integraÇÃo - pucrs.br · mÚsica e poesia ... pessoas, de idéias, de bens culturais e de outras...
TRANSCRIPT
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
Chanceler: Dom Altamiro Rossato
Reitor: Ir. Norberto Francisco Rauch
Conselho Editorial:
Antonio Mário Pascual Bianchi
Délcia Enricone
Jayme Paviani
Jorge Alberto Franzoni
Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva
Regina Zilberman
Telmo Berthold
Urbano Zilles (presidente)
Diretor da EDIPUCRS: Antoninho Muza Naime
EDIPUCRS
Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33
C. P. 1429
90001-970 Porto Alegre RS
Tel.: (051)339-1511 r: 3323
Fax: (051)339-1564
Copyright de Elvo Clemente
FICHA CATALOGRÁFICA
Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Central – PUCRS
Capa: José Fernando Fagundes de Azevedo Digitação e Diagramação: Cristina Mancini Berengan Impressão: Evangraf – Fone: (051)336-2466
C626i Clemente, Elvo
Integração: língua, cultura e literatura/ Elvo Clemente. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.
94p. – (Coleção CONESUL); 1)
1.Cultura – CONESUL 2.Literatura – CONE-
SUL 3.CONESUL – Aspectos Sócio-Políticos 4.Lima, Alceu Amoroso – Crítica e Interpretação I.Título II.Série
CDD 303.4828
809 309.8
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................ 6 INTEGRAÇÃO, LÍNGUA E CULTURA ................................................................. 9
Introdução ......................................................................................................... 91 – A língua – A palavra ................................................................................... 92 – Linguagem/língua ..................................................................................... 113 – Língua/Cultura .......................................................................................... 134 – Literatura .................................................................................................. 145 – Ibero-América ........................................................................................... 16
O LIVRO E A CULTURA .................................................................................... 22 O DIÁLOGO LINGÜÍSTICO DOS POVOS ......................................................... 28 ESTUDO DE LÍNGUAS / ENCONTRO DE CULTURAS .................................... 31 LÍNGUA LITERÁRIA E CRÍTICA ........................................................................ 35 O LIVRO, HISTÓRIA, LEITURA E CRIAÇÃO .................................................... 43 CRÍTICA LITERÁRIA E FICÇÃO ATUAL ........................................................... 48 LITERATURA E INTEGRAÇÃO ......................................................................... 60 O ÍNDIO NA HISTÓRIA E NA LITERATURA ..................................................... 64 MÚSICA E POESIA ............................................................................................ 70 O CRÍTICO ALCEU AMOROSO LIMA ............................................................... 74
6
APRESENTAÇÃO
Integração: Língua, Cultura e Literatura pretende traçar o perfil cultural
e sócio-político do Cone Sul para as próximas décadas em que as fronteiras
serão apenas indicações geográficas sem restrições ao livre trânsito de
pessoas, de idéias, de bens culturais e de outras utilidades.
O vocábulo integração provém de íntegro, voz latina que traduz a
imagem de “inteiro”, não tocado, não diminuído. Apesar da antiguidade do
adjetivo latino, a forma “integral” foi veiculada pelo matemático suíço Jacob
Bernoulli (1690). Integração é neologismo no dizer de A. Lwoff em “Vie et
langage” 74 (maio 1958), p. 271-273), a difusão do vocábulo teve o reforço no
inglês dos Estados Unidos sob as formas racial integration (1949), integrazionist
(1955) e integrate (1948) que, a par do significado político, desenvolveu um
significado mais amplo, na afirmação de Cortelazzo Zolli, no “Dizionario
etimologico della lingua italiana” – Zanichelli, 1983. Pode-se resumir os
conceitos com a ajuda de Angelo Gianni: “Integrazione – il complesso delle
innumerevoli interazioni che avvengono in ogni organismo, indispensabile per la
sopravvivenza dell’individuo” (Dizionario Italiano ragionato – G. D’Anna –
Sintesi, Firenze – 1988). O que se diz do fenômeno biológico pode ser
transposto ao fenômeno sócio-cultural e político da vida dos povos.
As grandes forças da língua, da cultura e da literatura devem interagir para
conseguir maior harmonia entre os povos a fim de ser integralizado e realizado o
ideal de fraternidade e de união do Libertador Simón Bolívar, em 1826.
Javier Péres de Cuéllar, presidente da Comissão Mundial de Cultura e
Desenvolvimento da UNESCO, escreveu na Folha de São Paulo, de 20.02.94:
“Entendo que a comunidade internacional precisa orientar-se por uma meta
comum: Lançar, às vésperas do século 21, uma iniciativa mundial de
crescimento sustentável sobre a base do desenvolvimento cultural. Por que não
7
imaginar uma espécie de Plano Marshall a nível planetário, em favor da cultura
e do desenvolvimento?”
No texto de Pérez de Cuéllar está implícita a integração de povos, de
força e de esforço em prol da cultura e conclui com o parágrafo:
“O mundo da cultura, segundo André Malraux, ‘não é o da imortalidade,
é o da metamorfose’. Longe de ser um obstáculo à modernização, a cultura
constitui, conseqüentemente, a chave e o horizonte do desenvolvimento, se
entendemos que este último abrange toda a riqueza da experiência humana.
Emerson aconselhou: ‘Engata teu arado a uma estrela’. Se a cultura se
converter na estrela que orienta o desenvolvimento, se ela alcançar o primeiro
escalão das prioridades do programa nacional e internacional, teremos
preservado o único patrimônio intacto da humanidade: a terra virgem do futuro”.
Os textos deste volume visam a despertar os anseios de unidade, de
interação que estão latentes em todos os corações da América do Sul. O
comércio é uma grande força integralizadora dos povos e dos continentes, não
é, porém, a única. Deve-se privilegiar as energias da cultura traduzidas nas
línguas e nas literaturas, repositório inesgotável das tradições e dos projetos
das gerações passadas e porvindouras. Com a língua tem-se à mão a herança
milenar da Ibéria com Espanha e Portugal. Que tesouros incríveis estão no
estudo das línguas da Península em suas formas arcaicas, dialetais e
modernas! Movimentos de unidade e de diversidade registram-se através dos
séculos: romanização, surgimento das línguas neolatinas, formação do
Português e do Castelhano como esforço de unidade política dos dois estados.
Modernamente retomam-se as línguas regionais: Catalão, Galego, Andaluz,
Basco e outras. Por um lado busca-se integração por outro lado fracciona-se a
unidade na reafirmação das línguas com as cores locais ou regionais.
O que se observa, entretanto, na atualidade, é o conflito de forças que
procuram a unidade na diversidade quando outras impelem à desunião, dando-
se razão ao anarquista L. Tornabuoni: “L’anarchia solitaria salva, l’integrazione
8
porta alla rovina” (G. D’Anna p. 939); na realidade, porém, a integração
prossegue, na valorização de uma língua nacional, estudada por outros povos.
O panorama europeu é bem explícito e exemplar na Comunidade
Européia. Na América Latina evolui e se concretizam o Mercosul e a integração
cultural do Cone Sul. O vínculo forte e duradouro da integração é a Cultura nas
expressões de Língua, Literatura e Artes.
9
INTEGRAÇÃO, LÍNGUA E CULTURA∗
“No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o
Verbo era Deus”(Jo 1,1).
“A palavra é a Casa do Ser” (Heidegger).
“La lengua es la sangre de mi espiritu” (Unamuno).
“Minha Pátria é a Língua Portuguesa” (Fernando Pessoa).
Introdução
Perdoe-me a ilustre e amável assistência pela solenidade das epígrafes
que introduzem as minhas palavras. A integração de pessoas e de grupos sociais e
de povos se realiza serena e paulatinamente através da Língua e da Cultura.
A palestra se estende por etapas a fim de chegar à conclusão com os
objetivos alcançados.
1 – A língua – A palavra
A fim de introduzir o tema sobre a palavra, sobre a linguagem transcrevo
parte do texto do Reitor da Universidade da Ilha dos Açores Antonio Manuel
Bettencourt Machado Pires no artigo – Linguagem, Linguagens e Ensino:
“Erico Veríssimo, na Viagem à Aurora do Mundo, apresenta-nos
Dagoberto, que faz uma viagem fantástica à Pré-História. Mas Dagoberto, que
também é romancista, sofrera um esgotamento com o inêxito da publicação de
As Portas do Tempo, cujo herói atravessa distraidamente uma porta e se
encontra do outro lado em plena Idade Média.
∗ Conferência de Abertura da SEMANA DE HISPANIDAD, a convite do Consul de Espanha, na Casa de Cultura Mario Quintana, 05/10/93.
10
“Um dia o herói sai e deambula pelos subúrbios. Como é poeta, vai
distraído com os seus pensamentos de cores tão vivas que passa, sem ver e
dar por isso, por uma porta misteriosa. Ora acontece que essa porta é nada
mais nada menos do que uma das muitas portas do Tempo e, de repente, a
minha personagem encontra-se em plena Idade Média (...) Se fosse homem
prático e terra-a-terra, o meu herói diria que tudo aquilo não passava de um
simples sonho. Mas como era poeta, aceitou desde logo a realidade e passou a
viver na Idade Média, na corte ducal, onde, como era de se esperar, despertou
grande curiosidade[...]. Viveu aventuras emocionantes, amou uma castelã,
andou em guerras sangrentas e um dia, distraído a correr atrás de uma
borboleta, tornou a enveredar por umas portas misteriosas e encontrou-se de
novo na sua rua, a caminho de casa”.
“A viagem do herói de Erico Veríssimo é repetida em todas as épocas, em
todos os tempos, para todos os quadrantes do espaço e da história, do acontecido
e do acontecível, do mítico e do fabuloso, do grotesco e do sublime. A porta que ele
transpôs é a linguagem, a condição para a descobrir é ser poeta”.
O poeta é o criador da arte pelas palavras, pelo jogo das metáforas,
das ambigüidades.
O reino das palavras nos versos de Miguel Torga assim se caracteriza:
“Passa um rei – é o Poeta. Não pela força de mandar Mas pela graça mágica e secreta De imaginar...
A imaginação age sobre as palavras com elementos extremamente
dúbios, captáveis diferentemente, organizando-se como um arsenal de
potencialidades imprevisíveis, variáveis, caprichosas. A ambigüidade é um dos
destinos mais certos de toda a linguagem humana (Machado Pires p. 13).
Tudo é simbólico na linguagem, Ernst Cassirer salienta que o homem é
um “animale symbolicum” não tão racional como dizem os filósofos. O homem
11
interpõe entre o estímulo e a reação um complicado sistema de símbolos.
Linguagem é o campo de forma simbólica por excelência pois é aquele a que os
outros se reduzem” (Machado Pires p. 21).
A palavra, a linguagem está presente no ser humano no mais recôndito
do próprio eu.
No Romanceiro da Inconfidência no Romance LIII ou das Palavras
aéreas, da inconfundível e inefável Cecília Meirelles, encontra-se a estrofe
belamente simbólica e replena de significado:
Ai, palavras, ai, palavras que estranha potência, a vossa! Ai, palavras, ai palavras sois de vento, ides no vento, no vento que não retorna, e, em tão rápida existência, tudo se forma e transforma. Sois de vento, ides no vento, e quedais com sorte nova!
2 – Linguagem/língua
O ser humano pensa, medita, se comunica através da linguagem. A
linguagem se apresenta como fenômeno tão polifacético e que impregna em
medida tão considerável as restantes manifestações do homem – sendo
inclusive a expressão necessária de algumas delas – que as confusões e
parcializações se dão, talvez, neste campo com mais facilidade que em outros.
A linguagem como ato de fala se realiza em cada caso segundo uma técnica
determinada históricamente, ou seja, de acodo com uma língua, ensina o
mestre de Tubinga, Eugenio Coseriu. Falar é sempre falar uma língua não uma
linguagem. A linguagem é um fato social que a língua simplesmente se impõe
aos falantes. O ser humano vive num mundo lingüístico que ele mesmo cria
como ser histórico (Coseriu: 1977 p. 32). No domínio lingüístico existem três
níveis de saber: saber elocucional, saber idiomático e saber expressivo. Os três
12
ocorrem conjuntamente no falar, nos discursos, ou seja, nos diferentes atos
lingüísticos e nas séries conexas de atos lingüísticos” (Coseriu: 1993 p. 32).
Para a história das línguas é interessante e imprescindível recordar o
que ocorreu após o indo-europeu em que as línguas da velha Grécia passaram
a ter na época do império de Alexandre de Macedônia a língua helênica que se
tornou a Coiné, instrumento da comunicação entre os povos desde o século IV
a.C. até o século IX de nossa era. A helenização do mundo foi um fato
importante para a história cultural em que aconteceu a tradução da Bíblia do
aramaico para o grego, pelo famoso grupo dos setenta – (septuaginta). Depois
com o surgimento de Roma aconteceu a romanização dos povos do Bósforo às
planícies gélidas da Anglo-Britânia. A língua latina, língua da pequena tribo do
Lácio da Península Itálica, para a língua do mundo civilizado, daqueles séculos.
Dessa forma os senhores de Roma souberam e praticaram a verdade: “A língua
é um dos mais poderosos fatores de coesão e de unidade”. Santo Agostinho no
século V assim escrevia: Língua unitas et similitudo firmissimum est vinculum
societatis humanae et religionis (Gladstone Chaves de Melo: 1990 p. 013).
Com o desmoronamento do Império Romano a unidade lingüística vai-
se enfraquecendo e vão surgindo as línguas românticas, algumas pela força do
poder político, outras pelo prestígio dos escritores, tornando-se a língua comum,
sobrepondo-se às demais existentes no mesmo território. O filósofo da História,
H. Schneider faz o que ele chama “poesia clássica” padrão comparativo de
culturas diferentes. Em todas estas, ocorreria um momento característico e
definidor, manifestado na tal poesia clássica, “que personifica o caráter próprio
da nacionalidade para a consciência do povo e dos seus vizinhos”. Baseado
nisto, vê o ponto de referência para a Itália em 1265, com Dante; para a
Espanha, em 1398, com Santillana; para a Inglaterra, em 1564 com
Shakespeare; para a França, em 1606, com Corneille, para a Alemanha, em
1749, com Goethe; para a Rússia, em 1817, com Tolstoi; para a Grécia, em 525
a.C., com Ésquilo; para Roma, em 254 a.C., com Plauto”. O ponto de vista de
13
H. Schneider é uma maneira de ver a história das línguas, outros enfoques
prendem-se aos movimentos políticos ou libertários como a data de 1139 para
Portugal, em que se vai impondo o galaico-português e na Espanha do século
XV vai-se estabelecendo o domínio do Castelhano. G. Fessard diz que a língua
“representa, na origem do grupo social, o mais poderoso fator de unidade, por
ser a condição de todos os outros elementos culturais que diversificam as
nações” (Melo: 1992 p. 914).
A língua-comum constitui-se em traço-de-união entre os diversos
falares e os infinitos falantes, ponto-de-encontro, instumento aceito de
intercomunicação, selo de unidade, sinal de pertinência à mesma grande
comunidade idiomática.
3 – Língua/ Cultura
O filólogo e exímio cultivador da língua e cultura lusitana, Gladstone
Chaves de Melo, na conferência proferida por ocasião do Terceiro Congresso
da Associação de Lusitanistas, em Coimbra, em 1990 assim se exprimiu: “São
estreitas e múltiplas as relações da língua com a cultura, até porque a língua,
no entendimento saussuriano, é um fator de cultura. Além disso ela reflete a
cultura da comunidade, da sociedade, do povo, traduzindo-lhes o espírito, a
maneira de ser” (Melo: 1992 p. 913). Língua e cultura, cultura e língua se
interpenetram se coadjuvam na epifania do ser humano em sua expressão e na
manifestação do seu eu. O grande pensador tomista da atualidade, em Buenos
Aires, ex-Reitor da Universidad Católica Argentina, assim se expressa: “La
cultura es la obra de la persona humana proyectandose sobre si misma, sobre
su propia actividad intelectiva y volitiva, y también sobre las cosas exteriores
para impregnarlas de su espiritu. Mas allá deI domínio da la materia eI espiritu
com su inteligencia se abre a la transcendencia y descubre y aprehende el ser
oculto en los datos de los sentidos y con su libertad rompe las cadenas del
14
determinismo, en que se encuadra la actividad material incluso sensitiva”
(Derisi; 1963 p. 151).
Unamuno preocupa-se com a formação do pensamento das crianças e
jovens assim define a educação, base de toda a cultura: “Educación consiste en
ayudar a aprender. La educación debe buscar el promover e provocar el
desarrollo de un espíritu crítico y reflexivo, deve formar la persona para poder
aprender y ser uno mismo para desarrollar su propia y original personalidad”
(Unamuno: 1993 p. 224). O grande Reitor de Salamanca insiste na importância
da linguagem na formação da pessoa como se lê em Soliloquio “El pensamiento
depende del lenguaje, puesto que palabras se piensa” (Unamuno: 1993 p. 231).
Voltamos ao ritornello linguagem – língua – cultura, distintas e unidas
na formação e na expressão da pessoa. A língua será sempre como afirma
Coseriu: “Cada lengua, como ya lo ha visto Humboldt, es una clave para todas
las demás (Coseriu: 1977 p. 19).
4 – Literatura
Eugenio Coseriu no Simpósio innovación en la enseñanza de la lengua
y la literatura española, realizado na Faculdade de Filosofia y Letras de la
Universidad Complutense de Madrid, entre os dias 4 e 8 de junho de 1984,
traduzida para o Português por Evanildo Bechara e publicada em Confluência
n° 5 do 1° semestre de 1993, assim se expressa: “O emprego da linguagem na
vida prática é, efetivamente, um uso. Também podemos dizer que o emprego
da linguagem na ciência é um uso, porém não o emprego da linguagem na
literatura, que não é um uso particular, mas sim, representa a plena
funcionalidade da linguagem ou a realização de suas possibilidades, de suas
virtualidades. Portanto, longe de ser a linguagem da literatura uma forma
especial que se afasta de uma norma, coincide com estas possibilidades e
qualquer outro uso, sendo precisamente uso, é uma redução das possibilidades
15
da linguagem, e uma redução da linguagem tal como se apresenta na literatura
com o desdobramento de suas possibilidades. Ou, dito de maneira mais
simples, longe de ser a linguagem da literatura e, em particular, a da poesia, um
desvio em relação à linguagem considerada objetiva são estes tipos de
linguagens objetivas, inclusive o emprego na vida prática e também o emprego
nas ciências, os que emergem de uma drástica redução da plenitude funcional
da linguagem” (Coseriu: 1993 p. 39 e 40). A linguagem alcança na literatura e
sobretudo na poesia a plenitude de sua expressão, pois a linguagem na arte da
palavra não é apenas um instrumento, mas constitui a finalidade, o objetivo
enquanto construção de sentido. Neste momento recordo as palavras
semelhantes de Alceu Amoroso Lima quando se refere ao estilo na literatura: “O
estilo aí não é um meio. Também não é um fim em si. É um meio que se
incorpora ao fim” (Lima: 1945 p. 89-117). Literatura, Cultura e Língua convivem,
marcam os povos, mostram a beleza em busca do desvendamento do mistério
do homem, imagem da Beleza Infinita-Deus.
Os poetas sentem e expressam de maneira singela ou solene o palpitar
dos povos, as alegrias, as insatisfações, os anseios e os ideais de uma
comunidade ou de uma nação. O lirismo, a epopéia, o drama (comédia ou
tragédia) sempre conviveram na longínqua China, na misteriosa Índia, na
encantadora Hélade, na Roma das conquistas, na Europa romanizada ou
desmantelada pelos bárbaros nos novos continentes que emergiram das
grandes navegações de Colombo, de Cabral ou James Coock. Os povos
nasceram dedilhando as cordas da lira dos sentimentos de amor, de alegria, de
tristeza ou temor, sempre, criando a beleza pela linguagem – a Poesia. Em
todas as línguas, a linguagem da literatura imortaliza tantos heróis, tantos
personagens desconhecidos de povos tão diversos: Ramayana, os Vedas,
Pentateuco, o Evangelho, a Ilíada e a Odisséia, os versos sáficos, a Eneida, a
Divina Comédia, El Cid, Os Lusíadas e centenas de outros livros são a memória
das línguas e das culturas de tantas gerações. Língua e Literatura, Poesia e
16
Ficção, ilustram as variantes de seqüência interminável de tantos povos.
Língua, Literatura e Cultura são inseparáveis amálgama entre os povos na força
de integração.
5 – Ibero-América
A península Ibérica criou um âmbito de idiosincrasias e ao mesmo
tempo de oposições. Enquanto a Espanha no fim do século XV sob o domínio
de Isabel de Castela e Fernando de Aragão procedia a expulsão dos árabes,
ocupação de oito séculos, ao mesmo tempo surgia unificação política pelo
dialeto de Castela que se tornou língua oficial. Ao mesmo a reconquista de
Portugal sob hostes de Henrique de Borgonha e do filho Afonso Henrique o
galaico-português tornava-se a língua de Portugal. Tão vizinhos e tão distantes
na expressão lingüística e política. De um e de outro lado da serra da Estrela
dois povos irmanados pela vocação da Península se opõem em seus ideais
políticos apesar das sucessivas uniões matrimoniais entre os soberanos. Fato
lingüístico curioso, em 1492, ano dos descobrimentos, Antonio de Nebrija
publicava, em Salamanca, a primeira gramática da Língua Castelhana. Em
1536, Fernão Oliveira, em Coimbra dava à luz primeira gramática da Língua
Portuguesa. Dessa forma as duas línguas criavam um marco de referência e
um guia para escrever e falar corretamente cada uma das línguas oficiais na
Ibéria. As outras formas dialetais se mantiveram na Península de maneira
restrita e na expressão falada. O povo das aldeias e dos pueblos mantiveram
durante séculos os falares que não entravam nas escolas mas que viviam na
boca e no coração das populações.
Pelas conquistas da América os falares chegaram às novas paragens
com os povoadores, mantendo-se, porém, a língua oficial em que eram
redigidos os documentos, os relatórios, as cartas e as crônicas que eram
destinadas às cortes de Madrid ou de Lisboa. Ambas as línguas tiveram a
17
consolidação pelos textos literários em 1572 – Os Lusíadas apareciam como o
monumento lingüístico para celebrar as glórias e as aventuras do homem dos
séculos XV e XVI. Na Espanha consolida-se a Literatura do imortal Siglo de Oro
e que se eternizaram escritores e poetas como Cervantes, Lope de Vega, Santa
Teresa e tantos outros. O território da América povoado de tribos indígenas com
línguas mais diversas recebeu os conquistadores que vinham com a cultura,
com a religião e com a língua peninsular. Era preciso implantar a civilização e a
cultura da Ibéria nestes páramos imensos. Junto com o sinal da cruz deviam
aprender no Brasil a Língua Portuguesa e na Hispano-América, a língua
Castelhana. Era a ideologia daqueles séculos. Houve resistência, violências
mas as línguas cobriam os vastos territórios. Receberam grande carga de
vocábulos indígenas do México à Terra do Fogo e do Amazonas ao Chuí.
Dessa maneira após tantos combates, tantos sacrifícios e por vezes, não
pouco, tantos extermínios de povos, a divisão Iingüística e política estabelecida
na Ibéria era transportada para a nova terra forçando os meridianos traçados
pelo tratado de Tordesilhas. Duas línguas oficiais na Península, duas línguas
oficiais na América-Castelhano ou Espanhol e o Galaico-Português ou
simplesmente o Português. Nestes 400 anos de implantação de novas culturas
através da força das línguas foi-se criando uma consciência nacional nas
dezenas de nações – e pequenas algumas e vastíssimas outras. A consciência
de pátria não rompe com a ligação espiritual, filosófico-lingüística com Espanha
e Portugal. Surgem e desaparecem movimentos separatistas que ambicionam
formar uma língua brasileira, ou língua argentina, ou colombiana nicaragüense,
mas a consciência lingüística fortalecida pela morfologia mantém a fidelidade ao
tronco castelhano ou português. Proliferam os dialetos, as expressões regionais
mas a seiva vivificadora continua a circular no velho e único tronco lingüístico
com ramos, folhas e flores de vários matizes. Estamos assistindo a um
fenômeno curioso, no momento em que se estabelece com força econômica e
política a Comunidade Europeia, derrubando muros centenários entre as
18
nações, ressurgem as línguas regionais nas autonomias de Espanha... Para
onde irá a unidade sócio-econômico-política de Espanha? Cada língua quer
reafirmar força das cinco autonomias. É curioso o balanço do péndulo que
durante cinco séculos forçou a sinalização para a unidade lingüística e política
duma Espanha cheia de história, semeadora de cultura nos cinco continentes.
Portugal não sente o surgimento das autonomias como outros países europeus,
até quando? A força das línguas regionais contribuirá para a integração ou para
a separação dos povos, apesar da força política da Comunidade Europeia e do
Mercado Comum?
Na América nos defrontamos com o Mercosul os problemas sócio-
culturais do Cone Sul, a integração feita pela queda das barreiras alfandegárias
ou pelo esforço cultural das línguas e das literaturas? As preocupações dos
governos se restringem ao vaivém de mercadorias ao fluxo de negócios, à
movimentação de turistas, à troca de tecnologia. Qual será a língua que vai
movimentar todos os negócios e todos os interesses culturais?
Em 1990, o Embaixador de Portugal em Buenos Aires alertava para a
preservação dos espaços lingüísticos. Nas universidades e nos governos pouco
vem sendo planejado e menos ainda realizado. A adoção do Português e do
Espanhol nos cursos de 1° e 2° graus é um passo importante. Como fica o
estudo e a vivência da Literatura? O Instituto Estadual do Livro do Rio Grande
do Sul está desenvolvendo pequeno mas efetivo projeto de traduções de obras
do espanhol para o português e das obras do português para espanhol.
A Feira Estadual do Livro a ser inaugurada no próximo dia 29, tem
stands reservados para livreiros da Argentina, Paraguai e Uruguai. Serão
suficientes essas tímidas iniciativas? Percebe-se a ausência de alma, de algo
de dentro das pessoas e das comunidades que movimente esta marcha para a
UNIDADE cultural, social, política e comercial.
Nas discussões da Comunidade Européia muito se falou da língua ou
das línguas que regeriam as reuniões, quais as línguas oficiais do Parlamento
19
Europeu? O volume financeiro é enorme, se for pensado o orçamento
necessário pera manter tradutores e intérpretes em seis ou oito línguas dos
países da Comunidade...
O que dizer diante disso quando se lê no Jornal do Brasil de 3 de
outubro, domingo passado, a manchete: ESPANHÓIS SE DESENTENDEM EM
CINCO LÍNGUAS... Se dentro da Península Ibérica se multiplicam as línguas e
as culturas como enfrentar a unidade de comércio, cultura da Europa? No Cone
Sul o que poderá suceder na confusão em que vivem os povos?
Lançando um olhar de esperança, observa-se em todas essas
mutações uma constância: o amor à língua, o respeito à liberdade e à
dignidade. Passarão os cataclismas sociais e humanos como na Europa dos
séculos V ao XI, como se constata no continente africano ou nas plagas da Ásia
ou da Oceânia, os povos se revoltam, mas são como as vagas do oceano a
quem Deus diz: Irás até ai, não mais longe...
Apesar de todas as mutações, malgrado as revoluções, as condições
de miséria de tantas populações, paira sobre Ibero-América o arco-íris da
ESPERANÇA, o anúncio de NOVA AURORA, fruto do sentimento iberista
gerado na secular gestação dos celtas e dos iberos. As línguas Espanhol e
Português, escrínios de culturas milenares são o sangue do espírito das novas
gerações, a pátria dos novos rebentos de nacionalidades que se sobrepõem
aos píncaros dos montes, dos Andes e de outras cordilheiras. A fé em Deus, as
mãos que se unem na prece, a esperança de dias melhores se concretizam
numa palavra – IBÉRIA, pátria e mãe comum de filhos tão diversos nas cores
da face, no encanto do sorriso ou na melodia do olhar e no falar.
Para finalizar estas palavras recorro aos versos do imortal iberista,
Miguel Torga: Terra. Quanto a palavra der, e nada mais. Só assim a resume Quem a contempla do mais alto cume, Carregada de sol e de pinhais.
20
Terra-tumor-de-angústia de saber Se o mar é fundo e ao fim deixa passar... Uma antena da Europa a receber A voz do longe que lhe quer falar... Terra de pão e vinho (A fome e a sede só virão depois, Quando a espuma salgada for caminho Onde um caminha desdobrado em dois). Terra nua e tamanha Que nela coube o Velho-Mundo e o Novo... Que nela cabem Portugal e Espanha E a loucura com asas do seu Povo.
(Miguel Torga, Antologia Poética, p. 135)
Bibliografia
ALVAR, Manuel. Hombre, Etnia, Estado. Madrid, Ed. Gredos, 1986. [Actas do
Terceiro congresso da Associação Internacional de lusitanistas
(Universidade de Coimbra 18 a 22 de junho de 1990) Coimbra, 1992].
BORNSTEIN, Juan Carlos Lago. Unamuno y la educación del pensar. Diálogo
filosofico (Mayo-junio 1993) 223-237, Madrid, 1993.
COSERIU, Eugenio. El Hombre y su Lenguaje. Madrid, Ed. Gredos, 1977.
______. Do sentido do ensino da língua literária, Confluência 5. (1993) 29-47,
Rio de Janeiro 1993.
CROS, Edmond. Literatura, Ideologia y Sociedad. Madrid, Ed. Gredos, 1986.
DERISI, Octavio Nicolás. Filosofia de la cultura y de los valores. Buenos Aires,
Emecê editores, 1963.
LIMA, Alceu Amoroso Lima. Estética Literária. Rio de Janeiro, Americed. 1945.
21
PIRES, Antonio Manuel Bettencourt Machado. Linguagem, Linguagens e
Ensino. Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1981.
TRIGUEIROS, Luiz Forjaz e DUARTE, Leila Parreira. Temas portugueses e
Brasileiros. Diálogo série convergência Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa, 1992.
TORGA, Miguel. Antologia Poética. Coimbra, 1981.
22
O LIVRO E A CULTURA∗
Falar sobre o livro como fator de cultura é falar do óbvio nem sempre
reconhecido. O presente ciclo de palestras FRONTEIRAS E ESPAÇOS
contemplou os sacrifícios, os trabalhos e as realizações dos imigrantes
procedentes de países e diversos continentes em prol da cultura.
O livro veio nos baús dos povoadores destas terras do Rio Grande.
Vejam-se as diversas etnias todas elas com expressões próprias trouxeram os
seus livros tanto os sagrados como os científicos, técnicos e literários. O
profundo instinto e a sensível consciência de perpetuar e preservar as
conquistas do saber de séculos e séculos fizeram com que os imigrantes
trouxessem os livros em que realimentavam a vida cultural.
A literatura batizou a terra de Santa Cruz com a Carta de Pero Vaz de
Caminha e depois vieram os missionários com o livro do Evangelho e das
Escrituras e os abecedários em que os ameríndios soletravam o nome de Deus
na língua dos imigrantes e na Gramática da Língua mais falada nas Costas do
Brasil, obra do bem-aventurado José de Anchieta, de Nóbrega e tantos outros.
No Rio Grande, no século XVII entraram os idealizadores e realizadores dos
Sete Povos com Roque González, Sepp e tantos outros. Aí estava o livro em
Língua de Castela ou de Portugal, sempre o livro! Depois em 1717, Silva Paes
estabeleceu o Presídio (Forte) Jesus Maria e José, foram abertas as páginas
das letras lusitanas que marcaram o território e a cultura do Rio Grande. Veemente e profético é o poema – “O livro e a América”, nas Espumas
Flutuantes, de Castro Alves de que citamos três estrofes:
∗ Aula proferida no Ciclo de palestras, organizado pelo CIPEL (Centro de Pesquisas Literárias) e
Pró-Reitoria de Extensão, agosto de 1993.
23
Filhos do século das luzes! Filhos da Grande Nação! Quando ante Deus vos mostrardes, Tereis um livro na mão: O livro – esse audaz guerreiro que conquista o mundo inteiro Sem nunca ter Waterloo... Eólo de pensamentos, Que abrira a gruta dos ventos Donde a Igualdade voou!... Por uma fatalidade Dessas que descem de além, O século que viu Colombo, Viu Guttenberg também. Quando no tosco estaleiro Da Alemanha o velho obreiro A ave da imprensa gerou... O Genovês salta os mares... Busca um ninho entre os palmares E a pátria da imprensa achou... Por isso na impaciência Desta sede de saber Como as aves do deserto as almas buscam beber... Oh! Bendito o que semeia Livros... Livros à mão cheia... e manda o povo pensar! O livro caindo n’alma É germe – que faz a palma, É chuva – que faz o mar.
(Castro Alves – Torres, V. II, p. 121-2)
O livro estava na bagagem das famílias oriundas da Alemanha que
iniciaram o povoamento da Feitoria em São Leopoldo, em 1824. O livro estava
entre os pertences trazidos pelos lombardos e vênetos que lançaram o início da
cultura italiana em Nova Milano – Nova Vicenza (Farroupilha). Na maioria das
vezes o imigrante era pessoa de poucas letras, não olvidava o livro para as
rezas, para as leituras religiosas, para a consulta de receitas de medicinas, para
o estudo do construção de estradas, de pontes ou de casas. Para rezar, para o
lazer – sempre o livro.
24
Recordo emocionado meu pai, pessoa de poucas letras, em seu
lazeres, nos dias em que a chuva e as intempéries não permitiam quaisquer
atividades, tomava de um grosso volume que olhávamos com respeito. Eram as
lendas e os episódios de Carlos Magno, sob o título de Reali di Francia. Meu pai
lia aquelas páginas amarelecidas que outros muitos haviam lido. E depois nos
repetia em linguagem simples aquelas histórias fantásticas. Foi através daquele
livro que meu pai manteve a fidelidade à escrita da língua italiana, em cartas
que ainda hoje leio com veneração...
Em casa de amigo pude compulsar grossos volumes sobre Medicina,
sobre meios de preservar a saúde, sobre prática para curar moléstias. Scarton
trouxera aqueles grossos volumes e os consultava para restituir a saúde a
pessoas atingidas por enfermidades.
O livro é o escrínio precioso em que se guardam os conhecimentos e a
sabedoria adquiridos em séculos de história.
Romano Guardini, italiano de nascimento; por destinos da
Providência viveu sua longa vida em Munique na Baviera como sacerdote,
filósofo, teólogo e literato, em 1948, respondendo à homenagem que lhe
faziam, realizou um veemente discurso – ELOGIO DO LIVRO (Lob des
Buches) na Universidade de Tubinga de que vou extrair alguns parágrafos
mais adaptados à circunstância de hoje.
Guardini iniciou o discurso com as palavras: “Vós amais o livro? Pois
somente aos que amam o livro é dirigido o meu discurso. Doutra forma minhas
palavras seriam tidas como néscias ou supérfluas”.
“O que significaria amar o livro? É querê-lo perto de si, procurá-lo para
a meditação, para o lazer ou para a tarefa científica ou literária. O livro é útil e é
belo, fonte de luz e de sabedoria. Quem ama o livro o toma nas mãos com
sentimento de tranqüila familiaridade; o sente como criatura a quem se quer
bem e a quem se quer honrar e respeitar. O amor pelo livro é próprio de quem
está sentado tranqüilo em seu aposento, enquanto ao redor reina silêncio, o
25
verdadeiro silêncio... E eis que, de improviso, os livros presentes na sala se
tornaram para ele seres vivos. Singularmente vivos. Pequenos objetos,
entretanto, cheios de mundo, que estão ali sem se moverem, porém prontos a
qualquer momento abrirem as páginas e começarem o diálogo: forte e terno,
cheio de alegria ou de tristeza, um diálogo que narra o passado, que manda
para o futuro e que invoca a eternidade, tanto mais inexaurível quanto mais
sabe atingi-lo aquele que dele se aproxima.
“Já pensastes meus caros amigos, que obra maravilhosa da criatividade
humana é o livro? Penso em seu conteúdo espiritual: a obra do poeta, ou a
representação do histórico, ou a ideologia do filósofo, ou ainda as fórmulas
matemáticas ou problemas das ciências... Tudo isso é o livro!
O livro atravessa a história da humanidade como símbolo da existência,
como expressão da eternidade, como representação do universo. Na Divina
Comédia de Dante Alighieri ao livro é erigido um monumento num dos lugares mais
sublimes de todos os tempos, ou seja no último Canto em que utiliza a similitude do
livro para expressar a maravilha infinita de Deus em todas as criaturas”.
Nel uso profondo vidi che s’interna legato con amore in un volume ciò che per l’universo si squaderna; sustanze e accidenti e lor costume, quasi conflati insieme, per tal modo che ciò ch’io dico è un semplice lume.
O que é o livro para nós, nesta época dos microcomputadores, das
máquinas e dos robôs? Amamos ainda o livro como nossos avós o amavam? O
livro terá perdido o seu espaço, a sua vida, a sua alma para a civilização de
consumo em que vivemos? O livro para nós é ainda fonte de vida espiritual e de
sabedoria na busca dos mistérios que os séculos guardam e preservam nos
refolhos deste volumes”.
26
Vêm-me a propósito o Poema dos textos de Antonio Gedeão em que
mostra a atração do livro e a impenetrabilidade do mistério de suas linhas e de
suas parábolas.
Dobrados sobre os textos deslizam devagar o dedo indicador nas brancas entrelinhas. A ruga entre os sobrolhos denuncia o concentrado esforço. São séculos de leitura, perseverante e atenta, que os lábios em silêncio reproduzem e as barbas com tremuras sintonizam. Chegando ao fim, o dedo retrocede e regressa ao princípio, de novo sublinhando o texto, cauteloso. Pára na dúvida, e o rosto se confrange No sempre nebuloso entendimento. Onde se lê “cordeiro” não é cordeiro; onde se fala em “pastor” não é pastor; e o grão que foi cair na berma do caminho, pisado pelos pés e comido p’las aves, não era grão, nem existiam aves, nem os pés o pisaram, nem sequer o caminho existia. O mistério persiste, emoliente e arteiro, p’ra que vendo não vejam, e ouvindo não entendam. Que significará o pão, o vinho, o peixe, o escorpião, a cinza? Que significará “meus amados irmãos”? Que quererá dizer “amai-vos uns aos outros”?
(Colóquio, Letras n. 88, p. 8 – novembro 1985)
O livro está diante de nós como uma figura original. Nisso se resume a
existência. A sua fecundidade e também os seus perigos. O livro da vida será
sempre vida principalmente para nós que devemos semear a boa semente em
tantos corações, terra virgem que espera que se lhes abra aquela página que
transmite luz, coragem e vigor para vencer as árduas caminhadas da existência
até que se lhes abram as folhas lacradas do livro do Apocalipse na beleza
etérea e eterna da Nova Jerusalém, onde brilha para sempre Cordeiro.
27
Bibliografia
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1986.
CLEMENTE, Elvo. Leitura e Crítica Literária. Porto Alegre:
EDIPUCRS/Acadêmica, 1990.
GUARDINI, Romano. Elogio del libro. Brescia (Italia): Morcelliana, 1985.
TORRES, Alexandre Pinheiro. Antologia da Poesia Brasileira. Porto: Livraria
Chardron, 1984. vol. II
28
O DIÁLOGO LINGÜÍSTICO DOS POVOS∗
O diálogo dos povos se faz através das línguas e dos encontros das
culturas, O Jornal de Letras, artes e idéias, de Lisboa apresenta, no dia 9 de
fevereiro de 1993, sugestiva reportagem sob o título – Perspectivas Lingüísticas
de autoria do Ministro de Cultura de Portugal, Antonio Coimbra Martins. O texto
jornalístico estuda a atitude da língua portuguesa à luz da integração européia,
os problemas do omnilingüísmo e do domínio do inglês. Na Comunidade
Européia o português é uma das nove línguas oficiais, isto é, todos os textos
emanados do Parlamento europeu aparecem nesses nove idiomas, bem como
existem nas conferências e reuniões do Parlamento intérpretes e tradutores
simultâneos nas mesmas línguas. Falar uma língua não é, apenas, saber usar
os elementos fono-morfo-sintático-lexicais, é assimilar uma cultura, uma
tradição, a vida de um povo. Portugal se vê na conjuntura européia com
problemas enormes a resolver não só na parte econômica, a cultura e a língua.
Acentua o Ministro Coimbra Martins: “Situação paradoxal. As línguas
dominantes de ontem encontram-se entre dois fogos. Que é o francês que se
falava na corte dos czares e de que o nosso Castilho dizia que se tornara o
latim da idade moderna, língua obrigatória da “gente civilizada”? Entre dois
fogos. Um, o fogo expansionista do inglês. Outro, o fogo subterrâneo das
culturas e respectivas línguas que reclamam um lugar ao sol. Insiste o ministro
da Cultura de Portugal: “Não nos parece que o empenho no ensino das línguas
estrangeiras possa (ou deva) deixar de ser preparado por uma pedagogia nova
da língua materna e por um nível superior de exigências nessa matéria. O que
necessitamos é que a língua estrangeira não deteriore a língua materna.”
∗ Texto produzido em março de 1993.
29
Deixemos de olhar o panorama do português na Europa, olhemos para
o português no Cone Sul, no Mercosul na integração cultural e científica da
América Latina.
É admirável a posição histórica do português através dos tempos,
sempre envolvido pelas línguas hispânicas na Península Ibérica ou na
América do Sul. Sempre em lutas ou em abraços de amizade, jamais
submetido, jamais subserviente.
Qual é a atitude lingüística a tomar perante os modos de expressão dos
países do Cone Sul: Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile? Os investigadores
dos cursos de Pós-Graduação em Letras estão se preocupando com o
fenômeno do encontro lingüístico-cultural advindo no bojo das transações
comerciais? Será solução usarmos de nosso lado o portunhol e do outro o
espanhês, deformando os dois idiomas?
As nossas escolas pouco ou nada se preocupam com o bilingüísmo ou
trilíngüísmo: português, espanhol e inglês.
O que fazem os cursos de licenciaturas em Letras, onde o número de
licenciados é cada vez mais reduzido? Atribuímos a culpa ao menosprezo dado
à carreira de professor e ficamos por isso. Não lançamos mão de outras saídas
que a inteligência e a criatividade no-las poderiam apontar. Vivemos uma época
de conformismo pedagógico, esperando uma solução vinda de cima, impotentes
de usarmos a verdadeira autonomia do ensino universitário...
A vida atual das nações e dos povos está no encontro de culturas e
de línguas.
Concluímos com a frase do Ministro Antonio Coimbra Martins: “A
resposta do português aos desafios da Europa e da América e de sua posição
ou fragmentação no mundo, é pois, da mesma natureza. Só uma tradição muito
nossa e da língua seria de inverter especialmente na conjuntura atual, que
tentamos definir: a de a cultivarmos pouco e não forjarmos sequer os
instrumentos necessários a esse tratamento.”
30
É tempo de acordar, de abrir os olhos para a nova realidade lingüística,
histórica e cultural que se apresenta às duas dezenas de cursos de Letras no
Rio Grande do Sul, sem falar de Santa Catarina e Paraná. Mãos à obra na
estrutura dos currículos, mãos à obra no despertar das consciências
adormentadas dos mentores dos Cursos de Letras.
31
ESTUDO DE LÍNGUAS/ENCONTRO
DE CULTURAS∗
Ao inaugurar o VIII Seminário Integrado sobre a FORMAÇÃO DO
PROFESSOR DE LÍNGUAS, convênio Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul e Instituto de Idiomas Yázigi, quero deixar algumas palavras
sobre a importância do estudo de língua e na conseqüente formação de
professores. O conhecimento de língua abre janelas, amplia horizontes,
promove as pessoas, une distâncias, confraterniza as gentes de pólos e
hemisférios diferentes.
A formação do professor é tarefa pessoal que se estende desde os
primeiros dias do despertar da vocação docente até o dia em que fechar o livro
do tempo e abrir o grande misterioso livro da eternidade.
O estudo de línguas é o campo de encontro de culturas mais que
quaisquer outros estudos. Aprender uma língua é receber a transfusão de
sangue de outro povo, é revigorar a base lingüística materna. Sobre ele é que
se assentam as demais experiências, por isso não há melhor caminho para o
aprendizado da língua estrangeira que a boa alfabetização. No encontro de
culturas que se processa no estudo de línguas não há superposição, não há
deterioração, há mais vida, mais força, mais vastos horizontes, na compreensão
das pessoas e da humanidade.
Jame Axtell no artigo “Uma confluência de Culturas” em DIÁLOGO, n°
03 vol. 25/92, escreve: “Poderíamos, perfeitamente, chamar a América de um
mosaico colombiano, porque foi o almirante italiano que de fato integrou todos
os continentes do mundo nas rotas de navegação de um mar-oceano contínuo”.
No fluxo do descobrimento da América em 1492, são quinhentos anos
de vaivéns, quinhentos anos de inculturação de encontro de culturas, de ∗ Conferência de Abertura do VIII, Seminário Integrado Instituto de Idiomas Yazigi e CPG Letras
PUCRS, agosto 1992.
32
miscigenação de línguas e de sangues, para termos o mosaico atual, na
unidade e diversidade americanas. É na verdade, uma confluência de culturas,
uma babel de línguas onde há o entendimento da harmonia e na mensagem de
amor, no espírito do cristianismo.
O estudo de língua é abertura para a fraternidade americana e
universal. Thomas Sowell no artigo “Como evoluem as civilizações” em Diálogo
n° 02 vol. 25/92 afirma: “A história do progresso humano é marcada pela
transferência de culturas de um grupo para outro”. A hora é de entrosar forças,
mesclar línguas, miscigenar culturas para que da diversidade lingüística ou
cultural seja alcançada a Unidade, o entendimento, o uso da mesma linguagem
do respeito e do amor. O articulista chama atenção para o fato de se preservar
minorias em âmbito circunscrito. “Os que usam a expressão diversidade cultural
para promover a multiplicidade de enclaves étnicos segregados estão causando
um grande mal às pessoas desses grupos. Por mais que vivam socialmente, os
membros destes grupos terão de competir economicamente por um meio de
vida, mesmo que não tenham passado necessidade antes, eles se tornarão
carentes, pois, supõe-se, que seus rivais da grande população são livres para
tirar proveito do conhecimento, experiência e técnica em uso, que a civilização
ocidental copiou de todas as outras civilizações do mundo, enquanto nos
enclaves as pessoas ficam limitadas ao que existe na subcultura imediatamente
à sua volta’ (Ibidem p. 35). É preciso recordar que os grandes pensadores
cientistas, técnicos, pesquisadores não se limitaram a desenvolver atividades
para sua nação, mas em beneficio de toda a humanidade. Do entrechoque, do
encontro de culturas surgem novos caminhos, novos horizontes, unidos nos
ideais de nacionalidade e de fraternidade universal. Da diversidade para a
unidade é o que o mundo reclama e realiza, haja vista a Comunidade
econômica européia, a Comunidade dos Estados Independentes (procedente
da fragmentação da URSS) mais perto de nós o Mercado do Cone
Sul/MERCOSUL). O grande bloco econômico inaugurado recentemente
33
suprimido as fronteiras entre o México, Estados Unidos e Canadá... Assistimos
a fatos contraditórios: grandes potências se unindo, potências pequenas se
dilacerando em guerra inaudita, tudo acontece, por um lado superando as
barreiras étnicas e lingüísticas, por outro lado ressuscitando reprimidas
aspirações em nome da língua, do sangue e crença dos ancestrais.
Em tudo sobressai a importância da língua e a conseqüente
necessidade da formação de professores de línguas nacionais e estrangeiras.
O que acontece no CONE SUL, onde velhas fronteiras foram regadas
com sangue durante dezenas de anos de conflitos? Procura-se unir forças,
irmanar idéias, derrubar barreiras alfandegárias, formar da pluralidade de
interesses e de pontos de vista a unidade propulsora de bem-estar e de
fraternidade, conforme o dito latino, lema dos Estados Unidos – E PRURIBUS
UNUM, ser unidade na diversidade de etnias, de línguas, de credos e de
culturas para formar a civilização do amor.
Cleanth Brooks, em artigo, em Diálogo n° 03 vol. 25/92, afirma com a
experiência de uma vida dedicada ao ensino da língua inglesa e da literatura:
“Longe de serem irrelevantes face aos problemas de hoje, os grandes clássicos
focalizam questões universais de interesse de pessoas de todas as culturas”.
O estudo da língua implica o estudo e o conhecimento da respectiva
literatura através da leitura e análise dos textos literários. O prof. Brooks tem o
descortínio do progresso e do crescimento dos estudos das ciências exatas.
Constata igualmente que desde 1970, o número de estudantes de letras caiu
pela metade, porque esses cursos preocupam com os fins e com os meios. Eles
ensinam (ou pelo menos supõe-se que ensinam) não a ganhar a vida, mas
como viver.
Procuram-se de imediato os meios, os métodos deixando de lado os
fins. A língua e a respectiva literatura, bem ensinadas devem ensinar a viver
melhor, a ter uma vida mais digna no plano da cultura e não apenas no lado
dos bens materiais do conforto e da técnica. Compreende a humanidade
34
quem lê, analisa e assimila a literatura, foge dessa maneira do isolacionismo
técnico-científico.
Ao encerrar estas rápidas considerações, transcrevo o depoimento
do intelectual e lider afro-americano W. E. B. Du Bois, nos Estados Unidos,
segregados e divididos escreveu: “Sento-me junto a Shakespeare e ele não
me assusta. Para além da barreira racial, onde homens e mulheres dando
boas-vindas deslizam em salões dourados, eu caminho de braço dado com
Balzac e Dumas. Longe das cavernas da noite que faz seu turno entre os
membros vigorosos da Terra e o rendilhado das estrelas, eu convido
Aristóteles e Aurélio e que outros espíritos eu desejar, e eles vêm
afavelmente sem desprezo ou condescendência. Assim, unido à verdade,
vivo para além do véu” (Diálogo, n° 02 vol. 25/92).
Por isso, prezados amigos, vamos ao estudo das línguas,
aperfeiçoando a vocação de professores de línguas. Mostremos aos jovens de
hoje como é belo desfraldar as velas das línguas e das literaturas no mar
imenso e encapelado de tantos problemas criados pelos “homens escravos do
azinhavre de moedas viciadas no poder da terra (Drummond, Alceu, radiante
espelho 14/08/1983). Mostremos como a verdadeira educação lingüístico-
literário tem muito a ensinar à infância e à juventude que esperam viver a
civilização do AMOR.
35
LÍNGUA LITERÁRIA E CRÍTICA∗
O Colóquio Internacional da Língua Portuguesa Literária tem o ousado
descortínio e a corajosa iniciativa de concentrar as atividades e investigações
de estudiosos na problemática do discurso literário. Numa época em que os
referenciais vão mudando ao sopro das moedas e das ideologias é importante
estabelecer divisórias de águas, de indicadores ao peregrino desavisado nos
campos das letras.
Procurarei deslindar alguns conceitos sobre língua literária, respigar nas
reflexões de mestres e de inquiridores do magno tema.
Recordo desde logo as páginas de A Estética Literária e O Crítico, em
que Alceu Amoroso Lima afirma: “A literatura é uma das artes de expressão e
representação cujo instrumento comunicativo é a palavra. Em outros termos:
literatura é a arte da palavra. A literatura é a expressão do homem e da vida.
Nela o interessante não é apenas quem se exprime e o quê se exprime, mas
como se exprime. E o quê resultou dessa expressão. O como tem aí sua
importância culminante”, é o estilo de quem escreve, de quem fala, de quem faz
obra de arte. O estilo na literatura não é apenas um meio. É um meio que se
incorpora ao fim, como aliás se dá também com o autor; na obra literária, passa
ele a viver incorporado à obra, como o estilo” (LIMA, p. 80). E continua Alceu A.
Lima: “Mas nunca a palavra pode ser, em literatura, simples objeto de uso,
simples meio de comunicação. Não pode porque exatamente nasceu a literatura
da encarnação da vida no verbo. Vimos ser justamente a palavra estilizada a
causa específica intrínseca da literatura. Daí, segundo Vossler, mudar
completamente a relação do homem para com a palavra na linguagem corrente
e na linguagem literária (Ibidem).
∗ Comunicação apresentada ao Colóquio Internacional da Língua Literária, no dia 7 de outubro de
1992, no Rio de Janeiro.
36
Marcel Proust em Le temps trouvé, citado por Valverde, escreveu: “O
estilo, para o escritor, assim como a cor para o pintor, é uma questão não de
técnica mas de visão. É a revelação, que seria impossível por meios diretos e
conscientes, da diferença qualitativa que existe no mundo como o mundo nos
parece, diferença que, se não houvesse arte, continuaria sendo o segredo
eterno de cada um” (Valverde, p. 37).
Alfonso López Quintás, em Estetica de la creatividad, afirma: ‘Cabe
distinguir tres modos de lenguaje: meramente significativo, poético y estético. El
lenguaje poetico no solamente tiene sentido es todo él significación. El poeta
modela el lenguaje, lo carga de significación, lo convierte em vehiculo viviente
de la presencia de las realidades expresadas, y lo eleva, asi, a un estado
privilegiado de relucencia insospechada” (Quintás, p. 293/94).
Mario Quintana, o maior poeta sul-rio-grandense da atualidade, em
Apontamentos de História sobrenatural, no poema Bem-aventurados, expressa
a bem-aventurança dos pintores, dos músicos e até dos matemáticos “cada
qual na sua expressão!/só o poeta é que tem de lidar com a ingrata linguagem
alheia.../A impura linguagem dos homens!’ (Quintana p. 170).
O artista da linguagem não tem outra alternativa do que usar as
palavras, as construções dos outros em que cada geração, em que cada
usuário de diferentes latitudes deixa a sua marca, o seu sangue e a sua vida. O
artista da palavra deverá ter maior força interior para transformar a “impura
linguaguem dos homens” em lídima expressão poética, numa beleza nova que
antes jamais existiu.
A linguagem literária se distingue do modo corrente de falar, pelas
imagens como se pode ler no prólogo do Cántico Espiritual de San Juan de la
Cruz: “Porque quién podrá escribir lo que las almas amorosas, donde él mora,
hace entender? Y quien podrá manifestar con palabras lo que las hace sentir? Y
quien, finalmente, lo que las hace desear? Cierto, nadie lo puede. Porque ésta
es la causa por que con figuras, comparaciones y semejanzas, antes rebosan
37
algo de lo que sienten y de la abundancia del espiritu vierten secretos y
misterios, que con razones lo declaran” (Erika Lorenz, surimpressions d’images
dans le language mystique de Saint Jean de la Croix, in SAINT Jean de la Croix,
organização de Alphonse Vermeylen.
Juan de la Cruz oferece o magnífico exemplo do uso das imagens na
célebre estrofe 15ª:
“La noche sosegada en par de los levantes del aurora la música callada, la soledad sonora, la cena que recrea y enamora”
(C.A. Str. 14; C. B Str. 15)
As metáforas, as sinestesias, os oxímoros se alternam e produzem
imagens que dizem muito mais que páginas e páginas de descrições ou
meditações filosóficas. É a força da linguagem literária.
Na mesma linha de ponderações Octavio Paz em O Arco e a Lira
escreve: “recordemos a “música calada” de San Juan de la Cruz, ou o “vazio
é plenitude” de Laotsé. Do núcleo do ser jorra uma profussão de imagnes.
“Meu coração está brotando flores na metade da noite”, diz o poema asteca”
(Paz, p. 46).
O escritor mexicano apresenta suas ponderações quanto ao estilo,
característico da linguagem literária: “A criação poética se inicia como violência
sobre a linguagem. O primeiro ato dessa operação consiste no
desenraizamento das palavras. O poeta arranca-se de suas conexões e
misteres habituais: separados do mundo informativo da fala, os vocábulos se
tornam únicos, como se acabassem de nascer. O segundo ato é o regresso da
palavra: o poema se converte em objeto de participação. Duas forças
antagônicas habitam o poema: uma de elevação ou desenraizamento, que
38
arranca a palavra da linguagem; outra de gravidade, que a faz voltar. Poeta e
leitor são dois elementos de uma mesma realidade (Paz, p. 47).
Fidelino de Figueiredo em Ideário procura qualificar a obra literária
com as palavras; “A obra literária mais rica é um conjunto de artifícios ou
processos artísticos simples. Esses são inventariados na estilística, na
poética e na retórica. A estilística é a teoria geral do uso artístico da língua;
a poética é a técnica de submissão dos mesmos processos estilísticos às
exigências táticas da palavra falada, da palavra sentida em comum,
acompanhada de fenômenos de permuta espiritual entre o artista e os seus
ouvintes ou leitores” (Figueiredo p. 318).
Ao perfilar os textos citados dos grandes mestres da estética, da teoria
da literatura percebe-se a coincidência de pontos de vista quanto à língua
literária, quer em português, quer no espanhol ou em outros idiomas.
Após estas breves considerações introdutórias pode-se passar ao longo
dos poemas ou textos literários de Mario Quintana em CADERNO H,
aparecidos a partir de 1940 na Revista Província de São Pedro. Da colaboração
mantida naquela revista, Mario Quintana selecionou os trechos que integram o
Sapato Florido. Mais tarde, as anotações do caderno passaram para o Correio
do Povo. A aceitação que tiveram ensejou a Editora Globo a publicar
CADERNO H. São preciosas as anotações, as observações que Mario
Quintana faz a respeito da língua literária, constituindo-se em verdadeiro tratado
de estética literária.
Ao acompanhar o poeta nas 184 páginas nota-se uma evolução do
pensamento e das expressões em linguagem poética referentes ao fato literário,
ao estilo, à historiografia literária, etc. Há o toque crítico sempre com a pontinha
de ironia e o risinho doce e malicioso do poeta.
Quando discorre sobre o estilo recorda Casimiro e assim se exprime: “A
linha casimiriana da poesia brasileira começou antes, em Tomás Antonio
39
Gonzaga. É um regato límpido, por vezes, interrompido aparentemente, mas
que reponta sempre quando tudo parecia perdido” (C. H. p. 11).
Volta à poesia de Casimiro, As primaveras:
“Os versos de Casimiro são tão nossos que gostar deles é um sinal de
autenticidade... é mesmo, como beber água da fonte na concha das mãos... E
como ele ainda está vivo entre nós – tão vivo – nos melhores e nos piores
momentos da poesia popular” (C. H. p. 31). Poesia é imagem. Língua literária
são imagens...
Num “versículo inédito do Gênesis, mostra a força criadora e incansável
do poeta:
“E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas
continuaram a obra da criação (C. H. p. 6).
Na criação os poetas mantêm a simplicidade tanto os velhos quanto
os moços:
“O verdadeiro fruto da árvore do conhecimento é a simplicidade”(C. H.
p. 55), explica em “A coisa”.
“A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende
uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita
começa a desconfiar que não foi propriamente dita” (C. H. p. 54).
O Caderno H vai perpassando pelos momentos literários, pelas escolas
pronto para uma observação irônica ou crítica. Procura defender a simplicidade
e zomba dos autores de linguagem complicada e altissonante:
“Esses que apreciam num escritor a opulência da linguagem devem ser
os mesmos que se babam de puro êxtase diante das senhoras bem fornidas”
(C. H. p. 85).
Não se liga a nenhuma escola ou movimento da poesia:
“A minha escola poética? Não freqüento nenhuma”. (C. H. p. 42). Quer
manter-se na observação da vida e dos homens:
40
“E o que há de mais triste nesses poetas de equipe é que eles
naufragam todos ao mesmo tempo” (C. H. p. 42). Já escrevem em outra parte:
“Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão
perpétua” (C. H. p. 17).
Refere-se de modo jocoso e persuasivo aos que escreviam difícil e que
tinham leitores, antigamente.
“E por aquela mesma época, pelo menos no Brasil, o público adorava
quem escrevia difícil. Ninguém mais lê Coelho Neto, é verdade” (C. H. p. 54).
Combate os pernósticos do preciosismo, com o acicate da ironia:
“Eles erram sempre de maneira tão complicada que eu não atino como
ainda não descobriram que seria muito mais fácil escreverem certo” (C. H. p. 11).
Refere-se com admiração a Shakespeare, tão distante e tão perto:
“Sua sensibilidade é a nossa. Sua poesia é humana. Seus tipos,
universais. E eu não poderia dizer nada de novo...” (C. H. p. 75).
Faz uma crítica à língua portuguesa quando escreve “Elogio do quê”:
“E esses que evitam cuidadosamente os “quês” (parece que o toque de
caixa foi dado pelo velho Castilho) o que estão fazendo afinal, é desossando
esse nosso rude e doloroso idioma... um idioma durão”(C. H. p. 103). É sempre
o estilo que está em giro, a linguagem espontânea com a qual se faz a boa
poesia “que possui as coisas vivas. O resto é necrópsia”(C. H. p. 102).
Veja-se o toque irônico e seguro com que se refere aos clássicos “Cá
entre nós”:
“Os clássicos escreviam tão bem porque não tinham os clássicos
para atrapalhar”.
Insurge-se contra as “Rimas ricas”:
“As rimas ricas acabaram morrendo por falta de recursos. Havia
algumas que só eram quatro, o estritamente necessário para os dois quartetos
do sonetista. Outras nem isso... pobre do Emílio de Menezes”. (C. H. p. 118).
41
Faz uma série de considerações e de observações irônicas, vendo o
Bernardes modelo clássico, fugindo dos escritos castiços que ele aproxima
de castiçais...
Volta-se a criticar o classicismo que “pode ser lógico mas é
antinatural”. Enaltece “o verdadeiro modernismo que é tão velho como o
mundo, porque usa apenas a velha linguagem dos sonhos e das histórias de
fadas (C. H. p. 25 e 26).
Quer a liberdade, fora dos espartilhos da arte poética.
“O modernismo, ou melhor, o verso-librismo libertou o verso, é verdade,
mas não libertou o poeta. Havia antes, uma arte poética cujos rudimentos
estavam ao alcance de todos e que, se não ensinava a fazer um poema
perfeito, ao menos permitia fazê-lo sem imperfeições.
“Agora, qualquer poema é uma aventura, boa ou má. O poema livre,
como o seu nome o diz, não é obrigado a ter versos de medida clássica, muito
embora os possa ter, visto que um bom verso clássico é tão natural ou
expressivo como outro qualquer. O poema livre é um jogo de equilíbrio, prestes
a desabar ao mínimo descuido do construtor.
Também os parnasianos precisavam saber equilibrar-se, é claro, mas
trabalhavam com rede de segurança... (C. H. p. 87).
Há no final deste perpassar pelos mestres da crítica, da estética
literária e pelas observações, ilações e alfinetadas de Mario Quintana, um
equilíbrio, um senso de humor e de ironia, resguardando sempre a
simplicidade da Língua Portuguesa Literária nos escritores dos séculos
medievais ou nas décadas de hoje.
42
Bibliografia
FIGUEIREDO, Fidelino de – Ideário crítico, organização de Carlos de Assis
Pereira, Fac. Filosofia, Ciências e Letras da USP, São Paulo, 1962.
LIMA, Alceu Amoroso – A Estética Literária e o Crítico, 2ª ed. AGIR, Rio de
Janeiro, 1954.
PAZ, Octavio – O Arco e a Lira, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982.
QUINTANA, Mario – Apontamentos de História sobrenatural, Ed. Globo, Porto
Alegre, 3ª ed. 1984.
_____. Caderno H, ed. Globo, Porto Alegre, 1973.
QUINTÁS, Alfonso Lopes – Estética de la Creatividad, Ed. Cátedra, Madrid, 1977.
VALVERDE, José Maria – La Literatura, Montesinos, 3ª ed. Barcelona, 1984.
VERMEYLEN, Alphonse – Saint Jean de la Croix (1591-19910 – Les Lèttres
Romanes, Louvain-la-Neuve, 1991.
43
O LIVRO, HISTÓRIA, LEITURA E
CRIAÇÃO∗
Cabe-me a satisfação de abrir, com o presidente da Câmara Rio-
Grandense do livro, Dr. Roque Jacoby, o Seminário “O livro, história, leitura e
criação” realizado pelas duas entidades PUCRS e CRL. O título do seminário
apresenta um programa de vida e de reflexão.
Vêm a propósito os versos imortais de Castro Alves, “O livro e a
América”, inserto nas “Espumas flutuantes”:
Filhos do século das luzes! Filhos da Grande Nação! Quando ante Deus vos mostardes, Tereis um livro na mão: O livro – esse audaz guerreiro que conquista o mundo inteiro sem nunca ter Waterloo... Oh! Bendito o que semeia Livros...livros à mão cheia... E manda o povo pensar! O livro caindo n’alma É germe – que faz a palma É chuva – que faz o mar
(Castro Alves – Torres, V. II, p. 121-2)
Desde que o homem inventou a escrita para guardar os tesouros da
inteligência, os remédios da alma dos sumérios. Criou uma maneira de gravar
em tijolos, em pedras, em papiros, em pergaminhos o resultado dos
pensamentos e o suspiros do seu coração. Frágeis e várias são as formas
etimológicas: Biblos era uma tira de papiro, que passou a designar papel, livro,
documento, etc... Até chegar à denominação do Livro Sagrado por excelência –
∗ Palestra de abertura do Seminário – O LIVRO, HISTÓRIA, LEITURA E CRIAÇÃO, 10/11/93 –
Câmara Rio-Grandense do Livro e Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS
44
Bíblia. Liber é o tecido condutor da seiva elaborada ou orgânica nos vegetais
vasculares. Embora seja o livro, com as várias acepções: volume de fólios
costurados juntos, escritos, estampados ou brancos. Livro não é outra coisa que
peles de cordeiros, bem curtidas, ligadas entre duas tábuas. Ou ainda seções
ou partes em que se divide uma obra.
Curiosas etimologias que historiam a vida dos livros sem falar dos
volumes ou rolos de pergaminhos em que eram escritas as obras filosóficas,
literárias ou históricas dando origem aos palimpsestos que tanto desafiaram a
perspicácia dos investigadores dos textos da antiguidade, como escreveu
Antonio Gedeão:
“Dobrados sobre os textos deslizam devagar o dedo indicador nas brancas entrelinhas. A ruga entre os sobrolhos denuncia o concentrado esforço. São séculos de leitura, perseverante e atenta, que os lábios em silêncio reproduzem e as barbas com tremuras sintonizam”.
(Colóquio/Letras n° 88 p. 8 – Novembro de 85).
O livro está diante de nós desde que abrimos os olhos para a trajetória
da existência. O livro acompanha os passos da aprendizagem... Muitos lazeres
infantis são as páginas estampadas de livros... O livro está por toda a parte na
atual civilização. Abertos ou fechados os livros são repositórios de segredos, de
sentimentos, de aventuras de tantas pessoas que viveram há séculos, que
viveram ao nosso lado, que encontramos nos vaivéns da vida. Os livros nos
recessos de nossa intimidade, os livros na sala de estudos, na biblioteca da
família ou no âmbito reservado do pesquisador. Os livros nas bibliotecas
monumentais das universidades ou das instituições públicas ou particulares. Os
livros nas praças oferecendo-se aos olhares curiosos ou indiferentes dos
passantes. Os livros clamam e gritam em cada página fechada no segredo que
45
se abre... Livro, companheiro da infância, conselheiro da juventude, interlocutor
da idade madura, inquisitor nas horas de dúvida e de busca da Verdade.
O livro silencioso e soberano atravessa as idades, ameaçado de
extermínio ou triufante no domínio de gerações de sábios e de gênios
arrombadores das portas das ciências à procura do velocino da eterna Verdade
e da infinita Sabedoria.
Dante Alighieri, na Divina Comédia, reservou para o livro um
monumento num dos lugares mais sublimes de todos os tempos, no último
canto do PARADISO, utiliza a similitude do livro para expressar a maravilha
infinita de Deus em todas as criaturas:
Nel suo profondo vidi che s’interna legato con amore in un volume, ció che l’universo si squaderna; sustanze e accidenti e lor costume, quasi confiati insieme, per tal modo che ciò ch’io dico è un semplice lume.
Recordo neste momento, Elogio Del Livro, de Romano Guardini,
proferido em 1948, sob o título Lob des Buches, na Universidade de Tubinga.
As primeiras palavras do eminente teólogo e literato foram:
“Vós amais o livro? pois somente aos que amam o livro é dirigido o meu
discurso. Doutra forma minhas palavras seriam tidas como néscias ou supérfluas”.
O que significa amar O livro? É querê-lo perto de si, procurá-lo para a
meditação, para o lazer ou para a tarefa científica, literária ou mística. O livro é útil e
é belo, fonte de luz e de sabedoria. Quem ama o livro o toma nas mãos com
sentimento de tranqüila familiaridade. Tem-no como criatura a quem se quer bem e
a que se quer honrar e respeitar. O amor pelo livro é próprio de quem está sentado
tranqüilo em seu aposento enquanto ao redor reina silêncio, o verdadeiro silêncio...
E eis que, de improviso, os livros presentes na sala se tornam para ele seres vivos.
Singularmente vivos. Pequenos objetos, entretanto cheios de mundo, que estão ali
sem se moverem, porém prontos abrirem as páginas e começarem o diálogo: forte
46
e terno, cheio de alegria e de tristeza, um diálogo que narra o passado, que manda
para o futuro e que invoca a eternidade, tanto mais inexaurível quanto mais sabe
atingi-lo aquele que dele se aproxima.
Já pensamos seriamente, meus amigos, que obra maravilhosa da
criatividade humana é o livro? Pensamos em seu conteúdo espiritual: a obra do
poeta, a representação dos fatos da história, a ideologia do filósofo, as luzes
sublimes do teólogo ou do metafísico, ou as fórmulas matemáticas ou as
hipóteses e soluções passageiras e mágicas das ciências... Tudo isso é o
LIVRO!... Não importa o conteúdo. As aliciantes cores da capa podem levar a
querê-lo num impulso de paixão ou de amor à primeira vista. O amor se
aprimora e se aprofunda ao buscar-lhe a intimidade das mensagens, das lições
que se procedem no entreabrir do insondável mistério do homem, imagem e
semelhança do inefável, recôndito mistério de Deus – Sabedoria insondável e
inexaurível. Parodiando os provérbios, aproximamos a leitura, a meditação do
bom livro à busca da Sabedoria, à procura do Bem Supremo, que está na
compreensão ou na fruição da leitura transformadora:
“Feliz o homem que encontrou a sabedoria o homem que alcançou o entendimento! Ganhá-la vale mais do que a prata, e o seu lucro mais do que o ouro. Os seus caminhos são delicados e os seus trilhos são prosperidade. É uma árvore de vida para os que a colhem, e feliz são os que a retêm! (Pr 3,13-18)
O bom livro é a fonte, é a árvore, é o manancial donde provêm todas as
alegrias, todas as esperanças, na antevisão beatifica em que “Entrarão somente
os que estão inscritos no LIVRO da vida do Cordeiro” (Ap. 21, 27).
47
Bibliografia
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1986.
CLEMENTE, Elvo. Leitura e Crítica Literária. Porto Alegre:
EDIPUCRS/Acadêmica, 1990.
GUARDINI, Romano. Elogio del libro. Brescia (Itália): Morcelliana, 1985.
TORRES, Alexandre Pinheiro. Antologia da Poesia Brasileira. Porto: Livraria
Chardron, 1984. Vol. II.
CORTELAZZO, Manlio. ZOLLI, Paolo. Dizionario etimologico – della língua
italiana. Bologna: Zanichelli, 1984.
48
CRÍTICA LITERÁRIA E FICÇÃO ATUAL∗
Sinto-me feliz de participar do painel sobre Romance Português e
Metaficção neste XIV Encontro de professores de Literatura Portuguesa. Farei
breve abordagem com os seguintes pontos:
1) Visão geral sobre crítica literária;
2) Crítica literária acadêmica e jornalística;
3) O papel do JL Jornal de Letras, Artes e Idéias;
4) Conclusão.
1 – A Crítica Literária tem sido muito discutida e diversificada através
dos tempos em especial nos séculos XIX e XX.
Mestre Fidelino de Figueiredo considerava a crítica literária ciência com
objetivo próprio, sui generis, diferente, com método diverso da história geral
quanto às leis literárias dificilmente atendem ao conceito defendido pelos
lingüístas e historiadores. A crítica literária vai além da explicação da obra, deve
admirá-la e sobretudo avaliá-la. Deve-se reconhecer no trabalho do crítico uma
forçosa equação pessoal, alguns contigentes elementos: a seleção das obras e
o juízo das obras (Figueiredo: 32 e 33).
No século XIX a crítica em França e alhures esteve a cargo de
escritores que se preocupavam com a vida, com o ambiente histórico e com o
tema da obra. Sainte-Beuve marcou várias décadas e teve imitadores em
Portugal e no Brasil. Machado de Assis entre outros fazia as críticas nos jornais
e revistas nas veredas dos franceses. Com o teórico positivista e evolucionista
Hipólito Taine procurou-se estabelecer a ciência da literatura, sendo Fidelino de
Figueiredo um dos seguidores na cátedra da Universidade de São Paulo, a
∗ Comunicação apresentada em agosto de 1992, no XIV Encontro de Professores brasileiros de
Literatura Portuguesa, na PUCRS
49
partir de 1938. Ronald de Carvalho marcou essa doutrina em a Pequena
História da Literatura Brasileira. O mestre Fidelino, prudente, afirma afastando o
rigor científico: “Tem a crítica um campo de estudo próprio e considerado dum
ponto de vista próprio, tem um método particular, mas não pode atingir o ideal
das ciências naturais – a lei”. Em 1911, no ensaio sobre a “Crítica Literária
como Ciência, enunciava o problema tal como ele se punha ao espírito:
necessidade de assentar o método da Crítica Literária sobre bases objetivas
para constituir-se em ciência, muito diversa, embora, das ciências exatas e da
história. Para o crítico a realidade é a obra literária, que por vezes tem tal
autonomia, que se destaca por completo das suas raízes circunstanciais para
seguir uma carreira própria (Idem: 40 e 41).
O espírito juvenil e hábil de Fidelino percorreu o que ele chama de
metáforas confusionistas: Teófilo Braga (meu professor), Hennequin,
Brunetière, Ricardou, Lacombe, Renard, Richtenberger, Elster, Lemaitre para
em seguida compor um método eclético.
Quase à mesma época João Gaspar Simões entrava no trabalho da
crítica literária seguindo os mestres franceses e traçando um caminho próprio
na investigação temática da produção literária.
A partir de 1919 Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) adentrava os
umbrais da crítica literária após ter freqüentado por várias vezes os bancos da
Sorbonne e a companhia dos estudiosos franceses. Reelaborou as lições e os
métodos dos periódicos da França e traçou uma linha de crítica literária que
marcou profundamente os meios literários brasileiros durante 60 anos. Estão aí
os livros magistrais; Estética Literária e o Crítico Literário editados pela AGIR,
1945, seguiram-se outros ensaios além das cinco séries de Estudos, publicadas
de 1927 a 1933.
O postulado básico para Mestre Alceu é este: “A crítica literária tem sido
para mim, uma visão da vida através das obras alheias e, simultaneamente,
uma concepção das obras alheias através da vida”. Considerou, outrossim, “a
50
crítica literária não como atividade parasitária da literatura de criação e a ela
contraposta, mas como atividade autônoma, apenas distinta da atividade
criadora, mas cheia de contatos com ela e representando, antes de tudo, uma
concepção geral da existência. Nisso está, creio mesmo, a grande dignidade e
a grande responsabilidade da crítica literária, que passa assim, de atividade
subordinada, esforço intelectual livre e original”. (A Estética Literária e o Crítico
p. 199-227).
Após o New Criticism e La Nouvelle Critique houve uma proliferação de
métodos e de direções da crítica literária. O espírito irrequieto do após a
Segunda Guerra Mundial proporcionou o surgimento de novas filosofias e de
novas maneiras de filosofar o que desencadeou novas direções da crítica
literária. Mencionamos apenas alguns métodos: o psicanalítico influenciado
pelas doutrinas de Freud, Jung, Lacan, Foucault e outros; o sociológico
baseado nas diversas interpretações de Marx; o estruturalista com I. A.
Richards, Barthes, Greimas, Bremmond, além do formalista com os russos
Backtine, Todorov e outros como Jakobson. O dédalo da crítica vai-se
estendendo pelos ínvios caminhos do labirinto onde o Minotauro ora encontra
Teseu ora se perde com Ariadne...
2 – Crítica literária acadêmica e crítica literária jornalística.
A crítica literária teve na universidade um lugar reservado à análise das
novas tendências, à auscultação dos novos rumos da arte literária.
Os bancos acadêmicos de Coimbra ou de Lisboa e do Porto no início
do século tiveram excelentes mestres. Paralelamente apareceram escritores
que repensavam o fenômeno literário como Eça de Queirós, José de Alencar,
Machado de Assis que não exerciam a docência mas escreviam nos periódicos.
A crítica jornalística surgiu depois da acadêmica mas teve uma ação mais forte
e decisiva sobre grande número de leitores pelo fato de ter o jornal, a revista
que chegavam às mãos de numerosos leitores. Vêem-se desde logo caminhos
distintos de uma e de outra, algumas vezes quiseram apresentá-los como
51
opostos quando na realidade são expressão distinta pelo método e pelo
discurso do mesmo fenômeno – estudo da obra, do ambiente e da repercussão
da obra.
Na universidade portuguesa havia longa tradição de estudos clássicos
em que os textos gregos, latinos e portugueses eram debatidos e avaliados.
A universidade brasileira de 1934 no Rio de Janeiro e São Paulo e a
partir de 1940 nos diversos pontos do País, instituindo o Curso de Letras abriu o
espaço necessário para a formação do estudioso dos textos e do crítico literário.
Na década de 1960 surgiram os cursos de pós-graduação: Mestrado e
Doutorado dentro do modelo americano. A Teoria e a Crítica Literária tiveram
um amplo espaço que se caracterizou nos diferentes métodos de crítica
acadêmica. A crítica universitária quer em Portugal quer no Brasil tomou rumos
próprios afastando-se dos jornais e revistas pelo fato de obedecer a métodos
científicos, sociológicos ou psicanalíticos. Abriu em conseqüência espaços
privilegiados e sofisticados – revistas especializadas incompreensiveis para o
grande público. A crítica acadêmica passou a ser reservada aos iniciados na
filosofia, na ideologia dos corifeus dos novos sistemas.
Afrânio Coutinho afirma peremptoriamente que a crítica acadêmica
matou a crítica literária.
Apesar de tudo, ambas as modalidades de crítica literária persistem e
produzem textos. O público, porém mostra-se um tanto arredio, descrente dos
parâmetros e dos juízos da crítica literária.
Com o esmorecimento dos valores reconhecidos, ensinados e
defendidos décadas atrás não têm os críticos literários pontos de referência
para avaliar o fenômeno literário. Permanecem na descrição das estruturas, nos
elementos sociológicos, psicanalíticos, políticos, formais ou ideológicos não
mergulham no valor da existência como indica a crítica ontológica, abraçada por
Charles Moeller e apresentada pelo Mestre Alceu Amoroso Lima.
52
O que se aprende nos bancos acadêmicos em Teoria Literária, em
Crítica Literária? O que dizem os periódicos sobre livros e escritores? Palavras,
jogo de palavras, discussão de formas e raras vezes penetram no âmago do
fato para contemplá-lo e para avaliá-lo.
3 – O papel do JL de Letras, Artes e Idéias
O JL surgiu em Lisboa pela coragem e descortino do idealista – José
Carlos de Vasconcelos, celebrou recentemente os seus doze anos de
existência. Operoso semanário que já ultrapassou o n° 530 de edições. É o
jornal especializado no trato das artes e em especial das letras. Pretendo
perlustrar as edições de 1992 na observação dos textos de crítica literária
referente à ficção produzida em Portugal.
O Novecentos é um século de profundas mudanças na vida social,
cultural e literária dos povos. No dizer do crítico italiano Paolo Pinto, num
artigo em IL POPOLO assim caracteriza a época: “Um período difícil,
contraditório e atormentado, convulsionado por uma história, muitas vezes,
dolorosa e, às vezes, trágica que não falhou não ter influído sobre a
criatividade. Um século caracterizado pela queda das antigas certezas, pelo
obnubilamento existencial, pela perda do centro. A dissolução do romance
oitocentesco e o afirmar-se novos módulos narrativos. Tudo isso é
encontrado na literatura, principalmente no romance que deve contar com a
irrupção do relativismo filosófico e científico, das psicanálises, do
experimentalismo, etc. Enquanto alguns escritores vão em busca do novo,
outros tentam revitalizar a tradição; analogamente poder-se-ia individualizar
outras antinomias insolúveis”. (IL POPOLO, 31/5 e 12/6/92 e p. 11).
O JL é o caleidoscópio onde aparecem as variegadas mudanças de
doutrina, de ideologias e de modalidades dos gêneros de ficção em especial o
conto e o romance.
A ilustre professora da Università La Sapienza de Roma, apaixonada de
Portugal e do Brasil – Luciana Stegagno Picchio faz um retrospecto
53
interessantíssimo no JL, n° 497 de 14 a 20 de janeiro do corrente ano, sob o
título “O escritor e a literatura na viragem do século”. Recorda a ensaísta e
crítica italiana a famosa frase de Francis Bacon: “DE NOBIS IPSIS SILEMUS”
que Emanuel Kant escolheu como mote da Crítica da Razão Pura. A geração
de 1890 humilhação do Ultimatum da Inglaterra a Portugal, marcou
profundamente aquela juventude que terçava as armas das letras. Viveu a
inquietação metafísica de cunho anárquico decadente. Desiludidos pela
civilização utilitarista rejeitaram o credo positivista refugiaram-se os portugueses
em noturnas utopias, no visionarismo histórico do Anátema, no nacionalismo
derrotado da Agonia da Pátria, amargando o anarquismo, o tolstoísmo de Raul
Brandão e o nefelibatismo dos parnasianos e simbolistas”.
“Três séculos depois de Vico, também em século XVII, sente-se um
sopro novo, novas luzes no meio de tanta escuridão. No fim do século XIX
Espanha e Portugal apareceram como os vencidos da vida, hoje a situação da
península Ibérica é bem diferente. É só atentar para os brilhos da Olimpíada e
da Exposição Mundial respectivamente Barcelona e Sevilha, ao mesmo tempo
em que Lisboa é a Capital Cultural da Europa...
Eduardo Lourenço num artigo da Revista EUROS, de Roma, assim
se exprime: “Portugal é um pais que perdidas as colônias, entrou sem
complexo e com extrema leveza numa Europa de que sempre fez parte em
sua centralidade atlântica”.
Aldo Gargani no livro: Sguardo e Destino assim caracteriza a obra de
ficção, o ato de narrar: “Così noi scendiamo lungo una strada e il nostro vedere
è ricordare, il nostro vedere è raccontare, il nostro stesso andare e camminare è
raccontare perchè alla fine di tutto noi siamo soltanto la conseguenza del
racconto che ci ha fatto nascere”.
Na sociedade moderna quem tem o facho do sentido parece ser os
narradores, aqueles que mais sabem interpretar a história, sobretudo prefigurá-
la sob forma de parábola.
54
Hölderlin na grande elegia finissecular em Brod und Wein (Pão e vinho)
se pergunta: “Wozu Dichter?” (Para que poetas?). Na mesma corrente de idéias
e considerações Heidegger afirma: “os que mais se arriscam são os que, na
falta de salvação têm consciência do nosso estar sem proteção. Eles levam aos
mortais o rastro dos deuses fugidos das trevas do mundo. Os que mais se
arriscam enquanto cantores da salvação são “poetas no tempo de pobreza”.
Qual seria o destino dos narradores e dos poetas na noite do mundo?”
Nada melhor do que a palavra de Italo Calvino, em Lições Americanas:
“A minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que
a literatura, só ela pode dar com os seus meios específicos”.
Estas considerações em torno das mudanças do século e da missão
redentora das letras levam-nos a algumas ponderações de Manuel Frias
Martins sob o título CRITICA(S) E CENSURA(S), publicadas em JL n° 515 na
semana de 19 a 26 de maio, referindo-se às acerbas críticas de certas pessoas
a “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago. Salienta desde logo
as funções da critica literária: “A crítica literária tem um papel fundametal no
existir em modernidade de uma cultura. É pela crítica que se articula o diálogo
entre as propriedades das obras e as exigências literárias de um determinado
período. A crítica literária é um dos instrumentos mais vivos de que pode dispor
para compreender as tensões atuantes num tempo político num lugar social e
numa tradição cultural.
Mais adiante caracteriza com acrimônia a crítica acadêmica: “As
virtudes de uma crítica acadêmica fundada em critérios de cientificidade e/ou
articulada por uma linguagem universalizante e objetiva invariavelmente
confunde o que é científico com algo que é meramente tecnológico, misturando
nesse processo rigor com tecnicidade, essas virtudes são meras ilusões que só
encontram eco numa outra piedosa ilusão: a de uma epistemologia inocente da
investigação universitária.
55
Ressalta ao terminar: “A importância da literatura está em sua
capacidade intrínseca de representação e nas possibilidades de um
conhecimento insubstituível do homem e do mundo”. Aqui coincide com o que
escrevia Alceu Amoroso Lima: “Literatura é a expressão do homem e da vida”.
O JL nos leva a peregrinar pela ficção portuguesa brasileira,
africana, através de textos de crítica literária, depoimentos colhidos nas
entrevistas considerações à margem dos livros de contos e de romances
publicados ou a publicar.
Fornece, outrossim, a visão que o ensaísta francês Jean Yves Tadié
apresenta no livro O Romance no século XX, traduzido por Miguel Serras
Pereira e editado pelas Publicações dom Quixote.
A trajetória do gênero romance dos séculos XIX e XX tem muitos
percalços e vaivéns. Ora se dá muita importância ao relato de espisódios ora se
privilegia o diálogo que um dos lugares favoritos da expressão de idéias ou em
todo o caso é nele onde as idéias nascem com mais naturalidade porque são
situadas, perspectivadas em vez de darem como a voz direta do autor.
O “nouveau romans” que causou signficado e passageiro furor na
época, coincide com o surto das ciências e da filosofia da linguagem no
momento em que se apagam os pensamentos existencialistas e os apelos
ao empenhamento.
Duas grandes tendências levaram tudo ser possível: a primeira conduz
às fontes, o romance quer dar conta de tudo, da totalidade do mundo. A
segunda leva à expulsão de formas, à morte do classicismo e do realismo
incluindo as idéias. O romance torna-se imperialista e participa de vários
gêneros ao mesmo tempo, ensaio, poemas, ficção. Malraux no prefácio a
“Temps du Mépris” afirma que o seu mundo de ficção se reduz a duas
personagens: o herói e o seu sentido da vida”. (Oeuvres complétes, tomo 1 p.
775) (JL n° 503, 25/05 a 2/3/92 p. 17).
56
O JL apresenta semanalmente o mosaico dos principais eventos
ligados às letras e às artes enaltecendo as idéias e iniciativas que se tornam,
realidade. Sucedem-se os textos críticos através dos quais se pode inferir o
valor da obra, o seu alcance e repercussão no panorama das letras. Não se
circunscreve ao âmbito de Portugal, observa os fatos com ressonância lusitanas
ocorridos na França, nos países da Europa, da África e da América.
A crítica literária apresentada tem a leveza, a serenidade, o tom ligeiro,
sério e honesto condizentes com o semanário.
Vejamos alguns tópicos dessa crítica, colhidos nas edições do JL dos
meses de 1992. Sobre O Evangelho segundo Jesus Cristo assim escreve Leyla
Perrone Moisés em trecho transcritos da Folha de São Paulo: “A narrativa flui
com aquela simplicidade que só os clássicos conseguem fazer parecer fácil.
Entre seu estilo e o dos evangelistas: a singeleza, a oralidade, a comunicação
direta com o receptor, os diálogos encaixados na narração, o gosto pelas
apóstrofes e parábolas, as imagens que ganharam intensidade e universalidade
por serem colhidas no real mais concreto, modesto e cotidiano” (JL n°498, p.).
Como se vê a crítica descreve o estilo e apresenta a temática sem
preocupar-se com estruturalismo e psicanálises.
A crítica em outros momentos torna-se ríspida como a de Fernando
Venâncio ao livro Obsidiana, de Filomena Cabral: “A autora deve e pode voltar
para trás. Faça-o urgentemente (JL n° 519), p. ).
João Rui de Souza apresenta a obra de Albano Martins − Entre a Cicuta
e o Monstro com esta frase: “É um livro intersticial, intervalar. Um intervalo que
se margina por uma polarização antitética, por um discorrer através de
simbologias contraditórias” (JL n° 519, p. 10).
A crítica tem o sabor impressionista e descritivo.
Outra crítica descritiva e valorada pelo tema e pela estrura é de Manuel
Frias sobre o livro Anno Domini 1348, de Sérgio Luís de Carvalho, historiador
que descobre os caminhos tortuosos do romance. “A linguagem é uma
57
contenção exemplar com construções arcaizantes que conhecem os seus
próprios limites ou os limites da sua própria funcionalidade literária; as imagens
são de uma cativante simplicidade na sua riqueza evocativa” (JL n° 520, p. 14).
Depois de apresentar o livro de um historiador apresenta-se o romance
de crítico de teatro e jornalista Carlos Porto – Fábrica sensível. Crítica de Maria
Helena Serôdio: “E aí, nesse patamar de consciência de jogo e ingenuidade de
afeto, descobre-se que o teatro é feito de gente de carne e osso, virtudes e
defeitos, memórias obsessivas e paixões intempestivas, que continuamente
inventam o teatro como forma excessiva de viver” (JL n° 524, p. 14).
O livro polêmico de José Saramago, O Evangelho segundo Jesus
Cristo, toma muitos espaços em JL, algumas críticas mais amenas outras mais
severas mas justas como a de Luciana Stegagno Picchio: “Um evangelho
concebido com paixão. Além das teses e da crueza de certas soluções que não
podem deixar de chocar quem cresceu, embora algo à margem, na tradição do
evangelismo ortodoxo, existem nesta obra sofrida como poucas na primeira
pessoa, oásis de grande poesia. Há uma atmosfera bíblica, não evangélica,
feita de paisagens atmosferas orientais” (JL, n° 520, p. 10).
A crítica de Vítor Viçosa, sob o título “Desafio ambicioso de Saramago”
assim se expressa: “Em suma, o que mais notabiliza esta obra é o fato de nela,
a narrativa judaico – cristã com toda a sua densidade, simbólica se revelar,
ocultando-se, através do conflito entre uma mitologia enquanto expressão
verbal de uma cultura e o seu questionamento ficcional, enquanto visão
imaginária da condição humana, com grande pendor telúrico (JL, n° 520, p. 9).
No aspecto da repercussão da obra, o crítico Fernando Dacosta
escreve: “Pela sua escrita e pelo seu tema, pela sua harmonia e pela sua
luminosidade O Evangelho segundo Jesus Cristo é para nós o livro de
referência do ano e do gênero a que este Prêmio diz respeito. José Saramago
recoloca o grande romance português com toda a especificidade, no futuro e no
universal” (JL n° 520, p. 9).
58
Outras críticas interessantes referem-se ao livro de Inês Pedrosa – A
Instrução dos Amantes, começando por Cecília Barreiros: “Inês Pedrosa é
crítica literária poderia ser para a próxima obra mais crítica. O seu livro com
muitos lugares comuns esqueceu que de lugar comum a lugar comum não
se vai a lugar nenhum” (JL n° 516, p. 10). Antonio Mega Ferreira escreveu
sobre: “A Instrução dos Amantes”: O livro foi escrito para nos dizer que
estamos vivos, esta noite, nesta festa, e em todas as noites em que a asa
solitária da memória nos lembrar que é ao coração, músculo e mito, que
devemos tudo”. (JL n° 515, p. 10).
João Melo escreve sobre o livro “Como um rio sem pontes”, de
Guilherme de Mello: “O grande mérito do livro é o de nos transmitir o sentimento
de uma grande e apaixonada dor pela vida. Através dela, somos como que
levados à presença daquela dimensão trágica e efêmera que há no devir de
toda a condição humana. O ponto de partida deste romance é, aliás, o destino
da morte como tragédia e condenação da vida” (JL n° 511, p. 11).
Antônio Rebordão Navarro escreveu: “As portas do cerco”, obra em que
os tempos se interpenetram e fundem, confunde-se na sua temática com a
própria história de Macau enquanto possessão portuguesa. O personagem
principal é o poeta Camilo Pessanha (JL n° 511, p. 2).
Ao lado das críticas e entrevistas aparece a notícia, como “As Núpciais”
de Natália Correia, que aborda temas de incesto, formula a pergunta: seremos
nós sombras dos deuses? É livro polêmico. A autora fazendo um jogo de
palavras, numa entrevista afirma: “Consumada que é a Pátria, falta dizer Mátria
para que na pele do tempo os amantes escrevam o nome da realidade
unificante: Frátria” (JL n° 515, p. 2).
Por ocasião do desaparecimento súbito de Manuel Ferreira, no dia 17
de março, Jorge Listopad escreve: “No café de Linda-a-Velha, sorriso largo?
Era o seu idioma, a matéria dupla de ironia e de utopia leves, que se casaram
59
nele tiveram alguns rebentos: livros, amigos, funções. Era sensível, intelectual
non troppo” (JL n° 507, p. 12).
A obra de David Mourão Ferreira – Soleils masqués, tradução francesa
teve a crítica de Alain Bosquet, no Figaro littéraire: “Concluímos que a filosofia
deste escritor é a de persuadir, de que devemos duvidar, ele fá-lo da maneira
mais perversa, mais firme, mais esteticamente preciosa. Nisso é ajudado por
uma tradução soberba (JL n° 504, p. 2).
É tempo de lançar um olhar abrangente sobre a produção de romances
e contos em Portugal em 1991, balanço feito pelo colaborador de JL, Júlio
Conrado que sublinhou a diversidade de propostas e tendências. Pôs acento
tônico no livro – O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago. Entre
outros romancistas menciona: Alvaro Guerra, Mario Ventura Henriques, Hélder
Macedo, Hélia Correia, Wanda Ramos, Teresa Salema, Maria Ondina Braga,
Júlia Nery, Luísa Costa Gomes, Isabel Barremo, Irene Antunes e Rita Ferreira
(JL n° 511, p. 4).
Conclusão – Concluindo a caminhada pelos seis meses do JL de 1992,
pode-se afirmar:
1 – a crítica jornalística apresenta-se descritiva, impressionista, com
enfoque dos temas e referências à vida e ao ambiente social e histórico
dos escritores.
2 – Como em 1991, nesses meses, nota-se cada vez mais significativa
a presença feminina no conto e sobretudo no romance.
3 – O JL tem a função especial de ser o monstruário da produção
literária de Portugal, do Brasil e dos países africanos de Língua Portuguesa.
60
LITERATURA E INTEGRAÇÃO∗
Fala-se tanto de integrar, tornar íntegro, tornar INTEIRO, aquilo que
está dividido ou partido... Nunca talvez a humanidade tenha sentido como
hoje o peso da divisão entre as pessoas, entre os grupos e entre as nações.
Formam-se blocos de estados ou regiões para dividir, para fraccionar a
unidade nacional ou internacional. É a incansável ambição humana a abrir
novos caminhos, novas modalidades de supremacia, de domínio. Ao mesmo
tempo nunca se falou tanto de integração de comunidades européias,
americanas ou afro-asiáticas...
Na Ceia derradeira, em suas derradeiras palavras, em sua derradeira
prece ao PAI para os que criam naquele tempo e para todos os que iriam crer
através dos séculos: “a fim de que todos sejam um”(ut unum sint, Jo, 17,21).
Recordamos a última e angustiante recomendação de Simon Bolívar, herói
da independência de tantos países latino-americanos: “União! União! União!”
Daquele memorável 1826 até hoje quão tumultuada e fraccionada
esteve e está a América Latina!
Como é que a nossa geração, as próximas gerações, faremos para
aproximar, reunir e integrar povos tão diversos?
Alguns insistem na derrubada das dificuldades alfandegárias. É o velho
“laissez faire” liberal do século XVIII. Outros acenam com o Mercosul... E nós
que acreditamos nas letras, nós que lidamos com as artes o que pretendemos?
De fato a literatura foi laço de continuidade das culturas: da Índia para a Grécia,
da Hélade para Roma, de Roma para os povos do mundo inteiro. A própria
religião, mensagem de Deus, serviu-se e serve-se da língua e das letras para a
difusão e para a adesão à VERDADE.
∗ Texto produzido em 1992.
61
Castro Alves, no poema “O livro e a América” intuiu a integração
através da literatura, quando na sexta e sétima estrofes exclama:
Filhos do século das luzes! Filhos da Grande Nação! Quando ante Deus vos mostrardes Tereis um livro na mão: O livro – esse audaz guerreiro Que conquista o mundo inteiro Sem nunca ter Waterloo... Eólo de pensamentos, Que abrira a gruta dos ventos Donde a igualdade voou!... Por uma fatalidade Dessas que descem de além, O século que viu Colombo, Viu Gutenberg também. Quando no tosco estaleiro Da Alemanha o velho obreiro A ave da imprensa gerou... O genovês salta os mares... Busca um ninho entre os palmares E a pátria da imprensa achou
(Antologia da Poesia Brasileira, vol. II p. 121/22)
Há muitos anos o trânsito de idéias e ideais não tem fronteiras entre os
países: a integração democrática, a preservação do meio ambiente, a promoção
dos povos indígenas e dos habitantes dos países. Vive-se numa fraternidade
mental e sentimental. O tratamento usual é de irmãos ou hermanos. Há porém
lindes, invisíveis e poderosas que obstaculizam o livre trânsito daquilo que seria
e é o selo da fraternidade na diversidade da inspiração e realização da arte da
palavra, a literatura.
Além das aduanas da burocracia e das taxas postais, o livro, a
produção literária, sofre da barreira da língua. A Língua Castelhana foi e é um
obstáculo ainda maior que a serra da Estrela ou das ribanceiras do rio Uruguai,
do outro lado a Língua Portuguesa eleva seus alcantis.
62
Numa ousada paráfrase do texto de Isaías citado pelo evangelista
Lucas poder-se-ia repetir “Voz do que clama no deserto: Tornai retas suas
veredas; todo vale será aterrado, toda montanha ou colina será abaixada” (Lc
3,4-6). Para que as vias sinuosas da integração sejam retificadas é preciso
adquirir pelo estudo o conhecimento das línguas de Camões e de Cervantes.
São semelhantes e tão diferentes. São tão diferentes como duas irmãs. As
semelhanças facilitam o aprendizado, as diversidades idiomáticas servem para
marcar mais fortemente a memória. Como é maravilhosa a imensa área servida
por duas línguas européias aclimatadas às intempéries dos altiplanos e das
savanas imensas, da pampa imensurável e dos picos andinos que abrem
horizontes tão vastos quanto os mares.
Como é belo usufruir a delícia da leitura dos versos de Gabriela Mistral
ou um conto de Jorge Luís Borges, ou uma estória de João Guimarães Rosa na
língua original. Ingenieros e Rodó lidos no texto castelhano com as marcas do
“voseo” rioplatense têm um sabor muito diferente do que lidos numa reles
tradução. Por melhor que seja a tradução como se pode ler – CONTOS DO
PAÍS DOS GAÚCHOS do festejado Julián Murguía, perde o sabor, a
musicalidade, apesar do esmerado esforço do tradutor, Sergio Faraco.
Queiramos ou não o dito italiano soa cada vez mais verdadeiro: TRADUTTORE
TRADITORE. Fica-se perplexo ao ler em espanhol os versos da Hora Evarista,
como soam mal os versos de Pablo Neruda na cadência brasileira, disso se
deve concluir pela necessidade urgente de ensinar castelhano nas escolas
brasileiras e ensinar português nas escolas da Cuenca del Plata... A língua é a
base de toda a cultura, de toda a comunicação humana. Nota-se maior
entusiasmo no Uruguai, na Argentina e Paraguai de ensinar e aprender o
português do que nas escolas brasileiras ensinar e aprender o castelhano.
Quer-se fazer cultura: é mister estudar e praticar a língua daquele povo que
produz aquela cultura. A língua constitui barreira intransponível, uma vez
conhecida torna-se um canal ou melhor um rio que vai irrigando, transportando
63
e fertilizando a cultura. Exemplo forte é a Comunidade Européia, onde o estudo
de línguas cresceu muitíssimo nos últimos cinco anos. Só o Ministério da
Pública Instrução da Itália contratou e está treinando neste semestre 800
professores de inglês e 400 de alemão para atuarem nas escolas da Península.
Para os povos do Cone Sul é imprescindível conhecer além do português e do
castelhano o inglês por se tratar nesta época da língua universal. E mister
transformar a babel dos povos em harmoniosa orquestra de instrumentos
afinados que todos falem a mesma língua da compreensão, da cooperação, da
integração; numa palavra a língua da Cultura do AMOR.
64
O ÍNDIO NA HISTÓRIA E NA
LITERATURA∗
Cassiano Ricardo, poeta modernista do grupo “Anta” abre as
páginas de Martim Cererê para ler a história das raças que se cruzaram sob
a luz do Cruzeiro, com o poema “Declaração de Amor” parodia o poeta
imortal da estirpe lusitana:
Eu vim do mar! sou filho de outra raça. Para servir meu rei andei à caça de mundos nunca vistos nem sonhados por mares nunca de outrem navegados. Ora de braços dados com a procela, ora a briga com ventos malcriados. Trago uma cruz de sangue em cada vela! .................................................................... A ambição pode mais de que a saudade... Ambas me foram ver, quando eu parti.
(De Martim Cererê, Antologia da Poesia Brasileira, Vol. III p. 128)
Continua o poema, em “A raça Nova”
“Mas o Marujo português havia casado com a Uiara e pronto! Nasceram
os Gigantes de Botas... E depois veio a noite trazendo a raça de sua cor e
assim à luz abençoada do Cruzeiro do Sul as três raças se cruzaram num
sonho de Amor e num despertar de vida e de trabalho para construir o novo
povo, a nova nação.
Menotti Del Picchia pertencente à mesma corrente modernista publicou
o NHENBAÇU VERDE AMARELO, manifesto do grupo Anta, no Correio
Paulista de 17 de maio de 1929 em que assinala a distinção de tapuias e tupis.
Os primeiros, antropófagos se recolheram para dentro do sertão, evitaram a
miscigenação com o branco invasor. “Os tupis desceram para serem
∗ Conferência proferida no Seminário “O Índio, o Negro na História e Literatura”, outubro de 1993.
65
absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova. Para viver
subjetivamente e transformar uma prodigiosa força a bondade do brasileiro e o
grande sentimento de humanidade”.
E conclui o manifesto: “O tapuia isolou-se na selva para viver; e foi
morto pelos arcabuzes e pelas flechas inimigas. O tupi socializou-se sem
temor da morte; e ficou eternizado no sangue da nossa raça. O tapuia é
morto, o tupi é vivo”.
A minha tarefa nesta mesa redonda é de perquirir os caminhos do
indígena nas andanças literárias. Não vou preocupar-me com as anotações das
cartas dos missionários ou nas observações dos viajantes em que o aborígene
aparece em toda a crueza sob as lentes de aumento da mentalidade da
civilização quinhentista européia. Os horrores dos embates com a nova terra e
com os novos seres humanos vivendo em trajes edênicos das florestas e das
imensas praias dos trópicos. Deter-me-ei nos acordes da lira e da epopéia, não
buscarei as páginas imorredouras da ficção romanesca. Ao perlustrar os
séculos, folhearia páginas amarelecidas pelo tempo mas ressumantes de vida e
de seiva.
É curioso observar como os poetas barrocos: Bento Teixeira, Gregório
de Matos e Manuel Botelho de Oliveira descrevem alguns encantos da
geografia mas nada dizem do selvagem. Só existem os europeus e os africanos
nos versos de Gregório de Matos, a Ilha da Maré apresenta frutos, flores e
vegetação e não tem quem habite a paisagem paradisíaca...
Os árcades, os épicos, Basílio da Gama e Santa Rita Durão valem-se
dos versos ao narrar as histórias famosas do valente Sepé Tiaraju e das belas
Moema e Paraguassu. Há o tratamento qualitativo do selvagem, exaltação da
beleza física, da valentia e da pureza de alma em seus ideais naturalistas.
Com o Romantismo surge a onda indianista, fruto da filosofia do BON
SAUVAGE, de Jean Jacques Rousseau e das doutrinas da ilustração ou
Enciclopedismo. Contrariando a realidade vivida nas selvas da América, da
66
África e da Oceânia apresenta um sevícola exornado de todas as virtudes que a
civilização tradicional cristã da Europa e das regiões mais cultas havia deixado
ao longo dos séculos palmilhados. A visão romântica da criatura na pureza
original sem pecado vivendo o idílio de amor e ventura nas matas, nas praias ou
nas pradarias sem fim. O trabalho não lhe seria preocupação pois a mãe
natureza dadivosa e boa colocava tudo ao alcance da mão.
Gonçalves Dias, de sangue mestiço, de pai português e de mão
indígena teve a educação da culta Coimbra. Abraçou os ideais e os ditames da
Escola Romântica. É o indianista por exelência, nas Poesias Americanas em
que se encontram os poemas Canção do exílio, O canto do guerreiro, O canto
do piaga, O canto do índio e Deprecação. Em Últimos cantos sobressai forte e
vivo I-Juca-Pirama, poema altaneiro da história de fidelidade à raça aos
preceitos éticos do seu povo “daquele que há-de-ser morto”. A primeira parte
com estrofes de seis versos hendecassílabos, abre solene:
No meio das tabas de amenos verdores Cercados de troncos – cobertos de flores, alteiam-se os tetos d’altiva nação; são muitos seus filhos, nos ânimos fortes, Temíveis na guerra, que em densas coortes Assombram das matas a imensa extensão.
Os ritos da guerra e do sacrifício são descritos com pormenores
fotográficos que mostram alguns aspectos negativos de ódio e vinganças ao
lado dos feitos de alto heroísmo e destemor na glorificação do tupi e execrando
o tapuia. As estrofes de oito versos escandidos na redondilha menor, mostram
vida e fugacidade, de que citamos a peroração final:
Não vil, não ignavo, Mas forte, mas bravo serei vosso escravo: aqui virei ter. Guerreiros não coro Do pranto que choro se a vida deploro, Também sei morrer.
67
A décima parte do poema conclui com estrofe de seis versos dos quais
quatro hendecassílabos e dois pentadecassílabos:
Assim o Timbira, coberto de glória, Guardava a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi. E à noite nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Tornava prudente: “Meninos, eu vi!”
No poema Marabá, Gonçalves Dias refere-se à situação do mestiço do
índio com branco, mostra a situação de desprezo dos indígenas, pois preferem
a pureza da raça, vinda sem mácula através da geração nas florestas:
Jamais um guerreiro da minha arasóia Me desprenderá: Eu vivo sozinho, chorando mesquinha, Que sou Marabá!
Marco importante na exaltação dos autóctone é o Poema Americano −
De “Os Timbiras”. São longas e densas estrofes de decassílabos que
descrevem a força física e moral na hercúlea luta em que
O fero vencedor um pé alçando Morre! – lhe brada – e o nome teu contigo! O pé desceu, batendo a arca do peito Do exânime vencido: os olhos turvos, Levou, a extrema vez, o desditoso Aqueles céus d’azul, àquelas matas, Doces cobertas de verdura e flores!
É o ódio, a arrogância, a paixão do poder que extermina o adversário na
crueza da luta, nada diferente das chacinas e horrores das guerras européias...
Fagundes Varela cantou a natureza, relembrou o indígena no poema
em dez cantos, publicado postumamente sob o título Anchieta ou Evangelho
nas selvas. São páginas suaves de amor e fantasia em que o índio dócil à voz
68
do inefável Bem-aventurado José de Anchieta, vai aprendendo a rezar ao Deus
dos cristãos, Jesus Cristo, esquecido de Tupã.
Em Pelotas, 1868, Francisco Lobo da Costa escreveu o poema O índio,
inserto no livro Flores do campo, publicado após a sua morte, cuja edição critica
da Obra Poética foi realizada pela Profª Drª Alice Therezinha Campos Moreira,
saiu ao lume em 1991 em co-edição EDIPUCRS/IEL/RS, em que exalta a força,
a beleza, a audácia e a altivez:
Sou índio atrevido, de faces tostadas, De noite doiradas, de sonho fagueiros, De toda essa taba de tribos morrudas, De setas agudas eu sou o primeiro.
Percebe-se no escandir dos verbos o ritmo e o tema de Gonçalves Dias.
Não alongarei a investigação entre os poetas românticos, realistas,
parnasianos ou simbolistas. O tema do índio reaparece com força e vibração no
movimento nacionalista do episódio modernista com o grupo Anta, com a
Antropologia e outros. Martim Cererê de Cassiano Ricardo é o poema do
Descobrimento em que o Novo Mundo reaparece para celebrar a união do
português com a Uiara:
Eu vim do mar! Sou filho da procela. Trago uma cruz de sangue em cada vela. Para sentir a glória de te amar, lobo do oceano acostumado a tudo, épico só no mar, lírico em terra, estenderei o couro de um jaguar sobre este chão que ficará um veludo mais verde, mais macio do que mar... No mar, o bravo feito lusitano. Em terra o amor em primeiro lugar.
Raul Bopp, gaúcho de Tupanciretã, em suas migrações pelo Amazonas
adentrou-se na lenda de Cobra Norato familiar entre os indígenas. Buscou outros
ritmos pra celebrar a tribo tapuia num poema onde se encontram os verso:
69
O mato acorda no teu sangue sonhos de tribos desaparecidas – filhas de raças anônimas que se misturaram em grandes adultérios!
O poeta canta as lendas, canta a realidade da História, tudo é
entrelaçar de vidas, entrelaçar de destinos e o indigena foi-se transformando em
caboclo no Norte, no Centro e no Meridional. As raças se cruzaram sob a luz
discreta e amável do Cruzeiro do Sul, ai surgiu a gente boa, valente e amorosa
– o Brasileiro, num eterno poema de Esperança e de Amor.
70
MÚSICA E POESIA∗
Ao abrir os olhos pra o esplendor da criação o homem e a mulher
ouviram o murmúrio dos regatos e o cântico das aves. E ali começou a
maravilha traduzida pelo poeta, cantor e salmista, o Rei David:
“A alegria cantará sobre meus lábios e a minha alma libertada exultará! Oh Senhor, vos cantarei ao som da harpa, para louvar-vos tocarei a minha citara”
(Sl 70, 23 e 24)
A palavra se transforma em música e a música se traduz em poesia:
beleza de sons, de ritmos. A música como o pulsar do coração é inerente à
pessoa. Todos os povos cantam, todos criam instrumentos, todos reproduzem
melodias que vão passando de geração a geração através dos milênios...
A música se encontra por toda a parte, basta saber escutá-la e
traduzi-la na palavra, carregada de sentido e desentimento como o poeta
Paulo Corrêa Lopes:
“Música suave de estrela em noite quieta música lenta de onda que morre longe do mar, música triste de asa caindo sobre o mar”.
(Caminhos 1931-32)
A música se transforma em cantiga na simbiose da palavra com o ritmo
que o vate na magia da transmitir nos tercetos:
“Sei de cantigas suaves como um sonho, para embalar o espírito tristonho, para fazer o coração dormir.
∗ Texto produzido para 30 anos do Centro de Cultura Musical da PUCRS, outubro de 1993.
71
Dessas cantigas que a alma me revela conheço uma, porém, que de tão bela, meu coração não pode traduzir”...
(Poemas de mim mesmo 1926-31)
Tudo é melodia, canto, música, palavras que se transmudam em
sonoridade nas claves onde dançam as notas fusas/semifusas e as colcheias
como se pode sentir em “O canto da noite” do inefável poeta de Itaqui:
“Ouve o canto da noite! Repara como a vida acorda em cada folha, em cada sombra. Repara como as estrelas vão ficando mais nítidas, como a música dos astros anda embalando o mundo. Ouve o canto da noite!”
(Poemas da vida e da morte, 1932-38)
Paulo Corrêa Lopes traduz em palavras singelas, em ritmos interiores,
os eflúvios das noites, das melodias que se encontram em todos os seres, que
vibram em todas as pulsações das coisas.
Ronald de Carvalho, outro poeta modernista, sentiu a música , sentiu os
anseios de todo o povo, num hosana enorme e uníssono no revérbero do
trópicos, no poema Brasil:
“Nesta hora de sol puro palmas paradas pedras polidas claridades faíscas cintilações Eu ouço o canto enorme do Brasil”
(De toda a América)
72
O citado poeta une todas as coisas, toda a vida, toda a respiração e
toda a natureza viva e estática no “Canto livre”:
“O canto que me ensinaste foi virgem e livre: todas as águas balançaram nele, todos os ventos murmuraram nele, todos os perfumes se impregnaram nele”
(De jogos pueris)
Milhares e milhares de vozes poéticas poderiam ainda ser ouvidas para
testemunhar a unidade da pessoa, da palavra, da música e da poesia. Em
1952, jovens estudantes de Letras com os poetas e músicos Irmão Dionísio
Fuertes Alvarez e Irmão Liberato organizaram o Clube de Línguas Vivas onde
se cantava, se recitavam poemas, onde se cultivavam a música e a poesia, o
teatro e a conversação em diversas línguas.
Em 1956 a clarividência e a profunda vocação musical do Irmão
Fidêncio (Ernesto Dewes), deram à agremiação a forma mais musical
agregando-lhe o CORAL DA PUCRS. Inúmeras e gloriosas são as
realizações do CORAL sob a regência de Dinah Neri Pereira, em 1960, no
Teatro SODRÉ e na TV SAETA, de Montevidéo, com o Magnifcat de Bach
com acompanhamento da OSPA e regência de Pablo Komlós. Em 1963
houve concertos no Teatro Municipal do Rio e de São Paulo, o último
televisionado pela TV Tupi sob a regência de Charlotte Kahle. Em 1974, o
CORAL começara nova fase com a vinda do Maestro Frederico Gerling
Júnior. Os programas tornaram-se mais amplos e mais sofisticados com a
apresentação das óperas: La Serva Padrona, de Pergolesi; II Trovatore, de
Giuseppe Verdi e a Flauta Mágica, de W. A. Mozart.
Seguiram-se grandes e importantes apresentações de Missas, Óperas,
Cantatas e de outros gêneros musicais: Missa de Gounod, Stabat Mater, de
Rossini; Messias, de Haendel; Paixão de Cristo , de J. S. Bach; Requiem, do
73
Pe. Maurício. O Coral ampliou a jurisdição passando à denominação de Centro
de Cultura Musical com orquestra juvenil, orquestra de adultos e aulas de
instrumentos e de canto. Irmão Fidêncio, por motivo de saúde, passou a direção
do Centro e do Coral ao Maestro Frederico Gerling Júnior, vindo a falecer no dia
24 de setembro 1988. Marcou sua vida pelo devotamento à vocação musical
que o levou a tantas realizações para o esplendor da arte da música e do canto
entre os jovens e as grandes platéias.
O Centro de Cultura Musical é o ponto de referência na apresentação
de óperas em Porto Alegre, além dos Concertos comunitários patrocinados
pelos supermercados Zaffari.
O trabalho e o gênio musical e o espírito empreendedor do Maestro
Gerling, souberam e sabem manter o Centro, o Coral e a Orquestra na altura
dos melhores centros musicais do País e da América Latina.
A música, o canto, a ópera e os concertos comunitários realizados ora
nas igrejas, ora em amplos espaços encantam as dezenas de milhares de
apreciadores da boa música e do bel canto.
Tudo isso constitui, parafraseando o verso de Ronald de Carvalho, “O
canto enorme do Brasil”, dos berços, dos jovens e dos homens de hoje e do
amanhã, em cujos corações arde a chama eperançosa e promissora da
CIVILIZAÇÃO DO AMOR.
74
O CRÍTICO ALCEU AMOROSO LIMA∗
Centenário de Nascimento
(1893 – 1993)
Falar ou escrever sobre Alceu Amoroso Lima no centenário do seu
nascimento é algo de sublime e de muito honroso para um professor de
Crítica, para alguém dado à difícil tarefa de incentivar a leitura e de levar as
pessoas a admirar, a sentir e a discernir o texto literário, desfrutando-lhe a
beleza e o encanto.
O homem
Alceu Amoroso Lima nasceu no Rio de Janeiro no dia 11 de dezembro
de 1893, no “casarão azul” de tantas evocações. O pai era industrialista no
setor de têxteis. Teve fina educação, orientado pela fé cristã. Terminado o
Colégio Pedro II, onde teve, entre outros mestre, Sílvio Romero que o marcou
com a personalidade e com o saber crítico literário em 1910 e 1911, ingressou
na Faculdade de Direito. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, em plena
Grande Guerra, embarcou pra a França, onde permaneceu até o Armistício
1918. De volta do Velho Mundo precisava iniciar a trabalhar na indústria do pai
e ao mesmo tempo cultivar as letras. No livro Estudos Literários, rememora a
entrada na crítica literária, ele mesmo conta:
Comecei a fazer crítica literária, no primeiro número de O JORNAL (17/6/1919), de modo puramente acidental. Convidou-me, de surpresa, Renato de Toledo Lopes, a assumir a secção “Bibliografia”. Éramos da mesma geração; pertencíamos ao mesmo grupo de rapazes, cariocas ou fluminenses, que se interessavam por literatura, mas sem nenhuma preocupação profissional; freqüentávamos os mesmos fatos literários.
∗ Conferência proferida no XI Seminário Brasileiro de Crítica Literária, 2 de dezembro de 1993,
ILA/PUCRS.
75
Quando muito, em nossas viagens à Europa, havíamos freqüentado, como ouvintes, os cursos europeus. Representávamos, realmente, a última ou penúltima geração de autodidatas; se acaso o autodidatismo não representa uma condição intrínseca, de toda a formação intelectual, especialmente literária”. (Teles: 249)
O pseudônimo Tristão de Athayde surgiu, para evitar a confusão entre o
escritor e crítico literário e o gerente da empresa paterna. Na crítica vigoravam
as idéias de Anatole France, de Jules Lemaitre e de Remy de Gourmont. Foi
sempre marcado por uma invencível inclinação ao amadorismo. Talvez pela
verdadeira obsessão pela liberdade, pela verdade que constitui o fundo do
caráter de meste Alceu. Viria e sentiria de perto a transformação européia no
após-guerra.
Surgiram os movimentos modernistas e os múltiplos manifestos de um
e de outro lado do Atlântico. No Brasil por ocasião das celebrações do
Centenário da Independência, tudo se movia para a renovação de idéias, de
crenças, de postura. Tudo era mais voltado para o Brasil, era o nacionalismo
que se revigorava. Farias Brito surgia com a nova filosofia.
Os artigos semanais em O Jornal e depois no JORNAL DO BRASIL
davam a conhecer o novo crítico literário.
Em 1922 a edição de Afonso Arinos com longo prefácio crítico confirma
a autoridade do crítico literário. De 1927 a 1933 são publicadas as cinco séries
de Estudos que enfeixavam os artigos editados na imprensa. É interessante e
oportuno citar partes do artigo de Afrânio Coutinho publicado em 21/6/1959,
celebrando os quarenta anos de Crítica Literária de Mestre Alceu:
“todos podemos testemunhar a ansiedade com que aguardávamos, em todos os recantos do País, os seus artigos, os seus ensaios, que líamos sofregamente, bebendo com avidez as suas idéias e ensinamentos. Não nos bastavam os seus livros, os famosos Estudos, nas pequenas brochuras do Centro Dom Vital, cuja imagem ficou para sempre em nossa retentiva”. (Coutinho: 1959)
76
Alceu aproximou-se de Jackson de Figueiredo, apóstolo da renovação
católica, e fundador com o Pe. Leonel Franca S. J. e o cardeal Dom Sebastião
Leme do Centro Dom Vital e da revista A Ordem.
Em carta de Alceu a Tristão, no dia 31 de janeiro de 1969, narra a volta
ao catolocismo dizendo “adeus à disponibilidade”. Afinal o que aconteceu no dia
15 de agosto de 1928, foi um marco decisivo em minha própria existência. Era
uma volta à pia do meu batismo”.
A atitude de Alceu assim foi por ele expressa:
“De modo que o catolicismo nada tem de conservador em política ou de clássico em arte. Jackson e Mário de Andrade julgavam que a Igreja estava necessariamente ligada a certas formas de arte e de política, isto é, à defesa da Autoridade e ao Classicismo. E por isso nem um nem outro podiam compreender a minha ‘contradição’ de procurar ser ao mesmo tempo: católico em religião, tomista em filosofia, democrata em política, e modernista em arte”.( Teles: 403)
Alceu continuava a produzir artigos, a escrever livros, a administrar a
editora AGIR e a minisitrar aulas na Faculdade de Letras da Universidade do
Distrito Federal. Realizou concurso de cátreda com a apresentação e defesa do
livro Estética Literária, publicado em livro em 1945.
Desde 1929 Tristão de Ataíde afastou-se, em parte, das atividades
estéticas e literárias para entregar-se às especulações e investigações do
filósofo, do sociólogo e do educador, debruçado sobre os mais queimantes
problemas de uma civilização em crise – embora deles participasse com o
frêmito do cristão e do autêntico humanista.
Exímio conferencista, era solicitado a apresentar-se perante numerosas
assembléias sobre assuntos os mais diversos da política, da religião e da
sociologia e da pedagogia.
77
A vida de família, de professor, de escritor e de adminsitrador ocupava-
lhe o tempo todo, reservando sempre horas para leitura, para a meditação e
para escrever livros e artigos para o Jornal do Brasil e para a Revista A Ordem.
Veio a falecer no dia 14 de agosto de 1983, pouco antes de completar
90 anos. Carlos Drummond de Andrade dedicou maravilhoso epicédio ao
grande amigo – Alceu Brilhante Espelho, que conclui com os versos:
E lá se vai Alceu, servo de Deus, servo do amor, que é cúmplice de Deus.
(Folha da Tarde, 16/8/1983)
O escritor
Quem perlustrar a vasta bilbiografia de Alceu Amoroso Lima fica
deveras admirado pelo número de obras e pela vasta temática tratada com
séria e eficiente profundidade.
O tema mais versado e preferido é, sem dúvida, a Literatura com 29
títulos entre os quais destacam-se: Afonso Arinos, 1922; Estudos (cinco séries)
de 1927 a 1933; O espírito e o mundo, 1936; Contribuição à história do
Modernismo, 1939; Estética Literária e O Crítico Literário, 1945; Meio século de
presença literária, 1969; Memórias improvisadas, 1973.
O segundo tema tratado com perspicácia e orientado pelo tomismo de
Jacques Maritain é a Filosofia, com 9 obras importantes a atuais: Freud, 1929,
explica as influências da psicanálise nas letras e na vida hodierna; Idade, sexo
e tempo, apresenta três aspectos da existência humana; Humanismo
pedagógico, 1944, estuda a filosofia da educação no choque de ideologias de
Dewe e outros; O existencialismo, 1951, elucida os meandros do movimento
que sacudiu o mundo a partir das obras de Jean Paul Sartre e Gabriel Marcel,
pólos entre o desespero e a esperança; Meditação sobre mundo interior, 1954,
aprofunda a visão e a reflexão sobre o verdadeiro mundo da pessoa em sua
78
interioridade; Existencialismo e outros mitos de nosso tempo, 1956, faz uma
profunda radiografia e sério diagnóstico sobre as conseqüências da filosofia
existencialista e outras formas míticas da vida hodierna; O Espríto universitário,
1959, perscruta a vida e o sentido da universidade, casa da ciência e da
filosofia em debate com a busca de soluções para a crise do século; Pelo
Humanismo ameaçado, 1965, alerta para a situação da pessoa no mundo,
dominado pelo tecnicismo e pelo materialismo.
O seu pensamento e a sua ação de intelectual voltam-se para a
situação da Religião no mundo e no Brasil. E o homem que sabe sentire cum
ecclesia, os 14 títulos falam do seu amor e dedicação à Igreja Católica. Os mais
significativos: De Pio V a Pio XI, 1929, é o itinerário dos últimos séculos do
papado; Elementos de ação católica, 1938, esclarece a razão de ser dessa
força tão cara a Pio Xl. A Igreja e o Novo Mundo, 1943, esclarece a ação e o
apostolado desenvolvidos pelos missionários e pelos católicos em terra da
América; O Cardeal Leme, 1943, excelente quadro biográfico de grande
antístite do Rio de Janeiro que conquistou o coração de Alceu e de milhares de
pessoas; Pela cristianização da idade nova (2v.), 1946, sente-se nessas
páginas o palpitar inquieto e sofredor do coração do apóstolo; A vida
sobrenatural e o mundo moderno, 1956, repercute como uma clarinada na
inquietação e na angústia dos dias atuais; João XXIII, 1966, projeta a imagem
perene de luz e de esperaça pelo grande papa Roncalli; Comentário à
Populorum progressio, 1969, o tema religioso e social tão caro ao escritor e ao
católico, é apresentado com força de mestre.
A Sociologia foi o tema estudado, discutido e apresentado em artigos,
em conferências e livros; Preparação à sociologia, 1931, espécie de porta de
entrada ao estudo da ciência social batizada por Augusto Comte; Problema da
burguesia, 1932, e Pela reforma social, 1933, são meditações sobre a realidade
que envolvem a humanidade do século XX; Meditação sobre o mundo moderno,
1960, apresenta os sintomas de desagregação e os remédios de salvação à
79
célula mater da sociedade; Europa e América: duas culturas, 1962, analisa com
cuidado e profundidade as peculiaridades e as linhas de força das duas
vertentes de cultura da atualidade.
A Economia não esteve ausente e não mereceu menos espaço e
cuidados do mestre e polimorfo pensador, múltiplo nos temas e unitário nas
teses e soluções: Economia pré-política, 1932, lança as bases para as reflexões
mais profundas; O problema do trabalho, 1947, é um ensaio de filosofia
econômica, que tanto preocupa; O trabalho no mundo moderno, 1959, e o
Gigantismo econômico, 1964, preocupavam e preocupam ainda hoje, clamando
por soluções.
A Política foi preocupação e tema de estudos de Alceu Amoroso Lima
nas conferências no Centro Dom Vital, nos artigos da revista A Ordem e em
livros; Política, 1932, manual prático para iniciantes; Introdução ao direito
moderno, 1933, analisa as correntes e as direções das ciências jurídicas; No
limiar da idade nova, 1935, apresenta temas para meditação na hora em que se
firmavam os totalitarismos; Europa de hoje, 1951, visão panorâmica sócio-
política do velho continente recém-saído do banho de sangue da II Guerra
Mundial; Revolução, reação ou reforma, 1964, estuda as linhas e os perigos do
movimento de 31 de março. Alceu esteve sempre alerta e independente quanto
à Revolução de 64 sobre a qual escreveu veementes artigos e proferiu
inúmeras conferências clamando pela liberdade e pelos direitos e deveres dos
cidadãos brasileiros, daí proveio a Experiência reacionária de 1968.
O rápido panorama dos escritos de Alceu mostra a vastidão dos
horizontes abarcados por sua visão segura e inconfundível na busca da
Verdade e da liberdade de pensar e agir, dentro da pureza doutrinária do
Cristianismo. Não serão mencionadas as 11 obras traduzidas magistralmente
do francês. A bibliografia apresentada por Gilberto Mendonça Teles no livro
Tristão de Athayde em 1980, os últimos citados são de 1968 ou 1973. Nada
existe da década de 1973 a 1983. A obra é imensa, grande parte dela ainda em
80
manuscritos, em artigos de jornais e revistas. Nota-se algo de estranho quanto
a reedições e a novas edições do imenso tesouro deixado nos escritos de Alceu
Amoroso Lima, que não aparecem.
O crítico literário
Evocar a figura de Alceu Amoroso Lima é trazer para perto de nós o
crítico que diuturnamente acompanhou as letras, as artes, a cultura e a vida do
País e do mundo de 1919 a 1983.
O fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX refervilhavam
de novas idéias decorrentes do choque do intuicionismo de Bergson e Croce
com a tradição do positivismo de Lanson e outros. Alceu Amoroso Lima com as
suas constantes leituras dos mestres franceses e das lições de Sílvio Romero
tomou um caminho apoiado no binômio intuição-expressão, assim conceituado:
“O artista intui para exprimir. E a expressão é apenas o termo final da intuição. De uma à outra não se quebra a linha criadora do artista. Ela apenas se desloca ou desloca-se o artista ao longo dela”. (Teles, XIV)
Marcou época a conferência proferida por Alceu, na Escola Politécnica
do Rio de Janeiro, em 1926, sobre a Beleza e o Número. Inúmeras foram as
solicitações para conferências ao longo de sua longa e produtiva existência. Em
sua visão crítica valorizou a arte da palavra, quando escreveu:
“A expressão verbal literal é a mais ampla e mais compreensiva de todas as expressões da arte! Sendo além disso um elemento de intelectualização” (Teles: XV)
81
No livro A Estética literária assim é conceituada a literatura:
“A mais espiritual das artes. Não só por se servir do mais espiritual dos instrumentos – o verbo, mas ainda por visar o mais espiritual do efeitos – a expressão da alma humana e a representação da vida em geral, traduzida em seu reflexo no espírito” (Lima, 1954)
Em 27 de julho de 1944, Alceu Amoroso Lima escreveu o prefácio de O
crítico literário dedicado aos leitores e alunos, do que se destaca:
“Se a minha vida de crítica e de crítico está contida no longo diálogo com os meus leitores e com os meus alunos, não podia deixá-los alheios a esta tentativa de balanço. Quando comecei, em 1919, a fazer crítica literária, não tinha nenhum programa em mente. Há três formas correntes de crítica literária – a da conversa, a do ensino e a da escrita. Todas elas nascem da transposição do monólogo em diálogo da vida interior em comunicação, do caminho que nos leva à Mística para o caminho que nos leva à Arte. (Lima: 1954)
A atividade de Alceu A. Lima nos 64 anos de exercícios de crítica
sempre esteve no jogo do monólogo e do diálogo com o público – alunos,
ouvintes ou leitores: O diálogo se prolonga por todo esse tempo e continuará
enquanto houver crítica literária.
Os livros fundamentais foram escritos após décadas de diálogos
transcritos em artigos, horas de aula ou conferências. A Estética literária e o
Crítico literário, escritos em 1944 e publicados em 1945, tiveram a 2ª edição em
1954 num só volume, na coletânea das obras completas de Alceu Amoroso
Lima, edição da livraria AGIR Editora.
O crítico literário se desenvolveu em quatro capítulos que
consubstancializam o comportamento de quem faz crítica. O crítico se
apresenta em face da obra, em face do autor, em face da crítica e por fim em
82
face de si mesmo. Ao encerrar as páginas conclusivas de O Crítico literário
assim se exprimia, em julho de 1944:
“Só aprendemos, realmente conosco mesmo. É possível, entretanto, que o confronto dessa vivência com as esperanças, os projetos ou as saudades de outros oficiais do mesmo ofício ou de simples leitores interessados na vida das idéias, possa trazer algum benefício a outros espíritos. Basta isso para que estas páginas se sintam justificadas. E não se julguem deslocadas ou inúteis, nesta hora em que a tensão de todo o universo se volta para os estertores da luta gigantesca, cujo próximo fim desperta em todos os homens de responsabilidade no mundo de preocupações e de esperanças. A crítica literária delas participa com toda a ansiedade. Pois é vivida em união com todas as angústias e vicissitudes dos nossos irmãos ou apenas a sombra de uma vaidade vã...” (Lima: 1954)
Alceu Amorso Lima foi crítico literário na análise e estudo de autores,
da historiografia literária, no estudo e meditação dos temas filosóficos, nas
discussões sobre religião e catolicismo, nos problemas sociais, nos problemas
jurídicos, políticos e econômicos, nos problemas psicológicos e pedagógicos e
nos problemas brasileiros e memórias. Em toda a sua vasta e sólida bibliografia
foi o crítico, o analista profundo e sereno, o observador arguto e atento, tudo era
estudado, tudo era pesado e avaliado no verdadeiro discernimento crítico.
Muitos cursos monográficos poderiam ser estruturados no estudo dos
livros de Alceu Amoroso Lima para quem “A crítica tem sido, para mim, uma
visão da vida através das obras alheias e, simultaneamente, uma concepção
das obras alheias através da vida...”.
Nas duas obras citadas – A Estética Literária e O Crítico Literário, nas
cinco séries de Estudos e em outras obras, propugnou para uma atividade
crítica aberta, para a crítica ontológica, nos passos de Charles Moeller, na
Littérature du XXème siècle et Christianisme, ao elogiar o grande crítico belga
estabelece a própria imagem da crítica ontológica, não restrita a métodos ou a
visões parciais da realidade artística e humana.
83
“O que vemos no caso Moeller, é um critério prévio de caráter ontológico, que não prejulga em nada o valor estetico das obras nem muito menos pretende silenciar ou submeter os autores a qualquer censura prévia. Trata-se de iluminar as obras pelos focos da verdae integral, natural e sobrenatural e ver em que ângulo elas se colocam, em face dessa luz. O leitor que aceite ou não essa focalização. Mas não pode rejeitar a iluminação. Pois o que carcteriza um critério ontológico, à luz da razão e da revelação, é não diminuir em nada o real. A luz do critério integral tanto ilumina esses planos dos limites do sensível ou do puramente racional. Daí sua objetividade, a sua clarividência, a sua penetração crítica”. (Lima: 1969)
Alceu sempre será “radiante espelho” conforme os versos candentes e
saudosos de Carlos Drummond de Andrade, escritos na contemplação e na
despedida do grande crítico literário, do grande apaixonado pela liberdade e
defensor acérrimo da VERDADE perene e bela.
Ao concluir estas linhas vai a citação da estrofe central do poema
já referido: Lá se vai Alceu: as letras não o limitam no paraíso da sensualidade das palavras que substituem coisas e sentimentos, diluindo o sangue de existir. Para além das letras restam indícios mais luminosos de uma insondável, solene realidade de que muitos tentam aproximar-se com a cegueira de seus pontos de vista e a avidez de sua insatisfação.
E conclui o poema com o dístico:
E lá se vai Alceu, servo de Deus, servo do amor, que é cúmplice de Deus.
(Folha da Tarde, 16/8/1983)
84
Bibliografia
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1991.
LIMA, Alceu Amoroso. A estética literária e o crítico. Rio de Janeiro: AGIR, 1954.
TELES, Gilberto mendonça. Tristão de Athayde. Teoria, crítica e história literária
seleção. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1980.
______.Vanguarda européia e Modernismo Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1976.