políticas governamentais e redistributivismo no brasil (2001 a 2011)
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ANDERSON CRISTOPHER DOS SANTOS
POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS E
REDISTRIBUTIVISMO NO BRASIL (2001 A 2011)
NATAL/RN
2015
2
ANDERSON CRISTOPHER DOS SANTOS
POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS E
REDISTRIBUTIVISMO NO BRASIL (2001 – 2011)
Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.
Orientador: Prof. Dr. José Willington
Germano
NATAL/RN
2015
3
ANDERSON CRISTOPHER DOS SANTOS
POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS E REDISTRIBUTIVISMO: O
CRESCIMENTO DA FAIXA C NO BRASIL (2001 – 2011)
Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.
Orientador: Prof. Dr. José Willington
Germano
Aprovado em _______ de 2015
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Ana Maria Morais – UERN (Membro titular externo)
Profa. Dra. Lenina Lopes Soares Silva – IFRN (Membro titular externo)
Prof. Dr. José Antonio Spinelli Lindoso – UFRN (Membro titular interno)
Profa. Dra. Maria do Livramento Miranda Clementino – UFRN (Membro titular interno)
4
Seção de Informação e Referência
Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede
Santos, Anderson Cristopher dos.
Políticas governamentais e redistributivismo no Brasil (2001 – 2011)
/ Anderson Cristopher dos Santos. – Natal, RN, 2015.
141 f.
Orientador: José Willington Germano. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências humanas, Letras e Arte – Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais.
1. Políticas econômicas – Tese. 2. Crescimento econômico – Tese. 3. Desenvolvimento econômico – Tese. 4. Classe média – Tese. I. Germano, José Willington. II.Título.
RN/UF/BCZM CDU 3:338
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ÍNDICE DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Faixa C em duas décadas (% da população)..................................... 33
Gráfico 2 – Coeficiente de Gini no Brasil e sua tendência (1960-2015) ............. 34
Gráfico 3 – Preço das commodities - índice geral (1994 a 2011) ........................ 39
Gráfico 4 – Crédito à pessoa física nos anos 2000 (% do PIB) ........................... 40
Gráfico 5 – Gasto social Federal/PIB (%) ................................................................ 69
Gráfico 6 – Taxa de crescimento do PIB (décadas de 1950 a 2000), em % ..... 71
Gráfico 7 – Salário-mínimo entre 1985 e 1995 (a valores de 2011) ................... 75
Gráfico 8 – Renda per capita entre 1980 e 1991 a valores de 2003................... 76
Gráfico 9 – Crescimento do desemprego entre 1994 e 2002 (Regiões
Metropolitanas), em % ................................................................................................ 85
Gráfico 10 – Saldo comercial no governo FHC (em bilhões de dólares) ........... 89
Gráfico 11 – Salário-mínimo entre 1985 e 2005, a valores de 2011 ................... 91
Gráfico 12 – Renda per capita brasileira entre 1991 e 2002 e corte para o critério
de país de renda alta (segundo Banco Mundial) .................................................... 93
Gráfico 13 – Renda per capita brasileira entre 2002 e 2011 e corte para o critério
de país de renda alta (segundo banco mundial) .................................................... 94
Gráfico 14 – Desemprego em regiões metropolitanas entre 1992 e 2010......... 95
Gráfico 15 – Carga Tributária brasileira em % do PIB (1993-2012) .................... 96
Gráfico 16 – Aumento da Carga Tributária por nível de governo (1986-2011) . 97
Gráfico 17 – Déficit nominal sem desvalorização cambial (1995-2013) ............. 98
Gráfico 18 – Taxa de juros SELIC (1996-2015) ..................................................... 99
Gráfico 19 – Queda da Razão de dependência (total, juvenil e idosos), no período
1970-2010 ................................................................................................................... 119
Gráfico 20 – Queda das desigualdades de renda medidas pelo Coeficiente de
Gini, Total e Rural (1992-2009) ............................................................................... 126
Gráfico 21 - Crescimento médio da renda familiar, entre 2001 e 2009 ............ 128
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ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1 – Pirâmides etárias (1980 a 2010) .......................................................... 115
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ÍNDICE DE TABELAS
Tabela 1 – Faixa C na década de 2000 ................................................................... 32
Tabela 2 – Faixa C na década de 1990 ................................................................... 32
Tabela 3 – Apreciação do salário-mínimo (1994-2011) ........................................ 36
Tabela 4 – Escolaridade média da população ocupada ....................................... 41
Tabela 5 – Faixas por renda familiar, segundo CPS/FGV, atualizado em 2011 52
Tabela 6 – Crescimento do PIB no Brasil, do consumo das famílias e dos
investimentos (1995-2011) em % ............................................................................. 72
Tabela 7 – Crescimento do PIB no mundo, economias avançadas, emergentes
e do Brasil (1981-2010) .............................................................................................. 73
Tabela 8 – Horas trabalhadas necessárias para comprar uma cesta básica em
algumas capitais .......................................................................................................... 91
Tabela 9 – Razão de Dependência (total, de jovens e idosos), 2004-13 ......... 114
Tabela 10 – Razão de dependência (total, juvenil e idosos) por região do Brasil,
zonas urbanas e rurais ............................................................................................. 117
Tabela 11 – Redução da Razão de dependência Total por região do Brasil .. 117
Tabela 12 – Componentes de uma família, de acordo com a escolaridade da
pessoa de referência ................................................................................................. 120
Tabela 13 – Despesa total de uma família, de acordo com a escolaridade da
pessoa de referência ................................................................................................. 121
Tabela 14 – Despesa de uma família com alimentação total e per capita, de
acordo com a escolaridade da pessoa de referência .......................................... 121
Tabela 15 – Distribuição das despesas de consumo das famílias segundo a
classe de renda (2008-2009) ................................................................................... 122
Tabela 16 – Distribuição da população em idade ativa e da população ocupada
por forma de inserção no mercado de trabalho e classe no Brasil (2001 versus
2009) ............................................................................................................................ 122
Tabela 17 – Distribuição da população por características pessoais e classe de
renda (2001 versus 2009) ........................................................................................ 124
Tabela 18 – Distribuição espacial da população por classe de renda (2001 versus
2009) ............................................................................................................................ 124
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AGRADECIMENTOS
Essa tese somente foi possível graças ao prestimoso auxílio e ao amparo de
algumas pessoas. Esse espaço é dedicado ao agradecimento a amigos, colegas
e mestres, sem os quais não seria possível seguir adiante na presente pesquisa
ou na vida acadêmica.
Sem delongas, inicialmente agradeço ao meu orientador, Professor Dr. José
Willington Germano, homem generoso, profissional dedicado, respeitado e
reconhecido no meio acadêmico.
Agradeço, ainda, às professoras doutoras Lenina Lopes Soares Silva e Adriana
Aparecida de Sousa, amigas para todas as horas, que sempre dispensaram a
mim especial carinho e atenção, não apenas no momento de elaboração dessa
tese, mas em boa parte da minha trajetória acadêmica.
Não poderia deixar de agradecer aos professores doutores José Antonio Spinelli
e Edmilson Lopes Junior, orientadores em outros momentos.
Meus agradecimentos se estendem aos diligentes secretários do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais, Otanio Revoredo Costa e Jefferson
Gustavo Lopes, à secretária do Departamento de Políticas Públicas, Daniele
Gomes da Silva Soares, à Sara Raquel Fernandes Queiroz de Medeiros e a
Herbert Charles Oliveira da Costa.
Finalmente, agradeço às colegas do Departamento de Políticas Públicas (DPP),
Professora Doutora Maria do Livramento Miranda Clementino, Professora
Doutora Lindijane de Sousa Bento Almeida, atual chefe do DPP, e Professora
Doutora Soraia Vidal.
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RESUMO
Analisamos o crescimento da classe trabalhadora na sociedade brasileira
durante a década de 2000, entre 2001 e 2011, identificados pelo Critério Brasil
de Classificação Econômica como Faixa C. A temática tem sido terreno fértil para
uma série de controvérsias, principalmente por causa de questionamentos
quanto às suas características, dado o fato de que este é um grupo socialmente
heterogêneo, reunido por uma estratificação econômica. Analisaremos o
crescimento desta Faixa C através de dados oficiais pertinentes, como o
IPEADATA e a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD).
Mobilizaremos autores e instituições favoráveis à classificação do Critério Brasil,
e as instituições e os autores críticos ao mesmo. Defendemos a tese de que o
Brasil experimentou uma ascensão horizontal fruto de um processo de
incrementalismo social, não a ponto de serem consideradas classes médias,
mas classes trabalhadoras. Além disso, procuraremos demonstrar que o
processo de inserção social pode ser definido como inserção dependente, em
que se faz necessário novas políticas públicas no sentido de garantir o acesso a
serviços públicos por gerações e consolidar um processo de inclusão social.
Palavras-chave: classe média; faixa C; classe C; crescimento econômico;
desenvolvimento econômico.
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SUMMARY
This thesis analyzed the growth of the working class in Brazilian society during
the 2000s, identified by the Brazil Economic Classification Criteria as “Classe C”
(social class C). The thematic range has been fertile ground for a number of
disputes, mainly because of questions as their characteristics, given the fact that
this is a socially heterogeneous group, assembled by an economic stratification.
We analyze the growth of this “classe C” through relevant official data, as
IPEADATA and the National Survey by Household Sampling (PNAD). Mobilize
authors and institutions favorable to the classification Criterion Brazil, and
institutions and critical at the same authors. We defend the thesis that Brazil
experienced a social mobility by a process of social incrementalism. Also, we try
to show that the social insertion process can be defined as insertion dependent,
where it is necessary new public policies to ensure access to public services for
generations and consolidate a process of social inclusion.
Keywords: middle class; Classe C; economic growth; economic development
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RESUMEN
Hemos analizado el crecimiento de la clase obrera en la sociedad brasileña
durante la década de 2000, entre 2001 y 2011, identificado por los Criterios de
Clasificación Económica Brasil como “Clase C”. La gama temática ha sido
terreno fértil para una serie de disputas, principalmente debido a cuestiones
como sus características, dado el hecho de que este es un grupo socialmente
heterogéneo, montado por una estratificación económica. Analizamos el
crecimiento de este rango C a través de los datos oficiales pertinentes, como
IPEADATA y la Encuesta Nacional de Hogares por Muestreo (PNAD). Movilizar
a los autores e instituciones favorables a los criterios de clasificación de Brasil, y
las instituciones y crítico en los mismos autores. Defendemos la tesis de que
Brasil experimentó una mobilidade social horizontal de un proceso de
incrementalismo social, no a punto de ser considerada de clase media, pero los
consumidores clases trabajadoras. Además, tratamos de demostrar que el
proceso de inserción social se puede definir como la inserción dependiente,
donde es nuevas políticas públicas necesarias para asegurar el acceso a los
servicios públicos para las generaciones y consolidar un proceso de inclusión
social.
Palabras clave: clase media; Clase C; crecimiento económico; desarrollo
economico.
12
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS .................................................................................................... 8
RESUMO 9
SUMMARY 10
RESUMEN 11
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 13
O crescimento da “faixa c” no Brasil: 2001-2011 ................................................... 30
Políticas econômicas e políticas de renda ............................................................... 61
Incrementalismo social, transformações sociais e redistributivismo ................. 102
Considerações finais ................................................................................................. 131
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INTRODUÇÃO
A tese analisa o crescimento da classe trabalhadora (denominada em
alguns estudos como nova classe média brasileira) na primeira década do século
XXI, especialmente durante o governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva
(2003-2010).
Compreendemos que a ampliação da camada consumidora de
trabalhadores é um novo momento social e econômico, proveniente de
mudanças estruturais, como a maior participação das mulheres no mercado de
trabalho, a diminuição do tamanho das famílias e o aumento da escolaridade,
combinadas a políticas governamentais que asseguraram crescimento do
crédito, dos empregos e a valorização salarial.
No ano de 2001, a classe trabalhadora consumidora identificada como
Faixa C, foco da nossa tese, representava 38% da população, crescendo
consideravelmente durante a década, até atingir o patamar de 55%, de acordo
com dados do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas
(CPS/FGV).
A busca por entender a ascensão social no contexto brasileiro, um país
em desenvolvimento de dimensões continentais, com histórico de concentração
de renda e de violenta marginalização social de grande parcela da população,
justifica o nosso estudo.
Nosso objetivo é o de analisar, não apenas como, mas por que a
expansão da classe trabalhadora consumidora se deu apenas na segunda
década de implementação do Plano Real, que data do ano de 1994. Além disso,
ao buscar compreender, discutir quanto à sustentação desse processo nas
décadas seguintes.
No período assinalado como o nosso recorte (2001-2010), ocorreu um
processo de recuperação dos salários em relação ao Produto Interno Bruto (PIB),
retornando aos níveis anteriores ao Plano Real.
Nos primeiros dez anos do Século XXI, o poder de compra do salário-
mínimo retomou os valores dos anos 1980, guiado por um princípio de
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recomposição salarial, após uma década neoliberal (os anos 1990), em que
ocorre uma reorientação da política econômica brasileira no sentido de se
diminuir a participação do Estado na economia, no diapasão de uma abertura
comercial, favorável à ampliação das importações de produtos e serviços, e de
medidas refratárias ao emprego e à renda.
No período do nosso recorte, observa-se, sobretudo, uma ampliação da
participação dos salários no PIB. Segundo Pochmann (2012), entre 1994 e 2004,
as rendas de propriedade (como juros, aluguéis e outros) aumentaram, ao passo
em que os salários perderam participação no PIB. Entre 2004 e 2010, esta
situação se inverteu.
No último período apontado acima (2004-2010), os salários recuperaram
a sua participação na riqueza nacional, assim como ocorreu a primeira redução
documentada e significativa de desigualdade econômica em toda a história
brasileira (NÉRI, 2008; PNUD, 2010; POCHMANN, 2012). A economia brasileira
sempre foi marcada pelo sentido oposto, especular, de concentração crescente
da renda nacional.
Estes dois elementos, aumento de renda e redução das desigualdades,
no período em análise (2001-2011), constituíram um momento singular da nossa
modernização conservadora, com uma intensa mobilidade social sem mudanças
drásticas na posse dos meios de produção, na qualificação profissional, na
estrutura produtiva ou reestruturação das legislações trabalhistas.
Consideramos esse um argumento importante, que dá sustentação à tese aqui
construída, a ser exposta adiante.
Procuramos responder à seguinte pergunta de partida: como se deu a
ascensão da classe trabalhadora consumidora no final da primeira década de
2000?
Uma série de indicadores econômicos passaram a apontar, no final da
primeira década deste século, que milhões de brasileiros deixaram a miséria, a
pobreza e ingressaram no mercado consumidor. A nova realidade agitou o meio
acadêmico, especialmente por permitir uma nova seara de problematização em
relação à concentração de renda e à consolidação da cidadania no país.
15
Esse quadro está associado às mudanças demográficas, expansão dos
gastos sociais, serviços públicos e políticas públicas que beneficiaram as franjas
da sociedade brasileira. Moradores das periferias e pequenos municípios foram
os maiores beneficiários do processo.
Vale dizer que esse quadro somente foi possível à medida em que o
Estado brasileiro passa a reconhecer essas massas excluídas e passou a
fortalecer as instituições democráticas, alterando em alguma medida a forma
como intervém na economia. A atuação estatal construiu um mercado
consumidor de massa, seja por políticas sociais ou econômicas (como o
aumento dos salários, a formalização e a expansão do crédito).
O momento histórico definido em nosso recorte de pesquisa (2001-2011)
combina uma substantiva ampliação do mercado interno, redução das
desigualdades, estabilidade da economia e consolidação das instituições
democráticas – estes dois últimos elementos, remontando à década de 1990.
Outros países de industrialização tardia vivenciam o aumento de seus
mercados internos e dos seus setores médios de rendimento, como a Índia, a
China, a África do Sul e a Índia.
Para o International Policy Centre for Inclusive Growt, vinculado à
Organização das Nações Unidas (2013), esses processos impactam nas
agendas governamentais e de pesquisas, não apenas no sentido de se
compreender como tem se dado, mas, sobretudo, como manter, nos próximos
anos, o crescimento inclusivo.
Rapid growth in both the economies, and the middle classes, of
Brazil, Russia, India, China and South Africa (the BRICS nations)
over the past decade has duly captured the attention of
policymakers, academics and development practitioners and
encouraged them to ask questions about the potential role of these
growing middle classes in promoting democracy, strengthening
institutions, and facilitating more inclusive forms of growth (p. 03,
grifos nossos).
A expansão, nos países em desenvolvimento, do que o órgão das Nações
Unidas denomina como classe média, tem centralidade nas discussões atuais
sobre o desenvolvimento e a redução da pobreza, não sendo possível ignorar
essa questão.
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this seemingly peripheral subject has become more and more
central to discussions of development and poverty reduction as the
size and influence of such middle classes of developing countries
in particular have become difficult to ignore (idem).
No caso brasileiro, chama a atenção a combinação citada anteriormente,
tributária do mais longevo período democrático no Brasil e devedora do processo
de estabilização econômica e ordenamento fiscal.
Dados do Banco Mundial demonstram a mudança na distribuição de
classes econômicas e sociais latino-americanas durante a primeira década de
2000, sendo importante destacar a ampliação das classes médias, de 103 para
152 milhões de pessoas e a redução da pobreza em 50 milhões de pessoas
(2013).
No mesmo período, verifica-se a ascensão de governos críticos ao
modelo econômico dominante na região durante a década de 1990,
fundamentado no Consenso de Washington, como o de Hugo Chávez
(Venezuela, de 1999 a 2013), Evo Morales (Bolívia, iniciado em 2006), Néstor e
Cristina Kirchner (Argentina, iniciado em 2007), Daniel Ortega (Nicarágua,
iniciado em 2007) e Rafael Correa (Equador, iniciado em 2007).
Nessa pesquisa, não nos aprofundamos na dimensão continental, por
dois motivos: a diferença metodológica utilizada para avaliar os países da região
pelos organismos internacionais e os critérios brasileiros de classificação
econômica, bem como pela necessidade de se compreender melhor o processo
de estabilização econômica na década de 1990, no Brasil, sem o qual o aumento
das classes trabalhadoras consumidoras não seria possível.
Quando fazemos referência à economia, queremos salientar a abordagem
estatal na economia, a sua intervenção, somente possível à medida em que os
excluídos são reconhecidos como alvo de políticas públicas que visam a
ampliação da cidadania. Os grupos reconhecidos garantem certo tipo de
aderência à competição eleitoral, passando a demandar uma agenda ampliadora
da cidadania e galvanizadora da ascensão de renda.
Podemos dizer que a sociedade brasileira aperfeiçoa o funcionamento de
sua poliarquia (DAHL, 2005) com uma forma de inserção social provavelmente
típica de nações em desenvolvimento, denominada nessa tese como inserção
dependente.
17
Essa inserção seria, conforme concebemos, caracterizada por ser parcial,
em que mais ações do Estado são necessárias no sentido de se assegurar a
mudança de patamar de parcela da população, anteriormente excluída por um
processo imbricado, multidimensional e complexo, que resultou historicamente
em subcidadania de grandes contingentes populacionais (sobre subcidadania,
cf. SOUZA, 2003).
Na compreensão dahlsiana, as poliarquias são democracias
representativas modernas, de larga escala, com amplo leque de clivagens
sociais e liberdades individuais, transpassadas por conflitos, mas capazes de
promover a competição eleitoral. Podemos entender o processo de ampliação
da inserção social como o de efetivação de direitos individuais, produto de
processos conflituosos entre grupos de interesses distintos.
Nesse caso, quando afirmamos que haveria um aperfeiçoamento do
funcionamento das instituições poliarquicas, queremos dizer que há maior
responsividade do Estado em relação às camadas sociais anteriormente
desprezadas, potencialmente permitindo-as atuar, no futuro, de maneira
autônoma.
O número amplo de grupos sociais relativamente autônomos, tanto em
relação a si como ao governo, remetem a um pluralismo político e de
organização que caracterizam uma institucionalidade poliárquica. A aderência
de contingentes humanos a esse quadro depende do grau de inserção social, à
medida em que as poliarquias devem estender a cidadania a número alto de
adultos e esses devem ser capazes e ter a oportunidade de remover, pelo voto,
altos funcionários de um governo, escolhidos anteriormente, também, por
sufrágio.
A inserção dependente decorre de políticas sociais incrementais. O
incrementalismo, em democracias liberais, é decorrente de políticas públicas
derivadas de um jogo de coordenação complexo entre distintos grupos de
interesses, mas somente possível quando grandes massas humanas estão
eleitoralmente empoderadas e quando os grupos são reconhecidos em suas
clivagens. No caso brasileiro, esse contexto se soma ao aperfeiçoamento das
instituições nos anos 1990 e 2000.
Tal processo de reconhecimento decorre da expansão dos direitos sociais
nos anos 1980, associado ao reordenamento fiscal dos anos 1990 e à
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recomposição salarial dos anos 2000, sem que ocorresse alguma ruptura no
caminho.
A ascensão de cerca de trinta milhões de brasileiros para o que se
chamou como nova classe média brasileira não é apenas notável por si própria,
mas principalmente pelo conjunto destacado anteriormente, englobando
democracia, estabilidade econômica, aumento de renda e redução de
desigualdades.
O componente político e a interação com os países centrais foram
importantes para a concepção de uma agenda pública cujos resultados
permitiram o crescimento da classe trabalhadora consumidora em um contexto
de estabilidade e democracia.
A denominação nova classe média não é, em absoluto, aceita por autores
que consideram as classes sociais como fundamentais para a compreensão e
explicação das dinâmicas capitalistas de exploração do trabalho e posse dos
meios de produção (ver POCHMAN, 2014 e SOUZA, 2012).
A nossa investigação não tem compromisso com a confirmação ou
mesmo com a refutação do uso desta categoria nova classe média, mas
compreender quais são as suas características e, no limite, identificar quais
seriam as linhas de demarcação entre as classes no contexto de um país em
desenvolvimento, como é o caso do Brasil.
Os indicadores que nos permitem identificar a entrada de milhões de
pessoas ao mercado consumidor e também a queda da desigualdade
econômica, utilizados nessa tese como importantes fontes de pesquisa, são a
Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), a Pesquisa Nacional por Amostragem
de Domicílios (PNAD), ambos medidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), além dos dados relativos ao mercado de trabalho, como o
Índice de Desemprego e de Massa salarial, também medidos pelo IBGE.
Estes números explicam a queda do chamado Índice de Gini, capaz de
medir a distribuição da renda nacional entre os estratos econômicos, com dados
coletados pelo IBGE para o Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento
(PNUD).
De acordo com dados do PNUD, a desigualdade de renda medida pelo
Índice de Gini atingiu o menor nível da série histórica brasileira no ano de 2009,
permanecendo descendente em anos seguintes, rompendo com uma trajetória
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de estabilidade apresentada nos anos 1990 e contrariando o aumento das
disparidades de renda observados nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
Segundo Soares (2010, pag. 35), a partir de 2001 “a desigualdade
começou a cair em média 0,7 ponto do coeficiente de Gini (x100) ao ano”, com
uma queda que segue um “ritmo de modo quase linear até 2009, ano no qual o
Brasil voltou aos níveis de desigualdade anteriores ao Censo de 1970”.
Soares esclarece que
quanto mais regressiva (pró-rico) é uma renda, mais
próximo de um (+1) é seu coeficiente de
concentração; quanto mais progressiva (pró-pobre) é
uma renda, mais próximo de menos um (-1) é o
coeficiente a ela associado. Se todos na população
recebem o mesmo valor de uma dada fonte de renda,
seu coeficiente de concentração é zero (pag 36, grifos
nossos).
Entre 2001 e 2011, o Coeficiente de Gini declinou de 0,594 para 0,527.
Uma parcela da queda das desigualdades de renda pode ser atribuída a
programas de transferência de renda, mas, sobretudo é a mudança no panorama
do trabalho que se observa a maior contribuição ao patamar mais baixo de
concentração de renda:
A totalidade das transferências públicas foi responsável
por aproximadamente um terço da queda de pouco mais
que 5,4 pontos de Gini (x100) observados entre 2001 e
2009. As rendas menores da PNAD, tais como aluguéis e
transferências de outros domicílios, explicam outros 8% da
queda, o que deixa 63% a cargo de um mercado de
trabalho mais favorável aos mais pobres (SOARES, 2010,
pag 37, grifos nossos).
A mudança acima descrita esteve ligada à melhoria do poder de compra
dos salários, dentre outros fatores, evidenciados nessa tese. Para Soares, “dois
terços da queda no coeficiente de Gini advêm do mercado de trabalho”, com
importante participação do mínimo, sendo que “quase um quarto se deve ao
salário mínimo [e] três quartos – ou seja, metade da redução da desigualdade –
se devem a fatores no mercado de trabalho que não são o piso salarial” (2010,
pag. 40).
20
A redução do coeficiente de Gini é o aspecto mais visível de uma mudança
multidimensional que envolve a emancipação da mulher, a redução do tamanho
das famílias, políticas e gastos sociais crescentes e modificações no panorama
econômico, mais favorável ao trabalho do que fora na década de 1990
(POCHMANN, 2012).
Outros indicadores nos auxiliam a compreender esta mudança, como os
dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), do
Ministério do Trabalho, bem como o monitoramento de programas sociais como
o Bolsa Família, por parte do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS).
Algumas políticas sociais foram implementadas no governo do ex-
presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), mas também são importantes
outras modalidades anteriormente existentes de transferência de renda, como
os repasses previdenciários e o seguro-desemprego.
Nossa pesquisa está alicerçada sobre o crescimento da massa
trabalhadora consumidora, conhecida em alguns estudos como nova classe
média brasileira, medida a partir do Critério Brasil de Classificação Econômica,
utilizado desde os anos 2000. Nesse indicador, a massa trabalhadora
consumidora é denominada como Faixa C, a faixa intermediária de um total de
cinco, que vai da A (ricos) até a E (extrema pobreza).
O Critério Brasil passa por constantes processos de revisão, consistindo
em um sistema de pontuações para “discriminar grandes grupos de acordo com
sua capacidade de consumo de produtos e serviços acessíveis a uma parte
significativa da população”, como “a posse e quantidade de bens duráveis no
domicílio, a quantidade de banheiros, a existência de empregada mensalista no
domicílio e o grau de instrução do chefe de família” (PAIVA et al, 2013, pag. 06).
Além do Critério Brasil, mobilizaremos os estudos do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), também estruturado em faixas de renda.
Alguns estudos foram publicados para analisar o crescimento dos setores
médios, principalmente após o ano de 2008, quando o economista do IPEA,
Marcelo Néri, divulga a sua pesquisa, intitulada Nova Classe Média: o lado
brilhante dos pobres, apontando um expressivo aumento da Faixa C.
Além de Néri, destacamos os trabalhos de Bolívar Lamounier e Amaury
de Souza (A Classe Média Brasileira, 2009), Márcio Pochmann (Nova Classe
Média? – o trabalho na base da pirâmide social brasileira, 2012), Jessé Souza
21
(Os batalhadores brasileiros – nova classe média ou nova classe trabalhadora,
2010) e André Singer (Os sentidos do Lulismo, 2012).
Outras publicações do IPEA, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da
Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), do Governo Federal, também serão
mobilizadas para esclarecer o fenômeno.
Identificamos, ao longo de nossa investigação bibliográfica,
especialmente nas obras citadas, um conjunto de argumentos refutando a
interpretação de que ocorreu uma mobilidade vertical de classes, apesar do
componente econômico.
Muitos autores destacam a importância de outros elementos definidores
de uma classe social, inalcançáveis pelos indicadores de viés economicista,
como os ligados à exploração capitalista e à cultura.
Nas próximas páginas, esclareceremos qual é o alcance dos dados
estatísticos selecionados, contextualizando-os e os justificando. Ao mesmo
tempo, faremos uma exposição, em linhas gerais, sobre a expansão da Faixa C
na década passada.
Em seguida, evidenciaremos qual é a nossa hipótese e a estrutura da
tese.
Objetivamos, com esta pesquisa, investigar o crescimento da Faixa C e o
seu acesso a serviços públicos, buscando compreender a sua inserção na
sociedade.
A. CAMINHOS METODOLÓGICOS
Uma pesquisa, quando em andamento, pode adquirir contornos
inesperados à medida em que se toma conhecimento sobre os dados e as
informações pertinentes e à necessidade de se fazer uma leitura com coerência
sobre a realidade social.
Inicialmente, nosso interesse era o de investigar o quão profunda seria a
ascensão social na década de 2000 que resultou no crescimento da Faixa C, de
trabalhadores consumidores. De fato, outras indagações surgiram e fizeram com
que o trabalho se mostrasse próximo ao de um mar bravio, sobre o qual
deveríamos navegar em busca de um porto.
22
O entendimento do fenômeno no processo político, econômico e social
brasileiro é, assim, mais profundo do que à primeira vista pensávamos. Tal
ascensão da Faixa C ocorre sem que se encontre um modelo alternativo de
desenvolvimento, capaz de reavivar o surto de crescimento econômico latino-
americano experimentado até os anos 1970 e de manter vigorosa a participação
da indústria no Produto Interno Bruto (PIB).
Existem duas formas de se ver a questão. A primeira, observa como
negativa a ausência de um modelo alternativo e, assim, não há nenhum pacto a
ser mediado por determinada liderança política entre as classes sociais, visando
o desenvolvimento. A segunda, considera positivo o processo incremental de
reconhecimento de direitos, como um atestado do fortalecimento da democracia.
Talvez ambas as visões estejam corretas. Tanto é negativa a falta de
reflexão política sobre o modelo de desenvolvimento, como é positivo o fato de
que ocorre uma redução das desigualdades em momento de paz e normalidade
democrática, por assim dizer.
Metodologicamente falando, foi preciso buscar meios para evidenciar
essa contradição da realidade, inescapavelmente interdisciplinares, englobando
não apenas a sociologia mas a economia e a demografia.
Adotamos uma cesta de indicadores discricionários, ou objetivos, sobre o
modo de vida da população brasileira, hábitos de consumo, tipo de trabalho
(manual ou intelectual), formação escolar, dentre outros.
Indicadores normativos1 não fazem parte de nossa coleta, a não ser
através de uma literatura especializada que eventualmente tenha lançado mão
destes.
Segundo Babbie (2003),
Um indicador social é uma medida em geral quantitativa,
dotada de significado social substantivo, usado para
substituir, quantificar ou operacionalizar um conceito social
abstrato, de interesse teórico (para pesquisa acadêmica)
ou programático (para formulação de políticas). É um
recurso metodológico, empiricamente referido, que
informa algo sobre um aspecto da realidade social ou
sobre mudanças que estão se processando na mesma.
1 Indicadores normativos, na compreensão de Babbie (2003), refletem juízos de valor ou critérios
normativos.
23
Consideramos importante mensurar este aumento da faixa C, inclusive
identificando outros importantes itens, como o acesso a bens duráveis e serviços
públicos, como a educação, seja por meio de ações estatais ou por iniciativa
privada. A análise destes dados, principalmente a Pesquisa de Orçamento
Familiar (POF), nos parece ser fundamental no sentido de apreender como estes
grupos se inserem socialmente.
Evidentemente, a utilização de dados estatísticos não esgota a
necessidade de se contextualizar historicamente o nosso recorte.
Neste sentido, é preciso compreender a trajetória de políticas públicas
voltadas para o enfrentamento da pobreza e da miséria, sem descurar das
políticas econômicas.
É fundamental, na escolha de indicadores para o estudo da mobilidade
social, que se preze pela série histórica das estatísticas, permitindo-nos observar
histórica e processualmente.
Os principais indicadores e/ou fontes citados constam na listagem abaixo:
1. Pesquisa Orçamentária Familiar (POF): pesquisa domiciliar por
amostragem, elaborada pelo IBGE, que investiga informações sobre
características de domicílios, famílias, moradores e principalmente seus
respectivos orçamentos, isto é, suas despesas e recebimentos;
2. Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD): investiga
diversas características socioeconômicas, umas de caráter permanente
nas pesquisas, como as características gerais da população, educação,
trabalho, rendimento e habitação, e outras com periodicidade variável,
como as características sobre migração, fecundidade, nupcialidade,
saúde, nutrição e outros temas. Coletada desde 1967 pelo IBGE;
3. Pesquisa Mensal de Emprego (PME): dados obtidos de uma amostra
probabilística de, aproximadamente, 38.500 domicílios situados nas
Regiões Metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de
Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Também do IBGE;
4. Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED): dados
captados pelo Ministério do Trabalho, captado desde 1996;
24
5. Índice de Gini: Este indicador varia entre zero e um, sendo zero a
ausência de concentração de renda e um a concentração total. É baseado
na chamada Curva de Lorenz, de autoria do economista Max Lorenz e
divulgada em 1905. Os dados são coletados, no Brasil, desde 1960;
Estes dados permitem observar o acesso das famílias aos bens de
consumo e a serviços públicos, conforme assinalamos, embora não seja
possível abordar outros elementos sociologicamente importantes para
categorizar uma classe média, como o dispositivo moral, transmitido pelas
famílias, que socializa o indivíduo a um habitus.
Para Bourdieu, o “habitus é um operador, uma matriz de percepção e não
uma identidade ou uma subjetividade fixa” (Bourdieu, 2002, p. 83), sendo um
sistema de disposições aberto, permanentemente afrontado a experiências
novas e permanentemente afetado por elas”. Salienta que “é durável, mas não
imutável” (Bourdieu, 2002, p. 83).
A dimensão dos invariantes, particularmente a discussão cultural, será
contemplada com pesquisas de autores brasileiros afins à temática. Queremos
enfatizar que procuraremos, nos dados levantados pelas bases de dados
produzidas por pesquisas listadas acima, as variáveis que nos ofertam indícios
para a comprovação ou a refutação das hipóteses aqui aventadas. Ao lado das
variáveis, será preciso investigar as invariantes, considerando a literatura
pertinente.
Procuraremos, em nosso texto, vincular o que há de invariante a uma
categoria, por nós denominada bens cívicos ou bens de cidadania.
Tal categoria tem importância fundamental em nossa análise, podendo
ser conceituada como o conjunto de bens que permitem o acesso a espaços
sociais e exercício de cidadania.
Ocorre inserção social quando os bens de cidadania são
socializados e o seu acesso é garantido através das gerações; em
sociedades em desenvolvimento, a inserção dependente demanda crescentes
investimentos no sentido de assegurar determinada ascensão.
25
Argumentamos desde já, e desenvolveremos melhor nos próximos
capítulos, que as nações em desenvolvimento não universalizaram serviços
públicos e a cidadania, tornando-se um capital nesses países.
Nesse sentido, e por esse ponto de vista, há uma relação entre a
universalização dos bens cívicos e a inserção social plena. Quando há escassez
na oferta desses bens de cidadania, torna-se capital.
Uma “inserção social dependente” decorre de situações em que há
ganhos incrementais na oferta de serviços públicos e aderência de massas,
antes excluídas, na sociedade civil, mas não o suficiente para que esteja
garantido o acesso a tais bens por outras gerações e tampouco os serviços
públicos em sua totalidade ou de qualidade.
Como evidências, recorreremos às reflexões sobre habitus precário,
capital cultural e participação social. Acreditamos firmemente que países em
desenvolvimento são dinamizados quando, ao lado da ampliação do
mercado e complexidade das ocupações, do sistema de transporte e
comunicação, se garante participação e reconhecimento, à medida em que
essas dimensões inserem os antes considerados cidadãos de segunda
linha ou subcidadãos.
Consideramos a hipótese de que ocorreu no Brasil um relevante processo
de ascensão horizontal, não vertical. As evidências presentes na tese nos levam
para a confirmação do enunciado, principalmente o que concerne à expansão
dos empregos pouco especializados.
Associado à primeira, na segunda hipótese, acreditamos que a ascensão
horizontal ocorreu graças à recuperação do poder de compra da população,
remontando ao início dos anos 1980, somado à melhora dos serviços públicos e
questões demográficas.
As evidências de que a segunda hipótese está igualmente correta podem
ser encontradas tanto na PNAD quanto na POF, do IBGE, bem como há o fato
de que a inserção do conceito territorial na concepção das políticas públicas nos
últimos anos dinamizou a economia das menores cidades e das periferias, que
experimentaram taxas de crescimento econômico similares às chinesas no
mesmo período (próximas a 10%), bastante superior ao incremento do PIB
nacional (cuja média foi de 3,7%, de acordo com o IBGE).
26
Finalmente, a nossa tese: o Brasil sob Lula deu sequência a um modelo
incremental de políticas sociais, denominado no trabalho como incrementalismo
social.
De acordo com Loureiro e Abrucio (2002, p. 59),
ao invés de uma concepção exclusivamente totalizadora de
reforma, que supõe a necessidade de uma alteração total do
status quo e a um só tempo, a concepção incrementalista
reconhece que mudanças importantes se dão gradualmente e que
cada medida tomada e/ou aprovada influencia, em maior ou
menor medida, o caminho posterior - é a chamada path
dependence, ou histerese, para adequar o sentido original a uma
palavra em português
Esse incrementalismo2 decorre de condições estruturais: o modo como o
país foi modernizado, o insulamento burocrático, que formou um corpo técnico
em nível federal, e o presidencialismo de coalizão, exercendo influência sobre a
agenda pública.
Ainda de acordo com Loureiro e Abrucio, “o incrementalismo pode ser
visto como uma contraposição analítica e normativa em relação à visão
totalizadora de mudança, fundada numa concepção tecnocrática e insulada de
reforma” (2002, p. 60).
Não se pode dizer que as mudanças incrementais, por não repercutirem
um paradigma totalizante, signifiquem um simples continuísmo, tampouco “reduz
necessariamente a coerência e a consistência dos projetos [por] incluir mais
atores e estender no tempo o processo de transformação (idem, grifos nossos)”.
Ao incluir maior número de atores e diluir no tempo as mudanças, “pode-
se aprender mais com os possíveis erros de implementação (variável do
desempenho) e tornar as decisões mais responsivas e responsáveis (variável
democrática) (idem)”.
Cultural e institucionalmente, o incrementalismo social é dependente do
reconhecimento estatal de massas humanas anteriormente segregadas, de
2 Sobre o incrementalismo, há literatura farta. A noção de que as políticas públicas são influenciadas por
algum tipo de aprendizado e são aperfeiçoadas ao longo do tempo, de acordo com Cameron em seu texto
“Não-incrementalismo na política pública: a dinâmica da mudança” (1975), sofre abalos por desprezar as
mudanças políticas que solapam a continuidade e o aperfeiçoamento. Em nossa argumentação, a Era Lula,
porém, dadas as questões históricas e contextuais, se encaixam nessa interpretação.
27
modo que estas se invistam de empoderamento eleitoral e moderada
capacidade de consumo.
Esse reconhecimento não se dá unidirecionalmente, mas a partir de um
jogo de coordenação entre diferentes pólos de poder e interesses, que impactam
na relativização das medidas adotadas e demandam alta capacidade de
negociação entre diferentes interesses.
O enfoque incrementalista do processo decisório é bastante
pertinente ao estudo do caso brasileiro, cujo sistema político se
caracteriza pelo consociativismo, para usar expressão de Lipjhart
(1999). Presidencialista, multipartidário, federativo, marcado por
uma sociedade bem heterogênea, o sistema de poder no Brasil
ganha maior legitimidade quanto mais consegue lidar democrática
e eficazmente com a sua fragmentação intrínseca (LOUREIRO E
ABRUCIO, 2002, p. 61, grifos nossos).
Não significa, por isso, uma trivialidade. Em sociedades em
desenvolvimento, o aperfeiçoamento das instituições que resultam em inserção
dependente são eventos importantes.
As mudanças operadas no Brasil e que resultaram em ascensão social
não escaparam dos problemas federativos atuais, principalmente por ter sido
majoritariamente operado por políticas públicas financiadas pelo Governo
Federal, ainda que a gestão coubesse a municípios.
Parcela desse problema é a repercussão da capacidade de investimento
do Governo Federal, parte pelo aperfeiçoamento de sua burocracia e parte pelas
forças políticas.
Nesse sentido, contempla-se os requisitos de políticas incrementais,
conforme apresentados por Loureiro e Abrucio:
O incrementalismo requer, por um lado, grande capacidade de
governança, ou seja, forte competência técnica e articulação
gerencial da burocracia governamental, tornando-a capaz de
implementar de forma efetiva a agenda do governo. Por outro
lado, ele é a expressão de um arranjo institucional no qual o
Executivo é politicamente limitado ou constrangido, sendo forçado
institucionalmente a levar em conta e negociar continuamente
com outros atores políticos no legislativo e nos governos
subnacionais, e mesmo com grupos organizados na sociedade
(2002, p. 61).
28
A nossa tese não descarta a possibilidade de que exista algum ponto de
inflexão no futuro próximo, ou “conjuntura crítica” (LOUREIRO e ABRUCIO,
2002, p. 62), com mudanças profundas e assim contrárias ao processo
incremental.
Como esclarecem Loureiro e Abrucio, “a postura incremental diz respeito
às modificações graduais e por ‘camadas’ nas policies [ou políticas], ao passo
que a conjuntura crítica associa-se às alterações nas posições relativas dos
atores, isto é, na dinâmica da politics [ou política]”.
O incrementalismo e a conjuntura crítica, nesse sentido, “não são pólos
opostos de uma escala, [pois] se referem a questões distintas do processo social
e que podem ser combinadas de diversas formas” (2002, p. 62).
Vale destacar, por exemplo, que o Plano Real consistiu em uma
conjuntura crítica, confirmando que “experiência comparada tem ressaltado que
a virtù reformadora é aquela que soma os ganhos de autoridade com as
capacidades negociadora e de aprendizado” (LOUREIRO e ABRUCIO, 2002, p.
62), à medida em que o sucesso do Plano deve a experiências frustradas
anteriores, conforme veremos em páginas futuras.
Esperamos que a nossa tese possa contribuir, dentro de suas
possibilidades e limitações, com o debate a respeito do desenvolvimento
socioeconômico em um país de renda média, como o Brasil.
Ao final e ao cabo, nossa pesquisa apontou que a mobilidade vivenciada
na década de 2000 ocorreu mesmo sem existir, no horizonte, um novo modelo
de desenvolvimento para os países periféricos ocidentais.
Após a introdução, a tese está estruturada da seguinte forma: no Capítulo
1, intitulado “O crescimento da Faixa: 2001-2011”, apresentamos o contexto
socioeconômico na década de 2000 e os sistemas de classificação que
identificam a Nova Classe Média (NCM). Encontram-se dados e informações
sobre o debate atual a respeito da NCM.
No segundo capítulo, “Políticas econômicas e políticas de renda”, visa
discutir por que a expansão da classe trabalhadora consumidora ocorre na
29
década de 2000, e não na década anterior. Discute avanços no accountability
fiscal e a vigência de uma orientação econômica refratária ao emprego e à renda
na década de 1990. Encontram-se dados dos fundamentos econômicos e a
valorização dos salários.
Finalmente, no terceiro capítulo, “Incrementalismo social, transformações
sociais e redistributivismo”, observamos que não ocorreu mudança na ocupação
profissional, não configurando uma ascensão de classes e confirmando a
hipótese de que ocorrera uma ascensão horizontal. Debatemos, ainda, os
elementos de mudança e permanência que resultam no aprofundamento do
accountability democrático no Brasil. Nesse capítulo, encontram-se dados
demográficos e relativos ao consumo das famílias, tendo como fonte a Pesquisa
Orçamentária Familiar.
A tese se encerra com as “Considerações Finais”.
30
O crescimento da “faixa c” no Brasil: 2001-2011
A investigação se volta para o crescimento – relevante – da chamada
“nova classe média” brasileira (NCM) durante a primeira década do século XXI.
Uma parcela da população foi classificada como NCM a partir de metodologias
fundamentadas, essencialmente, nos indicadores de renda e de consumo –
classe média sob essa perspectiva, portanto3.
A nova classe média seria composta por um contingente heterogêneo de
pessoas, anteriormente consideradas pobres por critérios de classificação
embasados nos hábitos de consumo e na renda familiar per capita. A NCM teria
dinamizado o mercado consumidor brasileiro, não apenas pela aquisição de
bens de consumo duráveis (automóveis, geladeiras etc), semiduráveis
(calçados, vestuário etc) e não-duráveis (alimentos), mas também serviços
(educação, cosmética, assinaturas de internet e acesso a canais de televisão
fechados etc).
Não é a primeira vez que se fala sobre o surgimento de uma NCM no
Brasil: nos anos 1960 e 1970, durante o regime civil-militar, debatia-se o aumento
da classe média brasileira, alimentada por políticas fiscais e econômicas
expansionistas, um processo fortemente vinculado ao aumento dos servidores
públicos no país (Quadros, 1991).
Os anos do “milagre brasileiro” ampliaram as desigualdades econômicas,
mas ao mesmo tempo expandiram as classes médias urbanas, conforme
observou Waldir Quadros (1991):
O acelerado crescimento econômico do período do "milagre” foi acompanhado de arrocho na base salarial e exclusão de enormes massas, da completa supressão das liberdades democráticas e da brutal violação aos direitos humanos, num autêntico estado de terror policial. Esta face retrógrada frequentemente dificulta a correta avaliação da rápida diferenciação e ampla incorporação sociais impulsionadas por este mesmo processo de desenvolvimento, que se expressa sobretudo na vigorosa expansão das "classes médias urbanas” (p. 2)
3 Para melhor comunicarmos o objeto da pesquisa, optamos por inicialmente denominar esse contingente
como Nova Classe Média, ou NCM. O desenvolvimento do texto, contudo, revelará que consideramos a
classificação econômica insuficiente para revelar a mobilidade de classes.
31
Como é possível perceber, a NCM emergida durante o governo civil-militar
se beneficiou de uma gestão autoritária, mas capaz de ampliar esse segmento.
Paralelamente, grandes massas humanas permaneceram segregadas.
Quando se fala em NCM, não se pode deixar passar despercebida a
discussão norte-americana sobre a expansão de sua própria classe média,
vinculada aos White collar, ou “colarinhos brancos”, baseada na ocupação, no
mundo do trabalho, conforme o universalmente conhecido livro de Wright Mills,
mesmo autor, inclusive, que norteia a análise de Quadros (1991, p. 3). Nesse
caso, importa a posição ocupacional e as transformações no mundo do trabalho
que privilegiam o trabalho intelectual.
Em ambos os debates, queremos dizer, tanto no caso da expansão da
classe média norte-americana como a brasileira nos anos 1970, observa-se o
predomínio de profissionais especializados, diferentemente do atual momento,
quando observamos o crescimento na renda de profissionais menos
qualificados.
No Brasil atual ocorre, porém, a inclusão de um grande contingente de
pessoas à economia formal, em um contexto de universalização de serviços
públicos considerados essenciais.
Pela primeira vez na história brasileira, o Produto Interno Bruto, seja
nominal ou per capita, cresceu de maneira associada à queda da desigualdade
econômica, de acordo com uma série histórica superior a quatro décadas.
De qual contexto estamos falando? Trazemos, nessa seção, alguns dados
e informações que situam o nosso leitor para o centro desse profícuo debate.
De acordo com o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas
(CPS/FGV), no ano 2001, a nova classe média, identificada por esses métodos
como Classe ou Faixa C, representava 38% da população; em 2005, 42%; e, em
2011, atingiu o percentual de 55%.
Na primeira tabela, apresentamos a participação da Faixa C na população
brasileira em todos os anos da década de 2000, mostrando um incremento de
44,6% entre 2001 e 2011. Em números absolutos, mais de quarenta milhões de
pessoas ingressaram na NCM.
32
Tabela 1 – Faixa C na década de 2000
Ano % da população
2001 38,07
2002 38,64
2003 37,56
2004 39,73
2005 41,81
2006 44,94
2007 46,9
2008 49,22
2009 50,45
2010 53,6
2011 55,05
Fonte: CPS/FGV
Durante a década de 1990, também há expansão da Faixa C, mas a taxas
modestas, variando entre 33% e 37% da população, se mantendo estável a partir
de 1995, no patamar entre 36,5 e 37,4%. Embora os anos 1990 sejam o da
implementação do Plano Real, as crises econômicas, o contexto internacional e
as políticas públicas adotadas durante o governo Fernando Henrique Cardoso
(1995 – 2002) foram decisivos para a continuidade desses percentuais.
Tabela 2 – Faixa C na década de 1990
Ano % da população
1992 32,52
1993 30,98
1995 36,52
1996 36,74
1997 37,01
1998 37,39
1999 36,10
2001 38,07
Fonte: CPS/FGV
33
No primeiro ano (1995) do governo Fernando Henrique, a Faixa C
representava 36,5% da população; no último (2002), 38,6%. O aumento foi de
5,8% no período de oito anos.
Encontramos, abaixo, um gráfico com o percentual da Faixa C em relação
à população brasileira nas duas décadas mencionadas, evidenciando a
mudança na sua evolução estatística.
Gráfico 1 – Faixa C em duas décadas (% da população)
FONTE: CPS/FGV
A ascensão da chamada nova classe média decorre da superação da
pobreza e da miséria, classificadas como Classe D e E, respectivamente. Nessa
metodologia, a população é distribuída em cinco classes, que vão de A (mais
rica) a E (muito pobre).
Esse quadro de ascensão da chamada NCM gerou uma redução inédita
na desigualdade, ao menos considerando a dimensão dos rendimentos.
Não é possível no Brasil, por limitações legais, aferir a desigualdade
patrimonial, pois a legislação consagra o sigilo em declarações de impostos de
renda e existem restrições aos levantamentos em cartórios, de modo que não
temos clareza em relação à profundidade da desigualdade brasileira.
Ainda assim, o país retomou o piso histórico (anos 1960) do indicador
medidor das desigualdades – o Coeficiente de Gini – considerando a variável de
renda.
38,07 38,64 37,5639,73
41,8144,94
46,949,22 50,45
53,655,05
2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012
34
Cabe dizer que o levantamento sobre a desigualdade de renda tem
dificuldades práticas, pois se compara rendimento do trabalhador com o
financeiro. O volume do segundo, invariavelmente, é estimado.
Gráfico 2 – Coeficiente de Gini no Brasil e sua tendência (1960-2015)
FONTE: CPS/FGV
De acordo com Soares (2010), “uma das vantagens da utilização do
coeficiente de Gini é que a sua variação pode ser facilmente decomposta por
fonte de renda”, uma vez que esse indicador “nada mais é que a soma
ponderada dos coeficientes de concentração, na qual os pesos de ponderação
são os próprios pesos de cada fonte de renda na renda total” (p. 36).
Um levantamento realizado pelo autor supracitado aponta que
“transferências públicas foi responsável por aproximadamente um terço da
queda de pouco mais que 5,4 pontos de Gini (x100) observados entre 2001 e
2009”, enquanto “aluguéis e transferências de outros domicílios, explicam outros
8% da queda” (p. 37).
O restante, 63% da queda da desigualdade, se deve ao “mercado de
trabalho mais favorável aos mais pobres” (idem). Isso não quer dizer que a
redução das desigualdades, inclusive pelo trabalho, ocorreu apenas no período
0,537
0,5830,59
0,609
0,596
0,528
0,496
1960 1970 1980 1990 2000 2010 2015
35
2001-2009, remontando ao ano de 1998, quando “a renda do mercado de
trabalho se desconcentra” (idem).
Soares afirma que, em “1999, antes de a desigualdade começar sua
queda, o mercado de trabalho já tinha reduzido o coeficiente de Gini em quase
0,4 ponto de Gini (x100)”.
A desigualdade declinou à medida em que o preço do trabalho cresceu a
taxas maiores entre as faixas de renda mais pobres, não apenas nos centros e
regiões metropolitanas, como periferias e em cidades pequenas e médias.
O incremento de renda propiciado pela valorização do salário mínimo se
mostrou importante, sobretudo após 2005. Entre “1995 a 2009, o salário mínimo
foi responsável por 21% da queda da desigualdade” (SOARES, 2010, p. 38).
Soares afirma que o trabalho e a recuperação da renda dos trabalhadores
foram importantes, pois
dois terços da queda no coeficiente de Gini advêm do
mercado de trabalho. Destes, quase um quarto se deve ao
salário mínimo, o que mostra que este teve efeitos
distributivos importantes. Contudo, os demais três quartos
– ou seja, metade da redução da desigualdade – se devem
a fatores no mercado de trabalho que não são o piso
salarial (p. 40).
No período do nosso recorte de pesquisa, nota-se uma aceleração da
melhora na renda e sua distribuição. O Brasil diminuiu 75% de sua pobreza
extrema entre 2001 e 2012, segundo a Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e Alimentação (FAO), em seu relatório publicado em 2014. O índice
de pobreza declinou 65% no mesmo período. Nesse relatório, o país deixa o
chamado Mapa da Fome pela primeira vez.
De acordo com a mesma metodologia e de acordo com o CPS/FGV, que
aponta o crescimento desse setor de rendimento médio denominado Faixa C, as
Faixas DE declinaram entre o começo da década de 1990 e o final da década de
2000 (de 62% da população para 39%). Cabe o registro, portanto, que ocorreu
uma diminuição das Classes DE e não um empobrecimento das Classes AB.
O aumento no rendimento familiar proporcionado pela apreciação do
preço do trabalho e por políticas de transferência de renda com
36
condicionalidades, como o Programa Bolsa Família, foi o principal responsável
por esse cenário (NERI, 2008 e POCHMANN, 2012 e 2014).
Na tabela abaixo, notamos o valor e o aumento do salário-mínimo desde
o lançamento do Plano Real, que foi lançado em 1994 e consistiu em um
conjunto de medidas para estabilizar e reformar a economia brasileira,
anteriormente dominada por uma inflação elevada.
Tabela 3 – Apreciação do salário-mínimo (1994-2011)
Ano Valor Aumento % IPCA Aumento real
19944 R$ 70,00 - 916,465 -
1995 R$ 100,00 43 22,41 20,59
1996 R$ 112,00 12 9,56 2,44
1997 R$ 120,00 7,14 5,22 1,92
1998 R$ 130,00 8,33 1,66 6,67
1999 R$ 136,00 4,62 8,94 -4,32
2000 R$ 151,00 11,03 5,97 5,06
2001 R$ 180,00 19,21 7,67 11,54
2002 R$ 200,00 11,11 12,53 -1,42
2003 R$ 240,00 20 9,3 10,7
2004 R$ 260,00 8,33 7,6 0,73
2005 R$ 300,00 15,38 5,69 9,69
2006 R$ 350,00 16,67 3,14 13,53
2007 R$ 380,00 8,57 4,45 4,12
2008 R$ 415,00 9,21 5,9 3,31
2009 R$ 465,00 12,05 4,31 7,74
2010 R$ 510,00 9,68 5,9 3,78
2011 R$ 545,00 6,81 6,5 0,31
Fonte: IBGE. Aumento real: elaboração própria
A valorização do salário-mínimo pode ser bem compreendida a partir da
identificação do grau de defasagem entre o salário-mínimo real e o considerado
4 Ocorreram dois reajustes do salário-mínimo em 1994. Optamos por apresentar o último valor.
5 O Plano Real foi lançado apenas no segundo semestre do ano de 1994, daí o índice de inflação acima de
900%.
37
ideal6, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconomicos (DIEESE).
Nesse caso em particular, a razão da defasagem em abril de 1995 chegou
a 11,6 vezes (ou seja, o valor do salário-mínimo seria mais de dez vezes menor
que o considerado ideal pelo DIEESE) e foi reduzida a 4,3 vezes em dezembro
de 20117.
Segundo o Ministério da Fazenda (2012), o salário mínimo sofreu
reajuste nominal de 211% e real (descontando a inflação) de 66% no período
entre 2003 e 2012.
O panorama da economia internacional8 no período (anos 2000) também
foi fundamental para a tomada de decisão a favor de políticas para a
recomposição salarial e valorização acima da inflação, tanto quanto a expansão
de gastos na seguridade social. Essa mudança consiste em maior protagonismo
dos países em desenvolvimento no crescimento econômico global. Entre 2001-
2011, economias emergentes cresceram a taxas maiores do que os países
desenvolvidos.
De acordo com Alves (2015, p. 01), “entre 1981 e 1990, as economias
avançadas [cresceram em] média [...] 3,3% ao ano [...] e as emergentes [a uma]
média de 3,4% ao ano”, ao passo em que a “economia brasileira, com grandes
oscilações, apresentou crescimento médio de apenas 1,6% ao ano”.
Durante o período compreendido entre “1991 e 2000, as economias
avançadas reduziam o ritmo de crescimento para uma média de 2,8% ao ano e
as emergentes subiram para uma média de 3,8% ao ano”, embora “o
crescimento da renda per capita das economias avançadas e emergentes [tenha
6 O DIEESE o define como Salário-mínimo Necessário. O instituto “considera o preceito constitucional de
que o salário mínimo deve atender às necessidades básicas do trabalhador e de sua família e que é único
para todo o país. Usa como base também o Decreto lei 399, que estabelece que o gasto com alimentação
de um trabalhador adulto não pode ser inferior ao custo da Cesta Básica Nacional”.
7 Em termos de horas trabalhadas (incluindo trabalhadores cujo salário supera o mínimo), também notamos
incremento no poder de compra, tomando por referência o valor da cesta básica. Tais indicadores serão
explicitados no próximo capítulo dessa tese.
8 O panorama internacional será explicitado em capítulo futuro. Optamos, agora, por uma exposição
sintética.
38
sido a] mesmo nos anos 90”. A economia do Brasil apresentou crescimento
médio de 2,7% nos anos 1990 (ALVES, 2015, p. 01-02).
Observando o crescimento das economias em desenvolvimento versus as
economias avançadas, notamos que “o ritmo de crescimento da economia
internacional manteve a liderança das economias avançadas sobre as
economias emergentes, mantendo o quadro de desigualdade na distribuição de
renda entre os países”.
Dessa forma,
a partir do ano 2000, houve uma aceleração do
crescimento das economias emergentes (com média de
6,2% ao ano entre 2001 a 2010) e redução do ritmo de
crescimento das economias avançadas (com média de
1,6% ao ano). O Brasil apresentou crescimento médio de
3,7% ao ano entre 2001 e 2010 e de 4% ao ano entre 2003
e 2010 (ALVES, 2015, p. 2).
Nesse momento histórico, a política econômica brasileira não se pautou
pela substituição de importações e fortalecimento da indústria9, mas no fomento
ao mercado interno. Durante o governo Lula, o preço das commodities (como o
petróleo, o minério de ferro, a soja, a carne, o frango e o café) sofreram, ano
após ano, aumentos expressivos. Nesse sentido, o governo brasileiro pôde à
época concentrar-se em fortalecer o consumo das famílias.
Não seria exagero dizer que o governo Lula manteve a abordagem
macroeconômica legada pelo governo anterior (incluindo o tripé metas de
inflação, fiscais e câmbio flutuante) e atuou de maneira transformadora no âmbito
da economia doméstica, das famílias. Foi amparado pelo quadro internacional,
com a elevação das cotações internacionais dos principais produtos da pauta
brasileira de exportação.
9 No relatório intitulado "Por que reindustrializar o Brasil?", a Federação das Indústrias de São Paulo afirma
que a indústria perdeu participação no PIB brasileiro entre 2004 e 2012, declinando de 19,2 para 13,3%,
uma queda de 31%. O setor industrial não via participação tão baixa na composição do Produto Interno
Bruto desde o ano de 1955.
39
Manter a abordagem macroeconômica legada10 – é importante ressaltar
– não significa necessariamente continuar a gestão econômica em sua
totalidade. De fato, alguns elementos considerados prioritários pelo governo
Fernando Henrique Cardoso não foram continuados. O principal, provavelmente,
seja a agenda de privatizações dos maiores ativos federais, prioridade na gestão
anterior e desconsiderada nos anos Lula.
Apenas para ilustrar o que afirmamos nessa apresentação, o gráfico
abaixo traz a valorização das commodities entre 1994 e 2011 (IPEADATA, 2014),
de elevada importância para a pauta de exportação brasileira.
Gráfico 3 – Preço das commodities - índice geral (1994 a 2011)
Fonte: IPEADATA
É interessante notar que a elevação mais acentuada dos preços ocorre a
partir dos anos de 2003 e 2004, sofrendo uma queda no ano de 2008, quando
começou uma crise econômica global, recuperando-se logo em seguida.
Beneficiado pela bonança proporcionada pelos preços de commodities, o
país enfatizou políticas sociais e medidas de ampliação do mercado interno,
como a valorização da remuneração do trabalho e o aumento extraordinário de
crédito, com a ampliação da participação dos bancos públicos.
10 Especialmente a manutenção das políticas para o câmbio (flutuante), fiscal (regime de metas) e
inflacionária (regime de metas). Os anos Lula atraíram capital financeiro internacional, dadas as altas taxas
de juros, e investimentos estrangeiros diretos, na medida em que os mercados consumidores brasileiro e
latino-americano eram promissores.
0
50
100
150
200
250
300
350
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.08
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20
10
.05
20
10
.12
20
11
.07
40
Especificamente sobre o aumento de crédito no país, há a ampliação de
26,0 pontos percentuais (p.p.) do produto interno bruto (PIB), em dezembro de 2002, para 53,8 p.p. do PIB, em dezembro de 2012. Ao longo deste período, a oferta de crédito por bancos privados elevou-se de 16,3 p.p. do PIB para 28,0 p.p., enquanto o sistema financeiro público foi responsável por um aumento do crédito da ordem de 16 p.p. do PIB (A Evolução do Crédito entre 2003 e 2012 - IPEA, 2014, p. 310)
Os empréstimos para pessoas físicas foi o que mais cresceu: 271% em
dez anos (de 9,3 pp do PIB para 25,2pp). Desse modo, o “peso desta categoria
[foi elevado] de 36% para 47%, no crédito total” (idem).
Gráfico 4 – Crédito à pessoa física nos anos 2000 (% do PIB)
Fonte: IPEA, 2014
O efeito do crédito foi o aumento de vendas de bens de consumo e
serviços, aquecendo a economia. O significado era, justamente, o da criação de
um ambiente positivo para o consumo das famílias, elevando o Produto Interno
Bruto mas, mais especificamente, o setor terciário, de serviços, grande
empregador no país. O varejo brasileiro viveu uma Era de Ouro.
Questões demográficas também atuaram positivamente na diminuição da
pobreza e da miséria, associada à melhoria de outros indicadores, como o
aumento da escolaridade média da população ocupada. A Tabela quatro
evidencia o último indicador citado.
9,3 9,410,5
12,313,8
1617,6
19,620,6
22,7
25,2
0
5
10
15
20
25
30
2002-12 2003-12 2004-12 2005-12 2006-12 2007-12 2008-12 2009-12 2010-12 2011-12 2012-12
41
Tabela 4 – Escolaridade média da população ocupada
Escolaridade Anos
2003 2011
Até 1 ano de estudo 3 1,6
Entre 1 e 3 anos de estudo 6,3 3,4
Entre 4 e 7 anos de estudo 24,7 17,3
Entre 8 e 10 anos de estudo 19,1 17
11 anos ou mais de estudo 46,7 60,7
Fonte: IBGE. Aumento real: elaboração própria
No Brasil, por exemplo, a taxa de fecundidade caiu 10% entre 2004 e
2011, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (IBGE,
2011), mantendo uma trajetória de diminuição do número de integrantes de uma
família. Queda cujo resultado, ao passar dos anos, é o aumento da População
em Idade Ativa (PIA).
Tais elementos associados, quais sejam: o panorama internacional, a
recomposição salarial e aumento do preço do trabalho, formalização do
emprego, as políticas de transferência de renda com condicionalidades (como a
manutenção de filhos na escola e a vacinação infantil no momento correto) e o
crédito ampliado, resultaram em uma ascensão – ao menos sob a perspectiva
da renda – jamais documentada na história brasileira.
No período histórico assinalado – a década de 2000 – o governo brasileiro
mantém o núcleo duro da política macroeconômica, mas atua para
continuamente modificar a economia familiar, incluindo uma perspectiva
territorial de políticas públicas, favorecendo periferias e os menores municípios.
A agenda governamental também sofreu alterações, como é fácil perceber,
oriundas claramente das condições políticas.
Portanto e, finalmente, há o componente político. Para André Singer
(2012), este período (os anos 2000) deu origem ao lulismo, aludindo claramente
à expressão getulismo ou varguismo, enraizado nas camadas populares,
embora não apenas nela, pois o ex-presidente Lula é visto, algumas vezes, como
um “benfeitor patriarcal de todas as classes” (SINGER, 2012, p. 201).
42
O lulismo seria um reformismo fraco, que
fomenta o ciclo de acumulação no interior de um capitalismo já
relativamente desregulamentado, sem reverter a precarização,
mas aumentando o número de trabalhadores cobertos pelos
direitos trabalhistas ainda existentes e permitindo que estes se
auto-organizem para amplia-los (SINGER, 2012, p. 199).
Singer chama a atenção para o processo de desenvolvimento que ocorre
de maneira mais acelerada nas regiões mais pobres do país e nas camadas
populares, pois “para quem está se libertando do inferno do desemprego, a
precariedade com carteira assinada é um patamar superior” (Idem).
Levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
no relatório intitulado “Síntese dos Indicadores Sociais – 2014”, confirmam a
aceleração do trabalho formal apontada por Néri (2008), Singer (2012) e
Pochmann (2012 e 2014). Entre 2004 e 2013, empregos formais subiram cerca
de 25%, deixando de representar 46% das ocupações totais para chegar à
parcela de 58%.
O termo utilizado por Singer, Lulismo, também pode ser encontrado em
trabalhos de outros autores brasileiros, com interpretações distintas. Nenhum
deles desenvolvendo-o enquanto tese.
André Singer identifica o quadro socioeconômico até agora explanado
(para a sua tese, são evidências) aqui e o vincula aos resultados eleitorais
(comprovação) das eleições presidenciais, em que os candidatos do Partido dos
Trabalhadores (Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff) venceram as disputas
de 2006, 2010 e 2014 graças à adesão maciça do eleitorado das faixas de
rendimento C, D e E, sobretudo localizados em pequenas cidades, periferias e
regiões Norte e Nordeste do país – as mais beneficiadas com as políticas
públicas e cenário econômico já explicitados em páginas anteriores.
Ao todo, são quatro vitórias das coligações encabeçadas pelo partido em
questão (o resultado de todas as eleições, desde 2006, estão em anexo), entre
2002 e 2014 (somando dezesseis anos, quando se encerrar o mandato de
Rousseff, no final de 2018).
Para Bresser-Pereira (2011), a América Latina anterior aos anos 2000
estaria amplamente dominada por uma “ortodoxia convencional”. Na última
década, porém, alguns países teriam experimentado um “terceiro discurso”, ou
43
seja, experimentando novamente a intervenção social visando o
desenvolvimento socioeconômico.
Governos de Chávez e Morales intensificaram políticas sociais
financiadas majoritariamente pela elevação de preços do petróleo e do gás. O
último, revisando profundamente as cláusulas dos contratos celebrados com a
iniciativa privada para a exploração dos recursos naturais. A Argentina se
beneficiou com o preço do trigo, da carne e exportação de manufaturados para
o Brasil.
O governo brasileiro tem sido desde então um relevante fiador da
chamada integração econômica da América Latina, em geral, e a do Sul, em
particular, no contexto do que Bresser-Pereira denominou “terceiro discurso”.
O “novo desenvolvimentismo” seria, pois, uma alternativa aos ortodoxos
e o desenvolvimentismo de décadas anteriores, “um conjunto de valores, ideias,
instituições e políticas econômicas através das quais, no início do século XXI, os
países de renda média procuram alcançar os países desenvolvidos” (BRESSER-
PEREIRA, 2011, p. 17).
De acordo com o Bresser-Pereira, o novo desenvolvimentismo não é uma
teoria econômica, mas uma “estratégia”; é uma estratégia nacional de
desenvolvimento, baseada principalmente na macroeconomia keynesiana e na
teoria econômica do desenvolvimento (p. 17).
Seria, pois,
o conjunto de ideias que permite aos países em desenvolvimento
rejeitarem as propostas e pressões dos países ricos por políticas
econômicas e de reforma, como a liberalização da conta de capital
e o crescimento com poupança externa, na medida em que essas
propostas são tentativas neoimperialistas de neutralizar o
crescimento econômico dos países concorrentes (p. 17)
Um rápido exame da literatura (ver, por exemplo, ALMEIDA, 2004 e
VIGEVANI e CEPALUNI, 2007) sobre a política externa do Governo Lula,
associado a uma examinação da conjuntura internacional e dos avanços sociais
obtidos nos países latino-americanos (listados em Relatórios de
44
desenvolvimento humano globais do PNUD11), corroboram a hipótese de
Bresser-Pereira, para quem a mudança da agenda pública foi um fenômeno
continental, não limitado ao caso brasileiro.
Em relação ao nosso contexto, nacional, a ampliação da Faixa C significa,
antes de qualquer coisa, a diminuição dos piores indicadores de renda, e não
apenas: resulta no aumento do mercado consumidor, em maiores trocas
comerciais, mais deslocamentos nos municípios, intermunicipais e
interestaduais, novas experiências na aquisição de informações e novas
relações sociais de maneira mais geral.
Se considerarmos que o transporte, a comunicação, o desenvolvimento
do mercado e a divisão social do trabalho são dimensões dinamizadoras das
sociedades humanas, podemos facilmente perceber que o significado da
expansão da chamada Faixa C oferta muitas possibilidades de pesquisa.
O impacto desse fenômeno abrange os planos de investimentos da
iniciativa privada, enfatizando ano após ano esse segmento de mercado, cujo
poder de compra é crescente; as pesquisas acadêmicas desenvolvidas desde
2008; e a agenda governamental, tanto no segundo mandato do governo Luís
Inácio Lula da Silva (2007-2010) como no governo Dilma Rousseff (20011 –
2015).
Não parece ser exagero dizer que também há o impacto antropológico,
um choque à medida em que são integrados novos consumidores em espaços
anteriormente exclusivos, como aeroportos e shoppings centers12, assim como
um processo de aculturação ocasionado pelas novas trocas, com integrantes da
NCM incorporando novos hábitos e novas aspirações de vida. Não gostaríamos
de adentrar por tal seara, obviamente por considerarmos importante a
construção, em trabalhos futuros ou de terceiros, de etnografias a respeito dessa
transformação.
11 PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano, 2013 – A ascensão do Sul: progresso humano num
mundo diversificado. Disponível em:
<http://www.pnud.org.br/HDR/arquivos/RDHglobais/hdr2013_portuguese.pdf>. Acesso em: 22/12/2014.
12 Segundo a Associação Brasileira de Shopping Centers, Abrasce, a Classe C representou 37% dos
consumidores em 2013. As vendas nesses centros comerciais saltaram de R$ 50 bilhões (2006) para R$
129 bilhões, em 2013.
45
Durante o levantamento de dados e informações, compreendemos a
complexidade deste objeto de estudo, afetando a concepção do recorte de
pesquisa.
Primeiramente, é válido destacar que boa parcela da literatura brasileira
sobre a renda e a distribuição de renda, assim como o acesso a bens e serviços
privados ou públicos, historicamente esteve voltado para a compreensão da
pobreza, da miséria e da desigualdade.
Provavelmente, o caso brasileiro não seja exceção. Outros países em
desenvolvimento enfrentam problemas com a classificação, não da pobreza,
mas dos limites entre classes médias e altas. Mesmo organismos internacionais
consagraram linhas de pobreza e miséria, porém enfrentam dificuldades em
relação às demais. Além disso, a renda familiar e o poder de consumo parecem
ser insuficientes para a demarcação das classes.
É interessante perceber que o incremento de famílias à Faixa C lançou
luz sobre as metodologias de estratificação adotadas, os mesmos critérios quase
sempre pouco questionados quando utilizados para mensurar a pobreza. Na
verdade, parece funcionar bem para registrar o número de famílias pobres ou
miseráveis.
Organizações internacionais como o International Policy Centre for
Inclusive Growth (IPC), ligado ao Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), tem apontado tais dificuldades para a definição de
uma classe média globalmente válida ou adequada aos contextos nacionais.
Em muitos momentos, os setores médios de rendimento são apontados
visando problematizar o grau de vulnerabilidade social em todo o mundo,
conforme podemos perceber abaixo:
The growth of the middle class in developing countries is significant, as it represents a group of people, unprecedented in size, becoming more economically secure, or at least less vulnerable to economic shocks. In turn, this has led some to assert that this marks a shift in the parameters of development as we have known it in our modern age. Not only does the new middle class of the developing world demand a refined understanding of what ‘poverty’ means, but at the same time it also calls for greater insight into those members of society who are still vulnerable to falling back into poverty, and thus how the particular lived realities
46
of this ‘sub-group’ differ greatly from those of the new middle class that are less vulnerable (IPC/PUND, 2013, pag. 3)
Encontramos, portanto, o primeiro significado do termo NCM, inserido no
debate global como oposição à pobreza e à extrema pobreza no mundo em
desenvolvimento. Em que pese ser esse um termo um tanto celebratório.
O caso brasileiro, de toda maneira, é o nosso objeto de estudo e, como
vínhamos dizendo, a complexidade da temática demandou um esforço para
definir um recorte claro, pertinente e plausível.
A pesquisa foi motivada inicialmente pela diferença entre os critérios de
renda e outros critérios sociológicos de estratificação. De fato, alguns autores se
lançaram ao debate com o intuito de desconstruir um “mito” – essa seria uma
“falsa nova classe média” (ver POCHMAN, 2014 e SOUZA, 2012).
Antes de falarmos a respeito desse “mito” da NCM, achamos prudente
expor rapidamente a metodologia dessa estratificação. Não apenas o método,
como os usos sociais do mesmo.
A estratificação em classes ou faixas de renda é fruto de metodologias
fundamentalmente elaboradas para a mensuração da distribuição de renda e do
poder de compra da população, dados úteis para a tomada de decisão dos
agentes econômicos, a partir da identificação de cada segmento do mercado
consumidor. O instrumento de pesquisa primordial é o survey13.
O survey, de acordo com Earl Babbie, é “um tipo de pesquisa social
empírica”, realizada “para permitir enunciados descritivos sobre alguma
população, isto é, descobrir a distribuição de certos traços e atributos”, em que
“o pesquisador não se preocupa com o porquê da distribuição observada existir,
mas com o que ela é”, podendo “diferir em termos de objetivos, custos, tempo e
escopo” (2003, p. 95 e 96).
Outros atores sociais fazem uso de indicadores de renda familiar e
consumo para classificar a sociedade brasileira em termos de poder de compra,
13 Para informações sobre o Survey: FINK, A. The survey handbook. Thousand Oaks, Sage, 2002. 2ed.
47
como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), instituição
governamental responsável pelo Sistema Estatístico Nacional.
Os dados do IBGE são largamente utilizados pelos pesquisadores
brasileiros como fonte secundária de pesquisa. Algumas iniciativas importantes
desenvolvidas pelo instituto são a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD), Pesquisa Orçamentária Familiar (POF) e o Censo Populacional.
Recentemente, a PNAD é uma pesquisa trimestral – PNAD contínua –
visando captar com mais acuidade as mudanças no padrão de vida da
população. Igualmente se pleiteia maior frequência da POF, considerada mais
completa, pois capta o consumo das famílias a partir de um trabalho de campo
mais dispendioso, ampliando o tempo na coleta de dados em cada residência
visitada.
Decisões do IBGE no sentido de diminuir a periodicidade, tanto da PNAD
quanto da POF, são sensíveis à realidade financeira do órgão e a dependência
de se aportar maiores recursos ao mesmo.
As metodologias de estratificação baseadas em renda e em consumo
mais relevantes para essa pesquisa são o chamado Critério Brasil de
Classificação Econômica (CBCE), da Associação Brasileira de Empresas de
Pesquisas (ABEP), a distinção por faixas de renda empreendida pelo IBGE –
devido à posição dominante do órgão no cenário estatístico nacional –, os
critérios do Centro de Pesquisa Social da Fundação Getúlio Vargas e o da
Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), órgão do Governo Federal.
Até o presente momento, nos referimos à Faixa C de acordo com os
cálculos do CPS/FGV, dado o fato de que seus estudos chamaram a atenção de
intelectuais, empresários, jornalistas e órgãos governamentais. Seus dados são
centrais no debate atual.
Como observaremos adiante, o CPS/FGV faz uso de dados do Critério
Brasil e uma sondagem ao consumidor, de autoria da própria FGV. O CBCE é
uma forma de enquadramento, podendo utilizar dados tanto da PNAD quanto da
POF.
O Critério elabora uma classificação em classes econômicas ou faixas de
rendimento a partir de um sistema de pontuação, incluindo a escolaridade do
48
chefe de família e a posse de bens, representadas pelas letras A (faixa mais rica)
até a E (mais pobre).
Segundo Mattar (1995), a definição de um critério para a classificação
econômica dos consumidores brasileiros remonta aos anos 1970, inicialmente
pela Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), continuada pela Associação
Brasileira de Institutos de Pesquisas de Mercado (ABIPEME).
À medida em que
algumas empresas passaram a adotar práticas de marketing,
principalmente a segmentação de mercado, surgiu a necessidade
de se dispor de um critério de estratificação que facilitasse essas
práticas. Na ausência de critério único, cada empresa, cada
agência de pesquisa, cada agência de propaganda e cada veículo
de comunicação acabava estabelecendo o seu próprio, o que se
por um lado atendia de imediato às suas necessidades, por outro
criava grande problema, pois impedia o intercâmbio e até a
comunicação entre empresas (idem).
O uso social primordial do Critério Brasil, desde o seu princípio, estava
vinculado à necessidade de se adotar um método único para a classificação do
poder de compra dos consumidores em faixas de rendimento. A proposta inicial
(1970) previa uma escala de A a D. Em 1976, previa uma subdivisão em duas
para cada letra: A1, A2, B1, B2, C1, C2, D1 e D2.
As escalas, originárias dos trabalhos norte-americanos, associadas ao
uso intensivo do instrumento de pesquisa survey naquele país, foram importadas
ao contexto brasileiro.
Em nenhum momento, destacamos, se pretendeu substituir conceitos
sociológicos; meramente, subsidiar a tomada de decisão empresarial (ibidem).
Por outro lado, é evidente o uso incorreto de um conceito caro à sociologia, o de
classe social. O mais adequado, tanto ao método quanto ao seu uso social, é a
substituição do conceito de classe por grupo ou faixa de consumo.
Um sistema de pontos era, assim como o é atualmente, definidor para os
cortes de classes no CBCE. Os bens de consumo, a contratação de empregada
doméstica mensalista e a escolaridade do chefe de família são dispostos em
uma listagem com a pontuação correspondente.
49
Desde os anos 2000, a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa
(ABEP) divulga anualmente as atualizações do Critério, por razões conhecidas
há mais de setenta anos, a serem abordadas mais abaixo.
Como informativo, trazemos abaixo, nos dois primeiros quadros, a lista de
bens e escolaridade com pontos correspondentes, segundo o Critério de 2008;
o terceiro, o enquadramento por classes, de acordo com a somatória dos itens.
Quadro 1 – Pontuação por posse de bens, segundo Critério Brasil 2008
Itens
Quantidade de itens
0 1 2 3
4 ou
mais
Televisão em cores 0 1 2 3 4
Rádio 0 1 2 3 4
Banheiro 0 4 5 6 7
Automóvel 0 4 7 9 9
Empregada mensalista 0 3 4 4 4
Máquina de lavar 0 2 2 2 2
Videocassete e/ou DVD 0 2 2 2 2
Geladeira 0 4 4 4 4
Freezer (aparelho independente ou parte da geladeira duplex) 0 2 2 2 2
Fonte: ABEP
Quadro 2 – Pontuação por grau de instrução do chefe de família,
segundo o Critério Brasil 2008
Grau de instrução do chefe de família Pontos
Analfabeto / Primário incompleto ou Até 3a série Fundamental 0
Primário completo / Ginasial incompleto ou até 4a série Fundamental 1
Ginasial completo / Colegial incompleto ou Fundamental completo 2
Colegial completo / Superior incompleto ou Médio completo 4
Superior completo 8
Fonte: ABEP
50
Quadro 3 – Cortes do Critério Brasil
Classe Pontos
A1 42 – 46
A2 35 – 41
B1 29 – 34
B2 23 – 28
C1 18 - 22
C2 14 - 17
D 8 - 13
E 0 - 7
Fonte: ABEP
O intuito é auferir o potencial de consumo de cada segmento consumidor
brasileiro. Ao longo do tempo, não esteve imune às críticas, seja pela
discrepância entre dados apresentados (segundo Mattar, a primeira versão do
Critério superestimava a Classe A, sendo revista em 1976), ou pela percepção
parcial do “potencial de consumo”, desprezando invariantes como a cultura
(ibidem).
Levantamentos orientados pelo Critério Brasil ocorrem há quase quarenta
e cinco anos, enquanto os primeiros esforços de revisão foram realizados quatro
anos após a primeira iniciativa. A invariante cultural, embora reconhecidamente
importante, era – assim como ainda é – inapreensível pelo instrumento de
survey. Ademais, em toda a trajetória dessa modalidade de estratificação,
pesquisadores fazem críticas recorrentes, similares, como a ausência de uma
perspectiva interdisciplinar, o superdimensionamento dos extremos,
denominadas como classe A e D ou E (como consta na revisão de 1976 e 78),
ou ainda os diferentes contextos regionais (ibidem).
A mudança na oferta de bens ao longo do tempo, com maiores facilidades
para a sua aquisição, promovendo a massificação de determinado bem de
consumo, exige a recorrente revisão no sistema de pontuação, conforme
observado nos anos 1940 por Guttman (1942 apud MATTAR, 1997), revisando
a escala de Chapin (1933 apud MATTAR, 1997), sociólogo norte-americano que
elaborou estudos pioneiros nessa seara, nos anos 1930 (correlacionando posse
51
de bens e pertencimento de classe). Chapin foi o inspirador para as primeiras
iniciativas de construção do Critério.
A ausência de abordagem interdisciplinar também levou a equívocos
como a ausência de dados sobre a ocupação. Mattar (1995) esclarece, além
disso, que um ou outro indicador isolado não é suficiente para a estratificação,
sugerindo que a ocupação, a renda e a moradia, são inexoráveis ao
aperfeiçoamento da metodologia.
Em 2008, o Centro de Pesquisas Sociais da Fundação Getúlio Vargas
(CPS/FGV) publicou um estudo, coordenado pelo economista Marcelo Neri,
intitulado como “A nova classe média”. A sua obra tornou-se a principal
referência ao debate, subdividindo a sociedade brasileira em 4 níveis de renda
(AB, C, D e E).
A pesquisa do Centro de Políticas Sociais, da Fundação Getúlio Vargas,
utilizou dois indicadores para categorizar este grupo (o C) como classe média:
“a análise das atitudes e expectativas das pessoas”, apreendida pela sondagem
do consumidor, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), também
da FGV, e “o potencial de consumo tal como no chamado Critério Brasil na qual
a classe média é aquela chamada de Classe C” (NERI, 2008, p. 23).
A repercussão de seus dados motivou um debate acadêmico e
governamental sobre o aumento da NCM. De fato, não está em jogo
simplesmente a adequação ou inadequação metodológica, mas a atribuição de
sentido ao fenômeno.
Atribuir sentido acadêmico, político e social a um fenômeno é uma forma
importante de poder. Pode tanto significar uma visão celebratória e triunfalista
quanto se converter em uma agenda para transformar a sociedade, apontando
conquistas e obstáculos à efetivação da inclusão social.
Alguns estudos foram publicados para analisar o crescimento dos setores
médios, principalmente após o ano de 2008, quando o economista do IPEA,
Marcelo Néri, divulga a sua pesquisa, intitulada Nova Classe Média: o lado
brilhante dos pobres, apontando um expressivo aumento da faixa C.
Além de Néri, destacamos os trabalhos de Bolívar Lamounier e Amaury
de Souza (A Classe Média Brasileira, 2009), Márcio Pochmann (Nova Classe
Média? – o trabalho na base da pirâmide social brasileira, 2012), Jessé Souza
52
(Os batalhadores brasileiros – nova classe média ou nova classe trabalhadora,
2010) e André Singer (Os sentidos do Lulismo, 2012).
Outras publicações do IPEA, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da
Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), do Governo Federal, também serão
mobilizadas para esclarecer o fenômeno.
Identificamos, ao longo de nossa investigação bibliográfica,
especialmente nas obras citadas, um conjunto de argumentos refutando a
interpretação de que ocorreu uma mobilidade vertical de classes, apesar do
componente econômico.
Muitos autores destacam a importância de outros elementos definidores
de uma classe social, inalcançáveis pelos indicadores de viés economicista,
como os ligados à exploração capitalista e à cultura, conforme já evidenciamos
anteriormente.
Segundo os dados apresentados por Néri, a chamada “Faixa C” (renda
familiar entre R$ 1.064,00 a R$ 4.561,00) passou de 38,6% para 50,5% da
população entre 2002 e 2008, um aumento de 19,9 pontos percentuais.
Atualizando os dados, as classes são definidas pelo CPS/FGV de acordo
com a tabela abaixo.
Tabela 5 – Faixas por renda familiar, segundo CPS/FGV,
atualizado em 2011
Faixas Valores
Faixa A: Mais de R$9.745,00
Faixa B: R$7.475,00 a R$9.745,00
Faixa C: R$1.734 a R$7.475,00
Faixa D: R$1.085,00 a R$1.734,00
Faixa E: R$0,00 a de R$1.085,00
Fonte: CPS/FGV
Para Neri (NERI, 2008, p. 5) a Faixa C “é a imagem mais próxima da
sociedade brasileira”, devedora ao crescimento do mercado de trabalho formal
53
(NERI, 2008, p. 41). O economista utiliza o supracitado Critério Brasil (NERI,
2008, p. 23).
Para o autor,
a nossa classe C aufere em média a renda média da
sociedade, é a classe média no sentido estatístico. Dada
desigualdade, a renda média é alta em relação a nossa
mediana. Em relação ao resto do mundo: 80% das
pessoas no mundo vivem em países com níveis de renda
per capita menores que o brasileiro. Agora para aqueles
que acham a renda da classe C seja baixa, acordem, pois
ela é a imagem mais próxima da sociedade brasileira.
(Neri, 2008, p. 48).
A definição e a mensuração de cada uma das cinco faixas de renda
seguiram critérios claramente econômicos, sobre o qual foi possível uma
descrição estatística.
Os critérios estabelecidos para a identificação das classes sociais
tornaram a interpretação de Marcelo Néri exclusivamente dependente da
performance econômica, ignorando as relações capitalistas de exploração do
trabalho ou mesmo a inserção cidadã desses indivíduos, fato constatado por
críticos como o sociólogo Jessé Souza e o economista Marcio Pochmann.
A argumentação de Marcelo Néri repercutiu no meio acadêmico brasileiro,
com uma recepção nem sempre favorável, principalmente pela ausência de uma
abordagem sociológica ou de economia política. De fato, a ausência de uma
análise interdisciplinar pode ser apontada como o principal equívoco do livro
publicado por Néri
Para alguns autores, como os já citados Márcio Pochmann (Nova classe
média? O trabalho na pirâmide social brasileira, 2012) e Jessé Souza (Os
batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?,
2010), a introdução de milhões de pessoas ao mercado consumidor é um
fenômeno concreto, mas não definidor de uma ascensão para a classe média.
Antes de qualquer coisa, essa tal ascensão seria geradora de uma classe de
“batalhadores”, nos dizeres de Souza (2010).
Estes batalhadores não disporiam de capital cultural para virem a ser
considerados pertencentes aos setores médios. Seriam pessoas que
compensam esta falta de capital social e cultural com uma longa jornada de
54
trabalho. Para o autor, seria “necessário haver uma transferência de valores
imateriais na reprodução das classes sociais” (SOUZA, 2010, p. 23).
Para Souza, os setores médios no Brasil são compostos principalmente
de profissionais liberais, rentistas e funcionários públicos. Dispõe de tempo como
um dos recursos mais valiosos, enquanto os batalhadores se sujeitariam a
jornadas duplas para deixar no passado a sua classe originária.
A identificação dos setores médios estaria relacionada, para Jessé
Souza, a “condições sociais, morais e culturais”. Classe média, nesse sentido,
seria a incorporação de um habitus compatível com essa posição.
Os batalhadores estariam convictos do papel do trabalho árduo na
mudança de suas vidas, com grande capacidade de autocontrole. O contrário da
ralé brasileira, objeto de outro trabalho deste sociólogo, que teve grande
repercussão no meio intelectual brasileiro.
Esta ralé seria caracterizada por um habitus precário, não podendo servir
como exército industrial de reserva, vivendo à margem da economia competitiva
brasileira.
Esses batalhadores se diferenciariam da ralé brasileira pela
incorporação de uma ética do trabalho, transmitida pela instituição familiar.
Os estudos baseados no crescimento de renda, ainda segundo este
autor, “‘universaliza[m]’ os pressupostos da classe média para todas as ‘classes
inferiores’, como se as condições de vida dessas classes fossem as mesmas”
(SOUZA, 2010, p. 24).
Souza (2013) entende que a utilização do termo NCM reflete uma leitura
empobrecida da realidade social. Para o autor, essa percepção distorcida e
redutora é “economicista”:
Minha tese é que o tema da produção e reprodução das classes
sociais no Brasil é dominado por uma leitura economicista e
redutora da realidade social. Lamentavelmente, as obras recentes
de dois dos mais festejados e reconhecidos economistas
brasileiros, os professores Márcio Pochmann (2012) e Marcelo
Néri (2012), sobre a “Nova Classe Média”, comprovam nossa
hipótese (p. 56)
Jessé Souza mobiliza em sua crítica, como podemos perceber,
elementos que podem ser apreendidos por indicadores discricionários, como
tempo livre e jornada de trabalho, como também utiliza invariantes, como
55
conceitos apreensíveis por pesquisas qualitativas (destacamos o habitus
precário, no caso da “ralé estrutural”, ética do trabalho e autocontrole, ou
ascese).
Enquanto Souza elabora uma reflexão estruturada com maior ênfase na
cultura, o economista Marcio Pochmann critica a tese de uma nova classe média
brasileira a partir de dados sobre o mundo do trabalho.
Utiliza como recorte temporal o período de 2004 a 2010, buscando
capturar o momento de maior crescimento econômico da década, sob o governo
Lula.
Segundo Pochmann (2012, p. 7),
A metamorfose pela qual passa a atual estrutura social brasileira
prescinde de interpretações mais profundas e abrangentes, que
possam ir além da abordagem rudimentar e tendenciosa a
respeito da existência de uma nova classe média. Pode-se até
estranhar a inclinação de certas visões teóricas recentes, que
buscam estabelecer para determinado estrato da sociedade –
agrupado quase exclusivamente pelo nível de rendimento e
consumo – o foco das atenções sobre o movimento geral da
estrutura social do país.
Como é possível perceber, o autor faz duras críticas à tese de que
emerge, no Brasil atual, uma nova classe média, considerando este
entendimento como primário, precipitado e possivelmente festivo, presente em
“outras dimensões geográficas do planeta”, com o intuito de “difundir os êxitos
da globalização neoliberal” (2012, p. 8).
O autor continua, em seguida, a utilizar uma linguagem áspera:
O que há, de fato, é uma orientação alienante sem fim,
orquestrada para o sequestro do debate sobre a natureza e a
dinâmica das mudanças econômicas e sociais, incapaz de
permitir a politização classista do fenômeno de transformação da
estrutura social e sua comparação com outros períodos dinâmicos
do Brasil (p. 8).
Embora faça uso de termos pouco usuais na crítica acadêmica, sem
contudo afirmar quem são os participantes desta suposta ação “orquestrada”
para alienar o debate do desenvolvimento econômico como transformador da
sociedade, Pochmann passa a apresentar um estudo sobre as dinâmicas do
mundo do trabalho.
56
A partir deste momento, observa que dois fenômenos opostos ocorreram
no país após a implementação do Plano Real, em 1994.
No primeiro momento, houve uma queda da participação dos salários na
formação do Produto Interno Bruto, em detrimento à valorização das rendas de
propriedade, como juros, lucros, renda e aluguéis. “Entre 1995 e 2004, por
exemplo, a renda do trabalho perdeu 9% de seu peso relativo na renda nacional,
ao passo que a renda da propriedade cresceu 12,3%” (POCHMAN, 2012, p. 9).
No segundo momento, a partir de 2004 até 2010, há uma retomada da
participação dos salários no PIB, com incremento de 10,3%, enquanto a renda
de propriedade decresceu 12,8%.
A reversão do quadro, com participação dos salários retornando aos
níveis anteriores a 1994, “se mostrou compatível com a absorção do enorme
excedente de força de trabalho gerado anteriormente pelo neoliberalismo” (p.
10).
Mesclando dados estatísticos com afirmações não demonstradas em sua
obra, Pochmann observa que
Mesmo com o contido nível educacional e a limitada experiência
profissional, as novas ocupações de serviços, absorvedoras de
enormes massas humanas resgatadas da condição de pobreza,
permitem inegável ascensão social, embora ainda distante de
qualquer configuração que não a da classe trabalhadora (p. 10).
Deste modo, explica que ocorreu uma retomada ou mesmo reversão do
quadro estabelecido após o governo Fernando Henrique Cardoso, que resultou
na queda da participação dos salários na economia, em favor do rentismo e das
demais rendas por propriedade.
O aquecimento da economia interna seria a consequência das
recomposições salariais:
Seja pelo nível de rendimento, seja pelo tipo de ocupação, seja
pelo perfil e atributos pessoais, o grosso da população emergente
não se encaixa em critérios sérios e objetivos que possam ser
claramente identificados como classe média. Associam-se, sim,
às características gerais das classes populares, que, por elevar o
rendimento, ampliam imediatamente o padrão de consumo. Não
há, nesse sentido, qualquer novidade, pois se trata de um
fenômeno comum, uma vez que trabalhador não poupa, e sim
gasta tudo o que ganha (Idem).
57
As chamadas classes populares seriam “em grande medida”
despolitizadas, individualistas e aparentemente racionais” (não chega a afirmar
que são irracionais, mas aparentemente o oposto, deixando margem a dúvidas).
Estas características reforçariam a impressão de que a tese de uma
nova classe média seja eivada de intenções mercadológicas, desejando
gerar mais conformismo sobre a natureza e a dinâmica das
mudanças econômicas e sociais do país, domesticar e alienar as
possibilidades de, pela política, aprofundar as transformações das
estruturas do capitalismo brasileiro neste início do século XXI (p.
11).
Exceto pelo uso de uma série de afirmações cabais contra uma ação
intencional e mercadológica, Pochmann faz uma defesa pela leitura do atual
quadro a partir da economia política, considerando as classes populares
desmobilizadas para pensar a respeito das forças econômicas, sociais e políticas
que levaram à retomada do crescimento do emprego e da renda.
A preocupação central do autor diz respeito a políticas econômicas que
transformem estruturalmente a economia brasileira, reduzindo o trabalho
precário e levando o desenvolvimentismo a outro patamar, voltado também para
a distribuição de renda e não apenas à superação da dependência estrangeira.
Defende a manutenção da valorização do salário mínimo, demonstrando
que a maior parte dos empregos gerados entre 2006 e 2010 remuneraram o
trabalhador, justamente, com o mínimo previsto na legislação.
A economia brasileira cresceu, sobretudo, impulsionada pelo setor
terciário, uma característica distinta da observada nos anos 1960 e 1970, quando
o setor secundário deu fôlego à economia nacional e gerou empregos.
A geração de empregos na primeira década do século XXI foi a maior
dos últimos quarenta anos, fortemente influenciada pelo setor de serviços, assim
como também pela construção civil e indústrias extrativas (POCHMANN, p.18-
19).
Os que mais se beneficiaram da geração de empregos na década
passada foram os mais pobres. Segundo o autor,
os postos de trabalhos gerados concentraram-se na base da
pirâmide social, uma vez que 95% das vagas abertas tinham
remuneração mensal de até 1,5 salário mínimo, o que significou o
58
saldo líquido de 2 milhões de ocupações abertas ao ano, em
média, para o segmento de trabalhadores de salário de base
(Idibem, p. 19).
Observa-se, pois, que “dos 2,1 milhões de vagas abertas anualmente,
em média 2 milhões encontram-se na faixa de até 1,5 salário mínimo mensal”
(Ibidem, p. 22). Estes trabalhadores foram beneficiados pela política de reajuste
do salário mínimo, sendo a base da pirâmide, justamente, a que mais elevou a
renda familiar.
Boa parte dos empregos foram gerados por micro e pequenas empresas,
que aumentaram a sua participação na economia nacional:
No ano de 2009, por exemplo, os micro e pequenos negócios
possuíam 15,3 milhões de empregados assalariados, o que
representou 37,2% do total de trabalhadores formais do país. Em
1989, com 6,9 milhões de ocupados, os micro e pequenos
negócios representavam 28,3% do emprego formal (Ibidem, p.
89).
De acordo com o levantamento do economista, as micro e pequenas
empresas respondem por 50,3% dos empregos gerados entre 1989 e 2009, ou
8,4 milhões de empregos formais de um total de 16,7 milhões.
Os jovens foram os mais beneficiados, com 75% dos novos empregos
se concentrando na faixa dos 24 a 49 anos de idade. O setor de comércio e o de
serviços representaram 79% das novas vagas formais de trabalho.
O levantamento de dados realizado por Marcio Pochmann vai ao
encontro dos estudos promovidos por Jessé Souza sobre os Batalhadores,
apontando uma economia aquecida e geradora de emprego e renda
especialmente para as classes populares, mais vulneráveis a medidas
econômicas como a valorização do salário mínimo e o incentivo ao crédito para
consumo.
No mesmo diapasão, Quadros (2008) alude à importância da variável
ocupação em um modelo de estratificação por classes sociais.
Para a filósofa Marilena Chauí (2013, p. 130), as classes médias
estariam atualmente restritas às “burocracias estatal e empresarial, o serviço
público, a peque- na propriedade fundiária e o pequeno comércio não filiado às
grandes redes de oligopólios transnacionais”.
59
Percebe-se claramente a concordância de Chauí com os estudos de
Pochmann, delimitando uma parcela do crescimento da nova classe média
como, na verdade, expansão de uma classe popular, ou trabalhadora. Com
inspiração marxista, salienta que
uma classe social não é um dado fixo, definido apenas pelas determinações econômicas, mas um sujeito social, político, moral e cultural que age, se constitui, interpreta a si mesmo e se transforma por meio da luta de classes. Ela é uma práxis, ou como escreveu E. P. Thompson, um fazer-se histórico. Ora, se é nisso que reside a possibilidade transformadora da classe trabalhadora, é nisso também que reside a possibilidade de ocultamento de seu ser e o risco de sua absorção ideológica pela classe dominante, sendo o primeiro sinal desse risco justamente a difusão de que há uma nova classe média no Brasil. E é também por isso que a classe média coloca uma questão política de enorme relevância.
Se é verdadeiro que as classes sociais são relacionais e somente
apreensíveis a partir do entendimento global das relações produtivas,
argumenta, então o surgimento de uma nova classe trabalhadora pode vir a ser
esvaziada de significado político se for capturada, ou absorvida, pela ideologia
dominante.
Na percepção de Marilena Chauí, o mero encaixe destes proletários à
classe média, a partir do uso de estatísticas economicistas, não apenas
desmobiliza o pensamento crítico a respeito das estruturas de exploração
econômica historicamente instituídos no Brasil, como pode levar a crer que o
aumento de renda seja suficiente para o desenvolvimento do país.
A classe média consolidada seria, por sua própria natureza,
Fragmentada, perpassada pelo individualismo competitivo,
desprovida de um referencial social e econômico sólido e claro, a
classe média tende a alimentar o imaginário da ordem e da
segurança porque, em decorrência de sua fragmentação e de sua
instabilidade, seu imaginário é povoado por um sonho e por um
pesadelo: seu sonho é tornar-se parte da classe dominante; seu
pesadelo é tornar-se proletária. Para que o sonho se realize e o
pesadelo não se concretize, é preciso ordem e segurança. Isso
torna a classe média ideologicamente conservadora e reacionária,
e seu papel social e político é o de assegurar a hegemonia
ideológica da classe dominante, fazendo com que essa ideologia,
por intermédio da escola, da religião, dos meios de comunicação,
60
se naturalize e se espalhe pelo todo da sociedade. (CHAUÍ, 2013,
p. 131).
Enquanto Chauí se refere à classe média como fragmentada, não
podemos deixar de notar que a sociedade brasileira como um todo é também
extremamente heterogênea, não apenas por causa da assimetria entre as
classes sociais, mas também pela desigualdade regional e local.
Ainda que, no geral, a intuição de Marilena Chauí esteja correta a respeito
do caráter conservador e reacionário da classe média brasileira, estabelecida,
permanece a ausência de marcadores de distinção capazes de vislumbrar com
maior clareza, a partir da empiria, as classes sociais.
Estes resultados que demonstram decréscimo da pobreza a partir de
transferências de renda mas, sobretudo, a partir da reativação do mercado de
trabalho, são fatores de explicação para o fenômeno econômico constatado por
Marcelo Néri em sua pesquisa, que aponta para o aumento da Faixa C, cujo nível
de renda está no patamar dos 20% mais ricos do mundo.
Compreendemos que o panorama econômico e a consolidação das
institucionalidades voltadas ao enfrentamento da pobreza e diminuição das
desigualdades foram articulados de maneira inédita na história brasileira,
refletindo uma maior responsividade do Estado, incorporando grandes
contingentes de pessoas ao mercado.
Os processos incrementais, sob o ponto de vista das políticas públicas,
trouxeram um alto custo ao ator público, caso esse venha a optar por alterar essa
trajetória de mudanças contínuas, realizadas sem reformas ou iniciativas que
signifiquem ruptura.
Sobre esse alto custo, começamos a desenvolver uma reflexão nas
páginas seguintes.
61
Políticas econômicas e políticas de renda
Na década de 2000, há uma mobilidade social que incorporou no
capitalismo brasileiro a noção de mercado consumidor de massas e trouxe para
o centro da agenda pública o combate às desigualdades em suas variadas
formas, tanto de renda quanto de distribuição territorial dos serviços públicos,
passando por políticas voltadas para as minorias, muitas delas discutidas de
maneira participativa.
Pesquisas elaboradas a nível governamental ou privadas (NERI, 2008;
SOUZA & LAMOUNIER, 2010; OLIVEIRA, 2010), citadas ao longo do nosso
texto, apontaram a mudança de patamar de milhões de famílias brasileiras, não
apenas por causa dos aumentos do rendimento mensal, mas pelo acesso a
políticas públicas, cujo resultado é inédito na história brasileira, de combinado
crescimento, melhoria no acesso a serviços públicos e redução da desigualdade
de renda.
Existem abundantes dados demonstrando que a ascensão social não se
deu pela única dimensão da renda familiar, mas pelo fortalecimento do trabalho,
queda de preços relativos de bens de consumos duráveis (POCHMANN, 2014),
modificação nos hábitos e na estrutura familiar e ampliação de serviços públicos,
esses últimos resultando em mudanças sociais mais aceleradas do que em
outras décadas.
Essa novidade permitiu gerar uma ascensão social horizontal, formando
uma classe trabalhadora consumidora a partir da recomposição de perdas
salariais, principalmente o salário-mínimo, remontando ao poder de compra do
começo dos anos 1980.
No período de nossa pesquisa, observamos nos aumentos de empregos
(que ocorreram sendo, sobretudo, de um salário-mínimo), pelo menos três
fatores interessantes: a retomada do poder de compra do salário-mínimo aos
patamares da década de 1980, aumento do trabalho formal, bem como a
ampliação da massa salarial em relação ao Produto Interno Bruto.
A emergência dessa ampliação de serviços públicos e de renda familiar
não é uma trivialidade, mas um acontecimento histórico no Brasil, demandando
62
ser compreendida tanto pelas modificações do capitalismo global quanto pelas
mudanças políticas e econômicas internamente empreendidas. É preciso
salientar que a sua importância está, justamente, na associação desses
elementos internos e externos, e não em seus elementos dissociados.
A partir dessa premissa, não se poderia esquecer do fato de que o Brasil
e alguns Estados latino-americanos procuram um modelo de desenvolvimento
capaz de reavivar os surtos de crescimento de décadas passadas e superar a
pobreza. Não há nada de novo no front em relação à busca por modelos de
desenvolvimento alternativos aos dos anos 1960 e 1970, marcados pela
substituição de importações, pela burocratização e uso de estatais em inúmeros
setores da economia.
Há algo novo, porém, na atuação responsiva (PRZEWORSKI, 1996) dos
Estados latino-americanos em relação às suas sociedades, reflexo da crise das
dívidas dos anos 1980 e dos resultados das políticas neoliberais nos anos 1990,
que anularam em parte as promessas das aberturas democráticas pelas quais
passaram países como Argentina, Brasil, Paraguai, Bolívia e Venezuela.
De acordo com Przeworski (1996), “os governos podem ser responsáveis
mas não ser responsivos”, considerando que “o princípio da responsabilidade
política não é condição suficiente para obrigar os governos a agir de acordo com
o que mais interessa aos cidadãos”, afinal, “os governos podem fracassar na
tentativa de fazer o melhor possível para promover os interesses dos cidadãos:
os detentores de mandato podem aceitar a possibilidade de derrota e passar a
se dedicar mais aos próprios interesses do que aos interesses do eleitorado”.
Desta forma, os governos responsivos atuam no sentido de promover o
interesse dos cidadãos, com políticas “que uma assembleia de cidadãos, tão
informados quanto o Estado, escolheria por votação majoritária, sob os mesmos
constrangimentos institucionais” (idem).
Vale dizer que a ampliação da responsividade se dá duas décadas ou
duas década e meia após a constatação da não-efetivação das promessas
democráticas no momento das aberturas nos países latino-americanos.
Para O´Donnel (1993), a realidade socioeconômica dos países latino-
americanos resultou em uma poliarquia “de um tipo diferente” (p. 124), sobre as
63
quais repousaria algum tipo de ausência teórica que lhes permitissem explica-
las melhor.
Uma parcela dessa dissemelhança com as poliarquias típicas, ou seja,
poliarquias amadurecidas, decorreria da existência de disparidades que
afetariam princípios como o da igualdade. O’Donnel afirma que
a igualdade garantida a todos os membros da nação em termos
de cidadania é crucial para o exercício dos direitos políticos
decorrentes do funcionamento da democracia e, também, para a
efetividade das garantias individuais consagradas na tradição
liberal (p. 127, grifos nossos).
A contrariedade com a promessa democrática adviria de uma crise
tridimensional
do estado enquanto um conjunto de burocracias capaz de cumprir
suas obrigações com eficiência razoável; da efetividade de sua
lei; e da plausibilidade da afirmação de que os órgãos do estado
normalmente orientam suas decisões segundo alguma concepção
do bem público (idem).
A partir dessa constatação, o autor compreende que as poliarquias novas
latino-americanas dependiam de políticas mais eficazes no sentido de promover
a igualdade, ameaçadas por agendas antiestatistas ou neoliberais, mas também
(1) combatendo o imediatismo, (2) a administração pública e sua burocracia
devem ser mais eficientes e (3) ampliação da participação, integrando novos
atores sociais ao processo decisório (O´DONNEL, 1993, p. 141).
Sem o aperfeiçoamento da burocracia, o planejamento de médio prazo, a
maior participação social, que impliquem em aumento da responsividade nos
termos já expressados por Przeworski, as promessas democráticas latino-
americanas permaneceriam vãs, pois
o mínimo que se pode dizer sobre esses problemas é, em primeiro
lugar, que eles não ajudam a avançar para uma democracia
institucionalizada consolidada; em segundo lugar, eles tornam
extremamente difícil a implementação das políticas complexas, de
longo prazo e negociadas multilateralmente que poderiam tirar
esses países do pântano; e, em terceiro lugar (não só na América
64
Latina), que esses problemas interagem poderosamente com uma
tradição de conceber a política de modo cesarista, antiinstitucional
e delegativo (p. 142, grifos nossos).
Nesse caso, nos anos 2000, os governos tornam-se mais responsivos e
dão respostas populares à crise neoliberal dos anos 1990, em favor do emprego,
da superação da pobreza e aumento de renda.
Em relação à sociedade brasileira, a novidade incorpora a preocupação
com a natureza dos gastos públicos nos anos 1990. De fato, nos anos 1980,
ainda que em cenário econômico adverso, uma série de direitos sociais foram
reconhecidos no âmbito da redemocratização, bem como a descentralização do
orçamento público, com graves problemas para a efetivação de ambos.
O reconhecimento de direitos tornou-se dependente de regulamentações
posteriores à promulgação da Constituição Federal de 1988 e de uma nova
realidade econômica que representasse a superação dos dilemas econômicos
dos anos 1980. Em relação à descentralização, esta ocorreu em um contexto de
desordem das contas públicas que enfraqueceram a “política dos governadores”
(ABRUCIO, 1998), cujo resultado, nos anos 1990, foi a centralização do
orçamento em favor do Governo Federal, operador de uma reordenação fiscal
no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Desse modo, as promessas democráticas podem ser em parte atendidas
quando satisfeitas as condições objetivas, orçamentárias e políticas, que
ampliam a responsividade de governos a grupos sociais, principalmente os
menos favorecidos historicamente.
Enfatizamos o processo de ampliação da responsividade no contexto
estatal brasileiro, incluindo elementos de ordenamento fiscal entre os Governos
FHC e Lula (2003-2010), mas não queremos, com isso, fechar as portas para
futuras reflexões sobre elementos de descontinuidade entre tais governos, e de
fato alguns destes serão apontados nesse capítulo. De toda sorte, parece-nos
importante averiguar a consolidação do funcionamento das instituições em
nossa nova poliarquia.
No desenvolvimento da pesquisa, percebemos que a combinação dessas
mudanças são reflexos da realidade demográfica, das relações econômicas
65
nacionais e globais e, também, refletem a consolidação da democracia liberal no
país, no sentido de se promover modificações sociais incrementais.
Há um incrementalismo nas políticas sociais desde a década de 1990, no
sentido de se ampliar gastos sociais públicos e universalizar a educação
primária; e, a partir dos anos 1990, recuperando o poder de compra do
trabalhador.
De acordo com Souza (2006, p. 29), a perspectiva incrementalista de
políticas públicas compreende que
os recursos governamentais para um programa, órgão ou uma
dada política pública não partem do zero e sim, de decisões
marginais e incrementais que desconsideram mudanças políticas
ou mudanças substantivas nos programas públicos
Nessa concepção, as “decisões tomadas no passado constrangem
decisões futuras e limitam a capacidade dos governos de adotar novas políticas
públicas ou de reverter a rota das políticas atuais” (idem).
Em países centrais, as reformas neoliberais fizeram com que as
explicações incrementalistas perdessem espaço e prestígio, dado o fato de que
o neoliberalismo implicou em mudanças de grande monta.
Porém, é importante frisar que as novas institucionalidades, relacionadas
à ampliação da responsividade estatal, não advieram de rupturas, ao menos no
caso brasileiro.
É notável a participação de variáveis importantes para esse quadro
incremental: o presidencialismo de coalizão brasileiro, a existência de
mecanismos de accountability, fortalecendo o pluralismo em nossa poliarquia, o
insulamento burocrático e o federalismo.
Segundo Mainwaring (2003, p. 6), accountability não é um conceito
consensual (no original: “accountability is a far-from-consensual concept”), sendo
utilizado em distintos contextos, embora esteja ligada à noção de
responsabilização.
66
A responsabilização política de altos funcionários, eleitos ou não, ou seja,
governantes e burocratas, tanto por suas ações quanto por suas omissões, se
unem à responsabilização jurídica.
Nesse sentido, accountability não se limita a uma mera prestação de
contas, englobando, efetivamente, alguma possibilidade de sanção
(MAINWARING, 2003, p. 13).
Gostaríamos de abordar, nesse momento, de modo resumido, os
mecanismos de accountability e os aspectos federativos, embora os demais
elementos acabem sendo suscitados nesse resgate.
É fundamental para uma poliarquia a possibilidade de se remover, via
sufrágio, as lideranças políticas que governam o país. Nesse sentido, é crucial
que exista uma alternativa política ao grupo governante, construída pela
observância de direitos como o de livre reunião, associação e expressão.
Guilhermo O’Donnel (1998) denomina esse tipo de accountability vertical,
aonde é possível
por meio de eleições razoavelmente livres e justas, [...] punir ou
premiar um mandatário votando a seu favor ou contra ele ou os
candidatos que apoie na eleição seguinte. [...] Eleições,
reivindicações sociais que possam ser normalmente proferidas,
sem que se corra o risco de coerção, e cobertura regular pela
mídia ao menos das mais visíveis dessas reivindicações e de atos
supostamente ilíticos de autoridades públicas são dimensões do
que chamo de “accountability vertical” (O’DONNEL, 1998, p. 28,
grifos nossos).
A substituição de lideranças políticas não implica necessariamente na
mudança total das políticas do grupo rechaçado nas urnas. O caso concreto aqui
analisado é o da sucessão entre Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula
da Silva.
Ainda sobre o accountability, O’Donnel denomina o controle entre
instituições como accountability horizontal, em que
a existência de agências estatais que tem o direito e o poder legal
e que estão de fato dispostas e capacitadas para realizar ações,
que vão desde a supervisão de rotina a sanções legais ou até o
impeachment contra ações ou emissões de outros agentes ou
67
agências do Estado que possam ser qualificadas como delituosas
(O’DONNEL, 1998, p. 40, grifos nossos).
Nesse sentido, a articulação entre essas duas formas de accountability
resultam em um complexo jogo de coordenação no sentido de promover
diferentes atores sociais e o controle sobre a ação estatal.
Associado a esse quadro, as relações federalistas também englobam um
pluralismo. Grandes mudanças institucionais, de maneira geral, envolvem alto
custo ao governante quanto mais fragmentados e influentes são os grupos
sociais.
A chamada “conjuntura crítica”, termo de Pierson resgatado por Loureiro
e Abrucio (2000 apud 2002), passa a demandar um horizonte de eventos que
reduza os custos do governante e se conceba alguma forma de entendimento
nacional capaz de consolidar uma agenda de reformas.
No caso do Plano Real, por exemplo, a hiperinflação e o desarranjo das
contas públicas, com deletérias influências no planejamento estatal, atuaram no
sentido de se arquitetar reformas econômicas, ainda que mais moderadas do
que em outros países, como a Argentina (PALERMO, 1998). Durante a
implementação do Plano, foi possível coordenar de maneira diferente o
federalismo brasileiro, no sentido de se garantir um ambiente econômico e
institucional mais previsível (ABRUCIO, 2002).
Do ponto de vista da articulação dos entes federados, é notória a
necessidade de se modernizar as administrações subnacionais e lhes assegurar
autonomia financeira.
Esclarece Abrucio que
Os possíveis ganhos de eficiência resultantes da
desconcentração das atribuições não são alcançados caso faltem
recursos suficientes às administrações locais, ou se estas
deixarem de exercer sua autoridade tributária. O repasse das
funções antes centralizadas só alcança plenamente seus
objetivos quando acoplado à existência ou à montagem gradativa
de boas estruturas gerenciais nos níveis inferiores. Obviamente
que a grande concentração de tarefas nas mãos do Governo
Central é prejudicial à eficiência, porém, a manutenção de
padrões arcaicos de governança no plano local, além de reduzir a
68
efetividade da ação estatal, desmoraliza a descentralização,
podendo até incentivar propostas demagógicas de
(re)centralização e paternalismo. Logo, a modernização
administrativa dos governos subnacionais é condição sine qua
non de um ciclo virtuoso descentralizador (2002, p. 155).
Considerando que “mais do que um simples cabo de guerra, as relações
intergovernamentais requerem uma complexa mistura de competição,
cooperação e acomodação” (PIERSON, 1995, p. 458 apud ABRUCIO, 2002, p.
165), compreendemos o papel fundamental das relações federativas na
constituição de políticas incrementais.
Além disso, há um papel preponderante do Governo Federal na
articulação desses processos de mudança.
O aqui denominado incrementalismo social advém da necessidade de se
cumprir parte dos direitos reconhecidos na Constituição Federal de 1988, à
medida em que a realidade fiscal e política permitia, bem como à medida em que
a economia se inseria internacionalmente.
Já as mudanças do capitalismo são, conforme alegamos, importantes
para pensarmos essas transformações, deslocando para a Ásia parte importante
do parque fabril global, tanto deslocando o eixo do crescimento econômico
mundial para o continente asiático como popularizando bens de consumo
produzidos nessas economias orientais.
O crescimento asiático, ademais, demandou a exportação brasileira de
commodities e foram importantes para a melhoria do quadro econômico na
última década.
Sobre o acesso ao consumo de bens duráveis, Pochmann (2014)
demonstrou, em recente trabalho, que se deu uma “queda nos preços relativos,
especialmente com a queda dos custos dos bens de consumo duráveis desde
os anos 1990” (p. 87), como reflexo do momento no capitalismo mundial de
transferência dos parques fabris para a Ásia, além das políticas de comércio
exterior adotadas no Brasil que favoreceram a importação das manufaturas.
Em relação aos gastos sociais federais, ocorreu um crescimento de cinco
pontos percentuais em relação ao Produto Interno Bruto entre 1995 e 2011.
Equivale a um incremento de quase 45%, em termos relativos; já o gasto
69
nominal, em bilhões de Reais a valores de 2011, apresentou aumento de pouco
mais de 290%. O gráfico abaixo apresenta o Gasto Social Federal entre 1995 e
2011, em relação ao PIB (IPEA, 2012).
Gráfico 5 – Gasto social Federal/PIB (%)
Fonte: IPEA
Mudanças globais do capitalismo, associadas à consolidação democrática
brasileira, nos permitem compreender melhor o crescimento da Faixa C. Nesse
caso, parece ser uma discussão mais complexa do que parece à primeira vista.
A inserção, na agenda pública, do combate às desigualdades e a opção
por fortalecer o mercado interno, é uma novidade política e social no país. Nos
anos 1950 e 1960, até 1970, a orientação ou fio condutor das políticas
econômicas salientava a substituição das importações, atendendo a um
mercado consumidor mínimo.
A ênfase no crescimento econômico, com desigualdades também
crescentes, construiu o que o economista Edmar Bacha outrora denominou
como Belíndia – o Brasil fragmentado, parte Bélgica, parte Índia, em que o
10,00%
11,00%
12,00%
13,00%
14,00%
15,00%
16,00%
17,00%
1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012
70
crescimento econômico era o “Felicitômetro” do “Rei”14. Nesse país fictício, a
Belíndia, os tecnocratas modularam o desenvolvimento econômico tomando por
base o crescimento do Produto Interno Bruto.
Após o surto de crescimento econômico brasileiro nas décadas citadas, o
Brasil passou a ser um país à procura de um modelo de desenvolvimento,
atravessado por uma série de dilemas econômicos. A partir dos anos 1980,
passa a vivenciar taxas de crescimento modestas, conforme veremos adiante.
Historicamente, é possível destacar um pacto desenvolvimentista urbano-
industrial iniciado pela Era Vargas e continuada nos anos Kubitschek (1930-
1960), no qual estava contemplada a dicotomia entre cidade e campo, indústria
e agricultura.
Obviamente, o dualismo se constitui muito mais em um esquema de
pensamento para analisar a realidade social, muito popular na intelectualidade
brasileira até os anos 1980, mas também orientou sentidos de políticas
econômicas e sociais do período, favorável ao trabalho industrial e urbano e
desfavorável às franjas da sociedade brasileira.
Além da agenda pública, notadamente o país encontra maiores
obstáculos para crescer a taxas robustas após a década de 1970, confirmando
que países de renda média apresentam maiores dificuldades para mudar de
patamar.
O Brasil é um país de renda média desde os anos 1960 e 1970, resultado
de um intenso crescimento econômico, da urbanização e industrialização que
remonta aos anos 1930. Após cinco décadas – ou meio século – permanecemos
no mesmo patamar, não alcançando o degrau da “alta renda”.
Essa realidade é explicada pelo crescimento a taxas mais modestas em
relação ao período 1930-70. A economia brasileira, nos últimos quarenta anos,
apresenta menor expansão da atividade econômica.
Nesse caso em especial, o desenvolvimento social passa a ser
dependente de duas variáveis: 1) maior eficiência das políticas; e 2) aumento
14 BACHA, Edmar. O rei da Belíndia (uma fábula para tecnocratas). Disponível em
<iepecdg.com.br/Arquivos/ArtigosBacha/Bel�ndia.pdf>. Acesso em 09/03/2012.
71
dos investimentos relativos ao PIB. Uma vez que ambas as variáveis são
satisfeitas, sobretudo a segunda, com investimentos proporcionais ao PIB
elevados, o país passa a depender do crescimento de investimentos nominais,
ou seja, retorna ao problema de fundo: o baixo crescimento econômico.
A estabilidade econômica, fatores demográficos e aperfeiçoamento das
políticas públicas satisfazem a primeira variável acima citada, sendo difícil
precisar o quão maior pode ser o ganho de aumento de eficiência.
Em alguns anos, de maneira isolada, nas últimas quatro décadas, o
Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresce a taxa mais robusta, mas esse
percentual não se sustenta por muitos anos. Esse panorama ficou conhecido
popularmente como “voo de galinha”, característico do Brasil pós-milagre.
De acordo com Gala (2007),
a partir da crise da dívida no início dos anos 1980, o padrão de
crescimento das economias latino-americanas se distanciou de
seu registro histórico. Países como Brasil e México que exibiam
altas taxas de crescimento per capita até então entram num ciclo
de “stop and go” que persiste até hoje. Com a exceção do Chile e
possivelmente Colômbia, o desempenho dos países da região nos
1980 e 1990 ficou muito aquém de seu desempenho histórico.
A média de crescimento nos anos 1990 foi de 2,56%, enquanto a dos anos
2000, 3,65%. Desde o lançamento do Plano Real, o país cresceu 3,3% (IBGE,
2011). Esses números são bastante inferiores às médias das décadas
anteriores, conforme facilmente percebemos no próximo gráfico.
Gráfico 6 – Taxa de crescimento do PIB (décadas de 1950 a 2000), em %
72
Fonte: IBGE
Entre 1995 e 2000, o crescimento médio da economia brasileira foi de
2,4%, ao passo em que, entre 2001 e 2011, foi de 3,6%, de acordo com dados
do IPEADATA. No primeiro período, o crescimento do consumo das famílias foi
de 3,1%, enquanto no segundo, foi de 3,9%. A partir de 2005, o crescimento do
consumo das famílias foi de 5,3%.
Em relação aos investimentos, entre 1995 e 2000, a taxa média de
crescimento foi de 2,3%; na década 2001-2011, 5,4%; a partir de 2005 (até
2011), 8,6%.
Tabela 6 – Crescimento do PIB no Brasil, do consumo das famílias e dos investimentos (1995-2011) em %
Ano Crescimento PIB Crescimento consumo das
famílias
Crescimento investimentos
1995 4,42 8,62 7,29
1996 2,15 3,24 1,5
1997 3,38 3,03 8,73
1998 0,04 -0,72 -0,34
1999 0,25 0,38 -8,2
2000 4,31 4,03 5,03
2001 1,31 0,68 0,44
2002 2,66 1,93 -5,23
2003 1,15 -0,78 -4,59
2004 5,71 3,82 9,12
7,41
6,22
8,68
1,672,56
3,65
Crescimento médio
1950 (1951-1960) 1960 (1961-1970) 1970 (1971-1980)
1980 (1981-1990) 1990 (1991-2000) 2000 (2001-2010)
73
2005 3,16 4,47 3,63
2006 3,96 5,2 9,77
2007 6,09 6,07 13,85
2008 5,17 5,67 13,57
2009 -0,33 4,44 -6,72
2010 7,53 6,94 21,33
2011 2,73 4,09 4,72
Fonte: IBGE
Ainda que se observe um aumento nos percentuais de crescimento
econômico, o Brasil mostra desempenho inferior aos demais países emergentes,
ou mesmo às médias internacionais, como é possível perceber na tabela abaixo,
elaborada por Alves (2015, p. 2), de acordo com dados do FMI.
Tabela 7 – Crescimento do PIB no mundo, economias avançadas, emergentes e do Brasil (1981-2010)
Mundo, regiões e Brasil 1981-90 1991-00 2001-10
Mundo 3,3 3,2 3,6
Economias avançadas 3,3 2,8 1,6
Economias emergentes 3,4 3,9 6,2
Brasil 1,6 2,7 3,7
Fonte: ALVES, 2015
Obviamente, o enquadramento do país como renda média tem a ver com
um corte arbitrário e bastante dependente do conceito de crescimento
econômico (o “Felicitômetro do Rei”), mas reflete o esgotamento de um modelo
de desenvolvimento, na medida em que não se logrou o patamar de país de
renda elevada.
Existem razões políticas, ideológicas e econômicas capazes de explicar o
fenômeno da mobilidade social mais acelerada nos anos 2000, a partir de uma
orientação historicamente inédita no Brasil, o combate às desigualdades, como
já vínhamos dizendo. Tão ou mais importante que a expansão do mercado
consumidor, foi a sua interiorização.
74
O pano de fundo, porém, remonta aos anos 1980, com o congelamento
ou cristalização da mobilidade social brasileira após o sucesso da Era Vargas e
Kubitschek para crescer economicamente, industrializar e urbanizar o país
(POCHMANN, 2014).
Embora tenha obtido êxito no que se propunha, o modelo da Era Vargas,
Kubitscheck e continuado nos anos militares, perde o fôlego após os anos 1970,
sem resolver o central para uma política econômica capaz de desenvolver o país:
permanecemos dependentes do financiamento externo.
De fato, durante os anos 1960 e 1970, intelectuais latino-americanos se
envolveram bastante com as chamadas “teorias da dependência”,
problematizando e ofertando explicações científicas para a insuficiência dos
modelos de desenvolvimento na região, considerando as políticas econômicas
nacionais apenas parte do fenômeno, incorporando reflexões sobre as relações
entre centro e periferia no capitalismo.
Voltando ao que argumentávamos sobre os anos 1980, não apenas o
Brasil, como a América Latina, entraram em uma fase de crises econômicas
sucessivas por falta de liquidez, graças ao endividamento público e rareamento
do financiamento externo.
Durante a conhecida “década perdida” (anos 1980), o poder de compra
dos salários declina graças a uma realidade de inflação elevada e posterior
hiperinflação, combinada com momentos de recessão ou baixo crescimento
econômico.
No Brasil, o arrocho salarial remonta à instalação do governo civil-militar
de 1964, em favor das classes médias urbanas e em detrimento às classes
populares (CACCIAMALI et all, 1994 e VELLOSO, 1990).
Há um indicador capaz de demonstrar a perda de valor do salário-mínimo,
como um sinalizador do que ocorrera naquele momento. Elaborado pelo
DIEESE, o mínimo é convertido ao Real, a valores de 2011. No eixo X,
correspondente aos anos, optamos por trabalhar (agora) com uma década (em
páginas vindouras, com duas décadas e meia), iniciando em 1985 e encerrando
em 1995.
75
Gráfico 7 – Salário-mínimo entre 1985 e 1995 (a valores de 2011)
Fonte: DIEESE
Nota-se a perda do poder de compra de 50% do salário-mínimo entre
1985 e 1995, em um contexto, já explicitado, de correções monetárias e
hiperinflação. Na verdade, a corrosão do valor do mínimo ocorre desde os anos
1960 (ver CACCIAMALI et all, 199415), graças à política de austeridade iniciada
em 1964 (VELLOSO, 1990). O valor de 1985 somente será superado no ano de
2011, final da década de 2000.
Embora o salário-mínimo seja um indicador insuficiente para explicitar a
queda do poder de compra da população nesse diapasão, dado o trabalho
informal e trabalhadores que recebiam acima do mínimo, existem indícios – já
observados nos anos 1970 e 1980 – de que o salário-mínimo exerce influência
sobre os demais salários, conforme demonstrou Velloso (199016).
Nos amos 1980, o crescimento econômico foi reduzido a pó, comparado
com os anos 1970, quando a média era de 8,7% de incremento do Produto
Interno Bruto ao ano. Passa a ser de 1,67% de expansão média do PIB. Isso, é
15 CACCIAMALI, Maria Cristina; PORTELA, Andre; FREITAS, Eduardo F. O papel do salário mínimo nos
anos 80: novas observações para o caso brasileiro. Revista Brasileira de Economia, n. 48, vol 1. Jan/mar
1994.
16 VELOSO, Ricardo Cicchelli. Salário mínimo e taxa de salários: o caso brasileiro. Pesquisa e
Planejamento Econômico, vol. 20, no. 03. Dez 1990.
1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995
R$ 567,35 548,94 391,68 407,65 434,2 317,06 327,93 286,03 317,49 271,01 264,87
0
100
200
300
400
500
600
76
bom dizer, significa diminuição da renda per capita, pois a população se
expandia a taxas superiores a 1,7%.
Considerado o crescimento médio da economia e o crescimento
vegetativo da população, observamos uma queda de 9% no PIB per capita entre
1980 e 1992 (LACERDA, 199417). A valores de 2003, a renda per capita brasileira
declinou de R$ 7.963, em 1980, para R$ 7.629, em 1991 (BACHA, 200418).
Gráfico 8 – Renda per capita entre 1980 e 1991 a valores de 2003
Fonte: BACHA, 2004
Ao final dos anos 80, alguns organismos internacionais e o governo norte-
americano, inauguram uma política de resgate das economias fragilizadas, como
as latino-americanas, envolvendo não apenas ajuda financeira ou alinhamento
geopolítico, já garantido até antes do colapso da União Soviética, mas também
a adoção de novos paradigmas de gestão pública, redução dos gastos e da
participação dos Estados em suas respectivas economias, incluindo fortes
programas de desestatização, sem esquecer da abertura comercial,
compreendida naquele momento como uma internacionalização das economias.
17 LACERDA, Antonio Correa. Distribuição de renda nos anos 1980. Revista de Economia Política, vol. 14,
no. 03. Jul-set 1994.
18 BACHA, Carlos José Caetano. Macroeconomia aplicada à análise da economia brasileira. São Paulo:
EdUSP, 2004.
6.200
6.400
6.600
6.800
7.000
7.200
7.400
7.600
7.800
8.000
8.200
8.400
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991
77
De fato, após essa reorientação, as economias latino-americanas voltam
à liquidez internacional (incluindo o Brasil, que pôde renegociar sua dívida)
perdidas nos anos 1980 e encontram um contexto econômico global favorável a
planos locais de estabilização da moeda e redução da inflação, que ocorreram
em nível regional e mesmo global.
Ainda assim, nos anos 1990, no caso brasileiro e provavelmente dos
demais países latino-americanos, permaneceu um importante passivo social
resultante do congelamento da mobilidade social.
Em nosso contexto, duas variáveis são importantes: a forma como a
estabilização econômica ocorreu no Brasil e o próprio modelo proposto
internacionalmente para o país, inclusive como pré-condição para renegociar
sua dívida.
Após perdas sucessivas do poder de compra nos anos 1980, nos anos
1990 ocorre estabilização ou redução mínima das perdas; em relação ao
emprego, porém, os anos 1990 apresentaram um quadro de recrudescimento,
com perda de postos de trabalho a índices inéditos, na história brasileira, de
desemprego.
Há, no caso brasileiro, um momento dúbio nos anos de 1990: claros
avanços sociais, expansão dos gastos sociais, mas a condução de políticas
econômicas refratárias ao emprego e à renda.
Em parte, porque integrantes da equipe econômica à frente do programa
de estabilização brasileiro, que incluía a introdução da Unidade Real de Valor
(URV) e o Plano Real, estiveram presentes no governo José Sarney (1985-1990)
durante a implementação do Plano Cruzado (1986), fracassado no propósito de
eliminar a alta inflação nos anos 1980.
Uma das razões para a perda de performance do Cruzado seria a adoção
de abonos salariais para preservar o poder de compra da população, resultando
em uma “bolha de consumo”, incluindo a introdução de trabalhadores da base
da pirâmide no mercado consumidor (NERI, 1991). A partir desse diagnóstico
sobre o Plano Cruzado, a equipe econômica do Plano Real se mostrava reticente
com a recuperação imediata do poder de compra do trabalhador, temendo a
repetição do fracasso ocorrido nos anos 1980.
78
O Plano de estabilização de 1986, o Cruzado, incorporou um princípio de
recomposição salarial face às perdas dos anos de ditadura civil-militar,
principalmente as perdas do princípio dos anos 1980 (CICHELLI, 1986).
Independentemente do que ocorreu concretamente com o plano, é
interessante perceber que os seus idealizadores convergiram para uma
avaliação de seu fracasso, em que não haveria apenas uma inflação “inercial”
(uma memória inflacionária), mas também uma inflação de demanda.
Essa “bolha” teria sido provocada pelo súbito aumento do poder de
compra do trabalhador, de 16% do salário-mínimo e 8% dos demais salários (já
de início) e pelo gatilho salarial quando a inflação chegasse aos 20% (NERI,
1991). A demanda em ascensão e o congelamento de preços teria levado ao
desabastecimento de mercadorias ao longo do tempo e ameaçado o próprio
tabelamento de preços, prática adotada à época.
Alguns arquitetos do Plano Cruzado, no governo do Partido do Movimento
Democrático Brasileiro, o PMDB, migraram para uma nova agremiação ainda no
final do governo Sarney, em 1988, resultante de uma dissidência no partido do
presidente. Do PMDB, surgiu o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
O PSDB esteve presente na coalizão que deu sustentação ao governo
Itamar Franco (1992 a 1994) e posteriormente foi o vencedor das eleições
presidenciais de 1994, encabeçando uma coligação eleitoral com a candidatura
de Fernando Henrique Cardoso (FHC), ex-ministro da Fazenda de Itamar,
apresentado ao eleitorado como o grande mentor do Real e responsável pela
redução da inflação.
Para Loureiro e Abrucio (2002, p. 61), “novidade [do Real] estava na
mistura de policy learning, pois muitos dos técnicos haviam participado e
aprendido com os planos anteriores”. Nesse sentido,
o histórico recente das políticas econômicas brasileiras revela que
na maior parte dos casos nos quais o incrementalismo não fora
adotado como padrão decisório e de implementação, os
resultados acabaram por ser ruins tanto para o desempenho
econômico como para a accountability democrática. Exemplos
paradigmáticos são os planos econômicos heterodoxos, como o
Cruzado ou o Collor I, que misturavam insulamento burocrático,
hiperatividade decisória e, em certos casos, condução
79
presidencial personalista, com conseqüências distantes tanto da
responsabilização política como da eficácia. Exatamente por fugir
desse modelo que o Plano Real deu certo. (LOUREIRO e
ABRUCIO, 2002, p. 61).
No que diz respeito à política externa, Fernando Henrique foi apresentado
como o fiel da balança para garantir as reformas liberais, incluindo o acesso ao
financiamento externo. Enquanto ministro da Fazenda, FHC capitaneou a
adesão brasileira ao Plano Brady de reestruturação da dívida externa, formulado
pelo Tesouro norte-americano no final dos anos 1980.
Esse segundo elemento (assim como o fracasso do Plano Cruzado),
ajuda a explicar por que, já nos anos 1990, não se empreendeu um vigoroso
processo de recomposição salarial, apenas realizado na década posterior.
O Plano Brady vinculou o refinanciamento da dívida a compromissos
forjados pelo que Williamson (1990) denominou Consenso de Washington.
Outros países que aderiram a essa reestruturação foram Argentina, Bulgária,
Costa Rica, República Dominicana, Equador, México, Marrocos, Nigéria,
Filipinas, Polônia e Uruguai – a maioria, países latino-americanos.
O plano de estabilização econômica iniciado no ano de 1994, o Real, não
pode ser desconectado do compromisso firmado entre Brasil e Estados Unidos
da América em relação a reformas econômicas pós década de 1980, marcada
pelas crises econômicas latino-americanas. Nesse sentido, parte da condução
do Plano estava subordinado a um diagnóstico a respeito do papel do Estado na
economia.
Bresser-Pereira (1991, p. 3) relata o que, na “abordagem de Washington
[seriam] as causas da crise latino-americana”:
a) o excessivo crescimento do Estado, traduzido em
protecionismo (o modelo de substituição de importações),
excesso de regulação e empresas estatais ineficientes e em
número excessivo; e b) o populismo econômico, definido pela
incapacidade de controlar o déficit público e de manter sob
controle as demandas salariais tanto do setor privado quanto do
setor público.
80
Observa-se que, no diagnóstico norte-americano sobre as crises na
América Latina, as economias da região deveriam se abrir à competição global
e o déficit público combatido, incluindo a tarefa de manter sob controle demandas
salariais. Dito de outra forma, para Washington, “a crise latino-americana
origina[va]-se na indisciplina fiscal (populismo econômico) e no estatismo
(protecionismo nacionalista)” (idem).
Embora não seja o escopo dessa pesquisa, não nos parece ser
improcedente afirmar que a equipe econômica formuladora do Plano Cruzado
convergiu, também, para tal diagnóstico. Suas avaliações sobre o fracasso do
plano estão invariavelmente conectadas à noção de bolha de consumo
ocasionadas pelo que acima foi descrito como “populismo econômico”, que no
primeiro momento levou o país a uma situação de euforia e acachapante vitória
eleitoral do governismo nas eleições de 1986, mas depois se mostrou uma
grande frustração de expectativas, com o retorno da hiperinflação.
Retornando ao que dizíamos, o economista britânico John Williamson
denominou os conceitos e práticas econômicas defendidas pelo governo
americano e por alguns órgãos internacionais como Consenso de Washington,
baseado em um diagnóstico sobre o fracasso econômico latino-americano nos
anos 1980.
O receituário não foi apenas defendido pelo governo norte-americano mas
também pelas agências de financiamento como o Banco Mundial, Banco
Interamericano de Desenvolvimento e Fundo Monetário Internacional,
construindo uma rede articulada, por isso conhecida como um consenso.
Obviamente, o termo é bastante forte e leva a crer que não havia
divergências entre os agentes econômicos e formuladores de políticas. Porém,
devemos entendê-lo como um recurso de linguagem para salientar a grande
convergência em elementos centrais dos ajustes.
De acordo com John Williamson (1990, apud Bresser-Pereira 1991),
o “consenso de Washington” é constituído de 10 reformas: a)
disciplina fiscal visando eliminar o déficit público; b) mudança das
prioridades em relação às despesas públicas, eliminando
subsídios e aumentando gastos com saúde e educação; c)
81
reforma tributária, aumentando os impostos se isto for inevitável,
mas “a base tributária deveria ser ampla e as taxas marginais
deveriam ser moderadas”; d) as taxas de juros deveriam ser
determinadas pelo mercado e positivas; e) a taxa de câmbio
deveria ser também determinada pelo mercado, garantindo-se ao
mesmo tempo em que fosse competitiva; f) o comércio deveria ser
liberalizado e orientado para o exterior (não se atribui prioridade à
liberalização dos fluxos de capitais); g) os investimentos diretos
não deveriam sofrer restrições; h) as empresas públicas deveriam
ser privatizadas; i) as atividades econômicas deveriam ser
desreguladas; j) o direito de propriedade deve ser tornado mais
seguro.
De acordo com o modelo citado, as sociedades latino-americanas
deveriam forjar novos pactos sociais no sentido de diminuir a presença do Estado
na economia ao promover a sua liberalização.
Obviamente, nem todas as economias latino-americanas seguiram o
receituário em sua plenitude, seja por alguma forma de discordância, seja por
impedimentos estruturais e institucionais.
No Brasil, por exemplo, o câmbio não tinha preço livre até 1999, quando,
diante de grave crise econômica, o governo brasileiro capitulou; podemos
apontar, ainda, para a inexistência de uma reforma tributária, com maior base de
arrecadação e realmente progressiva. Por outro lado, ocorreram maiores
investimentos sociais, como apontamos no início desse capítulo.
As discussões sobre a reforma tributária permanecem no centro do
debate até hoje, dada a dificuldade política de levá-la a cabo. Os programas de
reformas à Constituição não foram concluídos até os tempos atuais.
Ex-ministro da Fazenda inglês e funcionário do Fundo Monetário
Internacional (FMI), Williamson atuou como docente na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, sendo colega de Pedro Malan e professor de Armínio
Fraga, dois grandes expoentes do Governo FHC19.
19 Williamson alegou que, quando cunhou a expressão “Consenso de Washington” não imaginara que estas
concepções pudessem resultar em Estado mínimo ou política monetarista
(http://veja.abril.com.br/061102/entrevista.html). Contudo, essas foram as consequências de tal corolário,
incluindo a sua consequência mais dramática: a depressão do emprego e depreciação dos salários.
82
Em relação aos princípios do Consenso e ao receituário correspondente,
a tradução para o caso brasileiro é bastante óbvia: encerrar a Era Vargas20.
De qualquer maneira, as reformas do Estado propostas por Cardoso
podem ser consideradas gradualistas, segundo Palermo (1998, p. 134).
Comparadas a de outro país sulamericano, a Argentina, as reformas brasileiras
teriam seguido a uma “estratégia gradual”, enquanto as reformas durante o
governo do ex-presidente argentino Carlos Menem (1989-1999) teriam seguido
uma “estratégia de blitzkrieg” (PALERMO, 1998, p. 134).
A distinção primordial, na concepção de Palermo, seria a ausência de um
blueprint nas reformas brasileiras. Esse blueprint seria “um plano, um projeto que
supostamente [...] organiza [...] processos de transformações de instituições e
relações entre atores sociais” (idem).
No caso argentino, o blueprint seria o próprio Consenso de Washington,
abraçado com maior convicção como uma resposta da desestruturação da
economia argentina no começo dos anos 1990 (PALERMO, 1998). Dessa forma,
“o pragmatismo radical de Menem não supõe obstáculo algum quando se trata
de escolher, por razões puramente político coalizacionais, um paradigma de
política e convertê-lo no blueprint da ação reformista” (PALERMO, 1998, p. 138).
O contexto brasileiro seria menos amistoso a mudanças radicais, ao
passo em que
o êxito da etapa desenvolvimentista se projeta não somente na
vigência das ideias e das elites político-partidárias mas também
na persistência de orientações não-liberais nos organismos
estratégicos de financiamento do setor público, como o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES), que faz um
contrapeso às orientações dos setores financeiros privados
(PALERMO, 1998, p. 97, grifos nossos).
Em outras palavras, as reformas neoliberais dos anos 1990 teriam sido
graduais no caso brasileiro dada a sombra de Vargas e de Kubitschek, que
20 O então senador Fernando Henrique Cardoso, no dia 14/12/1994, declarou o fim da Era Vargas em seu
discurso de despedida do Congresso. No mês de janeiro de 1995, assumiria o novo cargo para o qual
havia sido eleito, o de Presidente da República.
Ver CARDOSO, F.H. Discurso de despedida do Senado Federal – Filosofia e diretrizes de governo
(14/12/94). Disponível em < http://www.senado.gov.br/atividade/pronunciamento/detalhes.asp?d=160990>
83
arquitetaram uma industrialização pela substituição de importações,
sobrevivente dos anos 1980.
Portanto, para Palermo,
as diferenças consistem em que durante 15 anos que
antecederam a 1989 e 1994, respectivamente, na Argentina teve
lugar um processo de regressão econômica, enquanto que o
Brasil viveu um processo de conservação. Como consequência,
enquanto a Argentina chega a 1989 com uma estrutura
econômica que deixou atrás grande parte da complexidade e
diversificação alcançada durante o ciclo substitutivo, o Brasil
chega havendo preservado muito mais do que havia conseguido
estruturar em termos de complexidade e diversificação de sua
composição setorial produtiva durante o ciclo (1998, p. 138)
Para Faucher e Heredia, a arquitetura desenvolvimentista brasileira
sobrevive aos anos 1980 dada “a relação privilegiada entre as agências públicas
de financiamento e o setor industrial” (1995, apud PALERMO, 1998, p. 139). Isso
significa que esses atores sociais mantiveram peso político e capacidade de
influencias a agenda pública reformista.
A resistência de diferentes atores da sociedade brasileira, seja no meio
sindical, entre os industriais ou mesmo a discordância entre personagens
importantes do núcleo duro do governo, foi importante para a efetivação de um
gradualismo forjado por uma coalizão entre elites modernizantes e fisiológicas
no Governo FHC (PALERMO, 1998).
De acordo com Loureiro e Abrucio, essa resistência reflete o
accountability democrático presente no contexto brasileiro.
O histórico recente das políticas econômicas brasileiras revela
que na maior parte dos casos nos quais o incrementalismo não
fora adotado como padrão decisório e de implementação, os
resultados acabaram por ser ruins tanto para o desempenho
econômico como para a accountability democrática (2002, p. 61,
grifos nossos).
À luz desse entendimento, é interessante resgatar que uma tentativa de
reforma mais semelhante à de Carlos Menem foi embrionariamente iniciada no
Governo Collor (PALERMO, 1998), fracassando dada a resistência de diversos
atores sociais e a débil base de apoio daquele governo.
84
De acordo com Palermo (2000),
Mainwaring (1997) sustenta que entre 1985 e 1994, a combinação
entre extrema fragmentação do sistema partidário, fracas
disciplina e lealdade partidárias, presidencialismo e federalismo
robusto, dificultou os governos democráticos a atingir a
estabilização e fazer a reforma do Estado. Um indicador forte de
ingovernabilidade seria, p. ex., conforme Lamounier (1994) e
Lamounier e Bacha (1994), o fracasso das sucessivas tentativas
de se combater a inflação. O fracasso em estabilizar, ajustar e
reformar é atribuído, essencialmente, às características do
sistema institucional (Lamounier, 1994; Mainwaring, 1997;
Stepan, 1999).
Em consonância com o exposto acima, Loureiro e Abrucio apontam que
planos econômicos
como o Cruzado ou o Collor I, que misturavam insulamento
burocrático, hiperatividade decisória e, em certos casos,
condução presidencial personalista, [tiveram] consequências
distantes tanto da responsabilização política como da eficácia
(2002, p. 61).
Há, portanto, a incidência decisiva do presidencialismo de coalizão na
constituição de mudanças incrementais brasileiras, refletindo a fragmentação
política no âmbito do Congresso Nacional e o pluralismo da sociedade brasileira.
Segundo Valeriano Costa,
em países presidencialistas, as perspectivas de reforma
dependem bastante da solidez da base de sustentação política do
Executivo no Congresso [sendo que] governos parlamentaristas
de tipo majoritário, por exemplo, as chances de sucesso e o
escopo de uma reforma administrativa são, em geral, maiores do
que em países presidencialistas, especialmente, quando estes
têm fortes características consociativas, como é o caso do Brasil
(200221, p. 16).
A abordagem macroeconômica de Cardoso, possibilitada pela aceitação
ao receituário neoliberal anteriormente descrito, englobava a limitação das
21 COSTA, Valeriano Mendes Ferreira. A dinâmica institucional da Reforma do Estado: um balanço do período FHC. In: LOUREIRO, M. R. e ABRUCIO, F. O Estado Numa Era de Reformas: Os Anos FHC - Parte 2. Brasília: Ministério do Planejamento, 2002.
85
recomposições salariais em parâmetros conjunturais, evitando a repetição de
práticas adotadas no Plano Cruzado (gatilho).
Havia, ainda, a continuidade da abertura comercial e a grande
remuneração ao capital, como forma de compensar os déficits na balança
comercial, que ocorreram em todos os anos da primeira administração de FHC.
Para deixarmos claro, a remuneração ao capital se dá por intermédio de
elevadas taxas básicas de juros, definidas pela autoridade monetária, visando
atrair capital externo afim de compensar a saída de dólares promovida pela
balança comercial deficitária, dado o maior peso das importações.
O receituário se mostra hostil à criação de empregos, configurando uma
segunda década perdida para os trabalhadores.
Observamos, abaixo, a taxa de desemprego, medida pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, em Regiões Metropolitanas (RM), no
primeiro e segundo mandatos de Fernando Henrique, incorporando também os
dados de 1994, quando o Plano Real é lançado.
Gráfico 9 – Crescimento do desemprego entre 1994 e 2002 (Regiões
Metropolitanas), em %
Fonte: IBGE
Como é possível perceber, o indicador de desemprego nas Regiões
Metropolitanas pesquisadas pelo IBGE aumentou em 46% entre 1994 e 1999,
8,3 8,4
9,5
10,2
11,1
12,1
1111,2
11,7
8
8,5
9
9,5
10
10,5
11
11,5
12
12,5
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003
86
recuando em quase 10% no ano de 2000, quando a economia brasileira volta a
crescer após a crise econômica brasileira de 1998 e 1999.
Parte das explicações econômicas mais frequentes para esse quadro é a
condução da política de abertura comercial empreendida nos anos 1990,
contexto em que se insere a administração de FHC.
Um indicador que explicita a abertura é a taxa alfandegária. De acordo
com Pochmann (2001), em 1989 a média das tarifas alfandegárias era de 41%,
ao passo que, uma década depois (1999), fora reduzida para 11,8%.
Abertura comercial, bem entendido, significa atrair novos competidores à
arena econômica, visando dar maior eficiência à economia, ampliar a oferta e
reduzir ou manter a inflação. Foi estimulada desde o Governo Fernando Collor
de Mello (1990-1992) e continuada nos governos posteriores.
A partir de 1994, com a implementação do Plano Real, um dos pilares da
abertura – juntamente ao aumento da importação – foi o valor da moeda
brasileira frente à americana (outra providência não tomada no Plano Cruzado).
O Real valorizado foi, pois, incentivador do desequilíbrio da balança comercial
em favor das importações e em prejuízo às exportações.
De acordo com Gala (2007), “o controle da inflação via administração
cambial depende quase que exclusivamente da redução de preços dos bens
comercializáveis”. Essa perspectiva pretende reduzir o aumento dos preços de
bens não comercializáveis através do controle dos comercializáveis.
Para o mesmo autor, “a fixação da taxa de câmbio em relação a alguma
moeda com histórico de baixa inflação é uma ferramenta poderosa para conter
processos inflacionários e coordenar expectativas” em países como o Brasil e a
Argentina. Nesse caso, “a taxa de câmbio passa a ser a âncora nominal do
sistema, substituindo outras âncoras como metas de inflação ou metas de
agregados monetários”.
Desse modo, “a âncora cambial pode fornecer disciplina e credibilidade
ao transmitir o sinal de que déficits públicos não serão monetizados e aumentos
de preços e salários não serão sancionados por aumentos de base monetária”.
87
A taxa de câmbio pode ser apontada como uma evidência de que a
condução da política econômica nos anos 1990 promoveu aumento do
desemprego, à medida em que se verificou ampliação das importações de bens
de consumo e deterioração da participação da indústria no PIB. Em que pese tal
possibilidade, não nos aventuraremos nessa seara, embora discorramos
brevemente sobre o efeito dessa apreciação da moeda nas contas externas.
De toda sorte, é interessante observar que, no limite, o desemprego nas
regiões metropolitanas se expande influenciado pela queda de empregos na
indústria nacional. Néri et al (2000, pag. 31), por exemplo, identificam que ocorre
“tendência ao crescimento da taxa de desemprego aberto a partir de 1997”,
ocasionada pela “incapacidade dos setores comércio e serviços de compensar
as perdas de emprego ocorridas no setor industrial da economia”.
Durante o último ano de Itamar Franco e o primeiro Governo FHC,
instituiu-se uma âncora cambial, ou seja, havia uma definição governamental
para o valor do dólar norte-americano em relação ao real (ao invés da livre
flutuação, que ocorreria de acordo com a oferta e a procura de moeda pelo
mercado), próximo ao patamar de 1/1, ou seja, R$ 1,00 equivalentes a US$ 1,00.
Essa política demandava a atração de divisas ao mercado brasileiro,
visando manter a oferta dólares compatível com o apetite do mercado pela
moeda, assim mantendo seu valor no patamar desejado pelo governo brasileiro,
que à época almejava a valorização do Real, até como forma de manter a
inflação sob controle, mantendo elevada a importação de produtos e mesmo de
serviços.
Para Roett (2001, pag. 230), essa realidade se agravava com a ausência
de reformas no primeiro quinquênio do Real. De acordo com o autor,
a estabilização passou por três fases: um ajuste fiscal, uma
reforma monetária, e o uso da taxa de câmbio como âncora
nominal. A equipe econômica [do Governo FHC] compreendeu a
necessidade da reforma fiscal para a manutenção da âncora
nominal. Mas o processo de reforma sofreu forte oposição política
no fragmentado Congresso brasileiro. O déficit operacional se
agravou, assim como o superávit primário. A liderança econômica
recorreu à política monetária como substituto da reforma fiscal,
raciocinando que a reforma fiscal era necessária mas impossível;
88
portanto, a política monetária teria de bastar até que chegasse o
momento político para a ação legislativa.
O desejável, nesse cenário, seria que as exportações e os investimentos
estrangeiros diretos fossem superiores à saída de dólares do mercado nacional,
mas o contexto era o oposto, o de déficit na balança e nas transações correntes,
incorrendo em custo econômico elevado. Invariavelmente, o país dependia da
atração de capital especulativo.
Ainda, de acordo com Roett (2001, pag. 230),
O momento crítico ocorreu com a valorização da taxa de câmbio
real, prejudicando o setor industrial e provocando desemprego.
Apesar disso, mesmo diante dos crescentes déficits comerciais e
da diminuição da poupança, as lideranças políticas achavam difícil
resistir ao contínuo uso da taxa de câmbio para manter a inflação
sob controle. A chave para o governo foram as fortes entradas de
capital, que sustentaram a supervalorização da moeda e
ajudaram as autoridades a evitar a realidade sombria
De fato, os investimentos estrangeiros diretos, em bilhões de dólares,
cresceram sem paralelo na história recente brasileira durante os anos Fernando
Henrique. O país, em 1994, como vimos, volta a emitir bônus negociáveis no
mercado externo, graças ao Plano Brady, agregado ao compromisso com
reformas econômicas neoliberais. O próprio presidente da República era o fiador
dessa costura política, ideológica e econômica.
Dados do Banco Central apontam para o crescimento dos investimentos
estrangeiros em 1994, de US$ 2,1 bilhões, para US$ 16,6 bilhões em 2002, após
um pico de US$ 32,8 bilhões em 2000. Esses números, porém, não eram
suficientes para aplacarem a saída de recursos. Inclusive pela natureza do
mercado financeiro internacional contemporâneo, de grandes fluxos
especulativos que transitam entre as economias.
Nos anos 1997 e 1998, estava claro que a âncora cambial demandava
uma realidade internacional menos instável para os países emergentes. Os
fluxos financeiros levavam a uma decisão governamental que resultou em crise
econômica: manutenção da política cambial às custas da perda de liquidez.
89
A âncora, de acordo com Giambiagi (2011), foi mantida no primeiro
Governo FHC por três motivos: o temor por uma maxidesvalorização da moeda
brasileira, tal qual ocorreu com o México, em 1995; motivação política, visto que
uma desvalorização da moeda poderia, em 1997 e 1998, ser prejudicial às
pretensões de reeleição do presidente nas eleições de 1998; e a expectativa de
que os financiadores externos viessem a dar um voto de confiança ao governo
brasileiro, caso Fernando Henrique fosse, efetivamente, reeleito – como haviam
dado em 1995.
Dessa forma, com a abertura comercial, o país experimentou déficit no
saldo da balança comercial que precisava ser compensado por outras fontes de
financiamento. Entre 1995 e o ano 2000, a diferença entre importação e
exportação resultou na saída de dólares para o mercado externo.
Somados, os déficits chegaram a 24 bilhões de dólares nos primeiros seis
anos do governo FHC (1995 a 2000). Durante todo o mandato de Fernando
Henrique, porém, o déficit recua para 8,5 bilhões de dólares (IPEADATA, 2015).
No gráfico abaixo, podemos apreciar a evolução do déficit na balança
comercial durante o Governo FH, entre 1995 e 2002, apontando a prevalência
das importações em relação às exportações entre 95 e 2000.
Gráfico 10 – Saldo comercial no governo FHC (em bilhões de dólares)
Fonte: Banco Central
-10.000,00
-5.000,00
0,00
5.000,00
10.000,00
15.000,00
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
90
Consideradas as transações correntes, o déficit ultrapassou 30 bilhões de
dólares em 1998, quando em 1994 era de US$ 2 bilhões, de acordo com o Banco
Central.
Resumindo, a taxa de desocupação cresce no primeiro mandato do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso e se mantém no segundo. As razões
mais apontadas para a ampliação do desemprego foram a política de abertura
comercial, a âncora cambial – ambas facilitadoras das importações – e as
elevadas taxas de juros, necessárias para atrair financiamento externo, porém
inibindo a atividade econômica.
A reversão de parte dessa realidade ocorre com a livre flutuação do Dólar
frente ao Real, já em 1999, após as eleições de 1998, quando FHC é reeleito; e
o aumento das exportações, seja pelo câmbio mais favorável à
internacionalização das mercadorias brasileiras, ou pelo aumento no preço das
commodities.
Os primeiros anos do Plano Real (os primeiros dez anos) não foram
capazes de fortalecer o emprego, a renda e diminuir a desigualdade no país, até
então dominado pela hiperinflação e por correções monetárias, que tendiam a
favorecer aos mais ricos. Enquanto o emprego e o poder de compra eram
declinantes em relação aos anos 1980, a desigualdade cresceu no mesmo
período e se manteve estável por todos os anos 1990.
Trouxemos novamente o gráfico com a evolução do salário-mínimo a
valores de 2011, dessa vez contemplando o intervalo compreendido entre 1985
e 2005, atingindo os governos Sarney, Collor, Itamar, FHC e primeiro mandato
do ex-presidente Lula.
Na sequência, trazemos os índices de desemprego e os de crescimento
da renda per capita, apontando recuperação já no final dos anos FHC.
91
Gráfico 11 – Salário-mínimo entre 1985 e 2005, a valores de 2011
Fonte: DIEESE
Destaca-se que, entre 1995 e 2002, o poder de compra do salário-mínimo
cresceu 24% a valores de 2011, após cair 50% entre 1985 e 1995. Entre 2003 e
2005, os três primeiros anos do Governo Lula, o crescimento foi de 13%.
Outro indicador que atesta a recuperação gradual do poder de compra é
o de horas trabalhadas necessárias para a aquisição de uma cesta básica.
Utilizamos os dados do DIEESE.
Em algumas regiões metropolitanas e capitais, apresentamos os dados
de janeiro e dezembro bienalmente entre 1995 e 2010, afim de expor uma
síntese. Nesse caso, optamos por trazer os dados que cobrem todo o período,
uma vez que o utilizamos para ilustrar o poder de compra.
Tabela 8 – Horas trabalhadas necessárias para comprar uma cesta básica em
algumas capitais
Data São
Paulo
Curitiba Fortaleza Natal Porto
Alegre
Recife Rio de
Janeiro
jan/95 224h41m 209h24m 164h32m 169h48m 202h25m 162h27m 195h49m
dez/95 201h20m 198h31m 160h00m 165h19m 176h00m 163h35m 178h00m
jan/97 181h04m 174h17m 139h03m 152h17m 161h29m 149h48m 167h30m
dez/97 180h15m 182h41m 134h40m 142h27m 176h59m 137h44m 174h19m
1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
R$ 567 549 392 408 434 317 328 286 317 271 265 269 273 286 288 296 321 328 331 344 370
0
100
200
300
400
500
600
92
jan/99 177h27m 161h43m 148h39m 144h12m 164h51m 144h22m 159h21m
dez/99 181h06m 167h56m 137h53m 142h56m 171h00m 145h55m 163h10m
jan/01 179h43m 167h42m 134h31m 139h35m 175h19m 141h35m 169h54m
dez/01 157h11m 159h42m 121h14m 118h54m 160h15m 120h53m 154h15m
jan/03 179h04m 169h33m 145h38m 142h12m 181h28m 139h17m 165h49m
dez/03 151h03m 145h55m 117h06m 117h59m 155h01m 118h54m 143h03m
jan/05 146h16m 135h28m 105h56m 116h00m 142h50m 111h57m 139h27m
dez/05 134h31m 129h44m 97h34m 99h40m 140h17m 102h54m 130h36m
jan/07 116h07m 107h02m 80h34m 86h34m 117h08m 86h11m 110h59m
dez/07 124h16m 108h24m 91h41m 97h13m 123h16m 89h58m 112h35m
jan/09 128h02m 120h49m 99h15m 107h39m 131h04m 94h09m 119h08m
dez/09 107h58m 100h14m 83h43m 88h01m 112h24m 81h03m 100h57m
jan/11 106h26m 96h37m 88h11m 91h30m 103h46m 83h27m 102h46m
dez/11 111h56m 100h22m 86h52m 85h43m 111h46m 87h11m 106h07m
Fonte: DIEESE
A cesta básica mais cara, em relação às médias de horas trabalhadas, é
a de São Paulo. Entre janeiro 1995 e janeiro de 2003, as horas trabalhadas
necessárias para adquirir os alimentos caem de 224 horas e 41 minutos para
179 horas e 04 minutos (queda de cerca de 25%).
Entre Dezembro de 2003 e Dezembro de 2011, cai de 151 horas e 03
minutos para 111 horas e 56 minutos (também queda de 25%).
Embora o preço dos alimentos seja importante para o assalariado, seu
valor depende de condições climáticas, além de demanda. Observa-se, nesse
caso, que o aumento de poder de compra é similar entre os períodos.
No capítulo vindouro, apresentaremos dados e informações sobre o
incremento do consumo nas famílias brasileiras, quando apresentaremos a
queda dos gastos com alimentação em termos relativos. Nos anos 1990 e 2000,
a tendência foi de redução dos gastos com alimentos e aumento dos gastos
familiares com habitação.
Como há aumento do poder de compra do mínimo a valores de 2011
maior do que a ampliação do poder de compra em relação à cesta básica (por
horas trabalhadas), infere-se que o item alimentação sofreu a influência da maior
demanda durante o Governo Lula.
93
Para a renda per capita, notamos o seu crescimento mais acelerado no
começo no primeiro mandato de FHC. No gráfico utilizado, adicionamos o corte
definidor de país de renda elevada, de acordo com o critério do Banco Mundial.
Nesse caso, a melhor marca foi um diferencial de cerca de 100% entre o
PIB por habitante e a faixa elaborada pela referida agência internacional.
Gráfico 12 – Renda per capita brasileira entre 1991 e 2002 e corte para o
critério de país de renda alta (segundo Banco Mundial)
Fonte: Banco Mundial
Uma parte da explicação do desempenho aparentemente melhor do
primeiro mandato de FHC é, justamente, a âncora cambial, mantendo o PIB per
capita em moeda americana artificialmente mais elevada.
Mesmo assim, com uma média de crescimento econômico, nos anos
1990, de 2,6% ante o crescimento vegetativo próximo de 2%, o incremento não
foi significativo. De toda forma, não repetiu o quadro dos anos 1980.
Como podemos perceber ao longo da exposição de alguns indicadores
econômicos, os anos 1990 não foram o logro da recomposição salarial, e, ainda
que tenham sido ampliados os gastos sociais nesse período, a mobilidade social
se mostrou modesta.
0
2000
4000
6000
8000
10000
12000
1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
Brasil Faixa para renda alta
94
Em valores de 2003, a renda per capita aumentou de R$ 7.629 em 1991
para R$ 8.694, em 2002. Se, entre 1980 e 1992, a queda foi de 9%, entre 1991
e 2002, o crescimento foi de 14% (BACHA, 2004).
Após relativa estabilidade na renda per capita, em dólares, durante a
década de 1990, ocasionada pelo câmbio e influenciada negativamente por
baixo crescimento econômico, nos anos 2000 há uma rápida aproximação em
relação à faixa definidora de renda alta, conforme podemos perceber no gráfico
abaixo.
Gráfico 13 – Renda per capita brasileira entre 2002 e 2011 e corte para o
critério de país de renda alta (segundo banco mundial)
Fonte: Banco Mundial
Outros indicadores atestam a mudança no sinal da economia, mais
favoráveis aos trabalhadores, como o recuo do desemprego nas regiões
metropolitanas, a valorização do salário-mínimo e a continuidade da expansão
dos gastos sociais, como os previdenciários e as transferências de renda com
condicionalidades.
O gráfico abaixo evidencia a redução dos níveis de desemprego ao
patamar observado no começo do Plano Real, após atingir o seu ápice em 2004.
No primeiro governo do ex-presidente Lula, nota-se uma recuperação ainda
tímida desses indicadores.
0
2000
4000
6000
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2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
Brasil Faixa para renda alta
95
Gráfico 14 – Desemprego em regiões metropolitanas entre 1992 e 2010
Fonte: IBGE
Se é possível observar, nos anos iniciais do Real, algum princípio
norteador, esse foi o do equilíbrio fiscal, com aumento cavalar da carga tributária
(em favor do Governo Federal), forte programa de desestatização, renegociação
das dívidas dos estados (vinculando a um programa de privatização) e instituição
de mecanismos de responsabilidade fiscal (leis Camata I, II e de
Responsabilidade Fiscal).
De fato, identificamos tal princípio de ordenamento fiscal no chamado
Plano de Ação Imediata (PAI), iniciado antes da implementação do Plano Real.
Para Samuels (2003),
a equipe econômica nomeada pelo [então] ministro [Fernando
Henrique Cardoso] foi a primeira a levar a sério a conexão entre
inflação, estabilidade macroeconômica e desregramento fiscal
(em todos os níveis de governo). O Plano Real [...] não teve como
objetivo apenas o ''controle'' da inflação (como os planos
anteriores, que efetivamente o conseguiram por um curto prazo),
mas também introduzir o equilíbrio fiscal nas contas dos governos
federal, estadual e municipal, e com isso manter um controle
sustentável da inflação.
O ordenamento fiscal brasileiro não ocorreu simplesmente com cortes de
gastos mas contou com a elevação da carga tributária. É interessante notar a
8,3 8,4
9,5
10,2
11,1
12,1
1111,2
11,7
12,3
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9,810
9,3
8,1
8
8,5
9
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1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012
96
trajetória ascendente dos gastos sociais, apresentadas no começo desse
capítulo.
Gostaríamos de apontar, no gráfico abaixo, a evolução da Carga
Tributária brasileira para demonstrarmos a expansão.
Gráfico 15 – Carga Tributária brasileira em % do PIB (1993-2012)
Fonte: Receita Federal
Vale destacar que os recursos obtidos pela tributação aumentaram em
proporção ao PIB, beneficiando principalmente o Governo Federal, com a
introdução de Contribuições tais como a Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido e a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira.
Segundo Samuels (2003), “o governo usou com astúcia os instrumentos
de que dispunha para incrementar sua receita”, pois “parcela relativa da receita
da União aumentou porque o governo federal dispôs-se conscientemente a
elevar muito mais a arrecadação de contribuições do que a dos impostos”.
O autor chama a atenção para o fato de que “as contribuições passaram
de 27,2% da receita da União em 1990 a 46,7% em 2001”, pois “a União não
tem de repartir com estados e municípios a receita proveniente de contribuições,
ao contrário da receita tributária.”
Importante dizer, porém, que o Governo FHC promoveu um “processo de
coordenação federativa nas áreas financeira e administrativa” proporcionada por
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Série1 25,7 29,5 29,8 29 29 29,7 31,7 32,6 34 32,5 31,8 32,7 34 34 34,5 34,5 33,3 33,5 35,3 35,9
23
25
27
29
31
33
35
37
97
uma conjuntura crítica, “levando ao redesenho de parte do arcabouço
institucional” (ABRUCIO, 2002, p. 144). Nesse sentido, a ampliação nominal das
receitas federais deve ser compreendida como parte integrante desse
redesenho.
Além disso, há um problema de ordem prática, derivada da fragmentação
decisória versus a ação dos poderes Executivos, sobretudo o Federal, para
conceber e promover políticas.
Observa-se que, após o expressivo aumento na participação dos estados
em 1989 e 1990, explicado pela promulgação da Constituição Federal de 1988,
há um cenário de estabilidade, a exemplo do que já ocorria com os municípios.
Estados e municípios são, assim, mais sensíveis ao crescimento do Produto
Interno Bruto, elevando nominalmente a arrecadação.
No primeiro mandato do Governo FHC, o Governo Federal perde
participação relativa na arrecadação; mas, no segundo mandato, há a retomada
com aumento de carga, o que foi continuado nos governos Lula e Dilma.
Gráfico 16 – Aumento da Carga Tributária por nível de governo (1986-2011)
Fonte: Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT)
Apesar do crescimento da Carga Tributária, é um dado concreto que o
governo brasileiro, nesse momento histórico, vivenciou um déficit nominal (inclui
custos com a rolagem da dívida pública) mais robusto do que na década
posterior (anos 2000), ampliando o endividamento interno brasileiro e
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5
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15
20
25
30
1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015
Federal (% do PIB) Estadual (% do PIB) Municipal (% do PIB)
98
fragilizando as iniciativas orientadas pelo aqui denominado princípio fiscal,
conforme gráfico abaixo.
Gráfico 17 – Déficit nominal sem desvalorização cambial (1995-2013)
Fonte: IPEADATA
Parcela do déficit nominal no período FHC é decorrente da renegociação
da dívida dos estados, aumento dos gastos públicos, como o gasto social, mas,
sobretudo, pela elevação dos juros básicos da economia.
Vale destacar que o déficit ocorre mesmo com o aumento da carga
tributária e o grande programa de venda de ativos estatais, em que se destacam
a privatização do Sistema Telebras (telefonia) e a Vale do Rio Doce (mineração).
Em nível estadual, ainda podemos destacar a incidência da desestatização ou
extinção de bancos públicos.
A partir de dados do Banco Central, elaboramos o gráfico abaixo com
todas as taxas de juros Selic definidas nas reuniões do Conselho de Política
Monetária (COPOM), série iniciada em 1996, em que se verifica a manutenção
de patamares elevados. Durante o Governo FHC, a média da Selic foi de 22,7%
ao ano; no Governo Lula, de 15,6% aa. Na década de 2000, foi de 15,9%.
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
7,27 5,86 6,07 7,47 5,82 3,68 3,63 4,45 5,24 2,9 3,58 3,63 2,8 2,04 3,28 2,48 2,61 2,48 3,26
0
1
2
3
4
5
6
7
8
99
Gráfico 18 – Taxa de juros SELIC (1996-2015)
Fonte: Banco Central22
Isoladamente, o Gasto Social Federal aumentou de 11,24% do PIB para
12,92% do PIB no período FHC, em que pese ter ocorrido ampliação do
desemprego e baixa recomposição salarial em relação às perdas registradas
desde os anos 1980.
Em suma, o princípio fiscal manteve a inércia ou o congelamento da
mobilidade social como nos anos 1980 e não necessariamente resultou em
saneamento das contas públicas.
O princípio foi ideologicamente orientado pelos dispositivos já descritos
que culminaram na concepção de um modelo para a América Latina, estruturado
no neoliberalismo, adotado largamente pelos Estados latino-americanos que
ansiavam voltar à liquidez perdida nos anos 1970 e agora possível com o Plano
Brady.
Na segunda década do Plano Real, o equilíbrio fiscal é claramente um
objetivo conquistado, mas o princípio norteador passa a ser outro, o da
recomposição salarial, com o ingresso de lideranças sindicais na administração
do Governo Federal após a vitória da coalizão liderada pelo Partido dos
Trabalhadores em 2002. Nesse caso, a recuperação dos postos de trabalho no
22 Disponível em < https://www.bcb.gov.br/?COPOMJUROS>
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501 7
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2
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8
19
4
100
serviço público e as renegociações salariais mais favoráveis foram pilares desse
princípio.
Em capítulo anterior, apresentamos o argumento segundo o qual o
Governo Lula pôde se beneficiar do crescimento econômico global, agora
impulsionado pela manufatura asiática, acarretando em uma divisão
internacional do trabalho, que passa a consistir em:
Produção industrial concentrada no continente Asiático,
principalmente o Sudoeste da Ásia;
Economia criativa nos países centrais (design, tecnologia) e
mercado financeiro; e
Comercialização de commodities (petróleo, minério de ferro etc)
realizada pelos países em desenvolvimento, principalmente na
América e na África.
Os indicadores econômicos que dizem respeito ao governo Lula e ao
começo do governo Dilma, serão apresentados a seguir de maneira sintética, na
medida em que esses dados são explorados ao longo de toda a nossa tese,
cabendo nos concentrarmos no caráter incremental das políticas sociais desde
o governo FHC e que atravessaram os governos subsequentes.
Nosso argumento central é o de que, no Governo FHC, ocorreu expansão
dos gastos sociais mas não ocorreu recuperação do mercado de trabalho e do
rendimento do trabalhador, a fim de recompor as perdas ao longo dos anos 1980
e meados dos anos 1990.
Durante os anos Lula, segundo o Receita Federal (2015), a Carga
Tributária permanece em elevação (de 31,8% para 33,5% e 35,3% no primeiro
ano do Governo Dilma), bem como, segundo o IPEA (2012), os gastos sociais
continuam em alta (de 12,95% a 15,54% e 16,23% no primeiro ano do Governo
Dilma), mas com menor taxa básica de juros (Banco Central, 2015) e um
programa de desestatização mais modesto.
A partir de nossas investigações, identificamos três fases importantes no
Plano Real entre 1995 e 2011:
a) A primeira, de manutenção da âncora cambial e grande incentivo às
importações, acarretando em aumento de juros;
101
b) A segunda, de eliminação da âncora e maxidesvalorização após a crise
econômica de 1998/1999; e
c) A terceira, de recuperação da economia, iniciada em 2000, que se
consolida a partir de 2004, tracionada pelo aumento dos preços
internacionais das commodities, à exceção do ano de 2001 e 2002, por
causa dos efeitos da crise no abastecimento de energia elétrica em 2001,
e 2003, por causa do relevante ajuste fiscal no primeiro ano da
administração Lula da Silva.
Dentre os períodos, de toda forma, observamos um cronograma de
desembolsos sociais progressivamente mais ousado, apontando para, do ponto
de vista orçamentário, um incrementalismo social.
Esse incrementalismo social atua positivamente na universalização dos
bens de cidadania (educação, saúde, canais de participação, mobilidade,
comunicação e emprego formal), mas promove a inserção social de maneira
gradual.
O estágio intermediário de inserção, neste texto, é denominado por nós
de inserção dependente, pois os cidadãos incluídos ainda não dispõe das
condições objetivas para transmitir a outras gerações o capital cultural envolvido
na inclusão. Nesse sentido, ele não é mais vulnerável, mas precisa de políticas
públicas que lhe assegurem a continuidade em determinado patamar.
No próximo capítulo, faremos tal incursão, apontando indicadores
macroeconômicos do Governo Lula e Dilma e melhorias nos indicadores sociais
no período de 3 décadas.
102
Incrementalismo social, transformações sociais e
redistributivismo
No capítulo anterior, observamos que a classe trabalhadora enfrentou
arrocho salarial nos anos 1980 e 1990, significando perdas sucessivas do poder
de compra. Em se tratando do salário-mínimo, a depreciação remonta ao início
do golpe civil-militar de 1964 (CACCIAMALI et al, 1994 e VELLOSO, 1990).
De acordo com a nossa avaliação, as medidas econômicas favoráveis ao
desequilíbrio da balança comercial, desfavoráveis ao reajuste do salário-mínimo
e à geração de empregos, adotada nos anos 1990, postergaram para a década
seguinte à expansão da chamada “Faixa C”.
Cabe salientar que “é preciso considerar o longo período de estagnação
dos anos 1980 e 1990, que levou à manutenção de elevados níveis de miséria e
pobreza e ao atrofiamento da classe média” (QUADROS, 2013, p. 33).
Ainda de acordo com o autor,
Este quadro sombrio, de alto desemprego e queda sistemática
dos rendimentos, foi profundamente modificado com o
crescimento econômico mais elevado, ainda que taxas inferiores
às históricas (1930-80) e às dos países emergentes e da América
Latina nos anos 2000 (QUADROS, 2013, p. 33).
Entretanto, é falsa a percepção de que os anos 1990 consistiram em
década perdida, pois o princípio da reordenação fiscal emerge como a prioridade
para o Governo Cardoso nesse período.
A reordenação fiscal tem características e resultados ambíguos, pois não
foi um fator limitador para a escalada dos gastos sociais e nem eliminou o déficit
público, ao contrário, pois a dívida interna pública líquida mais do que dobrou no
Governo FHC. Por outro lado, dispositivos causadores de desordem fiscal foram
desligados, não apenas atingindo o Governo Federal mas também entes
subnacionais.
Por exemplo, é desse período a proibição de operações de Antecipação
de Receita Orçamentária, largamente utilizado até então pelos entes
subnacionais.
103
Após o Plano Real, é bom destacar, os governos não puderam mais
contar com o chamado Efeito Tanzi (popularmente conhecido à época como
imposto inflacionário). Era bastante comum que liquidações de despesas
públicas fossem postergadas para que a inflação elevada representasse em
aumento de arrecadação.
Essa realidade econômica brasileira, com reordenamento fiscal e medidas
prejudiciais à recomposição salarial e geração de emprego na primeira década
do Plano Real, é carregada de contradições internas. Obviamente, as restrições
da política econômica postergaram o crescimento da Faixa C, a classe
trabalhadora consumidora, mas carregaram dentro de si elementos capazes de
subsidiar o que aconteceu a partir de 2004, a segunda década de vigência do
Real.
O incrementalismo dos anos 1990 e 2000 resultou no aumento do
financiamento de políticas favoráveis à classe trabalhadora consumidora.
Trabalhamos com o argumento segundo o qual, nos anos 1990 e 2000, ocorre
um incrementalismo social como manifestação da maior responsividade do
Estado, gerando uma ascensão horizontal e uma inclusão dependente.
Como havíamos explicitado alhures, Pzreworski (1996) considera como
governos responsivos aqueles que promovem os interesses da população,
escolhendo políticas “que uma assembleia de cidadãos, tão informados quanto
o Estado, escolheria por votação majoritária, sob os mesmos constrangimentos
institucionais”.
Tal responsividade não pode ser desconectada do aprimoramento
institucional e burocrático que lhe dê sustentação.
Um dos autores que dá visibilidade e tematiza o aprimoramento
institucional e burocrático é Edson Nunes (2003). Ao analisar o que denominou
como “gramática política brasileira”, concebeu o conceito de “universalismo de
procedimentos” em que se pode discutir essa maior responsividade estatal na
sociedade brasileira, como parte integrante de um conjunto complexo de
transformações na relação entre o Estado e a sociedade.
De acordo com o autor, são quatro as gramáticas políticas brasileiras: o
clientelismo, o corporativismo, o insulamento burocrático e o universalismo de
104
procedimentos. As três últimas gramáticas emergem no cenário brasileiro no
primeiro Governo Vargas (1930-1945), dialogando permanentemente com a
primeira (o clientelismo).
Segundo Bresser-Pereira,
o clientelismo e o corporativismo são instrumentos de legitimidade
política; o insulamento burocrático, a forma através da qual as
elites modernizantes e tecnoburocráticas e empresariais
promovem o desenvolvimento; o universalismo de procedimentos,
a afirmação lenta e de um regime racional-legal e eventualmente
democrático (NUNES, 2003, p. 11-12).
Para Nunes, “o universalismo de procedimentos e o insulamento
burocrático são muitas vezes percebidos como formas apropriadas de
contrabalançar o clientelismo” (p. 33).
Nesse sentido,
O universalismo de procedimentos, baseado nas normas de
impersonalismo, direitos iguais perante a lei, e checks and
balances, poderia refrear e desafiar os favores pessoais. De outro
lado, o insulamento burocrático é percebido como uma estratégia
para contornar o clientelismo através da criação de ilhas de
racionalidade e de especialização técnica.
Cabe destacar que, na concepção de Nunes, as gramáticas refletem a
interação entre governo e sociedade, transformando-se mutuamente.
O processo de abertura democrática, nos anos 1980, pode ser
compreendido como um universalismo de procedimentos, no sentido de se
reconhecer direitos sociais anteriormente privativos aos trabalhadores formais e
que beneficiavam as massas urbanas.
Destacamos que ocorreu, nos anos 1990, dois processos incrementais
que se completam: o fiscal e o social. Refletem uma responsividade com setores
empresariais e com o mundo do trabalho.
Um histórico sobre o incrementalismo fiscal pode ser encontrado em
trabalhos de pesquisadores como Varsano (2000), remontando ao Governo
Sarney (encerramento da Conta Movimento no Banco do Brasil) e incluindo as
105
modificações fiscais subsequentes, já no Governo FHC, como as Leis Camatas
I e II e a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Institucionalmente, o ordenamento fiscal é caracterizado pela lei
complementar nº 18-A, de 199923, transformada na Lei de Responsabilidade
Fiscal, a lei complementar 101/2000. No artigo VI da referida lei, encontramos
que a administração pública deve se pautar pela “transparência na elaboração e
divulgação dos documentas orçamentários e contábeis, enunciados em
linguagem simples e objetiva” (art VI, XI) e “o amplo acesso da sociedade às
informações sobre as contas públicas e procedimentos de aplicação dos
recursos públicos” (art VI, XII), favorecendo o controle social e prevendo “a
adoção de medidas corretivas e punitivas de eventuais desvios” (art VI, XIII).
Objetivava-se, além do mais, “a adoção de política tributária previsível e
estável” (art VI, V), “a limitação de gastos continuados a nível prudente” (art VI,
VI), como forma de se promover “a prevenção de déficits imoderados e
reiterados, de modo a assegurar a compatibilidade entre as aspirações da
sociedade quanto às ações estatais e a receita própria efetiva” (art VI, I).
Há, nesse marco legal, um ganho no accountability. De acordo com
Loureiro (2001, p. 76), “em países democráticos, a conduta fiscal dos governos
é sempre sensível às reações do eleitorado e às demandas dos grupos de
pressão”. Nesse caso, há que se levar em conta a relação entre o governo em
exercício, o controle institucional e a sociedade civil.
Nesse sentido, “alguns [governos] são mais efetivos e ágeis do que outros
em corrigir o déficit orçamentário ou controlar o endividamento” (idem).
Em uma primeira geração da literatura pertinente, segundo Loureiro
(2001, p.76), “a orientação ideológica do partido no poder” operou como um
marcador importante para compreender tais distinções, pois governos de direita
tendiam à estabilização monetária e os de esquerda à expansão do gasto
público.
Entretanto, após os anos 1970, “com a recessão e a crise fiscal que
atingiram as economias capitalistas, surgiram novos modelos explicativos”,
23 Disponível em <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD18MAR1999.pdf#page=110>
106
enfatizando os períodos eleitorais como força contrária às políticas restritivas e
mais favoráveis ao aumento de gastos públicos.
Atualmente,
com a internacionalização dos mercados e a desregulamentação
dos fluxos de capitais, começa-se a observar uma tendência à
homogeneização da política macroeconômica entre governos
com diferentes orientações ideológicas, realçando-se, como
fatores fundamentais das políticas monetárias e fiscais, a
mobilidade internacional dos capitais e o regime cambial [...]até os
anos 70, as variações das políticas macroeconômicas nestes
países estavam relacionadas com a coloração partidária do
governo e o grau de institucionalização de suas estruturas
corporativas. Mas, a rápida convergência dessas políticas, nos
anos 80, tem a ver com a internacionalização da economia
(LOUREIRO, 2001, p. 76-77)
Do ponto de vista institucionalista, demonstra Loureiro (2001, p. 77), são
importantes
as características do sistema de governo, da estrutura partidária
e das regras eleitorais, que geram governos majoritários ou de
coalizão mais ou menos estáveis e, portanto, mais ou menos
capazes de impor as metas fiscais propostas (Roubini e Sachs,
1989; Schick,1993; Steinmo, 1989).
Vale dizer que, historicamente, muitos autores consideraram existir um
“déficit de accountability” na América Latina (MORENO, CRISP, SHUGART,
2003).
Para Moreno et al, a solução para tal déficit não seria a proliferação de
Agências Reguladoras (no original: “is not the rapid proliferation of new non-
elected agencies of superintendence”), como inclusive aconteceu nas
sociedades latino-americanas nos anos 1990, mas a promoção de um controle
social envolvendo a sociedade civil, o que engloba promover a inserção social
de milhões de cidadãos.
Os autores supracitados alegam que o accountability é relacional,
englobando o desenho institucional, a performance das instituições e a
participação plural da sociedade.
107
A partir do exame da literatura, é interessante notar que o
aperfeiçoamento do controle e da responsabilização de governantes e
burocratas está ligado à ruptura com antigas estruturas de dominação calcadas
na pauperização de parcela da população.
Dizendo de forma ainda mais explícita, a deflagração de um processo
capaz de reduzir desigualdades e ampliar a renda pode vir a fortalecer a
demanda por maiores avanços sociais, mas também fazer aflorar relações
conflituosas anteriormente silenciadas, a partir de então visível pela disputa pelo
controle político, seja da agenda, ou de um governo. Essa é uma hipótese de
trabalho importante, mas não é testada em nossa tese.
Ainda assim e, nesse sentido, a estruturação de políticas sociais seria um
empreendimento positivo para o aperfeiçoamento do funcionamento das
instituições latino-americanas.
Em relação ao incrementalismo social, identificamos alguns indícios
importantes em sua existência, que serão apresentados no presente capítulo.
Loureiro e Abrucio (2002) definem o incrementalismo como uma
“contraposição analítica e normativa em relação à visão totalizadora de
mudança, fundada numa concepção tecnocrática e insulada”, ocasionada pela
inclusão de um maior número de atores sociais na definição de agenda e no
processo decisório.
Essa inclusão leva aos formuladores de Políticas Públicas a optarem por
mudanças progressivas e sucessivas em pequena e média escala, com
determinado grau de dependência entre elas, formando o que se denomina como
path dependence.
Para Levi (apud CAMARASA, 1997), Path dependence “significa que um
país, ao iniciar uma trilha, tem os custos aumentados para revertê-la”, graças à
complexidade da relação interinstitucional e entre atores políticos distintos,
“como prática decorrente de um processo amplamente negociado entre diversos
atores políticos” (ABRUCIO e LOUREIRO, 2002).
Nosso argumento se baseia em 1) reconhecimento de direitos nos anos
1980, no contexto do que Nunes (2003) denomina de “universalismo de
procedimentos”; 2) reordenamento fiscal, o que inclui na cultura administrativa a
108
noção de responsabilidade fiscal, remontando à estabilização econômica dos
anos 1990; e 3) a recomposição salarial com ampliação do crédito dos anos
2000, combinada à queda de preços relativos dos bens de consumo duráveis.
Portanto, não significa dizer que ocorreu a substituição de um momento
pelo outro, considerando que estão ligados de maneira intrínseca, havendo
sucessivas mudanças pontuais e sem reformas estruturantes.
É importante rememorar que, para Loureiro e Abrucio, o incrementalismo
poderia ser entendido como “o modo mais compatível com modelos
democráticos de tipo consensual que, na clássica acepção de Arendt Lijphart,
são de qualidade claramente superior às democracias de tipo majoritário”
(LOUREIRO e ABRUCIO, 2002).
O caso brasileiro “estaria dentro do modelo consensual, na medida em
que as reformas das políticas públicas devem passam por ampla negociação
entre partidos, líderes subnacionais, grupos sociais e até mesmo o Judiciário”,
gerando “políticas que (...) podem ser mais coerentes e efetivas, não sujeitas a
mudanças abruptas ou movimentos erráticos” (idem).
A eleição presidencial de 2002, na avaliação de Singer (2012), representa
um ponto de inflexão na atuação política do Partido dos Trabalhadores, vencedor
com uma plataforma de mudança com preservação das consideradas conquistas
da estabilização do Real. Ao adotar o princípio da recomposição, o governo do
PT iniciou uma segunda fase do Plano Real, marcado pelo crescimento da Faixa
C e redução da pobreza e desigualdade.
A vitória do PT na eleição geral de 2002 e depois, em 2006, 2010 e 2014,
foram guiadas pela composição com grupos empresariais, adoção de padrões
de governança, compromisso com o superávit primário, dentre outros elementos
que não representam ruptura com o momento anterior.
Pode-se dizer que a composição política com setores diversos da
sociedade atende à necessidade de se reconhecer a realidade pluralista do
Estado brasileiro.
Outros autores também associaram o incrementalismo às concepções
pluralistas de Políticas Públicas.
109
De acordo com Dahl e Lindblon (apud CAMARASA, 1971),
El incrementalismo es um método de acción social que toma
la realidade existente como uma alternativa y compara las
probables ganancias y perdidas de alternativas
estrechamente vinculadas, haciendo ajustes relativamente
pequenos en la realidade existente [...] El incrementalismo
permite tanto la supervivência como la alteracion continua
de la organizacion operante.
Para Dahl (1971), as políticas públicas incrementais podem ser explicadas
pelo que nesse texto chamamos de jogo de coordenação, no qual grupos de
interesses estão em interação com as instituições governamentais.
Grandes decisões demandam satisfazer ou negar as demandas de
parcela da sociedade, de modo que adotar perspectivas inteiramente novas
geram um custo, algumas vezes considerados impertinentes pelo gestor.
Em poliarquias, os grupos sociais poderiam participar de alguns
processos decisórios governamentais, mas sobretudo exercem vigilância sobre
os governos e lideranças políticas, em maior ou em menor grau. Em períodos
eleitorais, os grupos poderiam ou não optar por reconduzir esses líderes
políticos.
No livro Poliarquia e oposição (200524), Dahl se diz inclinado a utilizar o
“termo "democracia" [apenas] para um sistema político que tenha, como uma de
suas características, a qualidade de ser inteiramente, ou quase inteiramente,
responsivo a todos os seus cidadãos”, enquanto o termo poliarquia é utilizado
para democracias liberais em que esta característica não está plenamente
atendida.
Entre outras razões, destaca-se a questão da igualdade política, pois,
“para um governo continuar sendo responsivo durante certo tempo, às
preferências de seus cidadãos, considerados politicamente iguais, todos os
cidadãos plenos devem ter oportunidades plenas” (idem).
As oportunidades seriam:
24 DAHL, Robert A. Poliarquia e Oposição – 1ª ed., 1ª reimpressão. Editora USP. São Paulo. 2005
110
1. De formular suas preferências. 2. De expressar suas
preferências a seus concidadãos e ao governo através da ação
individual e da coletiva. 3. De ter suas preferências igualmente
consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem
discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência.
Adaptando para o contexto dos países em desenvolvimento, como o
Brasil, podemos compreender que a ausência de reconhecimento de parcela da
população atua em prejuízo às instituições democráticas.
Guilhermo O’Donnel (1998) chama a atenção para o fato de que haveria
uma ligação estreita entre democracia e certos aspectos da
igualdade entre indivíduos que são postulados não apenas como
indivíduos, mas como pessoas legais, e conseqüentemente como
cidadãos — isto é, como portadores de direitos e obrigações que
derivam de seu pertencimento a uma comunidade política e de
lhes ser atribuído certo grau de autonomia pessoal e,
conseqüentemente, de responsabilidade por suas ações
Nesse sentido, é interessante notar que o incrementalismo social
decorreria dos direitos reconhecidos na Constituição Federal de 1988 vis-à-vis
um imbricado sistema de reconhecimento e não-reconhecimento, à medida em
que a universalização de determinados serviços públicos ocorre em normalidade
institucional e sem explícita demanda dos vulneráveis.
Mesmo considerando o terreno das grandes decisões políticas,
precisamos registrar o fato de que o ajuste fiscal promovido nos anos 1990 não
impactou negativamente nos indicadores sociais, a elaboração de novas
políticas e a ampliação dos gastos públicos. É dos anos 1990, por exemplo, a
universalização da educação fundamental e a criação do Fundo Nacional para o
Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF).
Alegamos que o incrementalismo social brasileiro, em que se observam
avanços sociais apesar do ajuste fiscal dos anos 1990, deixa menos escasso o
serviço público essencial.
Essas dimensões ampliaram o acesso aos bens de cidadania, termo aqui
cunhado para designar serviços e formação de habitus no sentido de se
promover a inserção social.
111
De acordo com Bourdieu, o “habitus é um operador, uma matriz de
percepção e não uma identidade ou uma subjetividade fixa” (Bourdieu, 2002, p.
8325), sendo um sistema de disposições aberto, permanentemente afrontado a
experiências novas e permanentemente afetado por elas”. Salienta que “é
durável, mas não imutável” (Bourdieu, 2002, p. 83).
Observa-se que o acesso aos bens de cidadania, ou cívicos, é aqui
compreendido como uma parte integrante da economia dos bens simbólicos,
incluindo o reconhecimento dos indivíduos como cidadãos e a habilitação
intelectual e emocional para a participação social.
Jessé Souza (200326) analisa determinado tipo de habitus, denominado
como precário, refletindo um “tipo de personalidade e de disposições de
comportamento que não atendem as demandas objetivas para que, seja um
indivíduo, seja um grupo social, possa ser considerado produtivo e útil em uma
sociedade do tipo moderna e competitiva” (2003, p. 63), em que o grupo ou o
indivíduo poderiam “gozar de reconhecimento social com todas as suas
dramáticas consequências existenciais e políticas”.
O habitus precário seria resultante de uma falta de pré-condições, na
transmissão moral e nas condições objetivas de vida, de se formar um habitus
primário, que por sua vez
implica um conjunto de predisposições psicossociais
refletindo, na esfera da personalidade, a presença da
economia emocional e das pré-condições cognitivas para
um desempenho adequado ao atendimento das demandas
(variáveis no tempo e no espaço) do papel do produtor,
com reflexos diretos no papel do cidadão, sob condições
capitalistas modernas (p. 66)
Quais as dimensões em que opera tanto a construção do habitus primário
quanto o precário? São, para Souza, as condições objetivas de vida, a
transmissão familiar e intergeracional de valores e um complexo sistema opaco
e intransparente de reconhecimento social, sobre o qual recai o conceito de
justiça e a sua aplicação.
25 BOURDIEU, Pierre. Entrevistado por Maria Andréa de Loyola. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2002. 26 SOUZA, Jessé. (Não) Reconhecimento e subcidadania, ou o que é “ser gente”? Lua Nova nº 59, 2003.
112
À medida em que o habitus seria “a incorporação nos sujeitos de
esquemas avaliativos e disposições de comportamentos a partir de uma situação
socioeconômica estrutural” (SOUZA, 2003, p. 62), existe uma correlação entre a
oferta e a regulação da escassez dos bens de cidadania, de modo que os
problemas de acesso desses bens cívicos ultrapassam a mera oferta de serviços
públicos, mas também inclui o tempo livre, o consumo e a forma como as trocas
simbólicas se dão no contexto social.
Obviamente, o Estado possui papel central na oferta de alguns bens
cívicos, como a saúde, a educação e a segurança pública; também o
desenvolvimento do transporte, incentivos públicos à sua utilização, além da
comunicação e desenvolvimento do mercado.
A noção de inserção social é, assim, vinculada à construção de um habitus
primário que incorpore as noções de cidadania e justiça, regulando as relações
entre mercado, Estado e sociedade.
Consideramos como inserção dependente o processo marcado pela
presença do Estado na oferta sucessiva de serviços públicos sem que tenha se
resolvido a dimensão da transmissão familiar e geracional de um habitus
primário.
O Estado responsivo nesse contexto de inserção dependente reflete um
conjunto coordenado mais complexo de reconhecimento de direitos, pois a sua
atuação é decisiva para o contínuo aprofundamento da inserção social, oferta de
serviços e políticas públicas que mantenham os trabalhadores inclusos no
mercado consumidor de massa.
Conforme expusemos anteriormente, a nossa metodologia incide sobre
variáveis captadas por indicadores, considerando a dimensão cultural e a
transmissão familiar de valores sociais invariantes.
Fixamos a nossa análise nos dados capturados nas variáveis, cabendo
futuramente a continuidade das reflexões acerca dos bens cívicos e a inserção
social dependente.
Entretanto, não é estranho ao institucionalismo abordar questões relativas
às transformações culturais e às relações de poder entre grupos sociais. Em
113
outras palavras, o aperfeiçoamento do accountability se dá à medida em que os
indivíduos se veem empoderados.
Nas novas poliarquias latino-americanas, conforme destacou O’Donnel
(1998), há ligação direta entre a autonomia dos indivíduos e o funcionamento
das instituições.
Consideramos essa autonomia como fruto de transmissões
intergeracionais de dispositivos morais, no sentido atribuído a Souza (2003) e há
pouco explanado.
As mudanças demográficas consistiram, no período analisado, como
veremos, no aumento relativo dos indivíduos economicamente ativos,
possibilitando uma oportunidade para a ampliação da renda per capita no futuro.
Nesse caso, é importante assegurar a expansão dos empregos e a melhoria da
sua qualificação.
Também ocorreu importante incidência dos programas de transferência
de renda, além da transformação da realidade do trabalho, mas não são a)
especializados; e b) de menor carga horária semanal.
As duas transformações acima citadas representariam maior reflexidade
e mais tempo livre. É interessante notar o que Paes de Barros e Grosner (2012)
destacam que 64% dos empregados domésticos constituem a NCM, pouco
especializados, daí a nossa preferência por denomina-los como classe
trabalhadora consumidora.
A fragilidade dessa ascensão social é o elemento preponderante para
denominarmos tal como inserção dependente, pois há, do ponto de vista do
mundo do trabalho, que se avançar no sentido de se promover trabalhos
reflexivos.
Para Quadros, “o emprego é o alicerce da inserção do indivíduo em
sociedades como a brasileira e, depois da propriedade, é a base da
desigualdade social; portanto, a geração de bons empregos é fundamental para
o desenvolvimento social” (2013).
De acordo com o autor,
114
A evolução da estratificação dos ocupados, indicativo das
oportunidades individuais, mostra expressiva redução daqueles
que se encontravam na situação de miseráveis, com a
correspondente expansão da massa trabalhadora (pobre), mas,
sobretudo, da baixa classe média (remediada) [...] A mobilidade é
menor na média classe média e inexistente na alta classe média,
o que reflete um padrão de crescimento econômico com limitada
geração de empregos privados e públicos de melhor qualidade
(QUADROS, 2013, p.34).
Com essas ressalvas, é importante observar que as políticas sociais
tiveram impacto na ascensão social, tanto do ponto de vista dos ganhos
materiais quanto dos indicadores sociais.
A partir de dados extraídos dos Censos populacionais, destacamos
algumas mudanças demográficas e sociais que, combinadas à expansão do
crédito e apreciação do salário-mínimo, levou ao crescimento da Faixa C nos
anos 2000.
Inicialmente, há o componente da distribuição da população por faixas
etárias, apontando para um envelhecimento da população e reduzindo a
chamada “razão de dependência”, em que a população economicamente inativa
(0 a 14 anos e acima de 65 anos) é dividida em relação à população
economicamente ativa.
Essa “razão de dependência demográfica pressupõe que jovens e idosos
de uma população são dependentes economicamente dos demais [sendo] um
indicador do contingente que é suportado pela população potencialmente
produtiva” (BRASIL, 2015, p. 104).
O que chamamos de “Razão de dependência” é a “Razão de Dependência
Total (RDT), [que] pode ser decomposta em Razão de Dependência de Jovens
(RDJ) e Razão de Dependência dos Idosos (RDI)” (BRASIL, 2015, p. 104).
Tabela 9 – Razão de Dependência (total, de jovens e idosos), 2004-13
2004 2013 2004 2013 2004 2013
Total Urbana Rural
Dependência Total 51 45,2 48,7 43,7 63,2 54,8
Dependência Jovem 41 32,3 38,8 31 52,5 40,2
115
Dependência Idosos 10 12,9 12,6 12,6 10,7 14,5
Fonte: BRASIL, 2015
De acordo com Brasil (2015, p. 105), “o diferencial entre a RDJ e a RDI
recuou 11,5 p.p. no período analisado”, dado o envelhecimento da população,
ocorrendo redução do número de jovens com menos de 15 anos de idade e
aumento do número de idosos (acima de 65 anos).
As pirâmides etárias abaixo apresentadas atestam o envelhecimento da
população e a entrada do país no chamado bônus demográfico, proporcionado
pela queda da Taxa de Fecundidade por Mulher (TFM).
Segundo o IPEADATA (2015), utilizando dados do IBGE, a TFM está
abaixo de dois filhos por mulher, indicando futuro declínio da população.
1980 1990
2000 2010
Figura 1 – Pirâmides etárias (1980 a 2010)
Fonte: IPEADATA
116
Obviamente, essa realidade possui distinções importantes entre as áreas
urbanas e rurais e entre as regiões brasileiras. No período, “a maior dependência
foi medida no Norte (52,3%) e a menor no Sul (42,4%)”.
As Regiões Norte e Nordeste mostram uma modificação mais ampla:
De 2004 a 2013, no Norte, a RDJ diminuiu e a RDI aumentou, com
recuo de 2,9% na população com até 14 anos e acréscimo de
63,1% daqueles com 65 anos ou mais. Por sua vez, a
dependência total diminuiu 10,3 p.p. (9,4 p.p. no caso da
população urbana e 11,1 p.p. no da rural). No Nordeste, a
população jovem diminuiu 11% e a de idosos aumentou 42,2%; e
a RDT recuou 7,5 p.p. (com decréscimo de 10,3 p.p. na RDJ e
acréscimo de 2,9 p.p. na RDI) (BRASIL, 2015, p. 105).
As Regiões Sul e Sudeste mostram uma mudança em menor velocidade,
embora os estados do Sul possuam a menor Razão de Dependência Total:
o número de jovens com até 14 anos diminuiu 10,4% no Sudeste
- 28,1% no caso da população rural – e a população de idosos
aumentou 40,7%. Assim, a RDT recuou 4,5 p.p. (7,4 p.p. no caso
da população rural) [...]O Sul, apesar de abrigar a mais alta RDI
entre as regiões, registrou em 2013 a menor RDT bem como a
menor RDJ. Observe-se, na comparação com 2004, que a
população com menos de 15 anos diminuiu 12,6% (36,9% no caso
da área rural) e a população de pessoas com 65 anos ou mais
aumentou 51,5%. Com isso, a RDJ diminuiu 7,9 p.p. e a RDJ
aumentou 3,6 p.p., determinando redução de 4,3 p.p. na
dependência total (BRASIL, 2015, p. 105-6).
Já a Região Centro-Oeste apresentou situação intermediária, “RDT
similar à do Sul, mas com dependência de jovens maior e de idosos menor
(10,7%), esta última abaixo da média nacional (12,9%). Note-se ainda que a RDT
reduziu 6,5 p.p. de 2004 a 2013” (BRASIL, 2015, p. 106)
Os indicadores apresentados refletem o que já afirmávamos nessa tese
em relação à ampliação da oferta de serviços essenciais e melhoria objetiva nas
condições de vida, principalmente nos menores municípios, Regiões Norte e
Nordeste.
Para melhor explanar, construímos duas tabelas, abaixo apresentadas,
salientando, na primeira, a razão de dependência em 2013 por região, zonas
urbanas e rurais, e a redução por região, na segunda.
117
Tabela 10 – Razão de dependência (total, juvenil e idosos) por região do Brasil, zonas urbanas e rurais
Discriminação RDT RDJ RDI
Brasil Total 45,2 32,3 12,9
Urbana 43,7 31 12,6
Rural 54,6 40,2 14,5
Norte Total 52,3 43,4 8,9
Urbana 48,8 40,3 8,6
Rural 63,2 53,3 10
Nordeste Total 49,8 37 12,9
Urbana 47,1 34,6 12,4
Rural 58 43,8 14,2
Sudeste Total 42,5 28,8 13,7
Urbana 42 28,4 13,6
Rural 49,1 33,5 15,6
Sul Total 42,4 28,5 13,9
Urbana 41,9 28,7 13,2
Rural 45,7 27,4 18,3
Centro-Oeste Total 42,5 31,8 10,7
Urbana 42 31,6 10,4
Rural 47,2 33,8 13,4
Fonte: BRASIL, 2015
Tabela 11 – Redução da Razão de dependência Total por região do Brasil
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-
Oeste
Redução da RDT 10,3 7,5 4,5 4,3 6,5
Fonte: BRASIL, 2015
Como já salientado, ocorre redução da taxa de fecundidade por mulher,
ao passo em que há envelhecimento da população.
Para o período de 2004 a 2013, a esperança de vida ao nascer
passou de 71,58 anos para 74,84 anos, enquanto a taxa de
fecundidade total, de 2,14 para 1,77 filhos, e a taxa bruta de
natalidade por mil habitantes, de 18,66 para 14,79. Nesse
contexto, a razão de dependência total diminuiu em decorrência
118
da menor dependência de jovens, dado que a de idosos aumentou
(BRASIL, 2015, p. 106).
Esses dados refletem um processo mais amplo, que remonta às
transformações da década de 1950, com redução do tamanho das famílias e
aumento do número de idosos.
De acordo com o IBGE,
O início da segunda metade do Século XX caracterizou-se pelo
declínio das taxas de mortalidade, por redução de doenças
infecciosas e parasitárias devido ao surgimento dos antibióticos,
e como resultado dos avanços obtidos na área do atendimento à
saúde. Um outro fator que pode ser acrescido consiste na
melhoria dos sistemas de saneamento básico, principalmente dos
grandes centros urbanos. [...] O processo de redução das taxas
de natalidade tem início na segunda metade da década de 1960,
com a introdução no País dos métodos anticonceptivos orais.
Com isso, as taxas de crescimento da população começam a
experimentar paulatinas reduções, uma vez que a mortalidade
continua em sua trajetória declinante aliada às quedas sucessivas
das taxas de fecundidade (IBGE, 2000).
Segundo Diniz, “o período de crescimento econômico [...] (1950-1980),
marcado pela urbanização, monetarização e industrialização do país, lançou as
bases da transição demográfica, isto é, a redução das taxas brutas de
mortalidade (TBM) e natalidade (TBN)”. O autor esclarece ainda que “as taxas
de mortalidade caíram primeiro e em ritmo mais rápido do que as taxas de
natalidade, [havendo] uma aceleração do crescimento populacional em relação
a todos os períodos anteriores” (s/d, p. 2).
A redução do tamanho das famílias leva, por tempo limitado, à expansão
do número de pessoas em idade ativa, uma vez que o envelhecimento da
população atua como força contrária.
De acordo com a Previdência Social,
a razão de dependência das crianças ainda é predominante,
motivo pelo qual o indicador combinado (crianças e idosos) segue
a mesma tendência evolutiva. A queda da razão dependência dos
dois grupos combinados (razão de dependência total) indica que
a população em idade ativa (PIA) sustenta uma proporção
decrescente de dependentes (crianças e adolescentes de 0 a 14
anos e idosos com 60 anos ou mais), ou seja, que esta população
119
em idade produtiva (pessoas com idade entre 15 e 59 anos) tem
aumentado sua importância relativa (BRASIL, 2011, p. 13)
Elaboramos um gráfico que aponta a trajetória desde os anos 1970, com
redução da Razão de Dependência de Jovens (RDJ) e Razão de Dependência
Total (RDT). O último indicador aponta para o fato de que há proporcionalmente
menos nascimentos do que ampliação da população idosa. Além disso, o gráfico
traz a Razão de Dependência de Idosos, com evidente aumento do número de
pessoas com mais de 65 anos.
Gráfico 19 – Queda da Razão de dependência (total, juvenil e idosos), no
período 1970-2010
Fonte: BRASIL, 2011
Apesar de ser uma trajetória de décadas, na última década ocorreu uma
intensificação do processo, causando surpresas dada
a intensidade com que variaram as componentes da dinâmica
populacional brasileira [...] exceção feita à migração, que pouco
acrescentou às mudanças, a mortalidade e, principalmente, a
fecundidade foram determinantes para que o crescimento
populacional se desse a taxas inferiores às previstas pelo IBGE
(BRASIL, 2011, p. 15).
Há uma relação entre o quadro apontado e a mudança no modo como as
mulheres se inserem na sociedade (POCHMANN, 2014). No ano de 2011,
45,4% da população ocupada era do sexo feminino, trabalhando em média 39,2
1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015
RDT RDJ RDI
120
horas semanais (os homens trabalham cerca de 43,4 horas semanais), de
acordo com dados do IBGE (2012).
Como demonstrado no capítulo anterior, ocorre um aumento na renda per
capita nos anos 2001-2011, ocasionado por um aumento do PIB superior ao
crescimento vegetativo da população.
Também trouxemos dados relativos ao crescimento da escolaridade,
renda pelo trabalho e acesso ao crédito. É preciso observar que a mudança do
perfil demográfico da população, majoritariamente urbana e litorânea, com
menos crianças e adolescentes e famílias menores (em 1980, as famílias eram
compostas, em média, por 4,3 pessoas, enquanto, em 2008, 3,3).
De acordo com a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), o tamanho das
famílias variava de acordo com a escolaridade da pessoa de referência, como
podemos observar na tabela abaixo.
Tabela 12 – Componentes de uma família, de acordo com a escolaridade da pessoa de referência
Brasil Até 1
ano de estudo
1 a 3 4 a 7 8 a 10 11 ou
mais
Escolaridade Indeterminada
Componentes da família
3,3 3,34 3,48 3,46 3,36 3,05 3,69
Fonte: IBGE, Pesquisa Orçamentária Familiar, 2008
A renda média também variava muito de acordo com a escolaridade da
pessoa de referência da família, demonstrando que a variável educacional é
importante fundamento para a ascensão de renda via trabalho.
Considerando dados das despesas totais das famílias, observamos a
discrepância educacional versus renda.
121
Tabela 13 – Despesa total de uma família, de acordo com a escolaridade da pessoa de referência
Brasil Até 1
ano de estudo
1 a 3 4 a 7 8 a 10 11 ou mais
Escolaridade Indeterminada
Despesa total (R$)
2.626,31 1.403,42 1.421,46 1.832,12 2.111,17 4.314,92 2.302,06
Fonte: IBGE, Pesquisa Orçamentária Familiar, 2008
Além disso, quanto menor é a escolaridade da pessoa de referência da
família, menor é o gasto com alimentação, mas maior é o seu peso no
orçamento.
Tabela 14 – Despesa de uma família com alimentação total e per capita, de acordo com a escolaridade da pessoa de referência
Brasil Até 1
ano de estudo
1 a 3 4 a 7 8 a 10 11 ou mais
Escolaridade Indeterminada
Alimentação per capita
127,79 91,53 93,15 105,77 117,69 181,18 111,3
Alimentação sobre o total de despesas de consumo
20% 25% 26% 23% 22% 17% 22%
Fonte: IBGE, Pesquisa Orçamentária Familiar, 2008
De acordo com a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), órgão do
Governo Federal ligado à Presidência da República, havia maior peso no gasto
com alimentação entre o grupo da população cuja renda per capita era menor do
que R$ 250,00, no período 2008-9, com dados da POF.
O SAE elaborou uma estratificação da sociedade se valendo do
rendimento per capita e os classificou como classes Baixa, Média e Alta.
Optamos, porém, por nos referirmos a grupos de rendimento baixo (até R$
250,00 per capita), médio (entre R$ 251,00 e R$ 1000,00) e alto (acima de R$
1000,00, sem prejuízo à metodologia da instituição.
122
As despesas familiares constam em tabela abaixo, apontando para o
maior gasto com alimentação (grupo de rendimento baixo) e transporte (grupo
de rendimento médio e alto), apontando para marcações importantes no padrão
de consumo.
Tabela 15 – Distribuição das despesas de consumo das famílias segundo a classe de renda (2008-2009)
Total Baixa Média Alta
100 100 100 100
Alimentação 20 29 21 14
Habitação 36 36 37 35
Vestuário 6 7 6 5
Transporte 20 12 18 25
Higiene e cuidados pessoais 2 3 3 2
Assistência à saúde 7 6 7 8
Educação 3 1 4 4
Recreação e cultura 2 2 3 2
Fumo 1 1 1 0
Serviços pessoais 1 1 1 1
Despesas diversas 3 2 3 4
Fonte: IBGE, Pesquisa Orçamentária Familiar, 2008
Com base nos dados da SAE, baseados na POF, observamos a seguinte
distribuição da população em idade ativa e os grupos de rendimento, apontando
para a manutenção da estrutura ocupacional, apesar do aumento de renda:
Tabela 16 – Distribuição da população em idade ativa e da população ocupada por forma de inserção no mercado de trabalho e classe no Brasil (2001 versus 2009)
Características Distribuição por característica segunda a classe de renda
2001 2009
Total Baixa Média Alta Total Baixa Média Alta
Total 100 100 100 100 100 100 100 100
Situação da ocupação (10 anos ou mais)
Ocupado 54 48 58 62 57 45 60 67
Desempregado 6 8 5 2 5 9 4 2
123
Inativo 40 44 37 35 38 46 36 31
Posição na ocupação (ocupados)
Funcionário público 11 6 12 22 12 5 11 24
Com carteira 29 19 37 31 35 20 42 35
Sem carteira 22 29 19 10 20 31 19 9
Conta própria 22 25 21 19 20 24 19 18
Empregador 4 1 4 14 4 1 3 13
Não remunerado 12 20 7 4 9 19 6 3
Fonte: IBGE, Pesquisa Orçamentária Familiar, 2008
É importante salientar que, quando se analisa os dados relativos à
ocupação, não se nota variação relevante entre os três níveis de renda, o que
corrobora com trabalhos como os de Waldir Quadros (2013), para quem não
ocorrera ascensão de classes, mas um período de redistributivismo que permitiu
a uma parcela importante da classe trabalhadora o ingresso no mercado
consumidor.
Em nossa concepção, as políticas de redistributivismo tiveram impacto na
aceleração das melhorias sociais, no alargamento do mercado consumidor, que
deu nova dinâmica à economia brasileira, embora esta não seja tracionada pela
indústria e conhecimento, mas por empregos de baixa especialização. É essa
característica que denominamos como inserção dependente, corroborando,
portanto, com as análises de Quadros (2013) e Pochmann (2012 e 2014).
Nossa tese não possui o alcance necessário para corroborar, senão
enquanto premissa, da abordagem de Souza (2010), pois demandaria o uso
intensivo de metodologias qualitativas, fugindo ao nosso escopo e à nossa
proposta.
Há, ainda, a premissa de que essa inserção dependente permite um
aperfeiçoamento das instituições, principalmente por existir um custo elevado ao
governante para reverter, não alguma política em particular, mas o núcleo das
iniciativas governamentais dos últimos anos.
Apesar de ser um estrato muito amplo, o grupo de rendimento médio,
conforme os termos do SAE, incorporou um número maior de negros entre os
anos 2001 e 2008. É importante destacar que a última POF remonta, justamente,
a 2008.
124
Ao mesmo tempo, podemos observar que as famílias de rendimento
mensal baixo possuem proporcionalmente o maior contingente de pessoas com
idade entre zero e catorze anos, ou seja, é maior o número de dependentes
nesse grupo, mesmo que declinante.
Tabela 17 – Distribuição da população por características pessoais e classe de renda (2001 versus 2009) 2001 2009
Total Baixa Média Alta Total Baixa Média Alta
Total 100 100 100 100 100 100 100 100
Sexo
Homens 49 49 49 48 49 48 49 49
Mulheres 51 51 51 52 51 52 51 51
Cor
Branco ou amarelo
54 39 64 83 49 33 52 74
Negro 46 61 36 17 51 67 48 26
Faixa etária
0 a 14 29 39 21 15 24 38 19 12
15 a 24 20 20 20 17 17 18 18 13
25 a 64 45 38 50 59 51 41 53 64
65 e mais 6 3 9 9 8 3 10 11
Fonte: IBGE, Pesquisa Orçamentária Familiar, 2008
Já do ponto de vista espacial, o grupo de rendimento médio mostrou
grande expansão relativa nas cidades de pequeno porte. O mesmo raciocínio se
aplica às regiões Norte e Nordeste.
Tabela 18 – Distribuição espacial da população por classe de renda (2001 versus
2009) 2001 2009
Total Baixa Média Alta Total Baixa Média Alta
Total 100 100 100 100 100 100 100 100
Área
125
Urbana 84 75 91 97 85 75 89 96
Rural 16 25 9 3 15 25 11 4
Região
Norte 6 7 5 3 7 9 6 4
Nordeste 29 43 16 11 29 48 21 13
Sudeste 43 32 52 60 42 28 48 54
Sul 15 11 19 18 15 9 17 20
Centro-Oeste 7 7 7 8 7 6 8 9
Porte do município
Região metropolitana
31 23 36 48 31 23 32 43
Médio porte 21 18 24 28 22 17 23 28
Pequeno porte 48 60 40 24 47 60 45 28
Fonte: IBGE, Pesquisa Orçamentária Familiar, 2008
Ainda que 2/3 da queda das desigualdades tenha se dado pela melhor
performance do mercado de trabalho, ocorre uma redução da participação da
renda do trabalho na renda domiciliar per capita média.
Segundo o CPS/FGV (NÉRI et al, 201227), em 1992, a renda do trabalho
representava 81,8% do total dos rendimentos familiares per capita, sendo
reduzido esse percentual para 76,5% em 2003 e 76% em 2009.
No meio rural, a redução foi de 81,33% em 1992 para 72,72%, em 2003,
e para 66,55% em 2009, apontando para o fato de que “as transferências
públicas adquirem maior importância relativa”, como Programas Sociais e
Previdência.
As desigualdades declinaram com maior vigor no meio rural, de acordo
com os dados do CPS/FGV, conforme o gráfico abaixo.
27 NERI, Marcelo; MELO, Luisa Carvalhaes Coutinho de; MONTE, Samanta dos Reis Sacramento. Superação e a nova classe média no campo. Brasília: FGV, 2012.
126
Gráfico 20 – Queda das desigualdades de renda medidas pelo Coeficiente
de Gini, Total e Rural (1992-2009)
Fonte: NÉRI, 2012
Segundo o CPS/FGV, “A queda do índice de Gini no campo desde 1993
foi de 16,5% contra 9,9% na totalidade do país. Tomando o período 2003 a 2009,
foi de 8,3% contra 6,5% na totalidade do país” (2012, p.56). Esse quadro se deve
ao aumento de renda dos estratos mais pobres, mas ocorre também um
incremento nos décimos intermediários.
Essa realidade no campo se deveu, sobretudo, aos programas sociais:
“assim como no país como um todo, a fonte de renda que mais cresceu na área
rural foi a de programas sociais (21,4% contra 12,9% da média nacional),
influenciada pela criação do Programa Bolsa Família, em 2003, e suas
posteriores expansões” (NÉRI et al, 2012, p. 90).
Nesse sentido,
A renda do trabalho [no campo] teve um incremento médio anual
de 4,5%, abaixo das outras fontes de renda e do que observamos
no Brasil como um todo (4,6% ao ano), conferindo uma menor
base de sustentabilidade das condições de vida para além das
transferências de renda oficiais. A renda do trabalho é
relativamente menos importante na área rural do que no resto do
país, correspondendo a 66,5% da renda média percebida pelo
brasileiro que vive no campo (contra 76% da média nacional).
Apesar de sua elevada participação na renda total, o trabalho
respondeu por apenas 52,1% do crescimento registrado no
período. Para a totalidade do país, a contribuição do trabalho
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Total 0,583 0,605 0,602 0,599 0,602 0,6 0,6 0,591 0,594 0,596 0,589 0,583 0,571 0,568 0,562 0,555 0,549 0,545
Rural 0,556 0,586 0,563 0,539 0,553 0,547 0,549 0,543 0,543 0,543 0,511 0,533 0,514 0,509 0,513 0,514 0,5 0,489
Total Rural
127
supera a verificada no campo em aproximadamente 24 pontos
percentuais, alcançando 76,0% (NÉRI et al, 2012, p. 91).
Parcela dessa renda do campo se deveu à política de reajuste do salário-
mínimo combinada com a aposentadoria rural, principalmente entre os mais
pobres.
Vale salientar de antemão que, segundo Schwazer,
o subsistema rural da Previdência Social brasileira é, entre os
casos conhecidos em países em desenvolvimento, um programa
social excepcional quanto ao significativo grau de cobertura, à alta
precisão do targeting (embora a focalização nos mais pobres não
seja intencional, uma vez que as regras referentes ao plano de
benefícios e ao modo de contribuição são universalizantes) e,
como resultante do anterior, parece formar um programa que
tenha uma efetividade inédita no combate à pobreza no meio rural
brasileiro (2000, p. 72).
Ainda que tenha havido maior participação dos trabalhadores
empregados formais, dentre os mais pobres há a influência dos programas
sociais de transferência de renda de uma maneira geral, conforme dados
anteriormente apresentados.
Utilizando a metodologia do CPS/FGV, nota-se que as transferências de
renda pelo Programa Bolsa Família possuíam mais peso entre os mais pobres
(renda familiar até R$ 705,00 em 2012), enquanto a previdência rural com
benefício de um salário-mínimo tem maior participação no estrato intermediário
de renda (Classes C/D, com renda entre R$ 705 e R$ 4.854).
Os maiores beneficiários de reajuste do piso previdenciário são as
classes D e C, com, respectivamente, 20,4% e 21,1% das rendas
vinculadas ao piso. [...] Finalmente, aumentos do Bolsa Família e
de outros programas não previdenciários tendem a beneficiar
predominantemente a classe E – grupo correspondente aos
pobres pela linha média nacional do Centro de Políticas Sociais
(CPS) da Fundação Getulio Vargas (FGV) –, que tem 21,2% de
seus proventos nessa modalidade de renda. Em 2003, a parcela
da renda referente a esses programas era de apenas 7,3%, pouco
acima de um terço do verificado em 2009 (na média nacional, esse
aumento foi de 4,9% para 18,5%) (NÉRI, 2012, p. 93).
128
No país como um todo, observamos que há um crescimento da renda
maior entre os mais pobres. Nos anos 2000, a taxa de crescimento médio da
renda domiciliar dos 10% mais pobres foi cerca de 5 vezes maior do que a dos
10% mais ricos, como podemos observar no próximo gráfico, elaborado a partir
de dados compilados pelo Ministério da Fazenda (Economia brasileira em
perspectiva, 2012).
A renda média familiar de 10% mais pobre da população aumentou 7,2%
ao ano, enquanto a média dos 10% mais ricos aumentou anualmente 1,4%.
Levando em conta a toda população, em média a renda familiar se
expandiu um pouco acima de 4,5% ao ano.
Gráfico 21 - Crescimento médio da renda familiar, entre 2001 e 2009
FONTE: MINISTÉRIO DA FAZENDA, 2012.
Uma parte da renda familiar dos mais pobres se deve a reajustes no
salário mínimo, o que impacta empregados e aposentados, mas outra parte é
atribuída aos investimentos em programas de transferência de renda, como o
Bolsa Família, implementado em 2004, após a fusão de programas
anteriormente criados no governo Fernando Henrique Cardoso, integrantes da
Rede de Proteção Social, financiada pelo Fundo de Combate à Pobreza,
7,2
6,35,9
5,4
4,94,6
4
3,3
2,5
1,4
Primeirafaixa
Segundafaixa
Terceirafaixa
Quartafaixa
Quintafaixa
Sexta faixa Sétimafaixa
Oitavafaixa
Nona faixa Décimafaixa
129
proposto pelo ex-senador Antônio Carlos Magalhães, no Projeto de Emenda
Constitucional (PEC) 31/0028.
Em relação a benefícios previdenciários, ocorreu um aumento das
despesas públicas, em relação ao Produto Interno Bruto, de 0,8 pontos
percentuais, deixando de representar 6% para atingir o patamar de 6,8% (2002
a 2011).
Aumentaram as despesas, em relação ao PIB, do Seguro-desemprego
(de 0,3 para 0,5% do PIB), de Benefícios Assistenciais29 (de 0,2 para 0,6%) e do
Bolsa Família (de 0,1 para 0,41%), perfazendo um incremento de despesas
sociais de 6,8% para 8,6% no período citado (2002 a 2011), segundo dados do
Ministério da Fazenda (2012).
Estes dados demonstram que uma série de gastos sociais foram
promovidos durante o governo Lula (alguns dados alcançam o governo Dilma),
demonstrando que as classes populares ampliaram a sua participação na
composição da renda nacional.
A redução da pobreza não ocorreu de maneira homogênea em todo o
território nacional, sendo mais aguda nas regiões menos desenvolvidas. Esta é
outra singularidade deste processo: a aceleração do desenvolvimento
socioeconômico nas áreas mais pobres do país.
Segundo Tania Bacelar (2013, p. 164), as políticas públicas territoriais
foram parte importante para a superação das desigualdades regionais, com
destaque para o Programa Nacional de Agricultura Familiar (PRONAF), os
Territórios da Cidadania e Arranjos Produtivos Locais.
A economia brasileira cresceu, sobretudo, impulsionada pelo setor
terciário, uma característica distinta da observada nos anos 1960 e 1970, quando
o setor secundário deu fôlego à economia nacional e gerou empregos.
A geração de empregos na primeira década do século XXI foi a maior
dos últimos quarenta anos, fortemente influenciada pelo setor de serviços, assim
como também pela construção civil e indústrias extrativas (POCHMANN, p.18-
19).
28 Válido até o ano de 2010 e prorrogado no mesmo ano, pelo PEC 14/08, de autoria do senador Antonio
Carlos Junior (DEM/BA).
29 LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social) e RMV (Renda Mensal Vitalícia)
130
Segundo o Ministério da Fazenda (2012), o salário mínimo sofreu
reajuste nominal de 211% e real (descontando a inflação) de 66% no período
entre 2003 e 2012.
Em relação à escolaridade, os empregados sem instrução ou com um
ano de estudo representavam 3% em 2003 e passaram a representar 1,6%,
enquanto o percentual de trabalhadores com mais de 11 anos de estudo foi
ampliado em 14 pontos percentuais, de 46,7% para 60,7% (MINISTÉRIO DA
FAZENDA, 2012).
Em 2003, o crédito concedido a pessoas físicas representava pouco
menos do que 6% do PIB, mas já em 2010, representava pouco mais do que
14% do Produto Interno Bruto, com taxa média de crescimento de 31,8% ao ano,
entre 2004 e 2007, e de 21,2% entre 2008 e 2011. Já o crédito habitacional deixa
de ser pouco menos de 2% para representar cerca de 4% do PIB no final de
2010 e 5% em 2011 (ANDRADE, 2012).
A Faixa C, de trabalhadores consumidores, se beneficiou de mudanças
estruturais nas organizações familiares, no reconhecimento de direitos e
implementação de políticas públicas capazes de melhorar indicadores sociais e
interiorizar a oferta dos mesmos.
Em relação ao mundo do trabalho e da renda, beneficiou-se do aumento
da taxa de formalização de empregos pouco especializados, aumento do salário-
mínimo e massa salarial de maneira geral, aumento de gastos previdenciários e
outras formas de distribuição de renda, mas não há uma ascensão de classes
(QUADROS, 2013).
As mudanças não se restringem ao espaço de uma década, como o eixo
demográfico, mas é na última década que indicadores sociais avançaram com
maior velocidade.
A década de 2000 foi de inclusão dependente a partir de transformações
incrementais que resultaram em maior oferta de bens de cidadania, assim como
a reconfiguração demográfica do país e reorganização familiar.
131
Considerações finais
A presente tese objetivou analisar a expansão da classe trabalhadora
consumidora, optando por não a classificar enquanto Nova Classe Média, dada
a heterogeneidade de sua composição.
Uma das nossas inquietações foi o fato de que a expansão da classe
trabalhadora consumidora se deu apenas na segunda década de implementação
do Plano Real, que data do ano de 1994.
No período em que ocorre a estabilização da moeda, existem avanços no
que O’Donnel denominou accountability horizontal, ou seja,
a existência de agências estatais que tem o direito e o poder legal
e que estão de fato dispostas e capacitadas para realizar ações,
que vão desde a supervisão de rotina a sanções legais ou até o
impeachment contra ações ou emissões de outros agentes ou
agências do Estado que possam ser qualificadas como delituosas
(O’DONNEL, 1998, p. 40, grifos nossos).
Um importante processo em que essa ampliação do accountability se deu
é denominado como ordenamento fiscal, majoritariamente realizado no Governo
Fernando Henrique Cardoso, incorporando na administração pública a
temperança fiscal, através de legislações como a de Responsabilidade Fiscal (lei
101/2000).
De fato, outros elementos foram introduzidos, como as agências
reguladoras, à luz de um programa de desestatização, menos profundo do que
em outros países latino-americanos, como a Argentina, mas obviamente
corroborando com a agenda neoliberal (PALERMO, 1998).
Apesar das restrições aos gastos imoderados, mais impostas do que
negociadas com os entes subnacionais, por intermédio da renegociação das
dívidas dos estados com o Governo Federal (ABRUCIO, 2002), os Gastos
Sociais foram ampliados significativamente em relação ao Produto Interno Bruto
(POCHMANN, 2012).
Uma das razões foi a efetivação dos direitos previdenciários consagrados
na Constituição Federal de 1988, mas também ocorreu maior ênfase no Ensino
132
Fundamental, financiamento da pequena produção agrícola e transferências de
renda, embora essas iniciativas possuíssem menor escala em relação aos
governos seguintes, de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Entretanto, observou-se que o Governo Fernando Henrique Cardoso não
foi amistoso à geração de emprego e renda, limitando o processo de ascensão
social e o postergando para o período seguinte.
Ao adotar uma política refratária ao emprego e de valorização do salário-
mínimo menos agressiva do que o de seu sucessor, o Governo FHC não logrou
a queda das desigualdades tal como essa se apresentou nos anos 2004-2011.
De fato, Soares (2010) observou que, já nos anos FHC, em “1999, antes
de a desigualdade começar sua queda, o mercado de trabalho já tinha reduzido
o coeficiente de Gini em quase 0,4 ponto de Gini (x100)”, limitado pelo
desempenho da previdência no mesmo período.
Além disso, conforme aponta Pochmann, entre 1994 e 2004, as rendas
de propriedade (como juros, aluguéis e outros) aumentaram, ao passo em que
os salários perderam participação no PIB.
Baixos resultados do ponto de vista do crescimento econômico, com alto
desemprego e após uma crise no abastecimento de energia elétrica (em 2001),
garantiram que o sucessor de Fernando Henrique Cardoso não fosse um
integrante de sua equipe ou grupo político, mas da sua oposição, que se
apresenta como contrária às políticas neoliberais que resultassem em
desestatização, desindustrialização, perda de empregos (dada a abertura
comercial) e dependência do financiamento externo (com capital especulativo).
Durante os anos Lula, vencedor nas eleições gerais de 2002, sucessor do
governo FHC, ocorre a manutenção de marcos importantes no processo de
estabilização, corroborando o que afirma Loureiro:
com a internacionalização dos mercados e a desregulamentação
dos fluxos de capitais, começa-se a observar uma tendência à
homogeneização da política macroeconômica entre governos
com diferentes orientações ideológicas, realçando-se, como
fatores fundamentais das políticas monetárias e fiscais, a
mobilidade internacional dos capitais e o regime cambial [...]até os
anos 70, as variações das políticas macroeconômicas nestes
133
países estavam relacionadas com a coloração partidária do
governo e o grau de institucionalização de suas estruturas
corporativas. Mas, a rápida convergência dessas políticas, nos
anos 80, tem a ver com a internacionalização da economia
(LOUREIRO, 2001, p. 76-77)
Contudo, graças a mudanças no panorama internacional e ao ganho de
escala de algumas políticas sociais, ocorre uma expansão do mercado
consumidor com queda do desemprego, levando à emergência de uma classe
trabalhadora consumidora.
Essa ascensão contempla o outro lado da moeda no aperfeiçoamento dos
mecanismos de accountability, promovendo uma sociedade mais plural e
refletindo um Estado mais responsivo em relação à massa de trabalhadores
historicamente esquecida.
Há uma recomposição do valor do salário-mínimo, remontando aos anos
de ditadura civil-militar, uma maior geração de empregos das últimas quatro
décadas (POCHMANN, 2012), e a já pronunciada ampliação de escala de
políticas sociais, como o financiamento agrícola, a transferência de renda com
condicionalidades, dentre outas medidas.
Em que pese existir uma mudança importante, dado o fato de que em
nenhum momento da história brasileira foi documentada uma combinação de
crescimento econômico com diminuição de desigualdades, tampouco já se
registrou um período tão longo de institucionalidades democráticas, a ascensão
social não foi considerada nessa tese como uma mudança de classes sociais,
pois não ocorre mudança no perfil ocupacional e não se verifica ampliação do
tempo livre.
De todo modo, ocorre uma diminuição das despesas relativas dos
alimentos, aceleração das transformações sociais, incluindo maior escolaridade,
maior acesso a bens de consumo e acesso aos serviços, não apenas ofertados
pelo setor público, mas também pelo setor privado.
Essa ascensão, foi denominada na tese como “ascensão horizontal”,
sinalizando que não ocorre mudança de classe mas há mudança no bem-estar
das famílias e há mais condições objetivas para que estas permaneçam
134
diminuindo o número de integrantes e expandindo a escolaridade, seja pela
oferta pública ou privada.
As políticas sociais, acreditamos, se desenvolveram em um processo
incremental, não significando mera continuidade ou continuísmo das agendas de
outros governos, implicando em uma policy learning e a um path dependence. A
reversão ou revisão da trajetória passa a ter alto custo para um governante, a
depender da profundidade de tais iniciativas.
A concepção institucionalista aqui apresentada leva em consideração,
ainda, que o incrementalismo social verificado após a promulgação da
Constituição Federal de 1988, esteve calcado no presidencialismo de coalizão e
na responsabilidade fiscal, se constituindo em um complexo sistema, envolvendo
ainda a realidade federativa brasileira.
Os resultados foram de expansão da oferta de bens cívicos.
Consideramos o acesso regulado aos bens cívicos uma característica dos
países em desenvolvimento, dada a escassez em sua oferta, com a definição de
quem merece ou não ter acesso.
Obviamente, nesse sentido, a ampliação da oferta dos bens cívicos
converge para um quadro de maior responsividade do Estado brasileiro.
Os possuidores de tais bens veem a sua participação social e o
reconhecimento assegurados, não por simplesmente possuí-los, pois há uma
perspectiva relacional, de reconhecimento e inserção desses indivíduos.
Ultrapassa a mera oferta de serviços públicos, mas também inclui o tempo livre,
o consumo e a forma como as trocas simbólicas se dão no contexto social, no
sentido de promover a igualdade de oportunidades.
Obviamente, o Estado possui papel central na oferta de alguns bens
cívicos, como a saúde, a educação e a segurança pública; também o
desenvolvimento do transporte, incentivos públicos à sua utilização, além da
comunicação e desenvolvimento do mercado.
Os bens cívicos operam como dispositivos importantes para promover a
igualdade e o aprofundamento de uma sociedade reflexiva.
135
A inserção social verificada no período analisado, 2001-2011, foi
denominada como inserção dependente, dado o fato de ainda não ter se
configurado um aumento da ocupação de postos de trabalhos mais qualificados
e reflexivos.
Consideramos que se faz necessário aperfeiçoar o nosso entendimento
sobre a correlação entre bens cívicos e inserção social, no sentido de se indagar
sobre o processo de promoção de grandes contingentes humanos para o
patamar de cidadão, mais participativos, capazes de exercer o controle efetivo
das ações públicas e a responsabilização de burocratas e lideranças políticas.
Quando tal quadro se fizer realidade, estaremos diante de um país de
classe média e plural na construção da agenda e das políticas públicas, dada a
ampliação da autonomia dos indivíduos.
Teremos, então, de lidar com outros problemas sociais, outras situações
que trarão inquietação de pesquisadores, governos e da sociedade. Mas, então,
enfim, teremos superado as nossas características mais marcantes, pois
provavelmente deixaremos no passado a violenta desigualdade e a
marginalização social.
136
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