polÍticas culturais na amÉrica latina: uma abordagem conceitual

Upload: renataptrocha

Post on 28-Feb-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    1/17

    1

    POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA:UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    Renata Rocha1

    RESUMO: A partir da segunda metade do sc. XX, as polticas culturais tm adquiridorelevncia na agenda internacional, tornando-se alvo de investigaes em distintas reas.Poucos estudos sobre a temtica, porm, priorizam a reflexo terica e conceitual. Diantedesta constatao, prope-se debater, no mbito latino-americana, as origens do campoterico das polticas culturais, enfocando suas principais abordagens conceituais: a formalistae a crtica. Pressupe-se que reviso das contribuies neste sentido mostra-se como umimportante passo em busca de uma delimitao operacional e, ao mesmo tempo, crtica das

    polticas culturais.PALAVRAS-CHAVE:polticas culturais, teoria, conceito, Amrica Latina.

    POLTICAS CULTURAIS: CONFUSO TERMINOLGICA E FRAGMENTAO

    DISCURSIVA

    Quais so os aspectos constitutivos do campo terico que se debrua sobre as polticas

    culturais? Em que pese a expanso das reflexes acadmicas e das incurses e iniciativas de

    organismos pblicos e privados neste setor desde a segunda metade do sculo XX, ainda hoje

    so poucas as abordagens que se dedicam a constituir e delimitar os conceitos, objetos de

    estudo e mtodos de pesquisa que consigam dar conta desta complexa temtica.

    No Brasil, assim como na Amrica Latina, as investigaes sobre as polticas culturais

    se caracterizam pela disperso disciplinar e pela proeminncia de anlises empricas de

    experimentos em perodos, temticas e espaos especficos (RUBIM, 2007). A esse respeito, a

    terica colombiana Ana Maria Ochoa Gautier (2003) ressalta que a presena de ...confuso

    terminolgica, de fragmentao discursiva, de disperso escritural e de sentidos, no apenas

    um produto das diferentes prticas s quais a noo de poltica cultural remete, mas parte

    constitutiva do campo na atualidade (p. 65-66, traduo nossa)

    Diante do carter multi/interdisciplinar do campo, as reflexes que privilegiam aspectos

    tericos e conceituais devem considerar a impossibilidade de cobrir todos os clssicos,

    perodos e sculos, bem como todas as teorias utilizadas pelos principais autores. Como

    alternativa metodolgica, a pesquisadora holandesa Mieke Bal (2009), ao se dedicar anlise

    1Bolsista do Programa Nacional de Ps-Doutorado (PNPD) da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal deNvel Superior (CAPES) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em Cultura e Sociedade pela

    UFBA. Vice-coordenadora do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT), tambm da UFBA.Email:[email protected].

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    2/17

    2

    e crtica cultural, prope a nfase nos conceitos. No se trata de abandonar o rigor, mas de se

    mitigar a diviso disciplinar, considerando os termos utilizados a partir do seu carter

    intersubjetivo, visto que estar de acordo no quer dizer estar de acordo com o contedo, mas

    estar de acordo com as normas bsicas do jogo: ao se utilizar um conceito, o uso se dar deuma certa maneira para que a divergncia em relao ao contedo tenha sentido (p. 23,

    traduo nossa). Os contextos, os marcos e as concepes tericas que sustentam e envolvem

    as noes tambm devem ser considerados, pois tornam possvel a problematizao e

    identificao de seus pressupostos e consequncias tericas.

    Com base nesses pressupostos, propomos a realizao de breve um recorrido sobre

    algumas das principais reflexes que se dedicaram a elaborar uma definio rigorosa de

    polticas culturais no mbito da Amrica Latina. Embora a anlise dos processos histricos dapraxisdas polticas culturais no seja o foco deste texto, reiteramos que os estudos realizados

    acerca desta temtica possuem como objeto privilegiado formulaes e prticas polticas

    realizadas em espaos e contextos especficos. Por este motivo, so influenciados,

    sobremaneira, pela conjuntura histrica, poltica e social do territrio onde se desenvolvem.

    MOVIMENTOS PRECURSORES DA INSTITUIO DE UM CAMPO DE ESTUDOS

    No j clssico no artigo Polticas culturales y crisis de desarrollo: un balance latino-

    americano, o antroplogo Nstor Garcia Canclini (1987) prope uma caracterizao dos

    estudos e pesquisas sobre as polticas culturais. O autor distingue cinco movimentos nas

    ltimas dcadas do sculo passado que representam avanos nessa rea de estudos. So eles:

    a) o deslocamento das descries burocrticas para a conceituao crtica; b) das cronologias

    e discursos pesquisa emprica; c) das polticas governamentais aos movimentos sociais; d)

    das investigaes nacionais pesquisa internacional; e) da documentao sobre o passado

    anlise crtica e o planejamento. Os movimentos apontados contribuem de maneira efetiva

    para uma compreenso global da evoluo dos estudos sobre as polticas culturais ao apontar

    discusses, ainda hoje necessrias, e seus principais pontos de partida, aos quais nos

    dedicaremos a seguir.

    Em que pese a inegvel afinidade e interpenetrao entre as esferas da cultura e da

    poltica ao longo da histria da humanidade, diversos autores convergem em situar o

    surgimento das polticas culturais no sc. XX, a partir da assuno de novas modalidades de

    relaes entre poltica e cultura. Xan Bouzada Fernandez (2007), Raymond Willians (2011) e

    Albino Rubim (2012) caracterizam como momentos emblemticos do processo de nascimento

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    3/17

    3

    das polticas culturais: o surgimento das misses pedaggicas e centros de cultura da

    Repblica Espanhola nos anos 1930, a criao do Conselho das Artes da Inglaterra na dcada

    de 1940 e a instituio do Ministrio dos Assuntos Culturais da Frana em 1959. Embora os

    modelos de interveno sejam distintos entre si, o que importa destacar que os Estados,com diversas modalidades e concepes, assumiram a responsabilidade de orientar com

    polticas culturais suas intervenes no territrio nacional e nas aes internacionais, dotando-

    se de estruturas administrativas, normativas e financeiras especficas (BAYARDO GARCA,

    2008, p. 18, traduo nossa) Trata-se, portanto, de uma mudana de paradigmas: nestas

    experincias, em lugar da instrumentalizao da cultura pela poltica, esta ltima torna-se

    meio para desenvolver a cultura. A constituio de um campo de estudos dedicado a uma

    anlise das relaes entre cultura e poltica, sob a gide da terminologia poltica cultural,remonta, portanto, a esse novo paradigma.

    Outro marco deste processo a promulgao em 1948, da Declarao Universal dos

    Direitos Humanos pela Organizao das Naes Unidas (ONU), quando a cultura referida

    como um direito. Reconhecer a cultura como necessidade social e individual de participar

    da vida cultural da comunidade, gozar das artes, disfrutar dos benefcios do progresso

    cientfico, bem como da proteo jurdica criao constitui um relevante passo para

    superar a ideia de que a dimenso cultural seria suprflua (LOGIDICE, BAYARDO; 2012,

    2008).

    Tambm merece destaque uma iniciativa engendrada pela Organizao das Naes

    Unidas Para a Educao, Cincia e Cultura (Unesco): a coleo Studies and documents on

    cultural policies. O primeiro documento da srie, Cultural policy a preliminary study,

    publicado em 1969, resulta de uma mesa-redonda sobre polticas culturais realizada em

    Mnaco, em 1967. A noo de poltica cultural adotada subsidia a compreenso, no apenas

    do modo como os textos subsequentes da coleo abordam o tema, mas o programa adotado

    pela Unesco em sua 15 Conferncia Geral (Paris, 1968), que culmina com a Conferncia

    Mundial sobre as Polticas Culturais Mondiacult (Cidade do Mxico, 1982). Segundo o

    documento,

    ...entende-se por "poltica cultural" um conjunto de princpios operacionais, prticasadministrativas e oramentrias e procedimentos que fornecem uma base para a aocultural do Estado. Obviamente, no pode haver uma poltica cultural adequada paratodos os pases; cada Estado-Membro determina sua poltica cultural de acordo comos prprios valores culturais, metas e escolhas. (UNESCO, 1969, p. 4, traduonossa)

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    4/17

    4

    So enumerados, ainda, dois aspectos-chave para a implantao de polticas culturais

    pelos pases-membros:

    (a) que "poltica cultural" deve ser compreendida como a totalidade consciente edeliberada das prticas, aes ou ausncia de aes em uma sociedade, visando a

    atender certas necessidades culturais por meio da utilizao otimizada de todos osrecursos fsicos e humanos disponveis para aquela sociedade em um dadomomento; (b) que determinados critrios devero ser definidos para odesenvolvimento cultural, e que a cultura deve ser associada ao cumprimento dodesenvolvimento individual, econmico e social (UNESCO, 1969, p. 10, traduo egrifo nossos)

    O conceito acentua a relao entre as polticas culturais e a questo nacional, na qual

    reside sua legitimidade. Mais do que produto de reflexo do organismo, tal opo reflete o

    contexto das polticas culturais do perodo, nas quais a participao de agentes diversificados

    e a abrangncia multiesfrica ainda se mostravam bastante incipientes. Cabe pontuar, ainda,que a ausncia de poltica considerada uma forma deliberada de silenciamento estatal

    frente s questes culturais, cujas principais consequncias costumam ser a manuteno do

    status quo e beneficiamento do mercado. Diante da inadequao da ao privada, estas

    polticas devem ser integradas ao planejamento do Estado, cuja interveno, ainda que

    essencial, no deve interferir na liberdade de criao, nem contribuir para a passividade do

    pblico (UNESCO, 1969).

    Mesmo evidenciando a autodeterminao dos Estado-Membros na definio de

    polticas, com base nos seus valores culturais, metas e escolhas, a Unesco apresenta uma srie

    de prescries quanto avaliao e planejamento e indicativos acerca da criao artstica,

    agentes e canais de difuso para o setor cultural. Rubim (2012) assevera que o perodo no

    qual se plasma o modelo inicial de polticas culturais se caracteriza por uma evidente

    vocao: centralizadora, estatista e ilustrada, com um ntido vis de ateno para os aspectos

    estticos e artsticos2.

    Aps a divulgao deste primeiro ttulo, com vistas a subsidiar a Conferncia Inter-

    Governamental sobre os Aspectos Institucionais, Administrativos e Financeiros das Polticas

    Culturais (Veneza, 1970), a Unesco deu continuidade coleo. Ao longo dos anos 1970 e

    1980, foram publicados cerca de setenta textos sobre as polticas culturais de Estados-

    2Os participantes da mesa-redonda decidiram, por unanimidade, no se dedicar complexa definio de cultura,num momento em que sua concepo mais restrita explicitada no seu Ato Constitutivo como o acmulo desaber, refletida nas produes artsticas e intelectuais (PITOMBO, 2007, p. 120) se direcionava ideia, hoje

    prevalecente na instituio, de cultura como um conjuntode diferentes modos de pensar, ser e sentir ou seja,um dispositivo capaz de forjar uma identidade prpria ao tempo em que constitui diferenas (Idem, Ibidem).

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    5/17

    5

    Membros de todo o mundo enfatizando o modo como so planejadas e implantadas as

    polticas culturais3.

    O extenso conjunto, segundo Garca-Canclini (1987), limita-se a descrever e enumerar,

    formal e burocraticamente, as instituies estatais e atividades realizadas no campo culturalem nvel nacional. Apesar das crticas em relao ao formato adotado, apontadas pelo autor, e

    mesmo ao conceito de poltica cultural elaborado, cabe pontuar que embora o organismo no

    inaugure as polticas culturais, os estudos de polticas culturais e tampouco a definio de

    polticas culturais no mundo ocidental, inegvel sua relevncia para o agendamento e

    promoo em nvel planetrio das reflexes sobre processos que se iniciam em pases

    centrais, em contextos especficos4, e que vo ter importante incidncia no cenrio poltico e

    cultural, em especial, na Amrica Latina, na dcada de 19805

    .

    DOS INFORMES BUROCRTICOS, CRONOLOGIAS E DISCURSOS

    REFLEXO CRTICA E SISTEMTICA

    Como visto, as intervenes iniciais de polticas culturais nacionais, com destaque para

    a experincia francesa, amplificadas no mbito internacional pela promoo de diagnsticos e

    encontros, desprendem uma primeira emergncia do tema na cena pblica mundial, com

    significativas repercusses tericas, entre os anos 1970 e 1980 (RUBIM, 2012). Garca

    Canclini (1987) pontua, ainda, outros marcos para sua manifestao na Amrica Latina, no

    apenas na esfera acadmica, mas poltica. Na regio, os estudos sobre a modernizao, ento

    concebida como uma aproximao aos modelos industriais dos pases centrais, compreendiam

    a cultura, em especial a de carter tradicional, como obstculo para o desenvolvimento.

    Contudo, a crise do modelo de desenvolvimento economicista incapaz de solucionar as

    desigualdades sociais, a exploso demogrfica e a depredao ambiental trouxe

    interrogantes sobre as bases culturais da produo e do poder. Por sua vez, a ampliao do

    conceito de cultura contribuiu para sua insero no campo poltico, ao situar sua importncia

    3Dentre os pases latino-americanos, foram publicados diagnsticos sobre a Argentina, Bolvia, Colmbia, CostaRica, Cuba, Equador, Guatemala, Guiana, Honduras, Panam, Peru e Venezuela, conforme levantamento na basede dados da Unesco. Ver em:http://www.unesco.org/new/en/unesco/resources/publications/unesdoc-database/4No nos parece coincidncia que, no final dos anos 60, o modelo francs de polticas culturais seja colocado emcheque, por sua viso elitista e no democrtica, e que novas alternativas sejam reivindicadas (RUBIM, 2012).5Albino Rubim (2012) pontua como importantes iniciativas do organismo a realizao da Conferncia Inter-Governamental sobre Polticas Culturais (Veneza, 1970), as conferncias regionais da Europa (Helsinski - 1972),

    frica (Acra, 1975) e Amrica Latina e Caribe (Bogot, 1978), cujo ponto culminante a Conferncia Mundialsobre as Polticas Culturais, a Mondiacult, realizada em 1982, na Cidade do Mxico.

    http://www.unesco.org/new/en/unesco/resources/publications/unesdoc-database/http://www.unesco.org/new/en/unesco/resources/publications/unesdoc-database/http://www.unesco.org/new/en/unesco/resources/publications/unesdoc-database/http://www.unesco.org/new/en/unesco/resources/publications/unesdoc-database/
  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    6/17

    6

    nos modos de socializao, formao das concepes polticas e estilos adotados nos distintos

    modelos de desenvolvimento.

    Nesse contexto, se destaca a criao do Grupo de Trabalho sobre Polticas Culturais no

    Conselho Latino-Americano de Cincias Sociais (CLACSO). Composto por proeminentesintelectuais como Jos Joaqun Brunner, Nstor Garca Canclini, Oscar Landi, Sgio Miceli,

    entre outros, o grupo realizou uma pesquisa comparativa sobre as relaes entre poltica

    cultural e consumo em diversos pases da Amrica Latina. J em 1982, foram realizados dois

    eventos que, segundo Garca Canclini (1987), transcendem as descries burocrticas para

    examinar as bases conceituais da ao cultural. Ambos resultaram em livros, com a

    participao de pesquisadores e gestores culturais: Culturas populares y polticas culturais,

    organizado no mesmo ano por Guillermo Bonfil Batalla, e Estado e Cultura no Brasil,coordenado por Srgio Micelli e publicado em 1984. As reflexes se dedicam a aspectos at

    ento pouco contemplados: a pesquisa emprica, a anlise crtica, o planejamento e os

    movimentos sociais. Apesar do carter inaugurador e sistemtico, divergimos de Garca

    Canclini quando as define como obras de conceituao crtica, visto que elas no se dedicam

    ao exerccio conceitual.

    Maria Jlia Logidice (2012) enfatiza como provvel feito mais significativo do

    perodo, pelo amplo alcance e impacto, a publicao do livro, j citado, Polticas Culturales

    en America Latina, em 1987. A obra abarca reflexes sistemticas sobre as polticas culturais

    (bem como sobre cultura poltica) nos Estados Unidos (Jean Franco), Brasil (Miceli) e

    Argentina (Landi); um estudo sobre as polticas para os povos indgenas (Guillermo Bonfil

    Batalla); e duas anlises sobre as polticas culturais enquanto campo terico e institucional

    (Brunner e Garca Canclini).

    Os textos de Brunner e Garca Canclini, aos quais nos ateremos, apresentam noes

    bastante distintas de polticas culturais. emblemtico o fato de que eles encerrem as duas

    principais abordagens conceituais identificadas na literatura latino-americana, que

    permanecem em debate at os dias de hoje. Para alm de um embate entre correntes tericas,

    esto em disputa perspectivas distintas de cultura. De um lado, so enfatizados os aspectos

    processuais e relacionais e as questes concernentes ao poder e seus efeitos nas lutas

    simblicas pela construo da hegemonia6 e interpretao dos significados. De outro, a

    6

    A concepo abrange as relaes variveis de poder em uma determinada sociedade e a forma concreta comoelas so vividas. A hegemonia seria, portanto, a capacidade de um setor ou grupo de setores de uma classe social

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    7/17

    7

    cultura enfocada por um vis formalista, que privilegia os circuitos organizados do campo e

    seus aspectos estticos.

    CULTURA, POLTICA E PODER: UMA ABORDAGEM CRTICA DAS POLTICASCULTURAIS

    Influenciados pelo vasto campo temtico dos Estudos Culturais dos Estados Unidos da

    Amrica, os estudos da cultura na Amrica Latina empreendidos por autores como Garca

    Canclini, Carlos Altamirano e Oscar Landi, adotam novas perspectivas para suas

    investigaes.

    O que vemos comear a obter destaque so as prticas culturais imersas em mundosde vida diferentes religiosos, estticos, de consumo etc. e atravessadas por

    dimenses que remetem a situaes e cenrios econmicos, polticos e, sociais, cujoestudo mobiliza saberes e mtodos de muitas disciplinas e linguagens expositivasmuito diferentes tambm (MARTIN-BARBERO, 2010, p. 139, traduo da autora).

    Apesar da disperso e diversidade, so aspectos constitutivos desta corrente terica: a

    politicidade da cultura com base na noo de hegemonia; a ascenso de numerosos objetos

    menores a objetos de investigao cientfica ou cultural e a transdisciplinaridade como ponto

    de partida ou meta a ser perseguida (GRIMSON, CAGGIANO, 2010). No um acaso que o

    paradigmtico conceito de polticas culturais de Garca Canclini as invoque como:

    [...] o conjunto de intervenes realizadas pelo Estado, as instituies civis e osgrupos comunitrios organizados, a fim de orientar o desenvolvimento simblico,satisfazer as necessidades culturais da populao e obter consenso para um tipo deordem ou de transformao social7 (GARCIA CANCLINI, 1987, p. 26, traduonossa).

    Essa noo permanece sendo amplamente utilizada pelos estudiosos de polticas

    culturais, devido a seu carter abrangente e capacidade crtica, logrando ressaltar, de forma

    bastante sinttica, aspectos como: a existncia de mltiplos agentes como promotores de

    polticas; a reafirmao da cultura como necessidade; e o reconhecimento da dimenso

    simblica do desenvolvimento e do papel da cultura na orientao deste desenvolvimento. Adimenso mais geral do campo simblico enfatizada, ultrapassando o mbito da organizao

    e mediao cultural, ainda que no o exclua.

    de gerar consenso favorvel sobre seus interesses e faz-los equivaler como interesses gerais. (GRAMSCI,1978).7 Em 2005, Garca Canclini acrescenta definioque esta maneira de caracterizar o mbito das polticasculturais necessita ser ampliada tendo em conta o carter transnacional dos processos simblicos e materiais na

    atualidade (p. 65). Visto que os fluxos comunicacionais e a construo das identidades simblicas, ultrapassamas fronteiras dos espaos nacionais, faz-se necessrio problematizar a restrio do conceito realidade nacional.

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    8/17

    8

    No entanto, cabe indicar e debater algumas lacunas identificadas, a fim de super-las.

    Inicialmente, a compreenso da poltica cultural como formadora de consenso, seja ele

    hegemnico ou contra hegemnico nos parece relevante, ao tomar como ponto de partida a

    cultura como os modos especficos como os atores se enfrentam, se aliam ou negociam.(GRIMSON; SEMN, 2005, s/p, traduo nossa). Supera-se, desta forma, uma suposta

    neutralidade, inscrevendo a cultura e as polticas culturais nos conflitos e lutas que marcam a

    sociedade. Esta opo, porm, implica o risco de ampliar em demasiado o conceito, de modo

    que a cultura deixe de ser finalidade, para tornar-se mero instrumento da poltica cultural.

    Alm disso, a ideia de poltica como conjunto de intervenes carece de um maior

    detalhamento com o intuito de estabelecer sua sistematicidade, continuidade, abrangncia e

    centralidade, explicitando as diferenciaes entre uma mera ao/interveno e uma polticacultural.

    A perspectiva de polticas culturais apresentada por Teixeira Coelho, em seuDicionrio

    Crtico de Polticas Culturais (1997), nos parece um desenvolvimento dessa acepo,

    inclusive em busca de superar algumas questes j elencadas. Vejamos:

    Constituindo [...] uma cincia da organizao das estruturas culturais, a polticacultural entendida habitualmente como programa de intervenes realizadas peloEstado, instituies civis, entidades privadas ou grupos comunitrios com o objetivode satisfazer as necessidades culturais da populao e promover o desenvolvimentode suas representaes simblicas. Sob este entendimento imediato, a polticacultural apresenta-se assim como o conjunto de iniciativas, tomadas por essesagentes, visando promover a produo, a distribuio e o uso da cultura, a

    preservao e divulgao do patrimnio histrico e o ordenamento do aparelhoburocrtico por elas responsvel. (COELHO, 1997, p. 293)

    O autor detalha, ainda, que as intervenes podem adotar a forma de normas jurdicas,

    procedimentos tipificados ou aes culturais diretas, e lista como objetivos da poltica cultural

    promover a produo, a distribuio e o uso da cultura, a preservao e divulgao do

    patrimnio histrico e o ordenamento do aparelho burocrtico por elas responsvel (Id.,

    Ibid.). Destaca-se, positivamente, o carter instrumental e burocrtico das polticas, noentanto, a opo pela enumerao incorra no risco de omitir objetivos outros das intervenes.

    O confronto entre as noes de Garca Canclini e de Teixeira Coelho, por sua vez,

    evidencia a supresso, nesta ltima, do objetivo de obter consenso para um tipo de ordem ou

    de transformao social (GARCIA CANCLINI, op. cit.). Sob o argumento de que tal

    perspectiva pressupe uma ideia elitista de difuso cultural de levar a cultura ao povo,

    Coelho assevera que a noo de poltica cultural apresenta-se com frequncia sob uma forma

    altamente ideologizada (1997, p. 293) e em ampla medida devedor de uma viso

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    9/17

    9

    conspiratria da realidade social e poltica (Idem, p. 293). Contudo, como visto, esta

    interpretao no condiz com a percepo de Garca Canclini, nem com a teoria que o

    embasa.

    Acerca da definio de Coelho, Alexandre Barbalho (2005) questiona a atribuio, peloautor, s polticas culturais do termo cincia. A atuao neste mbito no pode ser

    considerada um estudo e tampouco se constitui como cientfica: ela pode (e deve) ser objeto

    de estudos e reflexes a partir das reas j existentes (histria, antropologia, sociologia, dentre

    outras) ou sob um enfoque multidisciplinar, mais adequado a este tipo de estudo.

    POLTICAS CULTURAIS E SUA CONCEPO FORMALISTA

    Ainda fruto da conjuntura existente nos anos 1980, toma relevo a abordagem depolticas culturais sob o vis formalista. Ainda que pouco referida entre os autores latino-

    americanos dedicados ao tema, ela frequentemente reivindicada, at os dias de hoje, entre os

    diversos agentes do campo cultural. A recusa em considerar a disputa por valores, no contexto

    de polticas culturais democrticas, tem como argumento a necessidade de garantir o

    pluralismo e o equilbrio entre os agentes frente a perspectivas de controle excludentes,

    autoritrias ou monoplicas. Uma importante referncia nesta direo, conforme j

    mencionado, o artigo Polticas culturales y democracia: hacia una teora de las

    oportunidades (1987). Nele, o pesquisador chileno Jos Joaqun Brunner, inspirado nas

    premissas do pluralismo poltico, elabora um mapa analtico das oportunidades existentes para

    atuao das polticas culturais, explicitando as possveis formas de interferncia cultural em

    um ambiente democrtico.

    [] as polticas culturais democrticas so em um sentido mais geral polticasformais. Buscam ajustes institucionais mais do que aplicar contedos cognitivos sociedade. Buscam criar estruturas de oportunidades (mercados, sistemas de seleo,

    pluralidade de ofertas, variedade) e, ao mesmo tempo, impedir (mediantecompensaes, procedimentos, formas de controle, medidas de competio, abertura

    de bloqueios, etc.) que essas estruturas de oportunidades sejam objetos de socialclosure, de isolamento ideolgico ou de qualquer forma de manipulaomonoplica. (1987, p. 198, traduo nossa e grifos do autor)

    Tais ajustes institucionais deveriam intervir apenas nos nveis organizacionais do campo

    cultural, os circuitos culturais8. Restaria assegurada, ento, uma estrutura institucional que

    8 A matriz bsica destes circuitos, segundo Brunner (1988) a combinao tpica de agentes (produtoresprofissionais, empresas privadas, agncias pblicas e associaes voluntrias); instncias institucionais deorganizao (administrao pblica, mercado e comunidade); meios de produo (sobre os quais incidem a base

    tecnolgica, propriedade de meios e organizao de agentes e meios); canais de comunicao (relativos aocondicionamento tecnolgico e o acesso de agentes e pblicos); e pblicos.

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    10/17

    10

    garantiria formalmente aos indivduos a oportunidade de aderir ao modelo ou de expressar os

    prprios valores culturais. Laura Maccioni (2002), destaca que o conceito de polticas

    culturais de Brunner se assenta na definio, tambm formal, de democracia, compreendida

    como:[] um sistema onde h mltiplos atores que perseguem polticas estratgicas

    dentro de um marco competitivo, produzindo resultados epifenomnicos e efeitosperversos, o qual se traduz, para cada participante, no fato em que ningum podeobter garantias de que seus interesses triunfaro por completo, nem pode estar certode que suas posies sero continuamente preservadas (BRUNNER,1987, p. 196,traduo nossa)

    O permanente conflito do processo poltico resulta na indeterminao, em certa medida,

    dos seus resultados. Caberia, portanto poltica cultural, em lugar de promover a hegemonia,

    criar um marco constitucional de possibilidades para que os agentes possam materializar e

    expressar seus interesses e assegurar a existncia e expanso da diversidade dos circuitos

    culturais. sob tal perspectiva que Brunner compreende as polticas culturais, enquanto

    [...] tentativas de interveno deliberada, com os meios apropriados, na esfera deconstituio pblica, macrossocial e institucional da cultura, a fim de obter os efeitosdesejados. So, geralmente, formas de interveno que tendem a operar no nvelorganizacional da cultura: preparao e carreira dos agentes, distribuio eorganizao dos meios, a renovao dos meios, formas institucionais de produo ecirculao de bens simblicos, etc. (BRUNNER, 1988, p. 268, traduo nossa).

    Tal interveno se restringe, portanto, dimenso da cultura que diz respeito esfera

    especializada de produo simblica. J a dimenso cultural que abarca a totalidade das

    interaes sociais mediante as quais os indivduos (e as sociedades) fazem sentido

    cotidianamente de seus pequenos mundos e do mundo (grande) em geral (Id., Ibid., traduo

    nossa) escaparia a qualquer interveno poltica direta. A interferncia neste mbito, segundo

    o autor, requereria bem mais do que polticas culturais9. Contudo, a dimenso cotidiana da

    cultura, se constitutiva da vida social, tambm conforma e influencia o circuito cultural.

    Logo aps sua publicao, o formalismo de Brunner contestado por Beatriz Sarlo

    em um artigo publicado na revista argentina Punto de Vista. Segundo a autora, diante da

    grande desigualdade social e cultural dos pases latino-americanos, mais do que preservar o

    equilbrio, a poltica culturalem especial desenvolvida pelo Estadodeveriainterferir neste

    campo profundamente desequilibrado.

    Limitar as polticas a funcionar como garantias de igualdade formal dos agentes queintervenham, supe uma abstrao ou grau zero de desigualdade cultural e material.

    No processo cultural, os sujeitos no so efetivamente iguais, nem em suas

    9O paradigmtico texto de Isaura Botelho (2001) Dimenses da cultura e polticas pblicastoma como base as

    reflexes de Brunner, para demarcar duas dimensesa antropolgica e a sociolgicada cultura para a anlisee formulao de estratgias de polticas pblicas na rea da cultura.

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    11/17

    11

    oportunidades de acesso aos bens simblicos, nem em suas possibilidades deescolher, inclusive dentro do conjunto de bens que esto efetivamente a seu alcance(SARLO, 1988, p. 9, traduo nossa)

    Sarlo sustenta, portanto, que no h polticas culturais neutras. Emboraa garantia de

    existncia de um mercado livre de circulao dos bens simblicos seja condio formal

    indispensvel, tal medida no garante o equilbrio das desigualdades reais de acesso a esses

    bens. A democratizao do acesso, diante da necessria limitao de recursos culturais

    prvios, implica, portanto, intervir no apenas nas formas institucionais, mas proceder a opo

    por valores expressos tanto nas formas como nos contedos das mensagens.

    A definio formal de polticas culturais abre uma srie de problemas, ao mesmotempo que garante que eles so sejam resolvidos mediante imposies ideolgicas.O pior, em uma poltica cultural, no sua relao com valores, mas sim que estesno sejam objeto de discusso permanente, incluindo os valores inscritos no marco

    mais amplo definido por Brunner (SARLO,1988, p. 9, traduo nossa).

    s questes pontuadas, podem ser somadas outras, tambm relevantes. Em primeiro

    lugar, o tema dos valores, contedos e formas, no pode ser abordado apenas com base na

    desigualdade cultural e material nas sociedades latino-americanas. A discusso no se

    invalida em sociedades mais igualitrias, se considerarmos que, ao ampliar, ou

    antropologizar a noo de cultura, os valores agora explicitados em conceitos como o

    delineado pela Unesco10em 1982tornam-se aspecto constitutivo do prprio campo cultural.

    Se os valores sociais fazem parte da cultura, torna-se inexequvel a ideia de uma poltica

    cultural que no os considere.

    Ademais, resulta contraditrio reivindicar que o estado democrtico no intervenha nos

    contedos e formas das polticas culturais, visto que tal interdio no sugerida a outros

    atores (inclusive o mercado e as empresas privadas). Ademais, trata-se de um reducionismo a

    ponderao da incapacidade do estado democrtico de produzir valores que no sejam

    impositivos e autoritrios, em especial, ao considerar seus corpos estveis, comocentros de

    pesquisas, instituies culturais, universidades, emissoras pblicas de comunicao etc.

    NOES CONTEMPORNEAS DE POLTICAS CULTURAIS

    Em meio crise socioeconmica das sociedades latino-americanas na dcada de 1980,

    agravadas pela adoo intensa dos programas de retrao de gastos e inibio das iniciativas

    10 A cultura , naquele momento, considerada como [...] o conjunto dos aspectos distintivos, espirituais emateriais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Ela engloba ademais das

    artes e as letras, os modos de vida, os direitos fundamentais ao ser humano, os sistemas de valores, as tradies eas crenas. (UNESCO, 1982, p. 43, traduo nossa)

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    12/17

    12

    estatais no marco Consenso de Washigton, Garca Canclini (1987) j apontava como um

    paradoxo o fato de que, justamente quando se compreende melhor o papel que a cultura pode

    cumprir na democratizao da sociedade estamos nas piores condies para desenvolv-la,

    redistribu-la fomentar a expresso e o avano dos setores populares (p. 26, traduo nossa).De fato, na dcada seguinte, o modelo neoliberal torna-se hegemnico, determinando,

    segundo Rubim (2012), o colapso da primeira emergncia das polticas culturais, diante da

    prevalncia do mercado sobre a poltica como modalidade de organizao da sociedade e da

    cultura. Tambm influenciam esse processo a disjuno entre as polticas culturais e a questo

    nacional e o declnio das iniciativas da Unesco, devido a diminuio de seus recursos aps a

    sada de pases como os Estados Unidos da Amrica11e o Reino Unido, ainda nos anos 1980.

    Apesar das limitaes, a Unesco no permanece paralisada e sua atuao catalizadorano agendamento pblico de debates e reflexes engendram a segunda e contempornea

    emergncia das polticas culturais (RUBIM, 2012, p. 22). Segundo Garca Bayardo (2008),

    [n]o marco da Terceira Dcada Mundial para o Desenvolvimento Cultural 1988-1997, a Comisso Mundial de Cultura e Desenvolvimento produziu o informe NossaDiversidade Criadora (1996). A este seguiria a Conferncia Intergovernamentalsobre Polticas Culturais para o Desenvolvimento (Estocolmo, 1998). No entanto, osnovos passos decisivos seriam dados pela Declarao Universal da UNESCO sobrea Diversidade Cultural (Paris, 2001) e pela Conveno sobre a Promoo e Proteoda Diversidade das Expresses Culturais (Paris, 2005) (p. 25, traduo nossa)

    Na Amrica Latina, tais aes exercem um relevante papel ao estimularem a construode novas agendas polticas, somadas aos esforos de alguns pases em elaborar legislaes

    culturais e implementar planos de cultura (CALABRE, 2013), certamente influenciados pelas

    eleies de governantes de esquerda12 e seu empenho em estabelecer modelos scio-

    econmico-polticos alternativos s polticas neoliberais das ltimas dcadas (ELIAS, 2006).

    Conforme veremos, as noes contemporneas de polticas culturais mais difundidas na

    regio adotam como base13 a corrente terica de estudos latino-americanos, acima aludida,

    sobre a cultura que privilegia as dimenses de disputas e tecnologias de poder, estratgiaspolticas e prticas de atores sociais, em detrimento da abordagem formalista.

    Escobar, Alvarez e Dagnino (2000), por exemplo, concebem as lutas democrticas

    como processos de redefinio tanto do sistema poltico como das prticas econmicas,

    sociais e culturais que poderiam gerar um novo ordenamento da sociedade como conjunto.

    11Apenas este pas, segundo Garca Bayardo (2007) respondia por 65% das verbas publicitrias do organismo.12 A exemplo da eleio de Hugo Chvez (Venezuela) em 1999, Luiz Incio Lula da Silva (Brasil) e EvoMorales (Bolvia) em 2002, Nstor Kirchner (Argentina), em 2003 e Tabar Vazquez (Uruguai), em 2005.13

    Mesmo no caso em que algumas perspectivas relevantes dessa corrente de pensamento sejam refutadas,conforme visto no conceito elaborado por Teixeira Coelho (1997).

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    13/17

    13

    Assim, a pluralidade de agentes inseridos neste campo promove um deslocamento na

    perspectiva de cultura que, agora mobilizada com fins polticos e sociais, transcende a esfera

    do simblico referido como expresses artsticas. As polticas culturais so, ento,

    interpretadas como:[...] o processo posto em ao quando conjuntos de atores sociais moldados por eencarnando diferentes significados e prticas culturais entram em conflito uns comos outros. Essa definio supe que significados e prticas - em particular aquelesteorizados como marginais, oposicionais, minoritrios, residuais, emergentes,alternativos, dissidentes e assim por diante, todos concebidos em relao a umadeterminada ordem cultural dominante - podem ser a fonte de processos que devemser aceitos como polticos. [...] Isto , quando apresentam concepes alternativas demulher, natureza, raa, economia, democracia ou cidadania, que desestabilizam ossignificados culturais dominantes, os movimentos pem em ao uma polticacultural. (p. 24-25)

    Coincidimos com os autores acerca da relevncia da dimenso poltica da cultura nainstituio de significados e prticas, e que estes, por sua vez, desestabilizem a ordem cultural

    dominante. Esta nfase, que se constri em mbito marginal, atenta para os movimentos

    sociais e o modo como o cultural, nestes movimentos, abarca no apenas as demandas

    identitrias, mas a mobilizao contnua dos atores populares contra projetos dominantes de

    desenvolvimento, construo de uma nao e represso. Apesar da relevncia do debate, a

    adoo desta noo comopoltica cultural14, incorre em uma potencial armadilha: a perda de

    sua operacionalidade em funo de sua abrangncia. Ou seja, em lugar de intervenes

    deliberadas com base em objetivos especficos, a noo assumiria um papel de metapoltica

    (MACCIONI, 2002)

    Aps uma breve reflexo sobre as diversas concepes de polticas culturais em voga na

    Amrica Latina (GARCA CANCLINI, COELHO, ESCOBAR et al; 1987, 1997, 2000), a

    pesquisadora colombiana Ana Maria Ochoa Gautier prope atualiz-la como:

    [...] a mobilizao da cultura levada a cabo por diferentes tipos de agentes oEstado, os movimentos sociais, as indstrias culturais, instituies como museus ouorganizaes tursticas, associaes de artistas e outros com a finalidade de

    transformao esttica, organizacional, poltica, econmica e/ou social. (OCHOAGAUTIER, 2003, p. 20, traduo nossa)

    A opo por delimitar as polticas culturais como mobilizao da cultura representa

    um recuo ao paradigma prvio da prpria acepo, visto que o cultural no serio o objetivo

    14Resta evidenciado aqui o difcil jogo de tradues que obscurecem os matizes semnticos das palavras. Noportugus, a expresso polticas culturais invocada como uma prtica poltica concreta de desenho eimplementao de programas e projetos especificamente relacionados com a mobilizao do simblico enquantoexpresso esttica, e no como o campo simblico em geral. Seria o que chamaramos, em ingls, de culturalpolicies(OCHOA GAUTIER, 2003). Escobar, Alvarez e Dagnino, porm, traduzem, deliberadamente, a noo

    cultural politcs como polticas culturais. Em consonncia com Ochoa Gautier (2003) entendemos que suaaplicao, ao longo do texto, refere-se, com maior propriedade aopoltico do cultural.

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    14/17

    14

    das polticas, mas o meio ou instrumento para se alcanar finalidades especificas, a exemplo

    da transformao esttica, organizacional, poltica, econmica e/ou social. A dimenso

    cultural, por sua vez, enfatizada apenas no primeiro deles. Ao priorizar, portanto, a

    construo da hegemonia ressaltando o poltico do cultural Ochoa Gaultier se alinha aEscobar, Alvarez e Dagnino (2000), situando a poltica cultural novamente como

    metapoltica. E, embora se refira, ao longo da obra como um todo, poltica cultural como

    prtica poltica concreta no campo do simblico dedicando-se anlise do Ministrio da

    Cultura da Colmbiao conceito em anlise mantm a j aludida e, a nosso ver, prejudicial,

    abrangncia.

    J Toby Miller e George Ydice, estabelecem como objetivo maior do livro Polticas

    Culturales (2004), a reflexo acerca sobre como so constitudos os saberes e prticasculturais que determinam a formao e o governo dos sujeitos (MILLER; YDICE, 2004, p.

    13, traduo nossa). No entanto, apesar de se comprometerem enfaticamente com os aportes

    dos estudos culturais, a noo de polticas culturais desenvolvida refora sobremaneira seu

    carter administrativo e burocrtico. Vejamos:

    A poltica cultural se refere aos suportes institucionais que canalizam tanto acriatividade esttica como os estilos coletivos de vida: uma ponte entre os doisregistros. A poltica cultural se encarna em guias sistemticas e regulatrias para aao adotadas pelas instituies a fim de alcanar suas metas. Em suma, mais

    burocrtica que criativa ou orgnica: as instituies solicitam, instruem, distribuem,financiam, descrevem e rechaam os atores e atividades que esto sob o signo doartista ou da obra de arte atravs da implementao de polticas (MILLER;YDICE, 2004, p. 11, traduo nossa).

    A poltica cultural tomada como instncia que articula a cultura como modo de vida,

    mas que tambm organiza a criatividade esttica. paradoxal, porm, que se reivindique a

    transformao da ordem social, concebendo as polticas como esfera transformadora, e no

    funcionalista, e, por outro lado, suas aes sejam reduzidas a guias sistemticas e

    regulatrias para a ao e seus objetivos ao cumprimento de metas institucionais. Em

    comparao s perspectivas de filiao terica semelhante, so desconsiderados os valores

    explicitados nos objetivos das polticas, como as necessidades culturais da populao, o

    desenvolvimento simblico (ou das representaes simblicas), a transformao esttica,

    organizacional, poltica, econmica e/ou social (GARCIA CANCLINI, COELHO, OCHOA

    GAUTIER; 1987, 1997, 2003). Nesse sentido, a noo possui maior afinidade com o proposto

    por Brunner (1988).

    O conceito traduz, ainda, um grande preconceito contra as polticas culturais ao

    determinar que estas no so criativas. Em desacordo com os autores, entendemos que a

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    15/17

    15

    criatividade no algo apenas inerente s artes, ainda que nelas tenha um espao singular. A

    criatividade uma relevante dimenso a ser considerada nas polticas culturais.

    CONSIDERAES FINAISA realizao deste breve recorrido leva a algumas consideraes em relao s

    contribuies dos conceitos analisados para o campo terico das polticas culturais. Em

    primeiro lugar, cabe destacar que, nas definies analisadas, a opo dos autores por enfatizar

    aspectos especficos diz respeito histria intelectual, influncias tericas e modos de

    insero especficos na temtica. Assim, conforme salienta Ana Mara Ochoa (2003) surgem

    novas barreiras no campo das polticas culturais: em lugar dos obstculos disciplinares, as

    perspectivas a serem abordadas passam a condicionar o desenvolvimento terico dos estudos.Optamos por nos filiar a uma abordagem crtica das polticas culturais, admitindo sua

    no neutralidade. Em consonncia com Evelina Dagnino (2005), partimos de que a hiptese

    central sobre a noo de projetos polticos que eles no se reduzem a estratgias de atuao

    poltica no sentido estrito, mas expressam e veiculam e produzem significados que integram

    matrizes culturais mais amplas (p. 49). No existem, portanto, estratgias polticas

    meramente formais e tampouco neutras. A presuno de sua existncia jimplica, em si,

    um posicionamento cultural, poltico e social pr-estabelecidos.

    Cabem s polticas culturais no apenas oferecer servios especializados, mas assumir-

    se enquanto instrumento de transformao social, promoo da diversidade e da cidadania. No

    entanto, a partir do momento em que as polticas culturais so demarcadas quando a cultura

    deixa de ser instrumento para tornar-se finalidade da poltica, coincidimos com Brunner

    (1988), ao ponderar que elas se delimitam a um mbito especfico: os circuitos culturais. Por

    outro lado, a anlise ou ao neste circuito deve considerar as dinmicas de mobilizao que

    estabelecem relaes e exploram o simblico como mediador do poltico e do social,

    ultrapassando a acepo meramente esttica. A dimenso antropolgica deve, portanto, ser

    inserida no circuito organizado da cultura. Com esta ressalva, acreditamos superar a

    armadilha de conceber as polticas culturais como metapolticas, sem adotar uma viso

    formalista da interveno cultural.

    Por fim, com base nas reflexes suscitadas pelos conceitos, consideramos como

    aspectos constitutivos das polticas culturais: a mobilizao do simblico por meio do circuito

    organizado da cultura; a pluralidade de atores e campos de enunciao a partir dos quais se

    desenha, discute e implementa as polticas; a existncia de intervenes conjuntas,

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    16/17

    16

    intencionais, sistemticas e qualificadas; a compreenso da cultura como direito e a promoo

    de articulaes entre cultura e desenvolvimento, contemplando, no apenas aquela como

    dimenso constitutiva deste, mas a necessidade de iniciativas que incidam no

    desenvolvimento do campo simblico de forma mais ampla.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BAL, Mieke. Conceptos viajeros en las humanidades: una gua de viaje. Trad. Yaiza HernndezVelzquez. Murcia / Espaa, CENDEAC, 2009.

    BARBALHO, Alexandre. Poltica cultural. In: RUBIM, Linda (org.) Organizao e produo dacultura. Salvador, EDUFBA, 2005, pp. 33-52.

    BAYARDO GARCA, Rubens. Polticas Culturales: Derroteros y Perspectivas Contemporneas.RIPS- Revista de Investigaciones Polticas y Sociolgicas. Santiago de Compostela, USC, Ano, vol. 07. n1, 2008. pp. 17-29.

    BOTELHO, Isaura. Dimenses da cultura e polticas pblicas. In: So Paulo em Perspectiva. SoPaulo, n. 15, n.2, p. 73-83, abr./jun. 2001.

    BOUZADAS FERNNDEZ, Xan M. Financia acerca del origen y genesis de las politicas culturalesoccidentales: Arqueologas y derivas. O Pblico e o Privado. Fortaleza, UECE, n.9, Jan./Jun., 2007,pp.111147.

    BRUNNER, Jos Joaqun. Un espejo trizado. Ensayos sobre cultura y polticas culturales. Santiago

    de Chile: FLACSO, 1988.

    ______. Polticas culturales y democracia: hacia una teora de las oportunidades. In: GARCIACANCLINI, Nstor (org.). Polticas Culturales en Amrica Latina. Buenos Aires: Grijalbo, 1987, pp.13-59.

    CALABRE, L.Histria das polticas culturais na Amrica Latina: um estudo comparativo de Brasil,Argentina, Mxico e Colmbia. Revista Escritos, Ano 7, N 7. Rio de Janeiro: FCRB, 2013, pp. 323-345.

    COELHO, Teixeira.Dicionrio crtico de poltica cultural. So Paulo: Iluminuras, 1997.

    DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participao e cidadania: de que estamos falando? In MATO,Daniel (coord.). Polticas de ciudadana y sociedad civil en tiempos de globalizacin. Caracas:FACES, Universidad Central de Venezuela, 2004. pp. 95-110

    ELIAS. Antonio (Comp).Los gobiernos progresistas en debate. Argentina, Brasil, Chile, Venezuela yUruguay. Buenos Aires: CLACSO, 2006.

    ESCOBAR, Arturo; LVAREZ, Sonia e DAGNINO, Evelina. Poltica cultural & cultura poltica:una nueva mirada sobre los movimientos sociales latinoamericanos. Bogot, Taurus-ICAH, 2001, p.17-48.

    GARCIA CANCLINI, Nstor (org.). Polticas Culturales en Amrica Latina. Buenos Aires: Grijalbo,

    1987.

  • 7/25/2019 POLTICAS CULTURAIS NA AMRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

    17/17

    17

    ______. Polticas culturales y crisis de desarrollo: un balance latinoamericano. In: GARCIACANCLINI, Nstor (org.). Polticas Culturales en Amrica Latina. Buenos Aires, Grijalbo, 1987, p.13-59.

    ______.Definiciones en transicin. In: MATO, Daniel (org.) Estudios latinoamericanos sobre cultura

    y transformaciones sociales en tiempos de globalizacin. Buenos Aires, Clacso, 2005.

    GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organizao da cultura. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 1978.

    GRIMSON, Alejandro y SEMN Pablo. Presentacin: La cuestin cultura. In: Etnografascontemporneas. UNSAM-CIE, ao 1, n.1, abril 2005: pp. 11-22.

    GRIMSON, Alejandro; CAGGIANO, Sergio.Respuestas a un Cuestionario: posiciones y situaciones.In: RICHARD, Nelly (Ed.). En Torno a los Estudios Culturales. Localidades, trayectorias y disputas.Santiago: Editorial Arcis, Clacso, 2010. pp. 17-30.

    MACCIONI, Laura. Valoracin de la democracia y resignificacin de poltica y cultura: Sobre laspolticas culturales como metapolticas. In: MATO, Daniel (coord.) Estudios y otras prcticasintelectuales latinoamericanas en cultura y poder. Caracas: CLACSO, 2002, pp. 189-200

    MARTN-BARBERO, Jess. Notas para hacer memria de la investigacin cultural emLatinoamrica. In: RICHARD, Nelly (Ed.). En Torno a los Estudios Culturales. Localidades,trayectorias y disputas. Santiago: Editorial Arcis, Clacso, 2010. pp. 133-141.

    MILLER, Toby, YDICE, George. Poltica Cultural. Barcelona: Gedisa Editorial, 2004.

    OCHOA GAUTIER, Ana Mara. Entre los deseos y los derechos. Un ensayo crtico sobre polticasculturales. Bogot: INCAH, 2003.

    PITOMBO, Mariella. Entre o universal & o heterogneo: uma leitura do conceito de cultura naUnesco. In: NUSSBAUMER, Gisele (org.) Teorias & polticas de cultura. Salvador: CULT/EDUFBA,2007, pp.115-138.

    RUBIM, Albino. Panorama das polticas culturais no mundo. In: RUBIM, Albino e ROCHA, Renata(orgs.). Polticas Culturais. Salvador, EDUFBA, 2012, p. 13-27.

    ______. Polticas culturais entre o possvel e o impossvel. In: NUSSBAUMER, Gisele (org.) Teorias& polticas de cultura. Salvador: CULT/EDUFBA, 2007, p.139-158.

    SARLO, Beatriz. Polticas culturales: democracia e innovacin. Punto de Vista, Buenos Aires, n 32,

    1988, pp. 8-14.

    UNESCO. Cultural policy: a preliminary study. Paris: UNESCO, 1969.

    ______. Declaracin de Mxico sobre las Polticas Culturales. In: Conferncia Mundial sobrePolticas Culturais: Mondiacult. Cidade do Mxico: UNESCO, 1982.

    WILLIAMS, Raymond. Poltica do Modernismo. So Paulo, Editora da UNESP, 2011.