamento jurídico pátrio adotou o Sistema Progressivo, implantando, contudo, algumas características próprias. Conforme consta no art. 33 do Código Penal Brasileiro os regimes de cumprimento de pena serão: fechado, semi-aberto e aberto. A regra geral é que o tempo de duração em cada fase seja de 1/6 (um sexto) da pena. É concedido ao condenado um abrandamento da pena à medida que vai progredindo de regime. O § 1º do art. 33 do CPB, diz que o regime fechado será cumprido em estabelecimento penitenciário de segurança máxima ou média. Nesse caso o sentenciado fica todo o tempo confinado em uma cela saindo apenas para o banho de sol. O regime semi-aberto é cumprido em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. Nessa fase é permitido ao condenado realizar trabalhos intramuros ou externos durante o dia, retornando para sua cela à noite. Já o regime aberto ocorre em casas de albergado, onde o indivíduo realiza trabalhos externos sem a necessidade de vigilância, voltando para o confinamento durante a noite e nos dias de folga.

7.3-CRÍTICAS AO SISTEMA DE PROGRESSÃO DE REGIMEA discussão acerca da eficácia do sistema de progressão de regime é latente na sociedade brasileira e geralmente ocorre apenas nos crimes de grande comoção social. Questiona-se a progressão de regime, tendo em vista que um condenado pode rapidamente voltar ao convívio social após a prática de um delito. Seria justo o retorno desse condenado de forma rápida ao convívio social? Não estaria tal sistema propiciando a impunidade, tendo em vista que o criminoso sabe que em pouco tempo poderá retornar a viver em sociedade?Esses questionamentos vêm inquietando a sociedade brasileira, prova desse descontentamento foi a aprovação da lei dos crimes hediondos, que proibia a progressão de regime para tais crimes, nesse caso o condenado deveria cumprir a pena de forma integral no regime fechado. Ocorre que o STF no julgamento do Habbeas Corpus nº. 82.959-7 de São Paulo declarou inconstitucional tal proibição, permitindo em homenagem aos Princípios da Isonomia e da Individualização da pena a progressão de regime mesmo nos casos da prática de crime hediondo.Conforme constatamos a vontade popular por meio de ação comissiva do Poder Legislativo foi suprimida pelo Judiciário.

7. 4- POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERALMesmo com a grande desconfiança da sociedade sobre a eficácia do sistema de progressão de regime, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento que a progressão de regime é a forma mais eficaz de ressocializar o condenado. O Ministro Marco Aurélio ao julgar o HC acima referido, afirma que:A progressividade do regime está umbilicalmente ligada à própria pena, no que, acenando ao condenado com dias melhores, incentivando a correção de rumos e, portanto, incentivando a empreender um comportamento penitenciário voltado a ordem, ao mérito e a uma futura inserção no meio social. Os defensores da aplicação da progressão de regime, afirmam que tal sistema permite ao sentenciado o retorno ao convívio social. A função da pena não é apenas punir, mas também possui um caráter didático, buscando a reeducação dos criminosos de forma que possam ser ressocializados. Esse é o objetivo previsto tanto na Constituição Federal, como no Código Penal e na Lei de Execuções Penais.

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Nesse sentido o Ministro Marco Aurélio proferiu seu voto no citado julgado:Digo que a principal razão de ser na progressividade do cumprimento de pena não é em si a minimização desta, ou benefício indevido, porque contrário ao que inicialmente sentenciado, daquele que acabou perdendo o bem maior que é a liberdade. Está, isto sim, no interesse da preservação do ambiente social, da sociedade, que, dia-menos-dia, receberá de volta aquele que inobservou a norma penal e com isso deu margem a movimentação do aparelho punitivo do Estado. A ela não interessa o retorno de um cidadão, que enclausurou embrutecido, muito embora tenha mandado para detrás das grades com o fito, dentre outros, de recuperá-lo, objetivando uma vida comum em seu próprio meio

8)SEGURANÇA PÚBLICA, EFICIÊNCIA E CONTROLE JURISDICIONAL.8.1 – INTRODUÇÃO: O presente artigo visa a analisar a questão da efetivação judicial do direito à segurança Para tanto, apresenta uma parte inicial em que são analisados os critérios definidores do conceito e conteúdo dos Direitos Fundamentais, bem como é apontado o conteúdo jurídico do Direito Fundamental à segurança. Numa segunda parte, o artigo discorre sobre o controle judicial da efetivação de políticas públicas de forma geral e especificamente sobre o controle judicial de políticas públicas na área de segurança. Por fim, no tópico relativo às considerações finais, são elencados os pontos principais do texto. 8.2- DEFINIÇÃO E CONTEÚDO DOS DIREITO FUNDAMENTAIS A conceituação do que sejam direitos fundamentais é particularmente difícil, tendo em vista a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico. Aumenta essa dificuldade, o fato de se empregarem várias expressões para designá-los, como “direitos naturais”, “direitos humanos”, “direitos públicos subjetivos”, “liberdades fundamentais” [1] etc.A expressão direitos fundamentais, consoante assinala José Afonso da Silva (2005, p. 56) não significa esfera privada contraposta à atividade pública, mas sim “limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem”. Da definição exposta pelo autor, verifica-se sua posição no sentido de limitar a expressão ao campo de abrangência da proteção dos particulares contra o Estado.Uma noção mais atualizada dos direitos fundamentais, porém, conduz à conclusão de que estes representam a constitucionalização dos direitos humanos que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história e que são reconhecidos como condição para o exercício dos demais direitos. Haveria, dessa forma, “um conteúdo mínimo de direitos fundamentais que caracterizam o direito de um Estado Democrático” (SAMPAIO, 2006, p. 17).Segundo José Afonso da Silva (2005, p. 58), os direitos fundamentais teriam os seguintes caracteres: a) historicidade; b) imprescritibilidade; c) irrenunciabilidade. São, assim, os direitos fundamentais históricos, o que rechaça qualquer fundamentação no direito natural. São imprescritíveis dada a sua natureza de direitos personalíssimos de natureza, em geral, de conteúdo não patrimonial; são, por fim, irrenunciáveis, embora possam deixar de ser exercidos.Quanto ao conteúdo dos direitos fundamentais, esse foi sendo paulatinamente alterado, a partir da verificação do seu caráter histórico. Com efeito, consoante assinala Canotilho (1989, p. 425), os direitos fundamentais “pressupõem concepções de Estado e de Constituição decisivamente operantes na atividade interpretativo-concretizadora das normas constitucionais”. Inicialmente, no constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais eram considerados os direitos de liberdade do indivíduo contra o Estado, constituindo-se essencialmente nos direitos de autonomia e defesa. Os postulados desta teoria liberal vêm bem expostos por Canotilho (1989, p. 426) que aponta os seguintes: 1) os direitos fundamentais são direitos do particular contra o estado; 2) revestem concomitantemente o caráter de normas de distribuição de competências entre o indivíduo e o Estado; 3) apresentam-se como pré-estaduais, sendo vedada qualquer ingerência do Estado; 4) a substância e o conteúdo dos direitos fundamentais, bem como sua utilização e fundamentação, ficariam fora da competência regulamentar do Estado; 5) a finalidade e o objetivo dos direitos fundamentais é de natureza puramente individual.A teoria da ordem dos valores, associada à doutrina de Smend e à filosofia de valores, definia os direitos fundamentais como valores de caráter objetivo, o que levava a conseqüências indicadas por Canotilho (1989, p. 427): 1) o indivíduo deixa de ser a medida dos direitos, pois os direitos fundamentais são objetivos; 2) no conteúdo essencial dos direitos fundamentais está compreendida a tutela de bens de valor jurídico igual ou mais alto.; 3) através da ordem de valores dos direitos fundamentais respeita-se a totalidade do sistema de valores do direito constitucional; 4) os direitos fundamentais só podem ser realizados no quadro dos valores

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aceitos por determinada comunidade; 5) a dependência do quadro de valores leva à relativização dos direitos fundamentais; 6) além da relativização, a transmutação dos direitos fundamentais em realização de valores justifica intervenções concretizadoras dos entes públicos, de forma a obter eficácia ótima dos direitos fundamentais.A teoria institucional dos direitos fundamentais, capitaneada por Peter Haberle parte da afirmação de que os direitos fundamentais não se esgotam em sua vertente individual, mas possuem um caráter duplo, ou seja, individual e institucional. Cabe, desse modo, à teoria, “o mérito de ter salientado a dimensão objetiva institucional dos direitos fundamentais” (CANOTILHO, 1989, p. 428) embora se esqueça de outras dimensões dos direitos fundamentais, como a esfera social.A teoria social dos direitos fundamentais parte da tripla dimensão destes direitos: individual; institucional e processual. Essa dimensão processual “impõe ao Estado não só a realização dos direitos sociais, mas permite ao cidadão participar da efetivação das prestações necessárias ao seu livre desenvolvimento” (SAMPAIO, 2006, p. 30).A teoria democrática funcional defende que os direitos são concedidos aos cidadãos para serem exercidos como membros da comunidade e no interesse público. Por outro lado, consoante ressalta Canotilho (1989, p. 429) “a liberdade não é a liberdade pura e simples, mas a liberdade como meio de prossecução e segurança do processo democrático, pelo que se torna patente o seu caráter funcional”. A teoria parte assim da idéia de um cidadão ativo, com direitos fundamentais colocados a serviço do princípio democrático. 8.3 – A SEGURANÇA PÚBLICA ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTALDe acordo com a teoria do contrato social de Rosseau, para viver em sociedade cada pessoa abdica de parcela de sua liberdade para poder tornar a convivência harmoniosa. Nessa linha, essa fração da liberdade que foi abdicada é passada ao Estado, a quem cabe o monopólio do uso da força para efetuar o controle social. Esse ato individual de disposição – ainda que parcial – de um direito seu, gera para o Estado a obrigação de fazer o uso adequado das funções que lhes são incumbidas. Silva Júnior destaca de forma brilhante a instrumentalidade desse sacrifício:Com efeito, toda a base de contenção social se sustenta na necessidade de contenção das liberdades individuais por um poder político. Beccaria já adverte que Ninguém faz graciosamente o sacrifício de uma parte de sua liberdade apenas visando o bem público e mais, Fatigados de viverem apenas em meio a temores e de encontrar inimigos em toda a parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de a manter tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança.(SILVA JÚNIOR, 2004).Assim, tem-se que a partir do momento em que cada cidadão mitiga o seu direito à liberdade e confere ao Estado a missão de zelar pelo bem-estar e segurança de todos, este tem a obrigação de fazê-lo. A omissão estatal revela-se um desrespeito ao sacrifício dos sujeitos, que se mostra um esforço em vão.É necessário, portanto, que o Estado domine uma estrutura orgânica de contenção dos desvios comportamentais a fim de alcançar a finalidade a que se propõe. No Brasil, a atividade policial destinada a prevenir e efetuar a segurança ostensiva cabe à Polícia Militar, enquanto à Polícia Civil e à Polícia Federal cabe a atividade de polícia judiciária.A Carta Magna definiu a Segurança como um direito social a ser concretizado pelo Estado, de modo a garantir que seus cidadãos possam viver com dignidade, ter plena liberdade de ir e vir, garantindo-lhes a integridade física, psíquica e moral através de todos os mecanismos que estejam ao alcance.É notório que no Brasil o direito à Segurança ficou restrito à Constituição, um direito previsto no papel, mas que o mundo real não conhece. Avultam os casos bárbaros que são transmitidos diariamente nos noticiários do país, tais como o assassinato da missionária Dorothy Stang, a morte do menino João Hélio, execuções na capital paulista, dentre outros. Muitos desses delitos revelam a fragilidade do sistema de repressão criminal brasileiro. Essa situação faz com que se faça necessária a atuação judicial a fim de suprir a falha do Poder Executivo no cumprimento de seu mister.CASTRO, em seu artigo dedicado à análise da segurança pública sob o enfoque da hermenêutica constitucional, sustenta que o problema da violência no Brasil é tão grave que se caracteriza como elemento inviabilizador do desenvolvimento.No contexto brasileiro, portanto, a ausência ou a insuficiência da concretização do direito à segurança pública assume tanto um caráter inviabilizador de desenvolvimento econômico e humano, como igualmente obsta a realização de outros direitos fundamentais, razão pela qual o seu exame se faz imprescindível para o cumprimento do ideal democrático. (CASTRO, 2009. p. 44)Apesar disso, tem que se destacar que por ser a segurança pública um tema de alto relevo e grande impacto social, a sua concretização envolve diversos aspectos e não se trata de uma simples questão de estruturação

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os órgãos policiais. As questões sociais estão visceralmente ligadas ao problema da violência e da criminalidade, de modo que sua solução deve passar principalmente por esse viés. O aparato policial, por seu turno, tem o condão de prevenir o cometimento de delitos, efetuar a captura daqueles que porventura cometam alguma infração penal, bem como servir de desestímulo à prática criminosa.A complexidade de solucionar o problema fica evidente quando se percebe que, de acordo com os dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nos últimos anos houve um aumento do investimento que veio acompanhado de uma expansão da violência nas grandes cidades (BOTTOM, 2007). A ressalva que se faz aqui é que a solução não diz respeito somente ao aumento e melhoria do aparato social; antes, é uma questão social que se resolve com medidas diversas, tais como melhorias nas áreas básicas da saúde, educação e saneamento básico. 8.4 – DIREITOS FUNDAMENTAIS E CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICASExpostas as teorias que pretendem fixar o conteúdo dos direitos fundamentais, importa destacar a classificação dos direitos fundamentais procedida por Ingo Sarlet (2006, p. 194) que divide os direitos fundamentais em dois grupos: direitos fundamentais como direitos de defesa e direitos fundamentais como direitos a prestações. Esse último grupo, por seu turno, subdivide-se em direitos a prestações em sentido amplo, direitos à proteção, direitos a prestações em sentido estrito – direitos sociais - e direitos à participação na organização e procedimento.A primeira divisão apontada, relativa aos direitos de defesa e direitos a prestações, parte da clássica distinção efetivada pela doutrina. Com efeito, os direitos fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos poderes públicos, que deverá respeitar os direitos individuais. Por outro lado, os direitos fundamentais a prestações implicam uma postura ativa do Estado, que é obrigado a colocar a disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material(SARLET, 2006. p. 216). Em relação aos direitos de defesa, esses abrangem não somente os tradicionais direitos de liberdade e igualdade, como também os direitos à vida, à propriedade, às liberdades fundamentais de locomoção, de consciência, de manifestação de pensamento, de imprensa e de associação, além dos direitos que irradiam da personalidade, da nacionalidade e da cidadania, bem como os direitos coletivos.Em relação aos direitos fundamentais como prestações, estes se encontram vinculados à concepção de que ao Estado incumbe colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais. Dentro da subdivisão, efetivada por Sarlet (2006, p. 221) entre direitos a prestações em sentido amplo e estrito, tem-se que, segundo o autor, na rubrica de direitos a prestações em sentido amplo enquadram-se todos os direitos fundamentais de natureza tipicamente (ou, no mínimo, predominantemente) prestacional que não se enquadram na categoria de direitos de defesa. Quanto aos direitos a prestações em sentido estrito, Sarlet (2006, p. 221) aponta que estes se reportam à atuação dos poderes públicos como expressão do Estado Social. Trata-se, por outro lado, de direitos a prestações fáticas que o indivíduo, caso dispusesse de recursos necessários, poderia obter através de particulares. São, assim, os chamados direitos fundamentais sociais.Voltando-se aos direitos fundamentais a prestação em sentido amplo, Sarlet (2006, p. 222) destaca os direitos à proteção, que seriam aqueles que outorgam ao indivíduo o direito de exigir do Estado que este o proteja contra ingerências de terceiros em determinados bens pessoais. Há, também, a dimensão dos direitos fundamentais de participação na organização e procedimento. Tal dimensão, além de outorgar legitimidade ao Estado Democrático de Direito, ao tempo em que assegura uma democracia com elementos participativos. Neste aspecto, Sarlet (2006, p. 226) afirma que importantes liberdades pessoais somente atingem um grau de efetiva realização no âmbito de uma cooperação por parte de outros titulares de direitos fundamentais, implicando prestações estatais de cunho organizatório.Ressalte-se, porém, como faz Andréas Krell (1999. p. 245) que a doutrina moderna dá ênfase em afirmar que qualquer direito fundamental contém, ao mesmo tempo, componentes de obrigações positivas e negativas para o Estado. Desta forma, a tradicional diferenciação entre os direitos “da primeira” e os “da segunda” geração seria meramente gradual, mas não substancial, uma vez que muitos dos direitos fundamentais tradicionais seriam reinterpretados como sociais, perdendo sentido, assim, as distinções rígidas.Nesse contexto das obrigações positivas do estado, surge a questão do controle judicial de políticas públicas., o que significa debater sobre a possibilidade de proteger-se juridicamente o instrumento de concretização dos direitos prestacionais. O termo políticas públicas refere-se à atividade, ao fazer estatal, direcionado à, direta ou indiretamente, consecução dos direitos fundamentais. Com tal objetivo, são estabelecidas através de atos do Legislativo e do

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Executivo porém com tais atos não se confundem: as políticas públicas se identificam na atuação estatal em si mesma, exista, ou não, legislação, ato normativo ou administrativo apontando na direção de constituição de tais medidas.Neste sentido, falar-se em controle judicial de políticas públicas significa ter o Judiciário opinando diretamente sobre uma atuação ou omissão estatal (JORGE NETO, 2009, p.54). Tal questão enfrenta diversos obstáculos à sua consecução, sendo argumentos contrários à concretização judicial dos direitos sociais, segundo George Marmelstein Lima (2005, p.08), a vagueza do conteúdo da norma, o dogma da vedação da atuação do juiz como legislador positivo, a necessidade de previsão orçamentária para realização de despesas públicas, a discricionariedade da Administração, a natureza meramente programática dos direitos sociais e a impossibilidade do controle judicial das questões políticas.Apesar dessas dificuldades, a jurisprudência já tem sinalizado pela possibilidade de o Judiciário intervir a fim de concretizar as políticas públicas contempladoras de direitos fundamentais. O Superior Tribunal de Justiça, confrontando a possibilidade de efetuar matrícula de criança menor de seis anos em escola, decidiu no REsp 753.565/MS que a partir do momento em que a Constituição consagra a Educação como um direito social, esta passa a ser direito subjetivo de todo o seu público alvo[2].Superadas tais limitações, pode-se dizer que a doutrina nacional atualmente também se direciona no sentido da força normativa da Constituição. De uma forma geral, enquadrando o caso na “reserva do possível”, isto é, sendo razoável o sacrifício de recursos exigido pela coletividade em prol da efetivação de determinado direito social, o Judiciário poderá exigir a sua concretização pelo Poder Público. Não há que se negar que o dispositivo impresso no art. 5º, §1º da CF/88, que trata da aplicabilidade direta e imediata das normas de direitos e garantias fundamentais, se aplica também ao aos direitos sociais, econômicos e culturais. Segundo Gilmar Mendes (apud. MARMELSTEIN, 2005, p.108), “a submissão dessas posições a regras jurídicas opera um fenômeno de transmutação, convertendo situações tradicionalmente consideradas como de natureza políticas em situações jurídicas.” O nó górdio da questão está em definir em que medida estes direitos podem ser judiciáveis, tendo em vista as diversas limitações. 8.5– CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA ÁREA DE SEGURANÇAPartindo-se do pressuposto que a segurança é um direito social constitucionalmente garantido, ele deve ser concretizado a fim de imprimir efetividade aos mandamentos da Carta Magna. Ante a omissão estatal de implementar determinado direito fundamental, já se demonstrou no presente trabalho que cabe ao Poder Judiciário fazê-lo, sem que esta interferência seja considerada uma intromissão odiosa, um desrespeito à tripartição de poderes.Ao anotar a diferença entre direitos e garantias, no texto constitucional, registra Rui Barbosa que aqueles são expressão de disposições meramente declaratórias, que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, enquanto estas são expressão de disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder.(2) Tal enfoque, no entanto, já não corresponde ao moderno constitucionalismo, em que as garantias não resultam apenas de limitações do poder estatal, impondo-se, antes, como prestações positivas por parte do Estado, na adoção de verdadeiras políticas públicas de segurança, tendentes a assegurar o seu efetivo (e não virtual) exercício dos direitos (ALVIM, 2003).Patente a necessidade de concretização da garantia constitucional da segurança, a discussão surge, então, sobre a forma como deve ser solucionado o problema da violência a fim de garantir a segurança dos cidadãos. A solução não depende única e exclusivamente de uma atuação eficiente das polícias, sendo patente que a eliminação – ou ao menos a redução – da desigualdade social é medida necessária, principalmente no caso brasileiro.Por outro lado, a incompetência, a falta de estrutura das agências políciais e o despreparo de seus componentes serve como um fator de redução da repressão mental, do freio psicológico imposto ao cometimento de delitos. Como regra, a pessoa que pretende praticar uma conduta criminosa acredita que ficará impune após o crime. Um aparato policial ineficiente faz com que essa sensação de impunidade se perpetue e, como conseqüência, haja um aumento nas taxas de criminalidade.Um ponto que merece destaque é que por mais preparada e mais bem equipada que esteja a polícia, não há como impedir de forma absoluta as práticas criminosas, devendo se esforçar para evitá-los. A idéia de que a força policial pode fazer com que inexistam crimes só existe as telas do cinema e nas páginas dos livros de ficção. No mundo real não existem mecanismos capazes de prever a ação delitiva, de modo que por mais eficiente que seja o Poder Público, este não consegue zerar o número de crimes praticados.Assim, a concretização do direito à Segurança não corresponde ao desaparecimento das condutas criminosas, mas sim à adoção de todas as medidas que estiverem à disposição do Estado em um dado momento. A

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dificuldade surge diante do questionamento: quais são os mecanismos disponíveis? Os métodos adotados pelo Estado são os mais adequados?Deve haver um cuidado por parte dos operadores do direito a fim de evitar que o Executivo se torne refém do Judiciário, de modo que este passe a nortear as políticas de segurança pública a serem adotadas por aquele. No entanto, a atuação do poder jurisdicional deve se fazer presente nos momentos em que for constatada uma omissão estatal na implementação do direito social à segurança, haja vista que aí está flagrante e incontroverso o desrespeito à Carta Magna, de modo que é legítimo que o Poder Judiciário interfira para concretizá-lo.Apesar de o tema aqui abordado ainda ser incipiente, o Judiciário brasileiro já vem sinalizando que pode interferir nos atos do Executivo para garantir a concretização do direito social à segurança. O Superior Tribunal de Justiça, no REsp 831.015/MT determinou que fosse realizada fiscalização prévia pela polícia militar e corpo de bombeiros em local destinado a evento público a fim de garantir a segurança dos cidadãos presentes.A Corte Superior, na análise do REsp 721.119/RS,também já decidiu pela impossibilidade de ser cortada a iluminação pública das vias em decorrência de pagamento, tendo em vista que tal situação acarretaria num aumento da criminalidade em prejuízo do direito consagrado à Segurança. De acordo com o dispositivo... a iluminação pública é serviço essencial ao bem-estar e segurança da população, que não pode ser punida com o corte, pois é ela que, ao fim e ao cabo, sofrerá o ônus. É o cidadão, que paga seus tributos regularmente, que será penalizado. Não se pode olvidar, ainda, que se trata de uma concessão do serviço que deveria, sim, ser prestado pelo Estado. Por razões que ora não importam, o Estado concede a um particular a prestação deste serviço. E o fornecedor, no caso, dispõe dos mecanismos legais para se ressarcir, que é a ação de cobrança, não podendo lançar mão de meios nitidamente coercitivos para tanto.(...) (BRASIL, 2006).Assim, por ser a iluminação pública necessária à segurança, o Estado – através de sua concessionária – foi compelido a restabelecê-la a fim de garantir, dentre outras coisas, a incolumidade dos cidadãos. Percebe-se, portanto, que já indícios de mudanças na mentalidade tradicional e que se aceita a possibilidade da concretização do direito social à segurança pelo Poder Judiciário.Entretanto, é preciso estabelecer de forma clara a distinção entre concretização do direito à segurança da reparação que porventura possa ser decorrente. O direito à Segurança, conforme já elucidado, diz respeito à garantia de adoção das medidas eficazes a fim de garantir a incolumidade física e psíquica dos cidadãos. Caso essas medidas não sejam tomadas pelo Estado e alguma pessoa sofrer danos por conta dessa omissão estatal, surge o direito à reparação. São institutos jurídicos distintos: o primeiro é o direito material, enquanto o segundo corresponde à indenização por dano decorrente do descumprimento. Interessa ao cidadão é o elemento que funda a norma constitucional a garantia da segurança. Não basta que o Judiciário garanta o direito à reparação, é preciso que seja facultado ao jurisdicionado que obtenha o seu direito concreto: a segurança, e não só a reparação quando esse direito já foi violado.Já se passou o tempo em que a função jurisdicional tinha como preocupação primeira a reparação dos danos que eventualmente fossem causados. A tendência atual é conferir ao judiciário a defesa da tutela específica a fim de resguardar o bem da vida objeto do litígio. No caso do presente estudo, o bem jurídico tutelado é a segurança, de modo que é ela que deve ser implementada, não devendo o Juiz esperar o cometimento de algum dano concreto para depois repará-lo ou amenizá-lo.A Constituição, ao estabelecer o Direito à Segurança não quis prever a possibilidade de indenização para a família de um cidadão que foi assassinado dentro de um ônibus numa linha que é assaltada de forma contumaz. O que a Carta Maior pretende é assegurar a todos o direito à segurança, de modo a permitir que aquele cidadão utilize o transporte público de modo seguro, sem medo, e chegue incólume ao seu lar.A atividade Jurisdicional deve ser voltada ao atendimento dos mandamentos constitucionais visando à sua máxima efetividade. A segurança deve ser encarada pelo Judiciário como direito fundamental que é, de modo que deixe de ser um sonho constitucional e passe a ser uma realidade cotidiana. Se o Poder Executivo não cumpre de forma adequada o seu mister, o Judiciário não pode se furtar da sua missão de concretizador supletivo da vontade constitucional.

9) EFEITOS DA EXCLUSÃO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS.9.1 - INTRODUÇÃOO Direito é uma ciência que deve acompanhar o desenvolvimento da sociedade, procurando contribuir para sua evolução. Pois, é fruto do convívio social. Portanto, cabe ao Direito combater todos os tipos de diferenças injustas, estudando e explicando suas causas e não somente seus efeitos no intuito de prevenir que elas voltem a existir.

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Das diferenças nasce a exclusão social, mas não de pequenas diferenças, essas são decorrentes da condição humana em qualquer sociedade. As grandes diferenças sociais geram a segregação, essa segregação acaba causando efeitos danosos que afetam o convívio e tendem a agravá-las. Dessa forma, surge a lesão ao bem jurídico tutelado pelos Direitos Humanos. Direitos esses que devem ser respeitados e promovidos por todos principalmente pelo poder público.A sociedade não consegue perceber (ainda) que a falta de políticas públicas violam os Direitos Humanos. Geralmente a sua violação é mais associada à violência policial, de professores contra alunos, condições de insalubridade de pessoas sob a tutela estatal ou omissões pontuais do poder público (como falta de atendimento médico ou de fornecimento de medicamento).Mas quando a omissão afeta o todo, o contexto geral, sem a individualização da vítima, os resultados são muito mais gravosos. A vítima passa a ser toda sociedade que é afetada por uma reação em cadeia. Que expõe a pessoa ininterruptamente a uma condição que lhe priva de vários direitos básicos que afronta o desenvolvimento individual, regional e nacional.

9.2. Origem dos Direitos HumanosOs autores, de um modo geral, concordam em traçar um paralelo entre o surgimento do constitucionalismo e o surgimento dos Direitos Humanos. Uma vez que o objetivo de toda Constituição é, além de “dar forma” ao Estado, criando os órgãos estatais e descrevendo sua forma de atuação; limitar o Poder Estatal. Garantindo, assim, uma parcela “intocável” de direitos individuais e/ou sociais, os quais não poderiam ser arbitrariamente suprimidos pelos agentes estatais.Esses Direitos fundamentais, que podem ser individuais ou coletivos, são expressos na lei fundamental, a Constituição, são os conhecidos Direitos Humanos e devem ser reconhecidos independentemente de qualquer previsão legal ou constitcional. Importante ressaltar que esses direitos em geral são direitos indisponíveis, e deveriam preceder a qualquer outro direito do cidadão.Esta parcela de direitos, a priori insuprimíveis são, justamente, o conteúdo do que hoje é conhecido por Direitos Humanos, assim como afirma Hewerstton Humenhuk: “é notório que os direitos fundamentais constituem a base e a essencialidade para qualquer noção de Constituição” (Humenhuk, 2003).Neste sentido, Alexandre de Morais (1998) chega a afirmar que:“Os direitos humanos fundamentais, portanto, colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana.”João Baptista Herkenhoff (1999) chega ao ponto de dizer que os Direitos Humanos “[...] são direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir”.Os direitos fundamentais assumem posição de definitivo realce na sociedade. Sendo que se inverte a tradicional relação entre Estado e indivíduo e se reconhece que o indivíduo tem primeiro, direitos, e depois deveres perante o Estado. E que este tem, em relação ao indivíduo, primeiro deveres e, depois, direitos. Além de que os Direitos Humanos são reconhecidos como a proteção que o cidadão tem contra medidas Estatais abusivas, ou de quem tenha poder para lhe representar.Os Direitos Humanos, dada a sua importância, extrapola o poder judiciário, sendo que, não há de se falar em uma prestação jurisdicional destes, pois, é dever do Estado como um todo, tendo um caráter mais abrangente que o jurídico, um caráter político. De forma a mobilizar as três esferas do poder: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. E de se fazer como objeto de estudo trans e multidisciplinar interessando praticamente todas as ciências humanas, sociais ou sociais aplicadas.Além do constitucionalismo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, é um documento que atesta o nascimento dos Direitos Fundamentais. Mas a real preocupação da comunidade internacional na promoção destes Direitos é verificada no pós-guerra em 1945. Quando a violação de tais direitos ficaram marcadas na história da humanidade.Como assevera a autora Flávia Piovesan (1998):“[...] Muitos dos direitos que hoje constam do “Direito Internacional dos Direitos Humanos” surgiram apenas em 1945, quando, com as implicações do holocausto e de outras violações de direitos humanos cometidas pelo nazismo, as nações do mundo decidiram que a promoção de direitos humanos e liberdades fundamentais deve ser um dos principais propósitos da Organização das Nações Unidas.”Importante ressaltar que apesar da existência da previsão legal, os Direitos Humanos no Brasil começaram a ser efetivados somente a partir de meados da década de oitenta do século passado. Com a promulgação da Constituição Federal em 1988 e o resgate da cidadania em um país que acabava de sair de um regime militar.

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Resgate esse que ainda não foi concluído em sua plenitude, pois passa por percalços, como a falta de informação e baixa escolaridade da população. Fazendo com que essa população desconheça seus direitos básicos. E se desconhece como há de exigir? O cidadão brasileiro, em geral, não se enxerga como um sujeito de Direitos Humanos, esses direitos culturalmente são atribuídos a camadas especiais da população, como presidiários ou pessoas que sofrem violência ou abuso de agentes estatais, em geral policiais.

9.3. Considerações Acerca dos Direitos HumanosOs Direitos Humanos conhecidos por grande parte da população brasileira como “direito que protege bandido”, não pode de forma alguma ser dessa forma minimizado em sua importância e nobreza.A importância dos Direitos Fundamentais é tamanha que estes estão ligados à dignidade da pessoa humana. Uma pessoa privada de sua liberdade injustamente, ou uma pessoa privada de alimentação, educação, moradia, saneamento, certamente tem ofendida a sua dignidade. Esse seria um exemplo que auxilia na compreensão dos Direitos Humanos.O constitucionalista brasileiro Alexandre de Morais (1998), assim diz a respeito do tema:“O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais.”Os Direitos Humanos são direitos naturais e que sempre existiram, não foram criados pelo homem, em dado momento a sociedade passou a reconhecê-los em seus ordenamentos jurídicos. Nos dias atuais pode se falar inclusive, em direitos supra nacionais que ultrapassam as fronteira de países e suplantam a soberania de Estados.Esses direitos são mais violados em países pobres, em desenvolvimento ou em estado de guerra. Ora, vinculados à natureza humana, necessariamente são abstratos, são do Homem seres humanos de qualquer raça, cor, convicção religiosa ou em qualquer continente do planeta. São imprescritíveis, não se perdem com o passar do tempo, pois se prendem à natureza imutável do ser humano. São inalienáveis, pois ninguém pode abrir mão da própria natureza. São individuais, porque cada ser humano é ente perfeito e completo, mesmo se considerado isoladamente, independentemente da comunidade (não é um ser social que só se completa na vida em sociedade). Mas, ultimamente, com a evolução das relações jurídicas, tem se reconhecido direitos humanos coletivos, como o Direito do Consumidor ou a um meio ambiente protegido contra a polição.

9.4- A Exclusão SocialExclusão social é um tema da atualidade, utilizado nas mais variadas áreas do conhecimento, mas com sentido nem sempre muito preciso ou definido. Pode designar desigualdade social, miséria, injustiça, exploração social e econômica, marginalização social, entre outras significações. De modo amplo, exclusão social pode ser encarada como um processo sócio histórico caracterizado pelo recalcamento de grupos sociais ou pessoas, em todas as instâncias da vida social. Gerando profundo impacto na pessoa humana, e em sua individualidade.Tecnicamente falando, pessoas ou grupos sociais sempre são, de uma maneira ou outra, excluídos de ambientes, situações ou instâncias. Exclusão é “estar fora”, à margem, sem possibilidade de participação, seja na vida social como um todo, seja em algum de seus aspectos.Outro conceito de exclusão social aplicável à realidade de uma sociedade capitalista é que dada pelo autor Martine Xiberas (1993): “excluídas são todas as que não participam dos mercados de bens materiais ou culturais”.Portanto, são excluídas as pessoas que não têm acesso a seus Direitos Fundamentais, pessoas que não podem se alimentar, não pode ter um lar, não recebe oportunidade de acesso à educação e não podem fazer jus a todas as garantias que lhes são conferidas pela Constituição Brasileira.

9.5- Aspectos ConstitucionaisO Direito, enquanto ciência social sofre os reflexos decorrentes das diversas transformações da sociedade ocorridas ao longo do tempo. No mesmo sentido, a proteção aos direitos humanos evoluem e conquistam um lugar cada vez mais considerável na consciência política e jurídica contemporânea. Apresentando notável progresso em relação ao respeito às liberdades fundamentais e à concretização da verdadeira democracia com o gradual amadurecimento da sociedade brasileira. Esse progresso tem efetivado cada vez mais os direitos postos na Constituição Federal promulgada em 1988. Lamentável fato é que tal carta não é acessível a toda população e muitas vezes o cidadão não percebe que um direito seu está sendo violado por que desconhece os seus direitos.

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Aqui passa a ser analisada a relação entre a proteção dos direitos humanos e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Esse valor-guia de toda a ordem jurídica, constitucional e infraconstitucional, bem como a influência e a interação existentes, tendo como cenário a ordem constitucional brasileira e como fatores a exclusão social existente na sociedade brasileira.A Constituição Federal Brasileira, como as de vários países que elaboraram suas constituições após 1945, traz em seu texto, como não poderia deixar de ser, forte influência da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Já em seu preâmbulo a Constituição de 1988 elenca “valores supremos” que não comportam a realidade das diferenças sociais do país. Ainda no preâmbulo a sociedade é tida como “fraterna” e tida também como uma sociedade fundada na “harmonia social”.Quando a Carta Magna trata dos Princípios Fundamentais da República Federativa do Brasil, já em seu artigo 1º, inciso III, traz a “dignidade da pessoa humana”, e os “valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” no inciso IV.Passando à análise dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil em seu artigo 3º, merecem destaque os incisos I, “I – constituir uma sociedade livre, justa e solidária;”, o inciso III – “III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;” e o inciso IV do mesmo artigo que preceitua a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.No Título II, Capítulo I, Artigo 5º da Constituição de 1988, estão elencados os direitos e deveres individuais e coletivos, é onde estão assegurados o maior número de direitos, tidos doutrinariamente como direitos humanos, no ordenamento jurídico brasileiro. O estudo detalhado de tal artigo não pode ser comportado no presente trabalho. Sendo de sua importância o entendimento de todas as situações onde estejam em jogo a dignidade da pessoa humana já podem ser suficientes para configurar uma afronta aos direitos humanos. E tal afronta resultando de uma situação em concreto originada por motivo de exclusão social, merece a atenção do presente estudo.Os direitos fundamentais sofreram várias mutações históricas desde seu reconhecimento nas primeiras Constituições, no tocante a conteúdo, titularidade, eficácia e efetivação. Nesse contexto histórico, costuma-se referir à existência de três gerações de direitos e até mesmo de uma de quarta geração. Há muitas críticas em relação ao termo “geração de direitos”, por conduzir ao entendimento equivocado de que os direitos fundamentais se substituem ao longo do tempo, daí a preferência da maioria dos autores pela expressão “dimensão de direitos”.Ressalta o Professor Ingo Sarlet (2001) que:“Em que pese o dissídio na esfera terminológica, verifica-se crescente convergência de opiniões no que concerne à ideia que norteia a concepção das três (ou quatro, se assim preferirmos) dimensões dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, tendo tido sua trajetória existencial inaugurada com o reconhecimento formal nas primeiras Constituições escritas dos clássicos direitos de matriz liberal-burguesa, se encontram em constante processo de transformação, culminando com a recepção, nos catálogos constitucionais e na seara do Direito Internacional, de múltiplas e diferentes posições jurídicas, cujo conteúdo é tão variável quanto as transformações ocorridas na realidade social, política, cultural e econômica ao longo dos tempos. Assim sendo, a teoria dimensional dos direitos fundamentais não aponta, tão-somente, para o caráter cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno “Direito Internacional dos Direitos Humanos”.A vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, conduzem sem óbices ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana.5. Direitos Humanos e Direitos FundamentaisPara uma melhor compreensão do presente estudo, faz-se necessária a distinção entre as expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, que comumente são utilizadas como sinônimos. Não resta dúvida de que os direitos fundamentais, de certa forma, são também direitos humanos, no sentido de que seu titular sempre será o ser humano, mesmo que esteja representado por uma determinada coletividade, como povo, nação, Estado.Tem-se que os direitos fundamentais são o conjunto de direitos e liberdades do ser humano institucionalmente reconhecidos e positivados no âmbito do direito constitucional positivo de determinado Estado. Enquanto que os direitos humanos estão abarcados pelo direito internacional, porquanto extensivos a todos os seres humanos, independentemente de sua vinculação a determinada ordem constitucional, apresentando validade universal e caráter supranacional.

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Assim, os direitos fundamentais nascem e se desenvolvem com a Constituição na qual foram reconhecidos e assegurados. Não resta dúvida de que o reconhecimento oficial dos diretos humanos, pela autoridade política competente, gera muito mais segurança às relações sociais, exercendo também, uma função pedagógica junto á comunidade, no sentido de fazer prevalecer os grandes valores éticos. Os quais, sem esse reconhecimento oficial, tardariam a se impor na vida coletiva.Interessante referir a contribuição de Celso Lafer (1988) ao afirmar que “o valor da pessoa humana enquanto conquista histórico-axiológica encontra a sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem”.Há que se considerar, de toda a sorte, que existe uma íntima relação entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, pois muitas das Constituições que surgiram após a Segunda Guerra Mundial se inspiraram tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, quanto nos documentos internacionais e regionais que lhe sucederam. Nos últimos anos, tem-se observado um processo de aproximação e de harmonização entre o conteúdo das declarações internacionais e os textos constitucionais, o que se vem denominando de Direito Constitucional Internacional.Entre as diversas terminologias adotadas, destaca-se o uso recente da expressão “direitos humanos fundamentais” por alguns autores. Porém, a terminologia adotada não suplanta o conteúdo. E o uso de uma nova terminologia só se justifica se houver a agregação de novos valores ao novo termo. Esta terminologia, embora não tenha o condão de afastar a pertinência da distinção traçada entre direitos humanos e direitos fundamentais. Revela, contudo, a nítida vantagem de ressaltar, relativamente aos direitos humanos de matriz internacional, que também estes dizem com o reconhecimento e proteção de certos valores e reivindicações essenciais de todos os seres humanos. Destacando, neste sentido, a fundamentalidade em sentido material, que diversamente da fundamentalidade formal – é comum aos direitos humanos e aos direitos fundamentais constitucionais. Fundamentalidade formal que é observada no Brasil, uma vez que não há uma aplicação efetiva, dos Direitos Fundamentais previstos no ordenamento jurídico do Estado.Importante atentar para o fato de não existir uma identidade necessária entre o elenco dos direitos humanos e direitos fundamentais reconhecidos, nem entre o direito constitucional dos Estados e o direito internacional. Tampouco entre as constituições, pelo simples fato de que, muitas vezes, o rol dos direitos fundamentais constitucionais está aquém do catálogo dos direitos humanos constantes dos documentos internacionais; ao passo que, outras vezes, está bem além, tal qual ocorre com a atual Constituição Federal Brasileira.É fundamental levar-se em conta a distinção quanto ao grau de efetiva aplicação e proteção das normas consagradoras dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Sendo que em relação aos primeiros, há, geralmente, melhores condições para se concretizarem efetivamente em face da existência de instâncias dotadas de poder para fazerem cumprir e respeitar esses direitos.Ressalta-se o fato de que a eficácia (jurídica e social) dos direitos humanos que não fazem parte do rol dos direitos fundamentais de determinado ordenamento depende da sua recepção na ordem jurídica interna e, ainda, do status jurídico que esta lhe atribui, vez que lhe falta cogência. Logo, a efetivação dos direitos humanos depende da boa vontade e da cooperação dos Estados individualmente considerados, e da ação eficaz dos mecanismos jurídicos internacionais de controle.O processo de positivação dos direitos humanos, transformando-os em direitos fundamentais, gera polêmica e debate envolvendo sua natureza, significados, implicações políticas e jurídicas relevantes. Principalmente quando se ressalta o fato de que estes direitos não se apresentam tão apenas diante do Estado, mas, fundamentalmente, como oponíveis em relação aos demais cidadãos e nas suas inter-relações cotidianas, designando a expressão “direitos públicos subjetivos”.

10) Justiça restaurativa.

10.1-IntroduçãoO presente artigo visa a apresentar a Justiça Restaurativa como um novo modelo de Justiça Criminal, capaz de suprir as falhas e as ineficiências do sistema punitivo.Em um primeiro momento, aborda-se a crise da (des)legitimidade e da (in)eficiência do sistema de Justiça Criminal, o qual resiste intocável e irredutível a qualquer movimento de reforma mais profunda, introduzindo apenas modificações superficiais, que apenas ratificam a falência do sistema penal.Posteriormente, realiza-se uma oposição entre o atual modelo de Justiça Criminal e o modelo restaurativo, apontando as principais falhas daquele e as soluções do ideal apresentadas por este.

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Por fim, estudam-se as (im)possibilidades de implementação da Justiça Restaurativa no Brasil, tendo em vista a adoção dos princípios da indisponibilidade da ação penal e da legitimidade e as brechas da legislação que possibilitam o encaminhamento do caso ao modelo restaurativo.

10.2- (In)eficiência e (des)legitimidade do sistema punitivoA Justiça Criminal tem como principal objetivo manter o convívio pacífico entre os membros da sociedade. Para tanto, o Estado detém o poder punitivo.No século XVIII, surge a privação de liberdade como alternativa mais humana aos castigos corporais e à pena de morte. Contudo, poucos anos depois de sua implementação, as prisões passam a ser empregadas como principal, senão o único, instrumento utilizado pelo Estado a fim de exercer o ius puniendi, instrumento este que, na verdade, deveria ser utilizado como ultima ratio.Essa utilização extrema e irracional da prisão, além de não cumprir com as funções que legitimam a existência da Justiça Criminal, fere de forma irreparável os direitos e garantias dos seres humanos. Conforme alerta Lopes Junior: “A idéia de que a repressão total vai sanar o problema é totalmente ideológica e mistificadora. Sacrificam-se direitos fundamentais em nome da incompetência estatal em resolver os problemas que realmente geram a violência”.Baratta cita que os efeitos marginalizadores do cárcere e a impossibilidade estrutural de a instituição carcerária cumprir as funções que a ideologia penal lhe atribui demonstram o substancial fracasso do sistema penal tradicional. No mesmo sentido, Carvalho anuncia que as incapacidades do sistema penal o tornam nu, deslegítimo:“O desvelamento das (in)capacidades do sistema punitivo, pelas inúmeras vertentes da crítica criminológica (contraposições dos efeitos reais e funções declaradas), desde a apresentação dos efeitos perversos gerados pela desigualdade da incidência criminalizadora, deflagrou o desgaste e o esvaziamento em todos os modelos de justificação, notadamente das doutrinas ressocializadoras”.Após o reconhecimento da crise de legitimidade e eficiência do sistema, inúmeras alternativas ao encarceramento foram propostas e implementadas, a fim de reduzir e/ou conter a punição extrema, como, por exemplo, as penas e medidas alternativas, inseridas pela Lei 9.099/1995.Entretanto, as alternativas adotadas somente aumentaram o campo de atuação do direito penal, revelando uma verdadeira intenção e/ou tentativa de remendar o paradigma punitivo. Nas palavras de Zehr: “As populações carcerárias continuam a crescer ao mesmo tempo em que as ‘alternativas’ também crescem, aumentando o número de pessoas sob o controle e supervisão do Estado. A rede de controle e intervenção se ampliou, aprofundou e estendeu, mas sem efeito perceptível sobre o crime e sem atender as necessidades essenciais da vítima e ofensor”.Ainda, afirma que: “A busca de alternativas à privação de liberdade representa uma outra tentativa de remendar o paradigma. Ao invés de procurar alternativas à pena, o movimento em prol de alternativas oferece penas alternativas. Criando novas formas de punição menos dispendiosas e mais atraentes que a prisão, seus proponentes conseguem manter o paradigma em pé. Contudo, pelo fato de constituírem apenas outro epiciclo, não questiona os pressupostos que repousam no fundamento da punição. E por isso não tem impacto sobre o problema em si – a superlotação carcerária –, problema para o qual pretendiam ser a solução”.Contudo, não há como alterar a situação do sistema penal dentro de um paradigma puramente punitivo-retributivo, no qual, pela própria natureza dos mecanismos existentes (basicamente a pena), acabará sempre prevalecendo a resposta da força. Sica menciona que: “Em que pese os enormes esforços empreendidos nas últimas décadas por grande parte da doutrina e por um pequeno número de operadores, não há como avançar na direção de uma justiça penal mais humana, mais legítima e mais democrática enquanto o atual paradigma permanecer intocado nos seus contornos mais marcantes: o processo penal como manifestação de autoridade, o direito penal como exercício do poder” Mesmo diante da ineficiência do sistema penal, este resiste intocável e irredutível a qualquer movimento de reforma mais profunda, introduzindo apenas modificações superficiais, as quais apenas ratificam as inúmeras falências da Justiça Criminal.É necessário reduzir o exercício do poder punitivo do sistema penal e substituí-lo por alternativas eficientes à solução dos conflitos, possibilitando a construção de um novo paradigma, capaz de colaborar com a transição ao Estado Democrático de Direito, promulgado pela Constituição Federal de 1988 e neutralizado até então pela resistência articulada pelo sistema penal. Como sustentado por Zehr: devemos trocar as lentes pelas quais enxergamos o crime e a justiça.

10.3- Justiça restaurativa x justiça retributiva

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A partir do reconhecimento das falhas do sistema punitivo, Rolim questiona: “E se, no final das contas, estivéssemos diante de um fenômeno mais amplo do que o simples mau funcionamento de um sistema punitivo? Sem aí, ao invés de reformas pragmáticas ou de aperfeiçoamentos tópicos, estivéssemos diante do desafio de reordenar a própria idéia de ‘Justiça Criminal’? Seria possível imaginar uma justiça que estivesse apta a enfrentar o fenômeno moderno da criminalidade e que, ao mesmo tempo, produzisse a integração dos autores à sociedade? Seria possível imaginar uma justiça que, atuando para além daquilo que se convencionou chamar de ‘prática restaurativa’, trouxesse mais satisfação às vítimas e às comunidades? Os defensores da Justiça Restaurativa acreditam que sim”.Diante disso, o modelo de Justiça Restaurativa se apresenta como um paradigma contraste à Justiça Criminal, indicando soluções às principais falhas e ineficiências deste, alterando os focos e as soluções, conforme será indicado.Inicialmente, verifica-se que o processo penal é voltado exclusivamente à questão da culpa do acusado e, uma vez estabelecida, as garantias processuais e os direitos fundamentais são deixados de lado, resultando em uma menor atenção ao desfecho do processo, conforme destaca Zehr.Ainda, ao ser apurada a culpa, focaliza-se o passado, pois se tenta “reconstruir” o fato delituoso em questão. Assim, é possível concluir que o foco não está no dano causado à vítima, ao infrator e à comunidade, ou na experiência destas na ocorrência do delito, como a Justiça Restaurativa faz, mas sim na violação à lei e a determinação da culpa.Em contraposição, o modelo restaurativo foca sua atenção no ato danoso, nos prejuízos causados aos envolvidos: vítima, ofensor e comunidade e nas possíveis soluções do conflito.Posteriormente ao estabelecimento da culpa, desloca-se à determinação da punição. Nas palavras de Zehr: “Culpa e punição são os fulcros gêmeos do sistema judicial. As pessoas devem sofrer por causa do sofrimento que provocam. Somente pela dor terão sido acertadas as contas. [...] O objetivo básico de nosso processo penal é a determinação da culpa, e uma vez estabelecida, a administração da dor”.Dessa forma, afirma-se que o sistema retributivo busca apenas retribuir o mal feito, sem trazer qualquer beneficio à comunidade, ou ao infrator e, principalmente, à vítima. Nesse sentido, Zehr assevera que as instituições e métodos do direito são partes integrantes do ciclo de violência ao invés de soluções para ela.Por sua vez, a Justiça Restaurativa expressa uma forma de justiça centrada na reparação, representando uma verdadeira ruptura em relação aos princípios de uma justiça retributiva, a qual se baseia somente nas sanções punitivas.Além do mais, o processo penal afasta as partes realmente envolvidas no conflito. A manifestação do acusado resume-se somente ao seu interrogatório quanto aos fatos delituosos, sem haver qualquer indagação quanto aos motivos que o levaram a cometer o delito, bem como as consequências que este trouxe em sua vida.As vítimas são substituídas pela autoridade do Estado, tendo mínima participação no processo penal, atuando como testemunha ou através de um assistente de acusação, nos delitos processados mediante ação penal pública incondicionada. Ainda, outorga-se legitimidade às vítimas nos delitos que se processam mediante ação penal privada e pela ação penal pública condicionada à representação.

Em oposição, a Justiça Restaurativa traz as partes ao centro do processo, oferecendo-lhes autonomia para expor seus sentimentos e necessidades, bem como a possibilidade de ouvir a outra parte, num discurso equilibrado. Conforme expõe Pinto, a Justiça Restaurativa promove a democracia participativa das partes, superando o modelo retributivo:“A vítima, o infrator e a comunidade se apropriam de significativa parte do processo decisório, na busca compartilhada de cura e transformação, mediante uma recontextualização construtiva do conflito, numa vivência restauradora. O processo atravessa a superficialidade e mergulha fundo no conflito, enfatizando as subjetividades envolvidas”.Possivelmente, a maior diferença entre os dois modelos de justiça seja a definição de crime adotada por cada um deles. Morris refere que o sistema de Justiça Criminal convencional enxerga o crime principalmente como uma violação de interesses do Estado. Em contraste, a Justiça Restaurativa vai além, oferecendo decisões sobre como melhor atender àqueles que mais são afetados pelo crime, dando prioridade aos seus interesses.A Justiça Restaurativa propõe reconstruir a noção de crime, especificando que este é mais que uma transgressão de uma norma jurídica ou uma violação contra o Estado; é, também, um evento causador de prejuízos e consequências.Zehr define as lentes da justiça retributiva como: “O crime é uma violação contra o Estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre ofensor e Estado, regida por normas sistemáticas”.

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Por outro lado, Zehr descreve a forma como a Justiça Restaurativa enxerga o delito: “O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança”.Conforme expõe Achutti, a infração, na Justiça Restaurativa, deixa de ser um mero tipo penal violado e passa a ser vista como advinda de um contexto bem mais amplo, de origens obscuras e complexas, e não de uma mera relação de causa e efeito.Brancher destaca que a Justiça Restaurativa define uma nova abordagem sobre a questão do crime e das transgressões, o que possibilita um referencial paradigmático na humanização e pacificação das relações sociais envolvidas num conflito.Diferentemente das alternativas adotadas, a Justiça Restaurativa se baseia em um paradigma não punitivo, que apresenta soluções às ineficácias do sistema de justiça criminal atual, alterando o foco do processo penal no estabelecimento da culpa e punição para o ato danoso, suas consequências e suas possíveis soluções.

10.4- A implementação da justiça restaurativa no BrasilNos países do sistema common law, o sistema jurídico é mais receptivo ao encaminhamento de casos à Justiça Restaurativa, principalmente pela grande discricionariedade atribuída ao promotor em processar ou não, segundo o princípio da oportunidade. Ao contrário do nosso sistema, que continua sendo mais restritivo, em virtude da adoção do princípio da indisponibilidade da ação penal pública e da legalidade.Segundo Giacomolli, o princípio da legalidade significa que os agentes oficiais, representantes do Estado nas funções de investigar, acusar e julgar, não podem agir de acordo com o que lhes convém, mas segundo critérios estabelecidos na legislação. Dessa forma, o início, desenvolvimento e término do processo penal não podem se submeter ao juízo da oportunidade ou a atitudes discricionárias.Quanto ao princípio da indisponibilidade da ação penal, o autor refere que o Ministério Público, diante do preenchimento dos requisitos legais à acusação, tem a obrigação de fazê-la, sustentá-la e de promover sua execução, perante o órgão judicial.Todavia, com o advento da Constituição Federal de 1988, com a reforma do Estatuto da Criança e do Adolescente e, principalmente, com a Lei 9.099/1995 e com base no princípio da oportunidade, possibilitou-se a aplicação do modelo restaurativo no sistema jurídico brasileiro, em determinados casos.A Constituição Federal, em seu art. 98, inciso I, possibilitou a conciliação e transação em casos de infração penal de menor potencial ofensivo. Conforme argumenta Pinto, com esta inovação, arrisca-se a afirmar que o princípio da oportunidade passou a coexistir com o princípio da obrigatoriedade da ação penal, no sistema jurídico brasileiro.Destacam-se, também, todos os crimes processados mediante ação penal privada ou ação penal pública condicionada à representação da vítima. Segundo Sica, por se tratar de hipóteses em que a manifestação de vontade da vítima é suficiente para afastar a intervenção penal, abre-se uma oportunidade direta para conciliação ou discussão quanto à reparação de danos.Por outro lado, a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais regula o procedimento para a conciliação e julgamentos dos crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando a aplicação da justiça restaurativa, através dos institutos da composição civil (art. 72), transação penal (art. 76) e suspensão condicional do processo (art. 89).Primeiramente, o art. 72 da Lei 9.099/1995, prevê a possibilidade de composição dos danos entre as partes, presente representante do Ministério Público, e a aceitação da proposta de aplicação de pena não privativa de liberdade, em audiência preliminar.Ainda, o art. 79 prevê que, em audiência de instrução e julgamento, quando infrutífera a tentativa de conciliação entre as partes e não havendo proposta pelo Ministério Público, deverá o magistrado ofertar a composição civil.Segundo, o art. 76, do mesmo diploma legal, disserta quanto à transação penal, referindo que, havendo representação da vítima ou sendo crime de ação penal pública incondicionada, poderá o Ministério Público propor pena restritiva de direito ou multas.Por fim, abre-se possibilidade para a aplicação da Justiça Restaurativa pela redação do art. 89 da Lei 9.099/1995. Nesse caso, amplia-se o rol de crimes contemplados para serem alcançados os crimes de médio potencial ofensivo, eis que o instituto de suspensão condicional do processo não se limita aos crimes de menor potencial ofensivo, como os artigos referidos.Verifica-se, portanto, que para as situações que admitam a suspensão condicional do processo pode ser feito, também, o encaminhamento do caso à Justiça Restaurativa, pois a par das condições legais obrigatórias,

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previstas no § 1.º do referido artigo. O § 2.º permite a especificação de outras condições, indicando outra abertura à aplicação do modelo restaurativo.Observa-se, ainda, a possibilidade de aplicação da Justiça Restaurativa nos crimes contra idosos, uma vez que o art. 94 da Lei 10.741/2003, determina o emprego do procedimento da Lei 9.099/1995 nos delitos cuja pena privativa de liberdade não exceda quatro anos.O Estatuto da Criança e do Adolescente também impulsiona à implementação da Justiça Restaurativa, uma vez que recepciona o instituto da remissão, através do art. 126. Nesse caso, o processo poderá ser excluído, suspenso ou extinto, desde que a composição do conflito seja perfectibilizada entre as partes, de forma livre e consensual.Além disso, diante do amplo elastério das medidas socioeducativas, previstas no art. 112 e seguintes, do mesmo diploma legal, verifica-se, da mesma forma, abertura ao modelo restaurativo por meio da obrigação de reparar o dano.Seria possível vislumbrar ainda uma ponte para aplicação do modelo restaurativo o instituto do perdão judicial, previsto nos arts. 107, inciso IX e 120, ambos do Código Penal.Segundo Pinto, a intervenção dos operadores jurídicos nas práticas restaurativas requer uma sensibilização e uma capacitação específica para lidar com os conflitos deontológicos e existenciais na sua atuação, pois estarão, por um lado, jungidos a sua formação jurídico-dogmática e seus estatutos funcionais e, por outro, convocados a uma nova práxis, que exige mudança de perspectiva. O autor esclarece que o procedimento restaurativo jamais poderá contrariar os princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais, violando o princípio da legalidade em sentido amplo. A aplicação da Justiça Restaurativa deve respeitar as condições para que sua existência, validade, vigência e eficácia sejam reconhecidas. Caso contrário, o procedimento e seus atos restaram inexistentes, nulos e/ou ineficazes e, portanto, inaptos para irradiar efeitos jurídicos.A implementação da Justiça Restaurativa no Brasil representa a oportunidade de uma Justiça Criminal mais democrática, que opere real transformação, abrindo caminho para a nova forma de promoção dos direitos humanos e da cidadania, da inclusão e da paz social com dignidade. Entretanto, as barreiras e preconceitos jurídicos impedem uma maior aplicação e evolução da Justiça Restaurativa no Brasil, sendo ainda necessário “mudar aquela velha opinião formada sobre tudo”.

10. 5- Considerações finaisAparentemente, a Justiça Restaurativa se apresenta como um modelo utópico, com soluções simples e, ao mesmo tempo, brilhantes às falhas do sistema de Justiça Criminal. Toma força essa ideia principalmente diante da adoção de um paradigma, e pensamento, puramente punitivo-retributivo.Entretanto, durante anos se tentou a implementação de diversas alternativas superficiais, as quais somente remendaram o sistema e, ao final, ratificaram a sua ineficiência.A sociedade acredita que a imposição de castigo e dor compõe o conceito de justiça, e que o diálogo e compreensão não podem fazer parte deste. Além disso, pensa que crime é apenas uma violação às leis do Estado.É preciso “trocar as lentes” pelas quais enxergamos o crime e a justiça, conforme sustenta Zehr. E a Justiça Restaurativa propõe uma verdadeira troca de lentes, alterando o foco do processo penal ao estabelecimento de culpa e punição para o ato danoso, suas consequências e suas soluções.A Justiça Restaurativa se mostra como um modelo mais humano, que aproxima as partes realmente envolvidas e afetadas pelo delito e devolve a estas a competência de resolução dos conflitos.A adoção do modelo restaurativo indica uma verdadeira forma de transformação, de uma real possibilidade de mudanças. É um caminho para a concretização da aceitação dos direitos humanos e do Estado Democrático de Direito.