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“POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL” Marco Aurélio Da Ros

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“POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NOBRASIL”

Marco Aurélio Da Ros

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL

Marco Aurélio Da Ros

1. Premissas iniciais

Um referencial importante para iniciar uma reflexãosobre Políticas Públicas de Saúde no Brasil pode ser localizadono Movimento Europeu de Medicina Social do século XIX.Rosen (1980) relata que esse Movimento, localizado em termoscronológicos, aproximadamente entre 1830 e 1870, difundiu-se na Europa e coincidiu com os Movimentos pelatransformação do capitalismo, que vivia uma de suas fases demaior crueldade.

Alguns filmes (produções cinematográficas) explicitamessas condições como “Daens: um grito de justiça” ou“Germinal”. Estes, mais o livro de Engels (1986), intitulado “Asituação da classe trabalhadora na Inglaterra”, demonstram aalta mortalidade e superexploração da força de trabalho. Emum ambiente sem saneamento, grávidas e menores de 10anos, trabalhavam mais de 14 horas de trabalho por dia emfábricas sem janelas, em troca de pouca comida.

Nesse ambiente grassavam epidemias e os médicoseram chamados para tentar deter a morbi-mortalidade. E aíera evidente que as condições sócio-econômicas eramdeterminantes. Portanto, a proposta de mudar o modo deprodução era condição para alterar o processo saúde-doençada população.

Villermé na França, Grosjahn na Bélgica, Chadwickna Inglaterra e Virchow e Neumann na Prússia personificavamalguns dos elaboradores do Movimento de Medicina Social (DAROS, 2000).

Virchow e Neumann, em 1847, conseguem aaprovação da lei de Saúde Pública prussiana que, se fosseapresentada de forma sintética, poderia ser resumida como:saúde, direito de todos, dever do Estado.

O Movimento dá uma explicação social para o processosaúde-doença e tende a tornar-se hegemônico enquanto

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modelo explicativo: “mudem-se as condições da sociedadeque acabam as epidemias e transforma-se o perfil daspatologias”.

Claro que este Movimento chocava-se com o poderdominante e seus responsáveis, que relutavam em aceitar asprescrições de Virchow, tais como: redução da jornada detrabalho, tempo para lazer, salários suficientes para alimentartoda a família com abundância, menores de 12 anos nãotrabalharem, saneamento nas fábricas, etc... Isto implicavaem afrontar o capitalismo nessa fase de expansão/acumulação.Caso o trabalhador não aceitasse aquelas condições, havia umimenso “exército” de desempregados pronto para substituí-lo. Portanto, porque investir em mudança?

Com a descoberta da associação causal entre a bactériae a doença, a partir de Pasteur, ao invés de se aumentar opotencial explicativo do processo saúde-doença, ocorreu umaruptura, sintetizada por Behring em 1896, na Prússia, comum sentido que expressava aproximadamente o seguinte:“Agora, com a descoberta das bactérias, desnudada a causadas doenças, o médico não precisa mais se preocupar com asociedade” (ROSEN, 1980). E esse passou a ser o modelohegemônico ao final do século XIX – início do século XX: omodelo unicausal de explicação da doença, negador dadeterminação social do processo.

Uma outra reflexão, que se superpõe a esta, é a formacomo se estabelece o modelo médico norte-americano. ARockfeller Foundation, um dos pilares do modelo capitalistanorte-americano financiou a Johns Hopkins University, no iníciodo século XX (DA ROS, 2000). Nesse local, originou-se ummodelo de ensino de medicina centrado na unicausalidade,biologicista, hospitalocêntrico, fragmentado, detentor daverdade científica, positivista. Dessa universidade foi chamadoum professor, Abraham Flexner, para fazer uma investigaçãosobre as faculdades de medicina dos Estados Unidos da América(EUA). Em 1910, foi publicado um relatório, chamado de“Relatório Flexner”, que em síntese, sugeria o não-financiamento de faculdades de medicina que contemplassemoutros modelos de entendimento do processo saúde-doença,diferentes da Johns Hopkins University (MENDES, 1985). Dessaforma, em menos de 5 anos foram fechadas mais de 100

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faculdades norte-americanas: aquelas que enfatizavam SaúdePública, ensinavam homeopatia, acupuntura, fitoterapia ou,que aceitavam negros e mulheres (CUTOLO, 2001). E seestabelecia um modelo claramente hegemônico de medicinaespecializada – medicina/ciência/verdade – no hospital. Autilização de exames e medicamentos passa a sersuperestimulada e se desenvolvem as bases para o poderosocomplexo médico-industrial, com imensos lucros por sobre asdoenças. Com isso, as Ciências Sociais, definitivamente, nãocabiam no entendimento vigente, nem a Saúde Pública, nema dimensão psicológica. Essa mesma universidade norte-americana, em 1918, entendeu que Saúde Pública poderiaser ensinada como um curso de especialização, depois dagraduação, o que a fez propôr, na época, o primeiro curso nosEUA. Dois professores da Faculdade de Medicina de São Paulofizeram esse curso e voltaram para o Brasil com a idéia deformar uma faculdade de Saúde Pública. A Rockfeller Foundationfez, nesse período, uma doação para a construção do prédio,com a exigência de que o diretor dessa escola fosse indicadopela entidade norte-americana (VASCONCELLOS, 1995).Samuel Darling dirigiu por três anos o Instituto de Higiene(que não se tornou a Faculdade de Saúde Pública) estabelecendodiretrizes para as investigações: unicausalidade – biologia devetores – em educação e, a culpabilização da vítima. Istomarcou por muito tempo a lógica da Saúde Pública no Brasil(DA ROS, 2000).

Uma terceira reflexão, antes de iniciar propriamentea discussão das Políticas Públicas de Saúde, diz respeito àepistemologia ou, resumidamente, como se constrói oconhecimento. No desenvolvimento da ciência, o positivismoe os detentores da “verdade única”, foram superados desdeas contestações ao círculo de Viena, mas, especialmente, peloentendimento de que existe um processo permanente dedesvelamento, que constrói permanentemente novas“verdades provisórias”. Este “novo conhecimento” podemoschamar de “princípio do conhecimento máximo” (FLECK,1986), o qual teria, supostamente, potencial explicativo parasuperar ou incorporar os conhecimentos anteriores. Mas,também se pode entender, com este autor, que estilos depensamento antigos tendem a persistir no tempo e, no caso

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do positivismo, sendo impermeável (incomensurável) aqualquer outra lógica diferente da sua, tornada, então, comoa “verdadeira”.’ Portanto, é com essas três premissas queacredito que podemos refletir melhor sobre as PolíticasPúblicas de Saúde no Brasil.

2. Condições para instalação do Modelo Brasileiro

Faço então, por opção explicativa, um corte históricoque nos remete assim, à década de 1960, o ponto queconsidero importante para as definições em pauta, ainda hoje.

As Políticas Públicas de Saúde anteriores a essa épocapodem ser resumidas ao sanitarismo-campanhista (lógica doMinistério da Saúde) e a um modelo de atenção à doençabaseado nos IAP’s (Institutos de Aposentadoria Privada -antigos “fundos” de aposentadorias e pensões) para ostrabalhadores organizados. Em 1963, por exemplo, o IAPI(dos industriários), o mais organizado dos institutos, cobrava3% dos trabalhadores e igual contribuição dos patrões. Comesse recurso tinha hospitais próprios, corpo de médicos eenfermeiros, equipamentos de última geração e ambulatóriosgerais. O recurso era suficiente para garantir as pensões/aposentadorias e para financiar casas próprias, as vilas do IAPI(dos industriários) existentes nas cidades industrializadas doBrasil naquela época. O Ministério da Saúde era encarregadoda prevenção das doenças. Detinha 8% do orçamento da uniãoe realizava desde perfuração de poços até confecção de fossase operações mata-mosquitos, bem como mantinha Centrosde Saúde para atender as grandes endemias de hanseníase,tuberculose, verminose. Caiava casas para a prevenção deDoença de Chagas.

Já a medicina privada no Brasil, naquela época,apresentava um forte traço europeu, mais eclético que omodelo fragmentador norte-americano e a ênfase aindacentrava-se na atuação de médicos generalistas e de família(DA ROS, 2000). A população pobre dependia de hospitais decaridade, Santas Casas de Misericórdia, normalmente, sob aresponsabilidade da Igreja. Tínhamos até então, 26 faculdadesde medicina no país. Em 1963, Paulo Freire colaborou com oMinistério da Educação para estimular o Movimento Estudantilorganizado na União dos Estudantes (UNE), de forma que

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este colocasse seus conhecimentos à disposição da populaçãona época das férias escolares. O Movimento Estudantil seiniciava já na primeira série ginasial (equivalente, hoje, à sextasérie do primeiro grau) e se discutia muito um modelo dedesenvolvimento para o Brasil.

Como em 1959 havia eclodido uma revolução emCuba, os norte-americanos se tornaram apreensivos comdemocracias que permitiam organizações populares/políticasque contestavam a exploração capitalista. Em 1º de abril de1964, deu-se um golpe militar contra um presidentelegitimamente eleito, o qual foi financiado e pensado, emconjunto, pelo governo dos EUA e pelos militares brasileiros.Instalou-se, a partir daí, uma ditadura onde os pensamentoscontrários a ela foram duramente perseguidos com ameaças,cadeia, exílio ou mesmo morte. A censura passou a serexercida em todos os meios de comunicação. Houveintervenção nos sindicatos, fechamento da UNE, tendoinclusive, sua sede queimada. Esse golpe determinou extensasmodificações em relação ao patamar anterior. Proponho colocarmais 10 anos de intervalo, 1973 – 1974, para tirar outro retratoda situação e avaliar o que ocorreu nesse outro período.

Os IAPs foram desapropriados e passaram a serhospitais governamentais submetidos ao MPAS (Ministério daPrevidência e Assistência Social) que, em média, alocava 25%do que arrecadava para o setor saúde. Sua alocação era, emteoria, tripartite e já não mais de 3% e, sim, de 6% do saláriodo trabalhador e de 6% do recurso do patrão (que nem semprepagava e que ainda recebia do governo anistia da dívida a cadacinco anos de sonegação, gerando novos não-pagantes). Esterecurso do MPAS, (que deveria gerar lastro para ofinanciamento e assegurar os benefícios no futuro) foipulverizado: a) financiando as grandes obras do Brasil–Potência(Hidrelétrica de Itaipu, Usina de Angra dos Reis, Ponte Rio-Niterói, Rodovia Transamazônica); b) financiando a construçãode hospitais privados e comprando exames e medicamentosdo mercado privado; c) com corrupção disseminada em todosos níveis, desde as aposentadorias falsas, pacientes inexistentesaté exames inventados, diagnósticos falsos, superfaturamentodo material de consumo utilizado e pagamento por Unidadesde Serviço (US) – quanto mais “sofisticado” o ato, mais caro

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se pagava por ele. O empréstimo com dinheiro da Previdênciapara a construção de hospitais consistia em até 10 anos denão-pagamento, para o setor privado. Após isso, é que orecurso começaria a ser pago, sem juros e sem correçãomonetária; d) porque se hipertrofiou a compra de aparelhosde exames sofisticados (muitos deles desnecessários), bemcomo ocorreu uma verdadeira explosão de construção dehospitais e de compra de medicamentos.

O Ministério da Saúde teve, então, redução no seuorçamento de 8% para 0,8% permitindo o ressurgimento deepidemias relativamente controladas. Criou-se uma centralde medicamentos cuja principal função passou a ser a deampliar a possibilidade do remédio privado chegar à populaçãopobre, aumentando muito os lucros dos fabricantes. Associadoao que ocorre na formação do médico e do farmacêutico issofez com que o Brasil se tornasse um dos dois países (juntocom o México) com maior número de medicamentos compatentes comerciais, absolutamente sem controle. Então, asgrandes bases para o complexo médico-industrial estavam aliplantadas – hospitais, equipamentos e medicamentos. Faltavamexer na formação profissional. Em 1968, a ReformaUniversitária, entre outras intenções, buscava reprimir apossibilidade de organização estudantil, mas, em especial, naárea da saúde é recomendada para a medicina, além da adoçãodo modelo Flexneriano, a supressão da disciplina deterapêutica, o que tornou os alunos reféns dos representantesde laboratórios (estes, por sua vez, se travestiam deensinadores do funcionamento dos medicamentos). No cursode Farmácia-Bioquímica foi suprimida a disciplina deFarmacognosia (conhecimentos de onde são extraídos osprincípios ativos dos medicamentos) e de Farmacotécnica(como se transformam em produto de venda, os princípiosativos) assegurando que tornávamo-nos somente consumidoresdo medicamento pronto vendido pelas multinacionais(KUCINSKI e LEDOGAR, 1977).

Em menos de 10 anos saltamos de 26 para 56faculdades de medicina e todas essas novas escolas tinham,obrigatoriamente, o modelo biologicista, hospitalocêntrico,fragmentado e com estímulo ao positivismo como referência,em busca da “verdade dos exames” feitos por aparelhos cada

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vez mais sofisticados e com a teoria unicausal (já superadainternacionalmente), posando de modernidade. Tudo issoocorreu sob a impossibilidade de denúncia ou de reação, queseria entendida, pelos militares e seus órgãos de segurança,como subversão.

De 1964 a 1973 foram dez anos de repressão forte.Nesses anos, o complexo médico-industrial brasileiro sefortaleceu em níveis inimagináveis. Elegeu deputados,senadores, governadores. Ministros de Estado viabilizavam seusinteresses e a Política Pública de Saúde era formulada deacordo com o interesse de fortalecimento desse complexo.O discurso vigente era que, em primeiro lugar, o governofaria o “bolo financeiro” crescer para depois ser repartido.Mas em 1973, com a primeira crise internacional do petróleo,ocorreram sérias conseqüências para os países capitalistasdependentes, o que acabou desencadeando a primeira grandecrise do governo militar. Em função disso, parte do governomilitar começa a buscar outras saídas, inclusive para o modelode saúde, buscando ajuda nos setores até então proibidos dese falar. A própria ESG (Escola Superior de Guerra - a base dainteligentzia militar) denunciou a diminuição das condições desaúde dos candidatos ao serviço militar, dizendo que nessesdez anos aumentara, significativamente, o número de cáriesnos brasileiros, o percentual de verminoses, a altura médiahavia diminuído, além de terem eclodido epidemias até entãorelativamente sob controle, como malária, esquistossomose,Doença de Chagas, febre amarela, em função da diminuiçãoextrema de recursos para medidas preventivas do Ministérioda Saúde.

As condições materiais de existência, na época,permitiram dessa forma, que surgissem os movimentos contra:a própria ditadura militar e, na área de saúde, apareceu, então,a contra-hegemonia ao modelo Flexneriano e ao modelounicausal e às atividades do complexo médico-industrial,defendendo um sistema hierarquizado de saúde, em quepráticas curativas e preventivas estivessem dentro de umcomando ministerial único.

A intenção deste artigo é caracterizar as PolíticasPúblicas de Saúde no Brasil da década de 1960/1970, comouma proposta positivista, unicausal, ‘Flexneriana’, voltada aos

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interesses do capitalismo e que se sustentava na base daditadura militar, em contraponto às novas forças emergentesa partir da década de 1970, que irei caracterizar a seguir.

Este novo pensamento, em oposição ao complexomédico-industrial, pode ser simbolizado pelo chamadoMovimento pela Reforma Sanitária ou simplesmenteMovimento Sanitário. Naquele período histórico do país, váriosmovimentos, separadamente, iniciaram uma contraposição àpolítica hegemônica. Os “preventivistas” do Ministério daSaúde, pleiteavam recursos para reiniciar medicina preventivae denunciavam o gasto com a atenção curativa. Os “publicistas”do INAMPS lembravam que nos tempos das IAPs, os recursoseram para a construção de hospitais e compra deequipamentos próprios. Estes conclamavam, ainda, que odinheiro público deveria ser usado para equipamentos públicos.Denunciavam também que a forma de pagamento por unidadesde serviço (US), era uma fonte incontrolável de corrupção.Por exemplo, na época se pagava mais US por parto cesáreodo que por parto normal e com isso, na época, o Brasil foicampeão mundial de cesarianas.

A Igreja se organizou nas pastorais de saúde, criandoos ENEMECs (Encontros Nacionais de Experiências emMedicina Comunitária) e defendendo o uso de fitoterapia. Osantigos militantes da UNE, hoje profissionais e professoresuniversitários se organizaram em experiências de integraçãodocente assistencial e produziram resistências ao MovimentoMédico Privatista, por exemplo, criando o Movimento deRenovação Médica (REME) e o Centro Brasileiro de Estudosde Saúde (CEBES) que passou a ter um vínculo de discussãode situação de saúde brasileira e a editar uma revista intituladaSaúde em Debate, publicada até hoje.

Os antigos estudantes secundaristas, eventualmentena área da saúde, foram proibidos de se reunir para discutirpolítica, mas para fazer encontros científicos havia permissão.Os estudantes de medicina organizaram-se nos ECEMs(Encontros Científicos dos Estudantes de Medicina) onde ospublicistas, preventivistas, pastoral da saúde e CEBES foramos palestrantes.

Em 1976, nasceu também a primeira residência emSaúde Comunitária, na Unidade Sanitária Murialdo, em Porto

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Alegre e, rapidamente, junto com outras que se conformaramnessa época, se tornou mais um Movimento contra-hegemônico. Ainda no mesmo ano, todos os Movimentos seencontraram em São Paulo, percebendo que compunham, doponto de vista ideológico, um Movimento único com causasem comum: pleiteavam o fim da ditadura militar, um SistemaÚnico de Saúde e eram contrários aos interesses do complexomédico-industrial. Nascia assim, o chamado Movimento pelaReforma Sanitária (DA ROS, 1995).

3. Ventos de mudança

Pode-se dizer que desde 1976 até hoje as Políticasde Saúde continuam se construindo na tensão entre essasduas forças. Até 1985, com vitórias claras do complexomédico-industrial e, a partir do fim da ditadura, com algumequilíbrio de forças.

Em 1975, existiu uma primeira tentativa de criar umSistema Nacional de Saúde, tendo sido tema da 5a ConferênciaNacional de Saúde. Como conseqüência, formulou-se a Lei6229, mas a mesma não passa do papel. Em 1980, na 7a

Conferência Nacional, pela primeira vez o CEBES foiconvidado a participar e colaborar para a apresentação de umaproposta chamada PREV-Saúde, que fundiria dois ministériose começaria a repassar recursos para os municípios. Essaproposta criou uma “porta de entrada” (os postos de saúde)com alta resolutividade; uma lista de medicamentos prioritários– básicos; e assalariava os profissionais de saúde.

Apesar de colocada para discussão nacional com aassinatura dos Ministros da Saúde e da Previdência, os Núcleosdo CEBES, que discutiram a proposta, tiveram parte de seusmembros presos pela Polícia Federal, pelo fato de quereremum Sistema de Saúde decente para a população.

Enquanto se realizava a 7a Conferência, o presidentedo INAMPS foi aos jornais denunciar que a proposta do PREV-Saúde era estatizante, estragava a profissão médica e era coisade comunistas. Ato contínuo, foi publicada uma lista defuncionários de ambos os ministérios com supostas ligaçõescom partidos de esquerda clandestinos, o que acaba gerandoa expurgação de mais de 100 funcionários dos ministérios.Como “efeito cascata”, vários funcionários estaduais e

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municipais ligados ao Movimento Sanitário sofreramperseguições políticas.

Apesar disso, como a utilização dos recursos financeirosestatais era crescente no setor saúde, naquele momento,facções do governo militar insistiam em apoiar o modelodefendido pelo Movimento Sanitário. Em 1981 foi criado oConselho Superior de Previdência, estabelecendo parâmetrosde resolutividade para internação e controlando, pelo menosparcialmente, a corrupção reinante nos hospitais privados (quecobravam do dinheiro público).

Em 1982, criou-se um programa piloto – PAIS(Programa de Ações Integradas de Saúde) – com um municípioem cada estado recebendo recursos dos dois ministérios paraviabilizar saúde. Em 1983, com a avaliação positiva, estePrograma tornou-se estratégia da Política Ministerial e as AIS(Ações Integradas de Saúde) passaram a ser a Política prioritáriade ambos os ministérios. Estas centravam-se nos municípios,que para obter recursos, deveriam apresentar um PlanoMunicipal de Saúde e ter uma comissão interinstitucional desaúde para acompanhamento do Programa. Considera-se queas AIS foram a grande matriz para o SUS.

Algumas experiências dignas de nota, anteriores àcriação destes Planos, dizem respeito a municípios queiniciaram o investimento na área da saúde por conta própria,como Londrina e Niterói. E é importante relatar também, aexperiência pioneira de modificação curricular da UFMG, em1976, que criou o Internato Rural obrigatório, para estudantesde medicina na região de Montes Claros, em Minas Gerais.Em Santa Catarina uma experiência pioneira foi levada a cabopela Cooperalfa, em parceria com o Departamento de SaúdePública da UFSC, trabalhando um modelo de saúde comunitáriana área rural de sete municípios da região de Chapecó, entre1980 e 1982, com equipes multiprofissionais, agentescomunitários de saúde, envolvendo-se com a mobilização dacomunidade e visitas domiciliares, além é claro da propostade atenção à doença, com a contratação de médicos eenfermeiros.

Com a criação das AIS, Criciúma, em Santa Catarina,passou a ser o município modelo do Estado, com uma expansãoda rede municipal, em convênio com a Secretaria Estadual de

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Saúde e atuando integrado com o INAMPS. Foi tal aimportância da experiência, que chegou a se promover umcurso de especialização em Saúde Pública reconhecido pelaENSP/FIOCRUZ e o professor de planejamento foi MarioTesta (reconhecido como uma das grandes autoridadesmundiais no pensamento estratégico em saúde).

No referido período, a ditadura brasileira agonizava eo Movimento Sanitário crescia nas municipalidades. Isto fugiaao controle do complexo médico-industrial instaladoimperialmente em Brasília e já sem forças locais fortes nosmunicípios, para enfrentar um Movimento Social organizado.

Após o Movimento pelas “Diretas Já” e os acordos decúpula feitos pelos partidos da época, ficou estabelecida aeleição presidencial indireta, referendada por um colégioeleitoral. Com a definição da candidatura Tancredo Neves,este montou sua proposta ministerial, colocando em espaçosfundamentais da saúde, pessoas do Movimento Sanitário. Comsua morte, ocorreu a posse e ascensão de José Sarney, o qualnão alterou, inicialmente, os acordos pactuados por Tancredo.Assim, se iniciava a Nova República, com Hésio Cordeiro comopresidente do INAMPS e, com Sérgio Arouca na presidênciada FIOCRUZ e no Ministério da Saúde. Ambos haviam sidopresidentes nacionais do CEBES.

Hésio, sabedor que seu cargo era cobiçado pelosrepresentantes do complexo médico-industrial, tratou deradicalizar a proposta das AIS, criando o Sistema UnificadoDescentralizado de Saúde – SUDS e propondo claramente aextinção do INAMPS e o repasse dos recursos para asadministrações municipais.

Arouca, por seu lado, pautou suas ações pela buscade legitimação para as propostas do Movimento, coordenandoa 8a Conferência Nacional de Saúde, a primeira comparticipação da sociedade organizada, envolvendo desde apresença de Movimentos Sociais à Associação de portadoresde patologias e profissionais da saúde. O tema da conferênciaera: Saúde direito de todos, dever do Estado. Enfim, o Brasil“chegava” em 1848 na Europa.

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4. O SUS

Dentre os diversos avanços propiciados pela 8a

Conferência Nacional de Saúde, um dos mais importantes foio reconhecimento do chamado Conceito Ampliado de Saúde:

Em seu sentido mais abrangente, a saúde é resultante dascondições de alimentação, habitação, educação, renda,meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer,liberdade, acesso e posse da terra e acesso à serviços desaúde. É, assim, antes de tudo o resultado das formas deorganização social da produção, as quais podem gerargrandes desigualdades nos níveis de vida,..., A saúde não éum conceito abstrato. Define-se no contexto histórico dedeterminada sociedade e num dado momento de seudesenvolvimento, devendo ser conquistada pelapopulação em suas lutas cotidianas (BRASIL, 1986).

Também foi uma deliberação importante a adição deuma pauta de direcionamentos que convergia para o embateda formação da nova Constituição Brasileira de 1988. Duranteos dois anos de Constituinte, os embates foram acompanhadospela Comissão Nacional da Reforma Sanitária, que conseguiuassessorar os deputados, de tal modo que em 1988, pelaprimeira vez numa Constituição brasileira, apareceram artigosque diziam respeito à saúde (do 196º ao 200º). O primeirodeles assegurou o lema da 8a Conferência e, o último, que aordenação dos recursos humanos ficaria a cargo do SUS. Criou-se ainda, o Sistema Único de Saúde (SUS), pautado nosseguintes pressupostos: universalidade, eqüidade, integralidade,hierarquização e controle social.

Para que efetivamente entrassem em vigor os artigosda Constituição foram necessárias leis orgânicas (a 8.080 e a8.142, homologadas somente em 1990). As leis aprovadastiveram artigos vetados pelo governo Collor (já era ele entãoo presidente), cujo ministro de saúde era um diretor de hospitalprivado do Paraná, portanto, membro do complexo médico-industrial.

Após diversas tentativas de inviabilizar as premissasdo SUS, este ministro caiu por sérias suspeitas de corrupçãona compra de bicicletas, filtros e guarda-chuvas para oPrograma de Agentes Comunitários de Saúde (PACS).

E é com dois anos de atraso, em 1992, que se realiza

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então a 9a Conferência, de onde surgiu a compreensão deque para além da formulação de leis orgânicas, era precisodefinir normas operacionais básicas (NOB) para que o SUScomeçasse a funcionar, de fato. Assim, o evento acabou sendopalco de grandes manifestações políticas, as quais entendiamque com Collor no governo o SUS não avançaria, desse modo,se engajaram na luta pelo “Fora Collor”.

Um parêntese importante nesta história é oafastamento de Hésio do INAMPS, dois anos depois de suanomeação (tão logo tomou posse o novo ministro). O novocoordenador do INAMPS, representando os interessesconservadores e do Complexo Médico-Industrial, tentoureverter o fluxo de recursos, que vertia para os municípios.Mas, a própria base de seu partido (os redutos municipais)pressionava para que os recursos continuassem no âmbitomunicipal, demonstrando que a estratégia de repassarrapidamente os recursos e extinguir o INAMPS da época foraa tática correta. Se fosse aguardado o SUS (em 1988), oministério poderia mudar e a iniciação do repasse seria muitodificultada.

Em 1993, com o impeachment de Collor, o MovimentoSanitário dentro do governo Itamar elaborou, ao final dessemesmo ano, a primeira proposta do Programa de Saúde daFamília, tentando dar forma para a Atenção Básica, porta deentrada do Sistema, com o entendimento de que, enquantonão se resolvesse essa instância, a demanda “recairia” semprenos serviços dependentes de hospital, tecnologia pesada emedicamentos (DA ROS, 2000). O ministro da época eraHenrique Santillo, que acatou o nome sugerido pela UNICEFpara iniciar um programa de saúde comunitária, que foichamado de Programa de Saúde da Família (PSF). Em 1994 onovo governo federal, investe inicialmente, pouquíssimo emPolíticas de Saúde.

A forma de financiamento do PSF ainda não estavaestabelecida e nem existia a formação dos recursos humanospara este novo trabalho, com outra lógica.

Somente em 1997, é que foram criados os Pólos deCapacitação na Estratégia de Saúde da Família, assim como,uma proposta de ampliação dos recursos para os municípios,que se comprometia com a Estratégia de Saúde da Família.

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Desse modo, rapidamente começaram a se multiplicarequipes Brasil afora, tendo as premissas do SUS como base e,os princípios de Atenção Básica/Saúde da Família comocomplemento norteador. Algumas dessas características sãoo trabalho com promoção de saúde, acolhimento, visitasdomiciliares, trabalho em equipes multidisciplinares, educaçãoem saúde, alta resolutividade e aí sim, pode-se dizer que aexpansão do SUS rumou ao encontro da universalidade eeqüidade. Essas premissas ainda não tinham sido conquistadasem sua totalidade, mas tiveram grande aceleração a partir de1997.

Um fator sem dúvida determinante para amanutenção desse modelo de política foi o apoio financeirodo Banco Mundial. Embora com lógica completamentediferente do Movimento Sanitário, este começou a financiarsua expansão, por entender que tal estratégia poderia baixaro custo total do Sistema de Saúde (COSTA, 1996). Contudo,não havia uma preocupação com a equipe multidisciplinar, nemcom o salário dos profissionais, nem com o tamanho da clientelaa ser atendida, nem com a qualidade do serviço. Logo, podese dizer que o Banco Mundial é um aliado tático, mas uminimigo estratégico.

A luta do Movimento Sanitário hoje é pelocumprimento do SUS, especialmente no que diz respeito àintegralidade, por isso mesmo é contra a política de “cestabásica” do Banco Mundial. Também não se pode esquecerque o complexo médico-industrial está aí, mais vivo do quenunca.

5. As políticas atuais

Ao final da gestão do Ministério da Saúde do governoFernando Henrique Cardoso (2002), houve uma grandeexpansão no número de equipes de Programa de Saúde daFamília (PSF), mas se evidenciavam problemas de toda ordem.Alguns avanços capitaneados pelo pessoal do MovimentoSanitário, dentro do Ministério, eram notórios. Apesar dapressão estabelecida pela lógica do Banco Mundial, foramcriados Pólos de Capacitação para direcionar a formação dasEquipes de Saúde da Família. Nesse período, já tinham sidocriadas mais de vinte residências multi-profissionais em Saúde

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da Família, além de mais de 50 especializações na mesmaárea. Conseguiu-se financiamento para iniciar reestruturaçãodos cursos de medicina (em outra direção, diferente daFlexneriana). Porém, o MEC não tinha nenhum envolvimentonesse processo. Pesava também o fato da organização internado Ministério da Saúde ser caótica, com diferentes grupos detrabalho boicotando uns aos outros, além de se ter umaAtenção Básica dissociada dos outros Modelos de Atenção euma visão programática de administração, na qual cadaPrograma buscava uma estrutura própria, completa. Porexemplo: educação em saúde era feita de uma forma na saúdeda mulher, de outra em hanseníase, de outra em diabete/hipertensão. Não havia ao menos um entendimento comumdo que é um processo pedagógico ou do conceito de saúde ouo de prevenção X promoção. A Atenção Básica tentava garantiruma formação via Pólos, mas isto esbarrava nas dificuldadesoperacionais de liberação de verbas e, especialmente, naestrutura dos governos estaduais.

O diagnóstico indicava que era preciso mexer,fundamentalmente, na formação de pessoal. Enquanto nãofosse rompida a visão positivista, Flexneriana e unicausal, nãose avançaria na direção que o SUS propunha. Um passo muitoimportante foi dado em 2001, por pressão do MovimentoSanitário, diluído em entidades como Rede Unida, ABEM, ABEne ABRASCO, que se articularam com o Ministério da Saúdepara exercer pressão por sobre o MEC, para que o mesmoassinasse uma nova lei de diretrizes curriculares. A partir dessaaprovação, ficou estabelecido que todos os cursos da área desaúde deveriam reorganizar sua base formativa, buscarconstituir profissionais críticos, reflexivos, humanistas e dealta resolutividade (REDE UNIDA, 2002), com um horizonteno SUS e com prazo de três anos para este início. Nessesentido, o financiamento conquistado em 2002 para asespecializações e residências em Saúde da Família e oPROMED, já apontavam nessa direção.

Em 2003, novo governo, novas esperanças. OMinistério da Saúde, pela primeira vez, se assumiu como parteintegrante da luta pela Reforma Sanitária (BRASIL, 2004a).Ocorreu, então, uma reestruturação profunda na organizaçãodo Ministério, com o entendimento que estamos enfocando:

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as Políticas de Saúde, a organização de todos os esforços daAtenção (da Básica à alta complexidade), sob uma únicasecretaria, demonstraram esse avanço. Mas foi na Política deEducação em Saúde que se configurou a modificação maisevidente. Criou-se uma Secretaria (SEGETES) com doisdepartamentos que unificaram a gestão do trabalho e daeducação em saúde, esta última organizada no DEGES(Departamento de Gestão em Educação e Saúde), em suastrês dimensões que envolvem o Ministério da Saúde: educaçãopopular, educação técnica e educação superior, além de pensarações estratégicas que contemplam as múltiplas face daeducação.

Em fevereiro de 2004 foi publicada a portariaministerial (BRASIL, 2004a) adotando a Política de EducaçãoPermanente com organização de Pólos em todos os estadosbrasileiros para modificar a formação de pessoas na área desaúde.

Atualmente, já mais de cem Pólos, que cobrem todoo Brasil (não há nenhum município que esteja fora) e se trataagora de viabilizar a mudança na formação com toda a forçanecessária. Recursos existem, mas se torna necessário mudaras práticas, as quais se apresentam com as seguintescaracterísticas:

a) clientelistas – por exemplo, vendem-se projetosno interesse uni-institucional do Ministério (que é ainstância que tem recursos);

b) academicistas – especialmente as universidadesacreditam que são “donas da verdade” em relação àsnecessidades de formação;

c) antidemocráticas – os gestores definem asnecessidades sem ouvir as universidades, o controlesocial ou os estudantes dos centros de ensino;

d) não integradoras em todas as instâncias – não seleva em consideração a diversidade. Nasuniversidades, cada curso ou cada departamento aindapensa isoladamente, via de regra;

e) focais – formulam-se Programas sem articulaçãocom outros, etc.

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A criação dos Pólos de Educação Permanente para oSUS (BRASIL, 2004b) gerou uma nova cultura na busca: deconsensos de projetos pactuados com múltiplos interesses;de priorizar a escuta da população e dos serviços; dedemocratizar decisões; de projetos interdisciplinares einterinstitucionais; do entendimento que as reflexões eoperacionalização de soluções a partir das necessidades dapopulação e dos serviços constituem um processo permanente.Para ampliar o caminho nessa direção, criou-se o Humaniza-SUS, o VER-SUS e o Aprender-SUS. O SUS passou a serrealmente prioridade do governo federal. Desses projetos e,para concluir, vou enfocar um pouco o Aprender-SUS.

Na última semana de agosto de 2004 (BRASIL, 2004c),apresentou-se para aproximadamente 1000 pessoas vindas dosPólos de todo Brasil a Política conjunta do Ministério da Saúdee Ministério da Educação, na direção de uma mudança daformação profissional nas universidades. Foi realizada umaoficina, onde, a partir das reflexões feitas em conjunto MS –LAPPIS (Laboratório de Pesquisa sobre Integralidade em Saúdeque envolve instituições como a ENSP, UFRJ, UFF e,centralizados pelo Instituto de Medicina Social da UERJ) eMEC, deflagrou-se o processo de utilização da Integralidadecomo eixo para as mudanças curriculares em todo o Brasil. Apolissemia do termo Integralidade, entendendo-a como apremissa menos trabalhada do SUS até então, parecia,justamente, atender as necessidades urgentes de educaçãosuperior no Brasil. Os quatorze cursos da área da saúdedeveriam, a partir dali, se organizar, respeitar as realidadeslocais, na busca de “projetos intercursos” que contemplassemessa nova direção.

Esse novo/velho eixo – Integralidade – tem, entreseus sentidos, o de promover saúde, prevenir e atenderdoenças, simultaneamente e, também, comporta oentendimento de que o corpo não é um somatório defragmentos anatômicos. Igualmente, permite perceber que:saúde é, ao mesmo tempo, social, biológica e psicológica; queas necessidades da população vão além do que o que chamamosde necessidades epidemiológicas; que só podemos produzi-lapensando interdisciplinarmente (isso não se dá como umaprofissão “comandando” as ações de outras) e

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intersetorialmente, se estivermos abertos para a pluralidade– reconhecer que o “outro” tem verdades diferentes dasnossas.

Deflagraram-se, portanto, em 2004, esses doisprocessos integrados: o dos Pólos de Educação Permanente eo Aprender SUS, como um redesenho que se pudesse“desentortar” o estilo de pensar do setor saúde, aindahegemônico no Brasil. A esperança de manutenção destaPolítica de Saúde pode nos fazer imaginar que dentro de algunsanos tenhamos o SUS com o qual tanto sonhamos, como umacoisa concreta, com profissionais comprometidos.

Há que se resgatar o controle social, demonstrandoque a organização popular, de fato, tem poder. E isso só se fazempoderando as organizações.

Há que se preparar gestores comprometidos não sócom a direção do SUS, mas também com a formação de novasmentalidades.

E torna-se necessário resolver os “nós” da AtençãoSecundária, ou seja, parece que recém começamos. É precisoentrar na luta. E por isso entendo que este artigo foi escritomuito menos para que se saibam siglas e cronologias, maspara que se conheça o processo de luta que aconteceu econtinua sendo necessária, para empreender e conquistarnovos aliados para esta luta. Bem-vindos!

6. Post Scriptum... Após 2004

No espaço de tempo de espera para a edição destelivro, novas mudanças ocorreram no setor saúde. Houve, noinício de 2005, nova troca de ministro e troca da equipe doDEGES. O novo grupo que assumiu também apresenta umcompromisso histórico com o Movimento Sanitário, tanto quepassou a enfatizar novos aspectos para a execução de umaPolítica de Saúde que aponta para a reestruturação dos“Recursos Humanos” na área. As ênfases passaram a ser,especialmente, de ampliação das propostas de mudanças nasuniversidades (para além dos cursos de medicina), sobretudo,com a criação do PRÓ-SAÚDE, programa que envolve tambémodontologia e enfermagem. Ao todo, foram mais de 90 cursosde graduação no território nacional que tiveram seus projetosaprovados, inclusive com financiamento do Ministério da Saúde,

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objetivando formar os quadros necessários para o SUS. Alémdisso, foi ampliada a articulação com o MEC, possibilitando alegalização e o reconhecimento formal das ResidênciasMultiprofissionais em Saúde da Família. Há uma proposta clarade expansão destas, tanto quanto da Residência em Medicinade Família e Comunidade, preferencialmente trabalhando deforma integrada, mas, preservando as especificidades deatuação de cada profissão. Ou seja, continua sendo umprocesso em permanente evolução e existe a possibilidade dequando este livro for efetivamente publicado, tenhamos novasmodificações. O embate continua sendo contra as Políticasde “cesta básica” do Banco Mundial e também contra o velho“inimigo”, o Complexo Médico-Industrial.

7. Referências

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