polÍtica internacional

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5/27/2018 POLTICAINTERNACIONAL-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/politica-internacional-5622932c96f89 1/168  POLÍTICA INTERNACIONAL Fichamento do livro Relações Internacionais do Brasil, vol. 1: temas e agendas. Orgs: Henrique Altemani e Antonio Carlos Lessa. Capítulo 1 –  A ação internacional do Brasil em um mundo em transformação: conceitos, objetivos e resultados (1990-2005) –  Amado L ui z Cer vo O fim da guerra fria modificou a agenda internacional de modo sutil. O fim engendrou novas ideias, novas esperanças, novas percepções. Parecia substituir o mundo da segurança pelo do comércio, promotor da riqueza das nações. O fim da ordem  bipolar, 1989, parecia sugerir ao Brasil uma alteração radical em sua estratégia de inserção internacional. Por um lado, no âmbito do multilateralismo, a postura de autonomia cedeu à postura coletiva no trato de temas de agenda internacional, sejam os temas negociados no Gatt, OMC, propriedade intelectual, investimentos, comércio de  bens e serviços, desregulação econômica, fim dos sistemas de preferência; sejam os temas negociados em outros órgãos, particularmente no sistema ONU, como meio ambiente, direitos humanos e segurança global. A ação externa do Brasil adquiriu, por outro lado, impulso unilateral, desde 1990: sem negociação e sem contrapartida dos  países centrais, mas em nome daquelas forças de globalização e seguindo os passos de outros países da América Latina, o o governo brasileiro liberalizou o mercado, os fluxos de capital e a gerência da dívida externa. Retonando aos conceitos de neoliberalismo, desenvolvimento e competição internacional para definir as três tendências de fundo observadas na política exterior e nas relações internacionais do Brasil de 1990 até os nossos dias. Vale dizer que nesses 15 anos o País pouco avançou sobre a tendência de fundo das relações internacionais e  permanece, portanto, assentado na periferia do mundo. - Neoliberalismo: não foi concebido pela periferia . era uma porposta política de cunho monetarista, concebida nos EUA por técnicos do FMI e do Banco Mundial e conceituada por autoridades, com o fim de debelar a crise da dívida da América Latina. Essa propostas, por sua vez, lançavam raízes no pensamento econômico que inspirou experiências da Inglaterra e dos EUA nas décadas de 1970 e 1980. Um consenso foi se formando no sentido de sacudir o capitalismo por meio do choque de mercado que o

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POLTICA INTERNACIONAL

Fichamento do livro Relaes Internacionais do Brasil, vol. 1: temas e agendas. Orgs: Henrique Altemani e Antonio Carlos Lessa.

Captulo 1 A ao internacional do Brasil em um mundo em transformao: conceitos, objetivos e resultados (1990-2005) Amado Luiz CervoO fim da guerra fria modificou a agenda internacional de modo sutil. O fim engendrou novas ideias, novas esperanas, novas percepes. Parecia substituir o mundo da segurana pelo do comrcio, promotor da riqueza das naes. O fim da ordem bipolar, 1989, parecia sugerir ao Brasil uma alterao radical em sua estratgia de insero internacional. Por um lado, no mbito do multilateralismo, a postura de autonomia cedeu postura coletiva no trato de temas de agenda internacional, sejam os temas negociados no Gatt, OMC, propriedade intelectual, investimentos, comrcio de bens e servios, desregulao econmica, fim dos sistemas de preferncia; sejam os temas negociados em outros rgos, particularmente no sistema ONU, como meio ambiente, direitos humanos e segurana global. A ao externa do Brasil adquiriu, por outro lado, impulso unilateral, desde 1990: sem negociao e sem contrapartida dos pases centrais, mas em nome daquelas foras de globalizao e seguindo os passos de outros pases da Amrica Latina, o o governo brasileiro liberalizou o mercado, os fluxos de capital e a gerncia da dvida externa.Retonando aos conceitos de neoliberalismo, desenvolvimento e competio internacional para definir as trs tendncias de fundo observadas na poltica exterior e nas relaes internacionais do Brasil de 1990 at os nossos dias. Vale dizer que nesses 15 anos o Pas pouco avanou sobre a tendncia de fundo das relaes internacionais e permanece, portanto, assentado na periferia do mundo. - Neoliberalismo: no foi concebido pela periferia . era uma porposta poltica de cunho monetarista, concebida nos EUA por tcnicos do FMI e do Banco Mundial e conceituada por autoridades, com o fim de debelar a crise da dvida da Amrica Latina. Essa propostas, por sua vez, lanavam razes no pensamento econmico que inspirou experincias da Inglaterra e dos EUA nas dcadas de 1970 e 1980. Um consenso foi se formando no sentido de sacudir o capitalismo por meio do choque de mercado que o desvencilhasse da interveno do Estado e do carter social e estimulasse a competio. Tinha razo Enrique Iglesias, ao qualificar os anos 80 de dcada perdida para o desenvolvimento na Amrica Latina. Enquanto os pases desenvolvidos redefiniam o papel do Estado, liberando as foras de mercado, e revolucionavam os modos de produo, introduzindo progressos da cincia e da tecnologia e globalizando fluxos de capital, o continente latino-americano asfixiado por um estatismo endmico e sria crise de endividamento, recorria a polticas monetrias e fiscais acrobticas para compensar, sem xito, a reduzida abertura de sua economia ao exterior, a defasagem tecnolgica, a falta de capital e o imobilismo da capacidade produtiva. A reforma do Estado assegurou ampla liberdade de ao e empreendimento, a reduo da interferncia do Estado na vida das pessoas. Numa segunda abordagem, o neoliberalismo cria condies de sustentao do desenvolvimento por meio de ordenamento jurdico e poltico estvel, com transparncia nos gastos pblicos, tendo, por fim, a criao de regras e instituies favorveis expanso do setor privado. No Brasil, aconteceu um debate de como o pas deveria se inserir no cenrio internacional. O presidente Cardoso no revelava com tanta convico, mas o seu instinto, quando ministro do MRE, abordava e tinha como proposta que o Brasil devia: reforar o multilateralismo e insistir na reforma dos seus rgos, como a ONU, particularmente, o Conselho Econmico e Social (Ecosoc), o Banco Mundial, o FMI e o Gatt; exercer funo assertiva diante dos novos temas globais, como meio ambiente, direitos humanos, desarmamento e soluo de conflitos; aproximar-se de coalizes globais e regionais; priorizar os vizinhos da Amrica do sul, dando nfase ao Mercosul, porm sem prejudicar as relaes com os pases avanados; reforar o Atlntico sul; obter insumos de desenvolvimento por meio da cooperao bilateral e das decises multilaterais; enfim, relanar o tema do desenvolvimento na agenda internacional.Com efeito, do receiturio neoliberal norte-americano chegaram duas ideias-fora. Em primeiro plano, e em substituio ao crescimento econmico, a ereo da estabilidade monetria com valor supremo da poltica econmica. As derivaes dessa primeira ideia-fora converteram-se logo em prticas de impacto sobre o conjunto econmico e as relaes internacionais, a cargo do Banco Central, coadjuvado por outras autoridades: metas de inflao, juros alto, carga tributria ascendente, supervit primrio e contrao da massa salarial. A segunda ideia-fora vinha embutido na primeira: a privatizao, que necessita da estabilidade monetria para atrair o capital estrangeiro.ademais, porque haveria de se por em prtica mediante alienao dos ativos nacionais e empresas estrangeiras. Duas crises abalaram as convices do Presidente e a arrogncia da sua equipe de governo, de pensamento nico: a crise do Real, em 1999, e a crise energtica de 2001. Ambas revelaram os limites do modelo neoliberal e reforaram as crticas por parte da opinio pblica e da intelectualidade. O mundo passava por alteraes, e o Brasil deveria sepultar velhas ideias, valores, princpios e padres de conduta: A transio de um mundo cujo eixo era a segurana e a confrontao militar para um mundo dominado pela temtica econmica e social nos oferece hoje uma posio de relevncia, que pode ser ainda maior no futuro. Para Cardoso, a ideia de mudana continha a de ordem internacional, no mais dominada por Estados, mas por uma rede de conexes entre foras econmicas. Essas novas condies aconselhavam a mudana da poltica exterior do Brasil na direo da desvinculao do Estado e da agregao do pas rede econmica global. A poltica exterior, segundo ele, foi comandada por trs mudanas internas: consolidao da democracia, abertura econmica e estabilidade monetria. Dessa forma, construiu-se um novo Estado com funo de agir nos trs setores internamente, e condicionar a tal as relaes exteriores. Contudo, suas dvidas no o abandonavam: os fluxos financeiros seguem desgovernados e ameaam as economias em desenvolvimento; a governana global insuficiente e deve ser reforada por meio das decises multilaterais; os frutos da globalizao s podem ser equitativamente distribudos se duas questes urgentes forem solucionadas pela regulao internacional, o sistema multilateral de comrcio e o controle das crises financeiras que afetam os pases emergentes. Essa ideia de mudana era uma filosofia, de inspirao kantiana, que punha f na ordem internacional, feita de harmonia universal, a ser definitivamente erigida (criadas) no na era da globalizao pelas regras da governana global. Ao tomar esse rumo, o neoliberalismo encontrou-se com a f e converteu-se em mais um fundamentalismo: o latino-americano do sc. XX, como se as grandes potncias enfraquecessem seus Estados, seus sistemas de poder e suas polticas introspectivas com a finalidade de derramar sobre o mundo, de forma permanente, a generosidade e a equidade.

- O desenvolvimentismo: a opinio pblica desconfiou do discurso da equipe do governo Collor e inspirou o governo de substituio de Itamar franco (1992-94). Que freou o mpeto neoliberal com a promoo do desenvolvimento e avalorizao do nacional. Assim, as dvidas de Cardoso na cinduo das relaes internacionais, ao depararem-se com exigncias realistas da sociedade, abriram espao para preocupaes e para alguma ao no sentido de recuperar parmetros da tendncia histrica da poltica exterior, a promoo do desenvolvimento. Os desenvolvimentistas eram, por certo, vistos com repugnncia pelos dirigentes, que os qualificavam de retrgrados e saudosistas. Mas eles anteviam resultados do neoliberalismo que desejavam evitar. O estudo de Heloisa silva revela que o modelo substitutivo de importaes, se existiu no ultrapassou 1960. Na realidade, nunca foi concebido pelos estadistas brasileiros como modelo. O modelo era o paradigma desenvolvimentista, substituio de importaes, uma consequncia, como ocorreu com outros pases capitalistas em determinada fase da sua maturao econmica. Homem da globalizao, Cardoso estabeleceu a seguinte premissa para sua ao externa: o governo brasileiro garante a estabilidade monetria, a abertura do mercado e do sistema produtivo, bem como a regulao sugerida pelo capitalismo, e o setor externo prov o desenvolvimento com investimentos, empresas e tecnologia. Homem contraditrio, confidenciou, contudo, ao estadista portugus Mrio soares que considerava Getlio Vargas, JK e Ernesto Geisel os maiores estadistas brasileiros em razo da viso de desenvolvimento. Esses presidentes foram hbeis promotores do outro desenvolvimento, o mais autnomo possvel em termos de finanas, empresas e tecnologias. Cardoso percebeu cedo os entraves postos pelo mundo a seu percurso. Um dos grandes desafios que enfrentamos pode ser identificados no esmaecimento do grande debate internacional sobre as questes do desenvolvimento. Ademais, o desenvolvimento estava sendo freado por obstculos no tarifrios dos mercados do norte e por outras medidas unilaterais pelas quais os pases ricos discriminavam os pases em desenvolvimento: altas taxas de juros; restrio transferncia de tecnologia; baixo fluxo de capital para o sul. A seu ver, a Amrica Latina havia-se insurgido contra o Estado e apoiado a sua atrofia pelo liberalismo. Convinha, sim, substituir a tese liberal do Estado mnimo pela do Estado socialmente necessrio. Percebemos, em concluso, que o paradigma desenvolvimentista de 60 anos agonizava. Aquele feito de reforo do nacional por meio de empresas, conhecimento e tecnologia, mercados interno e externo, com crescimento econmico em primeiro palno, ao arrepio do equeilibrio fiscal e da estabilidade monetria. Quando se recuperou o tema de desenvolvimento como objetivo da poltica exterior, por volta de 1992, ele ser da por diante qualificado. Ser contaminado pelo filosofia neoliberal da mudana, apesar de continuar como imperativo da poltica exterior. A diplomacia brasileira percebeu e aceitou dois corretivos: que o desenvolvimento passasse dependncia dos pases ricos, por meio de instrues e decises doa OMC, do banco Mundial e do FMI, e que fosse vinculado, com ou sem hipocrisia, aos novos temas da era da globalizao, democracia, meio ambiente, direitos humanos, direito das minorias, entre outros. A doutrina brasileira do desenvolvimento atualizou-se ao unificar os discursos em torno dos valores polticos dos pases ocidentais desenvolvidos. Aceitou limites para a soberania, fez concesses e corrigiu o conceito de cooperao externa, alada condio de promotora do desenvolvimento pela via do setor privado sem o concurso de foras internas. Essa correo encaminhou o pas para o desenvolvimento associado promotor de dependncias estruturais, evidenciadas nas crises de 1994-95, no Mxico, 1998, na sia e na Rssia, 1999, no Brasil, 2001-2005, na Argentina. Por isso mesmo, a poltica exterior da era Cardoso recuperou com maior mpeto o propsito de reformar a ordem internacional por meio do multilateralismo. Sua energia no diferia da luta internacional diplomtica dos anos 1960 a 1980, porm Cardoso era menos pragmtico e mais messinico, ao abandonar o duro jogo das relaes internacionais e revestir-se de uma aurola de democracia e estabilidade.

- A competio internacional: o modelo de desenvolvimento implementado durante os 60 anos anteriores voltara-se para o mercado interno e para a criao de um ncleo central robusto da economia, sobre o qual pretendeu-se mebasar o poder nacional. Descurava a competio internacional, mesmo porque dispunha de um protecionismo exacerbado que no a favorecia. A filosofia da mudana da era da globalizao trouxe para as preocupaes polticas interna e externa o desafio da competio. Cardoso requeria uma adaptao da periferia, que abandonasse as ideias obsoletas de explorao, confronto capital-trabalho, desenvolvimento nacional autrquico, protecionismo, viso cepalina do desenvolvimento e promovesse a injeo de conhecimento no processo produtivo; enfim, a competio. Segundo a percepo de Celso Amorim, em 1994, o pas transitava do modelo substitutivo de importaes para a insero competitiva. O primeiro modelo fora abalado em razo da crise da dvida dos anos 1980 e vinha sendo corrigido, ainda naquela dcada, por medidas de liberalizao. Aps o choque da abertura econmica do governo Collor de Melo, a mdia tarifria sobre importaes reduziu-se a 14%, em 1993. O governo Itamar Franco tomou preucaes diante da onda de reduo tarifria, acelerando a integrao no Mercosul, propondo a ALCSA e negociando com firmeza nos foros multilaterais globais. Esses cuidados eram requeridos porque os pases centrais corromperam o liberalismo com medidas protecionistas que Amorim qualificava de segunda gerao, tais como antidumping, proteo agrcola, quotas de importao, normas sanitrias e fitossanitrias, acordos ditos de restries voluntrias de exportao, comrcio administrado, sistema de eco-etiquetagem, regras preferenciais nos blocos que impunham controles de origem para setores como o automobilstico e o txtil no NAFTA, vnculo entre comrcio e padres trabalhistas. O reforo do regionalismo e do sistema multilateral de comrcio eram remdios esperteza dos ricos, mas no bastavam. Ao Brasil, convinha, sim, uma especializao dinmica, que lanasse sobre a arena global seus nichos de competitividade. Cardoso era mais propenso a aprofundar o modelo neoliberal, porm no se esqueceu das preocupaes da diplomacia brasileira no que diziam respeito competio internacional. Pensou que seus esforos na presidncia deveriam pr termo ineficiente interveno do Estado na economia: nada justifica de que a tese de que o Estado seja melhor empresrio do que a iniciativa privada, afirmou a empresrios norte-americanos, dizendo-lhes que o Brasil se convertera na terra das oportunidades. Deu prosseguimento a um vasto programa de privatizaes com dois objetivos: retirar aquele Estado ineficiente da atividade econmica e confi-la concorrncia do mercado. Decidiu, ademais, favorecer o empreendimento estrangeiro, tendo em vista sua produtividade mais elevada em relao ao empreendimento nacional.Houve algo prprio na estratgia externa brasileira de ento, Cardoso no afastou, como fizera a maioria dos dirigentes da Amrica Latina neoliberal em seus respectivos pases, a possibilidade de acionar o apoio logstico do Estado com o fim de criar empresas brasileiras competitivas. Tanto Cardoso quanto Amorim insurgiam-se contra o modelo anterior de desenvolvimento que pretendia produzir tudo, sendo competitivo em quase nada. O destino do Estado de se converter em varivel dependente dessa fora aglutinadora que eliminou a dicotomia centro-periferia. A prpria democracia se nutre do livre-mercado, em uma simbiose de resultados positivos para o desenvolvimento. Esse que visto como resultado das mudanas da poltica exterior em direo a trs objetivos: democracia, abertura crescente da economia e estabilidade econmica. Tudo isso significa atualizar o nosso discurso e a nossa ao externa. Cardoso no inventou a diplomacia presidencial. Essa conduta vinha de longe na tradio brasileira, porm tomou com ele nova intensidade. Vinculou-se poltica de desenvolvimento por se haver associado diplomacia empresarial. O modelo fechado anterior a 1990 e a autossuficincia do Itamaraty criaram entraves conexo entre empresa privada e poltica exterior.

- A correo do modelo em 2003Durante a campanha eleitoral, convenceu-se a opinio pblica da necessidade de mudar o modelo de desenvolvimento econmico e social e a insero internacional do pas. A mudana de modelo foi concebida em dois sentidos: sua face interna se propunha a incluso social de mais de trinta milhes de excludos e sua face externa a superao da vulnerabilidade produzida pelos dficits do comrcio exterior e da balana de pagamentos, responsveis por enorme dvida externa. O primeiro aspecto da mudana envolvia, de perto, aquela funo do Estado. Para Cardoso, como se sabe, a ineficincia do Estado fazia dele um empecilho ao desenvolvimento. Depois de se retirar da atividade econmica, cabia-lhe to somente assegurar a estabilidade que o merca faria o que mais fosse necessrio. Para Lula, o Estado continua responsvel pela estabilidade econmica, porm no existe mais a f na capacidade do mercado em prover por si as necessidades do desenvolvimento. o Estado vai recobrar, assim, sua funo indutora: A ao diplomtica do Brasil estar orientada por uma perspectiva humanista e ser, antes de tudo, um instrumento do desenvolvimento nacional (Lula, em seu discurso de posse).As linhas de fora da ao externa de Cardoso tomaram quatro direes. em primeiro lugar, o multilateralismo, em razo da crena segundo a qual ele proveria o mundo da globalizao de um ordenamento feito de regras transparentes, justas e respeitadas por todos, alm de benficas para todos. Comrcio internacional, fluxos financeiros, meio ambiente e desenvolvimento, segurana e direitos humanos teriam soluo perene no seio desse ordenamento. por meio de uma segunda linha de ao, surpreendente e desconfiado, Cardoso protegeu o pas de eventuais males de uma globalizao, que cada vez mais chamava de assimtrica, e promoveu a integrao no Mercosul e a unio da Amrica do Sul. Em terceiro lugar, ao estimular a aproximao dos EUA, a ao de Cardoso tropeou no unilateralismo da potncia hegemnica global, que punha entrave ao estabelecimento daquele ordenamento to desejado. Finalmente, Cardoso buscou a aproximao da Unio Europeia e no encontrou entrave poltico, mas firma defesa de interesses do bloco. As quatro linhas de fora da ao externa de Cardoso, marcadas pela conexo com o Primeiro Mundo, como se a ele pertencesse ao pas, implicaram perdas e retiradas: do Oriente Mdio, da frica sub-sarica, do Japo e da China, da Rssia e do leste europeu. Implicaram, tambm, equvocos estratgicos de efeitos perniciosos. O cmbio sobrevalorizado, associado abertura do mercado, produziu o dficit do comrcio. Este agravou as contas externas, apesar da venda de ativos de estatais para empresas estrangeiras. A abertura estabelecida como estratgia de ao externa comprometeu a insero madura do pas no mundo da globalizao, que no contou com estratgia alguma. Assim como a dcada de 1980 foi a chamada de dcada perdida, a de 1990 no passou de uma dcada de iluses. Iluso de divisas, iluso da liberdade, excluso social. Lula tambm orientou sua ao externa em quatro direes. Todas enfeixadas no propsito de mudar, com humanismo de desenvolvimento, o modelo interno e de insero internacional, por meio de ao marcada pelo ativismo responsvel e confiante, nas palavras de Celso Amorim. Na esfera da ao multilateral, convinha tirar o pas da iluso kantiana do ordenamento harmonioso e jogar o jogo duro das relaes internacionais que as grandes potncias mantm. O smbolo dessa outra viso foi a conduta da diplomacia brasileira durante a Conferncia da OMC em Cancun, em 2003. As estruturas hegemnicas do capitalismo que conjugavam interesses europeus e norte-americanos foram, nessa ocasio, abaladas por uma coalizo de pases emergentes. Negociava-se, com efeito, a troca de vantagens, porm o G20, grupo criado ao sul por influncia brasileira, surpreendeu os ricos ao condicionar concesses na rea industrial e de servios sofisticados a concesses na rea agrcola, com o fim dos subsdios e de entraves entrada de produtos do sul nos mercados do norte. Essa coalizo ao sul abriu caminho para a criao de outras entre pases emergentes e as negociaes multilaterais de alcance global no mais estavam no controle decisrio das estruturas hegemnicas do capitalismo. Em grande medida, a mudana no modo de conduzir as negociaes vinham da iniciativa da diplomacia. A segunda frente da ao externa de Lula tinha por objetivo atenuar a vulnerabilidade herdada da fase anterior. A vulnerabilidade externa, ao ponto que se havia alado, comprometia desenvolvimento e a eliminao de disparidades internas. O novo governo decidiu enfrentar trs condies de vulnerabilidade: dependncia tecnolgica, empresarial e financeira. Alm de reforar o ncleo central robusto da economia nacional, estatal ou privada, Lula empenhou sua diplomacia presidencial para promover negcios brasileiros no exterior. Pela primeira vez, concebia-se a internacionalizao da economia brasileira como movimento de expanso de empresas no exterior, com apoio logstico do Estado. Por outro lado, o comrcio, alm de igualitrio troca real de oportunidades haveria de prover as contas externas de grandes supervits para amenizar o dficit. Dessas iniciativas, somadas a gerao de supervit fiscal interno, resultaria atenuao das dependncias aprofundadas na era Cardoso. A Amrica do Sul converteu-se em uma frente de ao externa da Lula no original, porquanto vinha de iniciativas de Cardoso, porm agora com nova identidade. A ideia de construo de uma unidade poltica, econmica e de segurana na Amrica do Sul alou-se ao nvel mximo das preocupaes. Mas o sonho da unidade sul-americana deparava-se com obstculos operacionais, como a inclinao de alguns governos para o lado dos EUA, cujo tratado privilegiado de comrcio buscavam com desespero, e a moratria da Argentina, que a retirou da comunidade financeira internacional, entre 2001 e 2005. A ao externa de Lula, enfim, ps em jogo o acumulado histrico da diplomacia brasileira, composto de valores, princpios e padres de conduta que reforam o poder nacional e a capacidade de negociao internacional. Trs padres de conduta foram sacrificados pela fase anterior: a independncia de insero internacional, o realismo evoludo para pragmatismo e o desenvolvimento nacional como vetor de poltica externa. Lula os recuperou, em certa medida, reforando ainda os demais componentes do acumulado: autodeterminao e no interveno, com soluo pacfica de controvrsias, juridicismo, cordialidade oficial no trato com a vizinhana, parcerias estratgicas como eixos privilegiados de ao externa e multilateralismo normativo.

- Avaliao de resultadosA desideologizao do fim da guerra fria trouxe para o Brasil a ideologizao do livre mercado, no bojo do neoliberalismo. No porque, em princpio, o livre mercado fosse nocivo aos interesses brasileiros, mas porque foi o mercado brasileiro cedido em contrapartida, precisamente quando o norte mantinha ou reforava seu protecionismo agrcola, tecnolgico e industrial. Esse erro de percepo tornou a era Cardoso destrutiva do patrimnio nacional e, consequentemente, do poder nacional: venda de empresas brasileiras no exterior; endividamento em ritmo exponencial e sacrifcio da renda de trabalho e do capital para saldar compromissos da dvida pblica; comprometimento de tecnologias desenvolvidas no pas e de sua expanso no seio do sistema empresarial. Os danos do neoliberalismo subserviente foram graves: 86 bilhes de dlares arrecadados com as privatizaes foram aplicados em despesa de custeio, e no em investimentos geradores de emprego. A ratificao dos tratados de Tlatelolco e do Tratado de No-Proliferao Nucelar foram feitos na iluso de que o pas receberia tecnologias em reas sensveis, o que no ocorreu. Os desequilbrios do setor externo interromperam a tradio de fazer da poltica exterior um instrumento de promoo do desenvolvimento. Os resultados eleitorais da Amrica Latina, que derrubaram quase todos os governos liberais dos anos 1990 at a eleio de Tabar Vzquez, no Uruguai, em 2005, corresponderam a um juzo negativo da opinio acerca do agravamento da excluso social. Os dois primeiros anos do governo Lula apresentaram resultados que evidenciavam o esforo de remediar as contas externas. O dficit em transaes correntes estimulava o crescimento da dvida externa durante a era Cardoso. Em seu primeiro ano de governo, Lula obteve o primeiro supervit de 4,1 bilhes de dlares em 2003 e um segundo, em 2004, de 11, 6 bilhes. Com isso, a herana da enorme dvida externa deixada por Cardoso comeava a pesar menos nas relaes econmicas internacionais do Brasil. O saldo das contas externas deveu-se, sobretudo, ao forte incremento dos saldos do comrcio exterior, 24,7 bilhes de dlares em 2003, 33, 6 em 2004. No incio de 2005, o Brasil ultrapassou os cem bilhes de dlares de exportaes anuais. Lula atenuava a vulnerabilidade externa e ao mesmo tempo relanava o crescimento econmico, que atingiu 5,2%, em 2004. Esses resultados forma alcanados, paradoxalmente, em razo do travamento das negociaes comercias globais, que a imprensa internacional tributou firmeza que a diplomacia de Lula conduzia, desde a reunio da OMC, em Cancun, em 2003, as negociaes igualitrias entre ricos e pobres e influa sobre o conjunto dos pases emergentes. Mas as negociaes regionais para a formao da Alca tambm malogravam, enquanto os EUA no se dispunha a abrir, de forma igualitria, seu prprio mercado e enquanto colocavam em risco a vocao industrial do Brasil.A expanso do comrcio com a China, a ndia e a Amrica do Sul ocupou a diplomacia, apesar das queixas de empresrios e da imprensa de direita de que o governo no dava prioridade a tratados de comrcio co os pases vanados. Na realidade, ao sul movia-se o Brasil com mais efeito, usando parcerias bilaterais, coalizes de pases ou os processos de integrao na Amrica do sul, tendo em vista, precisamente, dobrar os pases ricos pela negociao multilateral e lev-los a eliminao de subsdios agrcolas e entraves agrcolas e industriais entrada de produtos do sul. Uma frente de pases emergente se configurava, na liderana brasileira, como verso atualizada e realista, em nada ideolgica, do velho terceiro-mundismo.

Captulo 2 Os desafios de uma ordem internacional em transio

2.1 Uma ordem em transio As rupturas profundas na ordem internacional resultaram, frequentemente, de processos bruscos de mudana. O pressuposto consensual que tais mudanas destruram as bases estruturais de uma era para substitu-las por bases inteiramente novas. a ordem internacional da guerra fria foi substituda, no por urna nova ordem inteiramente consolidada, mas por urna ordem em transio. Na guerra fria, consenso admitir-se que a governana global do sistema mundial era assegurada pela polarizao entre as polticas de mtua conteno adotadas pelas potncias hegemnicas, bem corno das instituies que da decorriam. Isso no ocorre atualmente. Regimes e coalizes de diversos tipos foram criados para suprir as deficincias das Naes Unidas no exerccio da governana, como o G-7 ou a OCDE, no que diz respeito governana econmica e financeira. Assim, apesar de seu poder incontestvel sobre o sistema decisrio do CS/ONU, do sistema monetrio internacional e do sistema internacional de comrcio, nem o grupo de potncias vencedoras da Segunda Guerra nem o grupo de naes mais ricas alcanam um patamar eficaz de coordenao capaz de conter, satisfatoriamente, as principais ameaas paz e prosperidade global, como a proliferao nuclear, o terrorismo, os diversos trficos e o risco de catstrofes econmicas e financeiras ou ambientais. O fim da guerra fria no provocou uma ruptura, mas deu lugar a urna ordem transitria cujos contornos so destitudos da estabilidade capaz de lhe conferir permanncia, tampouco, permitem prever, inequivocamente, as condies de uma eventual futura estabilizao. Tanto pode favorecer o surgimento de uma nova disputa hegemnica, compatvel com uma nova polarizao, como conduzir a urna ordem hegemnica, ou, ainda, resultar em urna ordem em equilbrio. As relaes internacionais contemporneas incorporam novos processos internacionais, criam atores que se organizam em tomo de novas questes. Cinco processos reforam-se mutuamente nas relaes internacionais contemporneas: so eles os fenmenos de despolarizao, de dissociao hegemnica, de transnacionalizao, de desconteno e a nova vulnerabilidade do Estado. No obstante a liderana poltica americana e sua supremacia militar global, a superpotncia j no detm a primazia da competitividade, mas a compartilha com um grupo de pases, sem cuja cooperao, nem mesmo sua supremacia militar poderia ser exercida em carter permanente. Isso afasta de imediato a hiptese de uma hegemonia global. Tampouco, o fim da guerra fria resultou na criao de um novo polo militar oposto aos americanos, processo que, se no pode ser afastado a longo prazo, ainda no est delineado no horizonte visvel. Ainda, as potncias capazes de rivalizar com os Estados Unidos no plano econmico no constituem um polo oposto superpotncia em qualquer sentido da palavra, nem em termos polticos e militares, nem em termos comerciais, nem em termos de organizao da economia, ou em termos ideolgicos ou de valores. Isto , todos os candidatos a rivais dos Estados Unidos simultaneamente rivalizam, cooperam e se confrontam, limitadamente, com a superpotncia e entre si. Mas rigorosamente no constituem um polo oposto em nenhuma das dimenses que definem a cooperao e o conflito nas relaes internacionais. Hegemonia dissociada - ao contrrio de uma convergncia entre as supremacias poltica, militar e econmica, que so as bases da hegemonia, temos uma dissociao entre essas dimenses. Os dois gigantes econmicos so anes polticos, e o gigante poltico no capaz de "pagar suas prprias guerras", como sugeriu Henry Kissinger. Est longe de ser um ano, mas precisa da boa vontade e do consentimento de seus principais rivais em competitividade econmica quando seus interesses internacionais esto em jogo. Embora no necessite empreg-la o tempo todo, a capacidade de ao unilateral condio sine qua non da hegemonia, e sua falta implica a no-efetivao da prpria condio hegemnica.A transnacionalizao - Trata-se da propriedade que tm certos fenmenos de projetar seus efeitos por meio ias fronteiras nacionais. Com isso, os Estados no somente perderam o monoplio da definio da agenda internacional, mas em grande parte essa agenda hoje influenciada pela opinio transnacional, no sentido de que seus temas e ideias, quando no so avanados por organizaes e movimentos no governamentais, s prosperam quando contam com seu beneplcito. A existncia de fenmenos e processos transnacionais no nova. Ambas se devem a dois processos recentes e que se intensificaram na ltima dcada, o desenvolvimento vertiginoso de tecnologias cada vez mais sofisticadas nas diversas reas de comunicaes. e a reduo inversamente proporcional de custos dessas mesmas tecnologias. Como resultado da generalizao dos processos de transnacionalizao. Assistimos globalizao de processos de formao de opinio pblica. O Estado nacional convive mal com um mercado desterritorializado, sobre cujas regras ele no pode legislar. Convive mal com investidores annimos e difusos que podem ter mais poder sobre a Paridade de sua moeda do que o prprio Estado. Convive mal com sua capacidade decrescente para editar polticas eficazes para provocar inovaes tecnolgicas, para conservar investimentos cada vez mais volteis, para influir nas escolhas microeconmicas. Mas o Estado no acabou nem est prestes a desmoronar-se. Apenas est adquirindo novas funes e instrumentos. Desconteno - Pode-se dizer que a resultante geral da mtua conteno na guerra fria era a estabilidade das relaes internacionais, e particularmente do equilbrio de poder existente entre as duas superpotncias. Com o fim da polarizao, a poltica de mtua conteno perde sua relevncia. Qualquer que fosse a motivao que deu origem estratgia de mtua conteno, o objetivo efetivamente atingido foi a estabilidade do sistema de relaes internacionais. . O que podemos chamar de desconteno uma certa euforia que acometeu parte das lideranas e da opinio internacional: se o risco de confrontao global no mais o princpio regulador das relaes internacionais, ento, tudo permitido. Nova vulnerabilidade - O Estado nacional concentra tal poderio em termos de recursos econmicos, de recursos de violncia e de recursos morais, que o indivduo e mesmo os atores coletivos da sociedade esto, diante dele, em uma relao de vulnerabilidade quase absoluta. Existe um desequilbrio a favor do Estado quanto capacidade de violncia e constrio. O terrorismo atual um bom exemplo, assim como, o crime organizado, o narcotrfico, o trfico de migrantes, a lavagem de dinheiro e outras redes.

2.3 Novos atores e novas questesA transnacionalizao, provoca o aparecimento simultneo de novos atores e de recentes questes em tomo das quais esses atores _ juntamente com os j existentes - se organizam. Os novos atores so, em primeiro lugar, novos Estados, fruto do desmembramento do imprio sovitico e de estados do Terceiro Mundo que se expandiram indevidamente, prevalecendo-se dos impasses da guerra fria. So tambm novas entidades paraestatais de poder, como o crime organizado internacional, alguns tipos de movimentos guerrilheiros e terroristas, movimentos tnico-nacionalistas e algumas organizaes no governamentais radicais, adeptas da ao direta. So, ainda, as organizaes no governamentais rnultinacionais, empresariais ou no. As novas questes da agenda global so novas apenas em sua expresso transnacional, pois, na verdade, sempre existiram em sua expresso domstica. O que lhes empresta especificidade no mundo contemporneo o fato de se terem agrupado em duas grandes categorias de "direitos globais" e de "valores globais", frequentemente associadas na retrica, mas analiticamente distintas. Direitos globais seriam direitos inerentes natureza humana ou, pelo menos, humanidade em seu estgio contemporneo e Que prescindiriam de incluso formal no direito positivo de um estado nacional, devendo ser sancionados por qualquer instncia investida de recursos de poder suficientes para tanto. Tais direitos seriam globais porque se aplicariam a qualquer ser humano, independentemente de seus laos de cidadania e de sua localizao territorial. Os direitos globais compreendem desde direitos a um tratamento digno, a direitos relacionados com o trabalho e a educao, a um direito felicidade sexual etc. Sua tendncia a expanso, uma vez que no dependem de adoo em um processo legislativo, necessariamente controverso, bastando que as manifestaes a favor sejam suficientemente altissonantes e as manifestaes dissonantes sejam desqualificadas. Valores globais, por sua vez, seriam valores que, seja por sua inerncia natureza humana, seja por sua vinculao necessria com a sobrevivncia da humanidade, seu bem-estar ou sua fruio, no dependem de consentimento, inclinao ou crena dos indivduos, nem do direito positivo dos Estados, e devem ser respeitados por todos os indivduos e Estados. Enquanto valores universais, eles no estariam submetidos ao particularismo, controvrsia, f, como todos os demais valores. Os nicos aspectos submetidos a debate seriam sua extenso e alcance, mas no sua verdade quer seja a preservao de hbitos ou ritos de sociedades "primitivas", a preservao da biodiversidade, a preservao de paisagens etc. O "dever de ingerncia" levado s ltimas consequncias Implicaria urna nova anarquia com predomnio do uso da fora, urna vez que no existem parmetros universalmente aceitos nem inscritos em uma frmula universalmente aceita, ficando a critrio de qualquer instncia capaz de sancionar os direitos e valores globais, acusar, julgar e sancionar os eventuais culpados. Isso no se aplica aos que, seja como vtimas, seja como instncias julgadoras, no disponham de recursos de poder para tanto. Essas trs ordens de reaes dos atores mais poderosos, Estados e instncias no governamentais a saber, a tendncia ingerncia, a conta giar as relaes comerciais e financeiras, e imposio unilateral de padres regulatrios do lugar a um novo fator de conflito internacional com riscos para a estabilidade e para a paz.

2.4 Os novos desafiosA transnacionalizao confronta o Estado com novos atores. Para lidar com eles, uma nova diplomacia precisa ser inventada. A nova vulnerabilidade dos Estados exige cooperao em questes de segurana, em relao s quais os Estados relutam em cooperar. Na atual ordem em transio, o carter difuso das bases de cooperao e de conflito provoca desafios diferentes. Variando segundo o tema, as circunstncias e a dimenso de cooperao e conflito envolvida, pases podem alinhar-se, cooperar ou conflitar simultaneamente com os mesmos parceiros em diferentes dimenses e momentos. A recente invaso do Iraque por urna coalizo comandada pelos Estados Unidos um bom exemplo desse carter difuso. Pases que se alinham com os Estados Unidos em questes corno a proliferao nuclear no extremo-oriente no somente no se alinharam, corno foi o caso da Frana e da Alemanha, mas tambm se recusaram a cooperar e chegaram ao limite do conflito no Que diz respeito invaso e ocupao do Iraque. No mesmo perodo esses mesmos pases cooperaram com os Estados Unidos no enfrentamento das naes emergentes no que se refere questo dos subsdios agrcolas no mbito da OMC. Em suma, a questo da cooperao e do conflito j no pode ser sumariamente reduzida a um ponto de alinhamento ou noalinhamento com qualquer potncia ou grupo de potncias, em que pese a clara supremacia americana. A questo da cooperao complexa, exigindo polticas diversas para diferentes dimenses da cooperao. E a questo dos conflitos, incluindo alinhamentos, parcerias e alianas, tende a resolver-se por meio de geometrias variadas e instveis. Em todas as ordens internacionais, as fronteiras entre as relaes de poder no interior de um Estado nacional e aquelas entre Estados so difceis de definir, e a distino conceitual est mais prxima das noes que se aprende a usar, mas cuja definio frequentemente pressuposta e no explicitada. O desafio para a poltica externa o de gerir a fronteira entre o domstico e o internacional, no de acordo com as ideias e os interesses de atores domsticos ou no, mas de acordo com o carter vital das ameaas envolvidas e com a capacidade do Estado de mobilizar recursos de poder para enfrent-las, isto , a poltica externa dos pases passa a ser confrontada com uma aparente margem de liberdade para internalizar ou internacionalizar os desafios que enfrenta. Alm disso, a poltica externa confrontada com alternativas entre atender a ideias e interesses de atores sociais, movidos pela tica dos valores e dos direitos globais ou necessidade de responder a ameaas vitais com diferentes graus de inconvenincia, e entre atuar com recursos escassos de poder ou com palavras e ideias. Essa aparente liberdade tem exacerbado, de forma crescente, a inclinao dos governos para empregar aes externas para enfrentar problemas domsticos e a dar tratamento domstico para desafios externos.

2.4 O Brasil no novo cenrio Os anos 1970 e 1980 o perodo em que a poltica externa brasileira basicamente reativa e defensiva. Nesse mesmo perodo que prenunciava a transio da guerra fria, a interdependncia econmica, financeira e de segurana do Brasil em relao s principais potncias tendeu a tornar-se mais profunda e mais complexa. No plano da interdependl1ciajinanceira, pode-se caracterizar a poltica brasileira como um alinhamento com autonomia restrita- A chave dessa poltica reativa foi a crise da dvida externa ou, mais provocativamente, a "armadilha" da dvida externa. "Armadilha", aqui, designa o fato de que a nica forma de escapar interdependncia assimtrica revelou-se ser o aumento da interdependncia. Do ponto de vista comercial, o Brasil abandonou, durante as negociaes da Rodada Uruguai do Gatt, a posio de liderana de uma coalizo de veto, como agora compartilhada com a ndia. A atitude do Pas tomou-se mais positiva e prepositiva, tendo apoiado a criao da OMC e o reforo de sua capacidade de implementao e regulao do comrcio internacional. O Gatt e por extenso a OMC deixou de ser visto como um instrumento de abertura forada de mercados para os pases industrializados, passando a ser encarado como um instrumento de convergncia entre os interesses distintos de pases exportadores e importadores. Pode-se dizer que, no mbito comercial, a postura bsica das elites e do governo brasileiro tem sido de resistncia ambgua. Tanto para nossa diplomacia como para o empresariado, para os sindicatos e para a academia, as regras multilaterais de livre-comrcio so um meio-termo entre a interdependncia assimtrica com os Estados Unidos e a total liberdade de manobra para adotar regras de comrcio Que nos favoream unilateralmente, mas que nos deixariam sujeitos ao unilateralismo dos demais parceiros. Quanto dimenso poltica, as relaes internacionais do Brasil poderiam ser definidas como um tipo de participao conflituosa. por um lado, o Pas um membro pleno, e desde o primeiro momento, do sistema internacional de segurana coletiva. Com o Japo, , dentre os membros no permanentes. Aquele que mais vezes teve assento no Conselho de Segurana das Naes Unidas. Tem uma longa tradio de participao em misses militares de paz e mantm um perfil alto em todas as sesses da Assemblia-Geral das Naes Unidas, que o Pas se orgulha de inaugurar todos os anos. Alm disso, desde que se abriram discusses sobre a reforma da Carta e, principalmente sobre a composio do CS/ONU, o Brasil tem sido um candidato a membro permanente, no que conta com significativo apoio da populao e da elite nacional. Por outro lado, tanto oficiosa quanto oficialmente, a diplomacia brasileira tem-se manifestado crtica do sistema de poder nas Naes Unidas e no sistema internacional como um todo. Mais transparncia nas decises e equilbrio entre as potncias, mais respeito a princpios e menos recurso a diferenciais de poder e riqueza e mais recurso diplomacia e soluo negociada das disputas so reivindicaes que manifestam insatisfao quanto s regras atuais do jogo. Outro aspecto, este contrastante com a posio crtica assumida por nossa diplomacia, o que diz respeito adoo, ainda que relutante, de princpios intervencionistas em contraposio ao princpio de no interveno estabelecido na Carta das Naes Unidas e fortemente incutido em nossa tradio de poltica externa. De uma postura rgida de no intervencionisrno, o Pas passou a adotar uma poltica de avaliao, caso a caso, da oportunidade de invocar o direito de autodeterminao ou o dever de ingerncia, sobretudo em matria de proteo democracia. Em relao aos novos temas transnacionais, ocorreram algumas alteraes significativas referentes dcada de 1980. Nossa diplomacia abandonou a postura defensiva e procurou ajustar-se mais s expectativas da sociedade do Que aos objetivos do Estado. Sua permeabilidade s presses da sociedade, particularmente expresso das organizaes de carter transnacional, aumentou de modo inusitado. No seria exagero afirmar Que a influncia desses grupos organizados na formulao de nossa poltica com respeito aos noves temas tornou-se desproporcional sua representatividade na sociedade e superou bastante a influncia do empresariado em nossa poltica comercial, por exemplo. Essa mudana de atitude s no mais significativa porque houve uma mudana no eixo temtico de nossa vulnerabilidade externa. A temtica transnacional perdeu muito de sua urgncia e de sua virulncia. Quando a ingerncia toma a forma de sanes - sejam elas econmicas, polticas ou militares o que conta em ltima instncia o diferencial de poder. A ltima dcada do sculo XX foi o cenrio de uma mudana sistmica que ps fim ordem mundial da guerra fria. Entretanto, tal mudana no levou ao imediato colapso das instituies e regimes internacionais ento vigentes, nem consolidou imediatamente uma nova ordem, nem sequer delineou os contornos dessa ordem estvel do poder mundial. O resultado no foi, at agora, a inexistncia de qualquer ordem, mas uma ordem em transio. As caractersticas dessa transio, que lhe emprestam alguma permanncia, tendem a tornar o mundo mais instvel, menos previsvel e com um nmero significativamente maior de incgnitas e ameaas do que de equaes e recursos de ao. Em um contexto dessa natureza, a poltica externa confrontada com desafios para os quais no encontra solues inspiradas na doutrina ou na experincia. As aes de poltica externa refletem, como no poderia deixar de ser, a instabilidade do equilbrio entre as potncias, a imprevisibilidade dos atores - particularmente dos no governamentais e a superposio de alianas e tendem, por isso mesmo, a guiar-se por critrios ad hoc. Com isso, a predeterminao das escolhas internacionais por fatores ele natureza sistmica, regional ou domstica desaparece, e o lugar para a formulao autnoma da poltica externa ressurge com todo () vigor. Isto no significa, entretanto, que qualquer poltica externa venha a ser possvel f' que as escolhas no campo internacional deixem de ter um custo. O improviso, a idealizao, o doutrinarismo tero um lugar, que lhes proporcionado, pela natureza aberta do sistema em transio, mas, por isso mesmo, pagaro um alto preo pelas escolhas sem fundamento no interesse vital do Estado.

Captulo 3 busca de uma nova sociedade internacional: teoria e prtica das relaes internacionais no incio do sculo XXIIndagaes diversas podem ser sugeridas na busca do entendimento sobre as caractersticas marcantes das relaes internacionais contemporneas. H uma dimenso sistmica que confere lgica interna e coerncia universal nas relaes internacionais no incio do novo milnio? H uma sociedade internacional uniforme e dominada por regras aceitas pelo conjunto dos Estados? Qual o peso relativo da imediata transio do ps-guerra fria para os novos contornos das relaes internacionais contemporneas? O que pesa mais na agenda internacional dos novos tempos: a economia poltica da globalizao, o peso geopoltico e estratgico de grandes plataformas cientfico-tecnolgicas ou as dimenses da segurana internacional? Quais os lugares polticos e econmicos dos Estados situados s margens da sociedade internacional? Qual o valor especfico dos novos atores no tradicionais na conformao da sociedade internacional? Agendas e temas variados nascem e renascem. H vrios roteiros e mtodos que podem ser utilizados. Do realismo clssico, passando pelas vertentes do intemacionalismo liberal, s correntes ps-modernas, as relaes internacionais vm assistindo ampliao dos seus horizontes analticos em todo o mundo. No caso brasileiro, a sadia disputa terica e metodolgica no estudo das relaes internacionais aspecto motivador do desenvolvimento da rea no Brasil.

O peso da histria nas relaes internacionais contemporneasA histria no serve apenas de prembulo. Ela parte intrnseca formao das estruturas do presente e matriz gentica dos fenmenos internacionais atuais. O que se tem por presente , em larga medida, a resultante dos choques de condensao de processos que se avolumaram no passado ante as novas condies que alimentam o indito. Isso explica, em parte, a presena de uma srie de processos que, ainda inacabada, se faz ativa na nova ordem internacional do presente. , a sociedade internacional do presente no advm de uma nica experincia cultural nem tributria de uma nica base geopoltica como fora a sociedade internacional europia do sculo XIX.

A fora da flexibilizao gradualOs avanos das pesquisas mais recentes, em vrios e multinacionais projetos de reviso dos estudos da guerra ma, confirmam o peso para os dias atuais da histrica flexibilizao gradual da ordem bipolar na direo de novas constelaes de polaridades que j se desenhavam nos intestinos do concerto americano-sovitico. Essa flexibilizao gradual ganharia contornos mais dramticos, naturalmente, ante a declnio do poder sovitico. Quais os processos histricos por meio dos quais essa transio da ordem bipolar para a ordem ps bipolar operou? O primeiro advm da prpria evoluo gradual, interna ao condomnio dos dois gigantes, e que seguiu, de forma ascendente na direo da cooperao direta entre os dois e a remover a hiptese de deflagrao direta entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica. Essa tendncia, em parte formada j na dcada de 1950 sobre o conceito de coexistncia pacfica, e aprofundada nas dcadas de 1960 e 1970, foi a garantia de certa segurana e previsibilidade na transio da ordem da guerra fria para a ordem internacional contempornea sem grandes traumas. Ao contrrio das proposies realistas e liberais clssicas, deve-se reconhecer que o surgimento de percepes e identidades prprias, em vrias partes do globo, ao lado da guerra fria, mas no tributrias dela, seriam o mote do novo tempo das relaes internacionais na incio do novo sculo. Essas percepes e esses caminhos culturais e ideolgicos alternativos se espraiaram pelo mundo de maneira discreta, porm decisiva, a modificar gradualmente o monoplio da bipolaridade ideolgica tpica guerra fria. Esses aspectos gerariam efeitos relevantes para a conjunto das relaes internacionais bastante ames do fim da Unio Sovitica ou da derrubada do muro de Berlim, alm de antecederem aos efeitos dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. No alinhamento automtico aos discursos da guerra fria, emergncia do integrismo islmico, esforos de descolonizao mental e percepes de vulnerabilidades nos coraes das sociedades civis das democracias dos centros de poder global, entre outros fatores sociais e culturais.

A competncia da diversidade de interessesO segundo grande fator de corroso gradual da guerra [ria, f' elemento a animar as transformaes do mundo atual, a tomada de conscincia da diversidade de interesses que se generalizou j nos tardios anos 1950 do sculo passado, muito embora ainda no contivesse grande peso relativo no esquema bipolar. Mas a diversidade de interesses cresceu ao longo das dcadas seguintes. A franca acelerao da diviso de interesses no jogo internacional das dcadas de 1960 e 1970, por exemplo, mostrou, j naquela poca, que a bipolaridade j no se aplicava ao campo econmico. A emergncia japonesa e a confirmao da vocao integracionista da Europa iriam modificar a prpria dinmica da bipolaridade. A Frana viria ensaiar, com De Gaulle, os passos da distenso na Europa Ocidental. Eles foram seguidos pela Ostpolitik alem. Esse entrosamento entre europeus acabou por aliar as duas superpotncias, que se curvavam a vises e a preocupaes regionais de segurana. Os europeus buscavam algo alm de uma harmnica sada para o terna da segurana. Reivindicavam seus prprios espaos de poder negados pelo jogo das superpotncias. A conscincia da diversidade de interesses, embora no fosse urna nova caracterstica das relaes internacionais do ps-guerra, apareceu nos anos 70 como uma de suas mais dinmicas caractersticas. Muitos fenmenos que modificavam a fisionomia do mundo, como o revigoramento da capacidade operativa dos Estados europeus, o nascimento da idia da Comunidade dos Estados Europeus, a determinao francesa de construir sua prpria poltica militar fora dos esquemas do atlantismo anglo-saxo, os novos dados estratgicos mundiais que punham em xeque a Aliana Atlntica, entre outros fatores, fizeram a diversidade empurrar o carter bipolar do sistema internacional para formas mais flexveis, bem antes da derrubada do muro de Berlim. Isso modifica a declarao geralmente aceita de ser o desmoronamento do muro o smbolo do fim da guerra fria. Outro exemplo da elevao da diversidade vem da prpria Amrica Latina. A regio viveria dcadas de transio e incerteza no mesmo perodo referido anteriormente, marcado por ditaduras militares em alguns pases-chave da regio, mas buscaria tambm certa afirmao internacional. Traando perfil prpria de no alinhamento automtico s reas de influncia herdadas da Segunda Guerra Mundial, pases corno o Brasil e o Mxico reivindicavam, cada um a seu modo, a ocupao de posies de destaque no sistema internacional. O modelo do nacional-desenvolvimentismo, ainda vigoroso, sobreviveria graas a uma certa equidistncia em relao s prebendas da superpotncia hemisfrica, no muito animada com processos de industrializao acelerada, com capacidade exportadora e de relativo desafio ao escoamento dos produtos norte-americanos na periferia do capitalismo. O componente desenvolvimentista das relaes internacionais das dcadas de 1960 e 1970 embotaria a ideologia da guerra fria e moveria paixes e ideologias polticas para o embate Norte-Sul Animados pelo grito de independncia, pases afro-asiticos viriam propor, ao lado da Amrica Latina, o conceito de forja de uma nova ordem econmica internacional em favor do, ento, chamado de Terceiro Mundo. Procuraram apresentar-se como um todo, como urna unidade vigorosa nas relaes internacionais. A crise econmica mundial dos anos 70, com desfecho Inconcluso ainda nas dcadas seguintes para muitos pases, tambm seria um fator de corroso gradual da ordem da guerra fria em dcadas anteriores aos anos 1990. Especialmente as crises energticas e financeiras, responsveis por um longo perodo de intranquilidade nas relaes internacionais, ofereceram razes para a reviso do prprio papel central e tradicional dos Estados nacionais na poltica internacional. As crises energticas e financeiras mundiais, exemplificadas nos dois choques de preo do petrleo nos anos 1970 e na crise de convertibilidade do dlar norte-americano, prenunciaram a mudana do paradigma tecnolgico-industrial do capitalismo. Essa mudana de referncia econmica veio confirmar a criatividade do capitalismo praticado em grande parte do mundo perante as experincias de economia planificada dos pases socialistas. Em certa medida, os anos 1970 oferecem as matrizes histricas para a multiplicao de fenmenos - como a denominada globalizao liberal, a crise do modelo socialista no Leste Europeu e os movimentos de regionalizao econmica que vieram a prosperar na dcada de 1990.

A fissura que vem dos anos 1970Localizada temporalmente entre os desdobramentos da dtente dos fins dos anos 1960 e o sobressalto provocado pelo retorno do antagonismo Leste-Oeste da primeira metade dos anos 1980, as relaes internacionais dos anos 1970 possuem unidade histrica e conceitual prpria. A dcada foi de incertezas e de grandes indefinies na ordem internacional, ainda monitorada pelos dois gigantes. A ampliao de atores e temas internacionais, a elevao de novos interesses no Sul e nos aliados tradicionais dos Estados Unidos, a recomposio da balana de poder em favor da Europa e certas partes da Eursia, especialmente Japo e China, seriam sua maior contribuio diversidade nas relaes internacionais da guerra fria. Nesse sentido, perde certo sentido continuar a falar de guerra fria j naquelas dcadas, urna vez que a hiptese de guerra direta entre as superpotncias esteve descartada em favor dos processos de negociao da conteno e do controle mtuo de arsenais nucleares. O avano dos entendimentos entre Washington e Moscou foi incontestvel naqueles anos e pavimentaram o caminho para a gradual eroso da ordem bipolar. Os defensores da dtente chamavam a ateno, no Ocidente e no Oriente, para os aspectos positivos criados pelos intercmbios econmicos novos. Era claro o avano econmico resultante das conquistas polticas da era da dtente. Esses fatos teriam mais peso no fim da guerra fria do que a queda simblica do muro de Berlim na dcada seguinte. evidente, no entanto, que essa evoluo precoce na direo da corroso dos paradigmas da guerra fria no pode ser superestimada. A aproximao americano-sovitica no pode ser objeto de uma viso simplista e ingnua. A convivncia tolerante em parte dos anos 1970 e na segunda metade dos anos 80 no significou a inexistncia de tenses entre Moscou e Washington. Permaneceriam problemas herdados da guerra fria em algumas reas como a situao de Berlim, a diviso da Alemanha e a questo fronteiria com a Polnia.

A ausncia de um lastro cultural comumUma caracterstica ltima que chama a ateno para o peso da histria da guerra fria sobre o mundo ps-guerra fria do fato de que a primeira no deixou um lastro nico, comum, que passasse a predominar culturalmente sobre a segunda. Nem o socialismo real conseguiu se impor no Inundo ao final do sculo XX, tampouco a ideologia do capitalismo de oportunidades imperou na nova ordem, para frustrao dos seus idelogos estabelecidos no apenas em Washington, mas em um enorme espectro de autores e formuladores ao Ocidente. A dimenso cultural das relaes internacionais do mundo contemporneo no , nesse sentido, dominada por uma forma hegemnica ou universalmente aceita. a reviravolta provocada pelo 11 de setembro de 2001 viria demonstrar que havia formas encobertas de rejeio ao princpio abrangente e atualizado da velha ideia da harmonia de interesses. A forma apresentada pelos centros de poder do capitalismo ocidental no se fez convincente em enormes reas geoculturais do planeta, principalmente no espao da Eursia islmica. Da a ideia de que a sociedade internacional do ps-guerra fria seja menos discriminatria ante a inexistncia de um nico polo de emisso de cnones, cdigos, valores e projetos culturais. Tampouco o devir histrico parece ser monoplio de uma nica sociedade nacional ou mesmo de um conjunto de pases que controla, com suas empresas, os fluxos financeiros, comerciais e tecnolgicos mais expressivos nas relaes internacionais contemporneas.

A globalizao e os novos conflitos globais: uma nova forma de assimetriaA globalizao econmica, acoplada ordem ps-guerra fria, mudou a forma dos conflitos internacionais. Uma das nicas possveis regularidades na histria das relaes internacionais, a guerra mudaria de perfil no presente, O paradigma clausewitziano no est superado, j que a poltica internacional contempornea tem seguido a mxima de se perpetuar por meio do recurso guerra. A guerra do Iraque e a crescente desestabilizao poltica em vrias partes do globo esto a indicar que a guerra uma regularidade com capacidade de resistir vontade da cooperao internacional e ao esforo da paz duradoura. Tambm nova a propenso da sociedade internacional anarquia e desordem, como lembram os autores da escola inglesa. Chama a ateno, no entanto, nos ltimos anos, as inditas formas de recurso guerra, que deixaram de ser, predominantemente, ideolgicas para se tomarem guerras eminentemente econmicas. Clausewitz, nesse caso, substitudo pelo trao malthusiano dos novos conflitos. Guerras por recursos naturais declinantes e escassos, em meio ao crescimento desenfreado e incomparvel de populaes jamais visto na histria humana, passaram a ser uma hiptese plausvel no presente. Os fatores demogrfico e econmico passaram a agir de forma crescente sobre os novos desgnios internacionais contemporneas. Guerras de escassez batem s portas do novo sculo a demonstrar seu efeito catastrfico sobre a humanidade. Os pases ricos dependem, de forma crescente, do controle dos seus recursos naturais, de maneira firme, para assegurar o bem-estar social, os preos da sociedade do bem-estar sob controle e, portanto, a ordem. A desordem da periferia parisiense de dezembro de 2005 e as manifestaes da juventude universitria de classe mdia em abril de 2006, fatos recentes, expressam a crise do emprego, do trabalho e dos recursos escassos que ameaam a democracia social na prpria Europa. Para tais pases, o preo do petrleo, em especial, necessita de preos internacionais baixos para poderem continuar sua pujana econmica e o equilbrio poltico interno. Nesse sentido, a prpria social-democracia se faz vitima da face dura da globalizao, ao negligenciar necessidades elementares da segurana humana e da identidade social.Agregue-se a isso o fato de que a falida experincia do socialismo real na Rssia e no Leste Europeu empurraram seus cidados para a incluso social nos pases europeus ocidentais. No Golfo Prsico, ou em pases da frica, ou mesmo na Amrica Latina, como no caso da Venezuela, populaes inteiras, muitas vezes manipuladas por governantes que politizam o tema do petrleo nos termos da poltica internacional, necessitam dos preos altos do petrleo para sobreviverem ou para terem acesso a mecanismos redistributivos internos de renda e escolarizao. A tenso est posta de forma clara em termos malthusianos. O encaminhamento de solues fora do recurso aos conflitos por recursos naturais garantidores do barateamento dos custos de produo em larga escala - em geral voltados para alimentar o consumo dos pases centrais e setores mdios e elevados dos Estados na periferia - parece difcil. Na sia Central, por outro lado, a voracidade da expanso capitalista das economias nacionais da China e da ndia, ante seus pesos demogrficos explcitos, desequilibrou as relaes econmicas internacionais do incio do novo sculo. Taxas elevadas de crescimento econmico demandam energia, matrias-primas e recursos naturais de toda ordem, a beneficiar outras economias emergentes como a brasileira, mas a agonizarem a social-democracia ocidental. Assim, a extraordinria mobilidade do capital permite s empresas localizar produo em que regulamentao, custos e recursos naturais possam ser menos onerosos. Expe-se a contradio entre a dimenso alcanada pela globalizao e os sistemas polticos atualmente existentes em todas as partes do mundo. Disparidades de riqueza, poder e de segurana marcam as relaes internacionais dos primeiros anos do novo sculo em sua especificidade. As caractersticas dessas novas assimetrias so ntidas: crescente desigualdade de poder poltico e influncia, criao de novas dimenses na desigualdade, pases que assistem eroso e inviabilidade do prprio Estado nacional, entre outros fatores. Outros Estados esto sendo fortalecidos pelo processo da globalizao, portanto esto em melhor posio para aproveitar oportunidades e conter riscos. No campo interno dos Estados fracos, a globalizao vem erodindo a capacidade dos governos de lidar com um conjunto de polticas sociais, econmicas e de tratamento de conflitos. No plano da poltica mundial, as consequncias so ainda mais profundas.

Uma nova geografia polticaO segundo aspecto mais explicito da sociedade internacional contempornea vem sendo o redesenho da balana de poder em favor de urna nova geografia poltica. Em alguma medida, segue a hegemonia dos Estados Unidos, em forma ascendente para alguns e descendente para outros analistas. Mas aparecem indcios de que h um movimento importante de construo de novo equilbrio de poder, a envolver menos unipolaridade e mais multipolaridade. Resta pouca dvida acerca dos limites da expanso do poder norte-americano no novo sculo. H limites internos, na sociedade norte-americana, ante sua desconfiana em relao pujana de sua economia e capacidade global de alcance da misso histrica de levar adiante seu conjunto de ideias e prticos, por meio consensual, para o seio da nova sociedade internacional. H limites externos, expostos pela elevao de novas polaridades de poder internacional que, ainda que no contrastem, estratgica e economicamente, com os Estados Unidos, esto em franca ascenso. No resta dvida de que as fontes de poder dos Estados Unidos so significativas e relevantes para o entendimento da balana de poder no novo sculo. O uso rgido e egosta dessa capacidade, no plano internacional, ser, como j o em parte, o imprio da insegurana, O no uso dessa capacidade seria igualmente criar problemas de administrao da ordem global, ante a ausncia de uma fora de conteno com igual dimenso. os Estados Unidos vem sendo, no ps-guerra fria, um garante desastroso da vulnerabilidade sistmica gerada pela globalizao ante uma Europa combalida pelas ameaas econmicas da Eursia_ e das reas inseguras s margens da hegemonia norte-americana. A questo migratria ocupa um lugar especial na Europa contempornea. A China lidera o esforo de insero internacional carregando dois teros da humanidade que habita aquela regio do globo. Tendncia j percebida nos anos 1980 e que levou a crescimento exponencial na dcada de 1990 e nos primeiros anos do novo sculo, restam poucas dvidas de que a China no se tornou apenas uma presa a mais da incorporao de sua economia nacional economia da globalizao e aos fluxos financeiros internacionais. H um projeto de poder mundial chins. de tipo estratgico, em curso. Essa espcie de weltpolitik chinesa, no moda da lgica do intruso implantada pela Alemanha na segunda metade do sculo XIX, ainda trar arestas e preocupaes para a hegemonia norte-americana. Essa uma transformao profunda no seio dos vetores que orientam o futuro da sociedade internacional. Os asiticos vieram para ficar no seio da sociedade internacional. Difcil , simultaneamente, prever os resultados dessa incurso no longo prazo, embora no resida pouca dvida acerca da irreversvel na elevao da Eursia, sob uma certa articulao estratgica entre a China, a ndia e, em parte, a Rssia na evoluo mais recente das relaes internacionais contemporneas. a ascenso chinesa objeto de admirao, de surpresa e de bices. essa uma rea de tenso, catalisadora de conflito, a qual j foi referida na parte anterior dessa segunda parte do captulo. A China avana gradualmente na afirmao dos seus objetivos geoestratgicos e amplia sua base de segurana energtica, necessria expanso do poder nacional. Os chineses, sempre comedidos e a trabalhar em silncio, j no escondem sua vontade de projeo geopoltica.Uma terceira rea de polarizao, que apesar de j ter seguido em parte a cartilha do atlantismo dirigido pelos Estados Unidos, a Europa. Ampliada na primeira dcada do sculo XXI a quase 500 milhes de habitantes, assistindo ao mais relevante processo de integrao regional de Estados nacionais na histria das relaes internacionais, a Europa no quer ser reduzida mediadora entre o poder dos Estados Unidos e a China. Busca na sociedade internacional contempornea, como sempre procurou na histria das relaes internacionais, seu prprio lugar. Apesar de reconhecer a contribuio do Plano Marshall e ainda agradecendo a participao norte-americana na reconstruo ps-Segunda Guerra Mundial, a Europa vem, pelo menos retoricamente, afastando-se do seu promotor na direo de um contorno mais autonomista nas suas vises, percepes e identidades. Apesar da crise do multilateralismo, as Naes Unidas ainda tm uma funo na sociedade internacional atual. Frum renovado e caixa de ressonncia dos grandes temas da agenda internacional, a Assemblia-Geral das Naes Unidas vem ampliando seu escopo de ao e recuperando sua credibilidade corno um certo parlamento mundial. Uma eventual reforma do sistema das Naes Unidas significar a revitalizao das funes histricas da Assemblia-Geral.

A crise do multilateralismo: emergncia dos egosmos nacionais e retrocesso nos processos de integraoUrna terceira e dramtica caracterstica marca a sociedade internacional contempornea: a mais profunda crise do sistema multilateral jamais vislumbrada pelos atores polticos internacionais desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Fenmeno que assusta o poder decisrio dos Estados mais dbeis, a crise do mu1tilateralismo tem efeito draconiano sobre a prpria noo de viabilidade dos Estados nacionais na periferia do sistema global. Sabe-se, em princpio, que o multilateralismo beneficia a razo mdia, o middle course, o equilbrio desejado. Facilitador da construo de consensos e valores na sociedade internacional, a nfase multilateral permite que os atores da cena internacional possam construir, no dilogo, as sadas para as crises, sejam polticas, econmicas, sociais ou mesmo de ordem cultural. O sistema onusiano, como corao poltico e jurdico do esforo multilateral mais Importante da sociedade internacional contempornea, tem sofrido abalos incontestes. Da Guerra do Iraque s indefinies acerca da sua prpria reforma, a ONU vem sendo criticada pela sua obsolescncia, inadequao aos desafios do presente e baixa representatividade das novas realidades demogrficas, polticas e sociais internacionais. Ao mesmo tempo, o sucednio de insucessos no multilateralismo econmico. . H urna economia global catica e obsessivamente voltada para a engrenagem financeira. A dimenso produtivista e empregatcia, tradicional ao desenvolvimento do capitalismo, vem sendo deixada deriva, alterando as relaes clssicas entre o capital e o trabalho em favor das novas tenes entre os que tem trabalho e emprego e os que no os tem. Emergem mercados globais anrquicos que destroem antigas modalidades de capitalismo e criam formas, Quase sempre instveis e de baixa empregabilidade. Bolses de excludos no apenas nas periferias do capitalismo, mas tambm no centro, compem a paisagem dos grandes centros urbanos na Europa e nos Estados Unidos, agregando-se a isso a insegurana social e a violncia urbana sem controle pblico eficiente. A onipotncia norte-americana, legitimada ideologicamente pela noo da conteno do comunismo e do poder sovitico, fazia algum sentido na velha guerra fria, mas deixaria de fazer sentido no mundo atual. A Guerra do Iraque, caso mais evidente de deciso unilateral, atentou mesmo contra a noo de bom senso e a viso estratgica por parte do processo decisrio, to relevante para o equilbrio internacional e para a previsibilidade. Para vrios autores mais idealistas, essa forma de agir e pensar dos lderes norte-americanos sepulta a prpria inteligncia, a razo e o sentido bsico de cooperao entre os Estados. O unilateralismo e o desrespeito aos valores e aos padres elementares de conduta internacional estariam, assim, levando a sociedade internacional ao insuportvel. Desinteligncias, deflagraes internacionais, conflitos armados no so fenmenos alheios convivncia entre povos, estados e naes. Os manuais clssicos nos ensinaram a no manter tanta ingenuidade no plano da poltica internacional. Da Guerra do Peloponeso, passando pela Guerra dos Cem Anos, Segunda Guerra Mundial, os grandes conflitos sempre existiram e sempre existiro sem que o mundo se acabe. Elas so urna das tradicionais regularidades na evoluo das relaes internacionais. O que novo, no entanto, que o acumulado de racionalidade e sensibilidade deixou de ter papel relevante na soluo das contendas e diferenas internacionais. Do egosmo nacionalista para o fascismo, o passo curto, mas consistente.

Captulo 4 Os cinco AS das relaes Brasil - Estados Unidos: aliana, alinhamento, autonomia, ajustamento e afirmaoNo sculo XXI, as relaes entre Brasil e Estados Unidos enfrentam novos desafios e oportunidades. As transformaes de contedo e forma das relaes bilaterais passaram a estar diretamente vinculadas s perspectivas de mudana em ambos pases. A combinao da primazia militar determinao de assumir plena liderana internacional levou os Estados Unidos a reafirmarem seus atributos imperiais no sistema mundial. Para o Brasil a consolidao da democracia, os efeitos da globalizao econmica mundial e o fim da guerra fria remodelaram as presses e os seus interesses domsticos e externos. Atualmente, o Pais busca uma agenda afirmativa com os Estados Unidos, o que depende de uma complexa dinmica de interaes, envolvendo atores governamentais e societais. Aliana - At a ltima dcada do sculo XIX, o relacionamento Brasil - Estados Unidos se deu de forma espordica devido, sobretudo, aos vnculos dominantes do Brasil com o mundo Europeu, particularmente com a Gr-Bretanha. No entanto, no fim do sculo XIX, quando os movimentos republicanos brasileiros passaram a observar a experincia poltica norte-americana como fonte de inspirao e quando os Estados Unidos comearam a abrir seu mercado ao caf brasileiro, as relaes entre os dois pases ganharam consistncia. Dessa forma, durante a Primeira Repblica, as relaes Brasil - Estados Unidos seguiram o modelo de urna aliana informal ou, como caracterizado por Bradford Burns, de uma aliana "no-escrita" (unwritten alliance). Embora prescindisse de assistncia militar mtua, o apoio diplomtico recproco e as intensas relaes econmicas teceram urna slida amizade entre as duas naes. Essa aliana era percebida como estratgica para o Brasil, tendo em vista que conforme a percepo deste Pas, a ordem mundial dominada pelos interesses eurocntricos enfrentaria um processo de esgotamento, o que levaria os Estados Unidos a se converterem em um poderoso ator internacional O responsvel pela construo dessa percepo dos Estados Unidos corno principal poder ascendente no sistema internacional foi o Baro do Rio Branco, ministro das Relaes Exteriores (19021912) e fundador da diplomacia brasileira no sculo XX. Durante a Primeira Repblica, o Brasil distanciou-se, paulatinamente, da esfera de influncia britnica que, no entanto, manteve sua importncia relativa at a ecloso da Primeira Guerra Mundial, quando os Estados Unidos aumentaram sua presena comercial no Brasil em setores antes dominados pelos ingleses, corno transportes, minerao e frigorficos. Alm do fator comercial, em vrias ocasies. Brasil e Estados Unidos intercambiaram ajuda, destacando-se o apoio dos Estados Unidos ao governo no brasileiro na resoluo de questes limtrofes com a Argentina, a Guiana Francesa e a Guiana Inglesa, seguido do apoio logstico dado pelo Brasil ao governo norte-americano em 1898, no conflito contra Espanha. Alinhamento A revoluo de 1930 no Brasil e a chegada ao poder do democrata Franklin Roosevelt em 1932, n05 Estados Unidos, inauguraram um perodo de amplas transformaes polticas e econmicas em ambos os pases, as quais tiveram reflexos imediatos na poltica externa destes. O Secretrio de Estado Cordell Hull pregava a substituio de prticas intervencionistas amplamente usadas pelos Estados Unidos no final do sculo XIX e comeo do sculo XXI -, pela negociao diplomtica. Essa postura foi predominante durante os anos 1930 e teve implicaes no s para o Brasil, mas para toda a Amrica Latina, inaugurando um novo estilo de relacionamento conhecido como "poltica da boa vizinhana". Conforme o envolvimento dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, foi montado um sistema de segurana hemisfrico baseado em programas bilaterais de cooperao militar Que surtiu rpidos efeitos na regio; um exemplo foi a aprovao do compromisso de rompimento de relaes com o Eixo, durante a Terceira Reunio de consulta dos Chanceleres, em 1942, no Rio de Janeiro (rejeitada apenas pelo Chile e pela Argentina). A partir do comeo dos anos 1940 at meados dos anos 1970, o Brasil passou por trs etapas na sua posio de alinhamento Com os Estados Unidos. Durante a primeira etapa, a cooperao militar e econmica entre os dois pases teve uma crescente importncia para o Brasil, que precisou ceder a vrias presses norte-americanas em troca de emprstimos para financiar seu desenvolvimento em reas estratgicas. A segunda etapa do alinhamento est fortemente condicionada pelo maniquesmo do conflito Leste-Oeste. Os Estados Unidos identificavam a Amrica Latina como rea de influncia norte-americana, e isso incrementou os vnculos militares, polticos e econmicos j existentes. No entanto, apesar das limitaes impostas pela bipolaridade, o Brasil continuou com seu projeto de desenvolvimento econmico, manifestado na nfase nacionalista do segundo Governo Vargas, no apelo ao desenvolvimento de Juscelino Kubitschek e no sentido inovador da poltica externa independente dos governos Quadros-Goulart. O ponto culminante de tenso entre os dois pases nesse perodo se deu quando decises tomadas pelo presidente Joo Goulart e pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, como nacionalizao de empresas estrangeiras, feriram interesses privados norte-americanos no Brasil. A partir de 1964, ambos os pases entraram na terceira etapa do alinhamento, marcada pelo abandono das premissas da PEI e retornada do alinhamento irrestrito aos Estados Unidos. Os conceitos de fronteiras ideolgicas, soberania limitada e crculos concntricos estiveram muito presentes nesse primeiro momento enquanto a percepo dos Estados Unidos como lder do mundo livre justificava a aliana para o fortalecimento do ocidente. Para fins dos anos 1960, a postura de aliado irrestrito comea a sofrer algumas alteraes, favorecidas pela paralisao momentnea do conflito leste-oeste proporcionada pela dtente. O Brasil retomou algumas premissas da PEI e no plano interno se consolidou a opo pelo modelo nacional-desenvolvimentista. Na verdade. o Brasil pretendia abandonar o alinhamento irrestrito e manter um tratamento especial, mas no obteve a resposta desejada por parte de Washington. A frustrao dessas expectativas gerou um movimento nos meios militar e diplomtico no sentido de se revisar a postura do Brasil de aliado dos Estados Unidos. Autonomia - No governo de Ernesto Geisel, o Brasil entrou em uma nova fase nas relaes bilaterais. Em busca de autonomia e universalismo, o Brasil pretendia um entendimento com Washington que permitisse substituir o alinhamento por uma relao especial, estratgia esta que foi interrompida com a chegada de Jimmy Carter ao poder em 1976. O ativismo do presidente norte-americano na defesa dos direitos humanos e em prol da noproliferao provocou fortes desavenas entre esses pases, que duraram at 1978, quando as relaes adquiriram um baixo perfil poltico, o qual persistiu at o final do governo Geisel. Por outro lado, a agenda econmico-comercial se ampliava e se tomava mais complexa, cabendo ressaltar o papel predominante dos bancos norteamericanos do crescente endividamento externo do Brasil. A falta de sintonia ou a indiferena no campo poltico mantiveram-se at fins dos anos 1980, enquanto a agenda econmico-comercial continuava ganhando peso e complexidade, com a incluso de ternas como patentes farmacuticas e temas de informtica. Nessa poca, a diplomacia brasileira adquiriu mais substncia poltica: aprofundaram-se os laos com a Amrica Latina particularmente com a Argentina , reforaram-se as restries ao governo sul-africano e foram negociados acordos de cooperao com a China e a Unio Sovitica. Ajustamento - Desde 1990, quando se consolidou a democracia brasileira, a poltica externa do Brasil foi ajustada aos novos tempos, marcados pelo fim do conflito Leste-Oeste e o veloz impacto da globalizao econmica. A deciso do Brasil de integrar a comunidade de democracias de livre mercado significou a ruptura do projeto construdo desde 1974. No governo Collor, temas corno direitos humanos, no-proliferao e meio ambiente entraram na agenda, enquanto no campo econmico interno eram anunciadas reformas que envolviam liberalizao dos investimentos, privatizaes de empresas, abertura comercial, renegociao da divida externa. Defendia-se a ideia de transformar a poltica externa brasileira em uma ferramenta que ampliasse a competitividade internacional do Pas. Na crise interna do governo Collor, essas alteraes perderam impulso, e o Brasil reforou seus interesses no cenrio regional, com projeto como o aprofundamento do Mercosul e a criao de urna rea de Livre Comrcio Sul-Americana. Com a chegada de Fernando Henrique Cardoso e com o impacto da estabilizao econmica lograda com o Plano Real, e renovaram-se as expectativas de credibilidade e prestgio internacional do Brasil. A diplomacia presidencial se transformou em um valioso meio para incrementar relaes pblicas de alto nvel com os pases industrializados e para consolidar o Mercosul. Nessa etapa, procurou-se desenvolver um relacionamento amistoso com os Estados Unidos e as relaes bilaterais foram caracterizadas por uma interao cordial entre os mandatrios dos dois pases. No entanto, as tenses no campo econmico-comercial somadas s perspectivas desencontradas quanto ao ordenamento internacional ps guerra fria logo puseram em evidncia os limites da reaproximao entre os dois pases. Se para os Estados Unidos os esforos do Brasil para se ajustar s orientaes neoliberais do Consenso de Washington no eram suficientes, o Brasil percebia que o sistema unipolar nascente diminua sensivelmente suas margens de manobra.

Desafios nas relaes econmicas Brasil EUAObservou-se um processo acumulativo de desavenas por percepes crticas de ambos os lados. Do lado brasileiro, tornou-se difcil compatibilizar esses desencontros com a crescente vulnerabilidade econmica externa do Pas. Os impedimentos enfrentados para a retornada do crescimento, o alto grau de exposio s crises monetrias internacionais e a marginalizao contnua no sistema do comrcio mundial geraram constrangimentos que enfraqueceram a posio brasileira na comunidade empresarial e nos organismos de crdito internacionais. Os investimentos diretos norte-americanos - medida que a inflao ia sendo finalmente controlada, a confiana domstica e internacional pde ser reestabelecida. Dadas essas caractersticas, a nova poltica econmica do Brasil criou um ambiente extremamente propcio para o capital privado transnacional. proporo que o Plano Real mudava a imagem econmica externa do Pas, crculos empresariais e governamentais norte-americanos passaram a aplaudir a abertura da economia brasileira. Vale ressaltar, no entanto, que havia urna sorte de descontentamento por parte do governo e pelo meio empresarial norte-americanos no que se refere ao programa brasileiro de privatizaes, visto como um processo incompleto e repleto de imperfeies. As principais queixas eram motivadas pela excluso do programa de reas consideradas cruciais, corno o petrleo e a energia eltrica. No obstante, entre 1991 e 1998, os Estados Unidos foram a principal fonte de investimentos estrangeiros no Brasil, triplicando sua presena no Pas, principalmente nos setores financeiro e de manufaturados - qumicos, transporte e alimentao. O comrcio Brasil EUA: uma agenda renovada - Ao longo dos anos 1990, as relaes comerciais Brasil=Estados Unidos enfrentaram novos desafios, consequncia sobretudo das importantes mudanas ocorridas nas transaes bilaterais. proporo que o saldo comercial positivo dos Estados Unidos com o Brasil se tornou constante, aumentou a importncia do mercado brasileiro para as exportaes norte-americanas. Esta assimetria, entretanto, no calou as queixas dos Estados Unidos s barreiras comerciais brasileiras e aumentou as queixas do Brasil s barreiras comerciais norte-americanas. O Brasil passou a se ressentir ainda mais da falta de reciprocidade norte-americana, ao mesmo tempo que o governo dos Estados Unidos mantinha ativa a insistncia de que as polticas brasileiras de abertura do mercado eram insuficientes em vista da "falta de competitividade da indstria brasileira". Aps a desvalorizao do real em 1999, as expectativas foram de um melhor desempenho da balana comercial brasileira, em consequncia de urna rpida retornada das exportaes para seus principais parceiros comerciais. De fato, o Pas reduziu significativamente seu dficit comercial com os Estados Unidos. As autoridades brasileiras foram enfticas ao afirmar que esse crescimento provinha de uma competitividade maior dos produtos brasileiros, e no da reduo das barreiras comerciais norte-americanas, que seguiram representando uma fonte permanente de atrito entre os dois pases. A dimenso multilateral - As medidas brasileiras de liberalizao comercial coincidiram com relevantes mudanas no sistema mundial de comrcio. O novo marco institucional inaugurado com a criao da OMC, em 1994, ampliou o compromisso do Brasil com o regime de comrcio multilateral. As disputas comercias entre Brasil e EUA ganharam nova visibilidade nos fruns multilaterais. Estas passaram a ser resolvidas na OMC, em obedincia ao conjunto de regras e procedimentos ao qual os dois pases aceitaram estar subordinados. O Pas passou a concentrar sua ateno em dois importantes aspectos das negociaes comerciais internacionais: a questo dos subsdios agrcolas e da flexibilizao das demandas referentes aos novos temas da agenda, por exemplo, a propriedade intelectual. A dimenso regional - A formao do Nafta pelos Estados Unidos, pelo Canad e pelo Mxico plantou as sementes para a constituio de uma rea de livre-comrcio hemisfrica ao mesmo tempo Que Brasil e Argentina promoveram a criao do Mercosul. O Brasil desenvolveu diferentes posies em frente ao projeto da Alca, desde que surgiu a ideia de uma integrao hemisfrica. , o Pas assumiu uma postura defensiva, dominada por clculos de soma zero, temendo que o Mercosul e a Alca fossem mutuamente excludentes. Finalmente, uma terceira atitude emergiu com a preparao da Cpula de Santiago (1998), quando tiveram incio as negociaes formais para a Alca. Da em diante, o Brasil assumiu uma posio afirmativa, fundamentada em duas motivaes: a) o peso da sua presena no Mercosul e b) a articulao de urna posio nacional em relao Alca. Ancorada nos interesses convergentes definidos pelo governo, o empresariado e os dirigentes sindicais. Com presteza, o Itamaraty transformou as demanda') de setores empresariais e das organizaes sindicais em relao Alca em um argumento para a fundamentao de suas posturas. Assim, uma politizao de vis nacionalista ganhou projeo, com a anuncia do governo e sustentada por setores do empresariado e da rea sindical e por segmentos partidrios e acadmicos. Em todos os casos, observou-se lima crescente preocupao no s quanto aos efeitos econmicos assimtricos da liberalizao comercial em jogo mas tambm quanto ausncia de garantia de reciprocidade por parte dos Estados Unidos. O impacto das disputas comerciais entre Brasil e Estados Unidos, particularmente aquelas em que as exportaes brasileiras eram sistematicamente afetadas pelas barreiras norte-americanas contriburam para reforar esse tipo de apreenso. Nesse contexto, uma proposta foi tecida com sucesso pelo Brasil, compreendendo trs premissas essenciais: a indissolubilidade do Mercosul, o gradualismo no processo de negociao e o equilbrio entre custos e benefcios.

As relaes polticas Brasil EUAA agenda de primeiro nvel poltica e segurana internacional: Nos anos 1990, tornou-se consensual no Itamaraty a ideia de que as relaes com os Estados Unidos alcanaram uma etapa de "maturidade poltica". Os contatos bilaterais ganharam franqueza, evitando-se que as reas problemticas como as disputas comerciais contaminassem o relacionamento em sua totalidade. Ao mesmo tempo, a poltica externa brasileira lanou mo de uma agenda positiva no que diz respeito s expectativas dos Estados Unidos na rea de segurana internacional, particularmente aquelas referentes adeso a regimes internacionais de no-proliferao - Tratado de No-Proliferao (TNP); Regime de Controle de Tecnologia de Msseis CMTCR) - s operaes de paz da Organizao das Naes Unidas (ONU). No entanto, a construo de uma agenda positiva de manuteno da paz no impediu que os dois pases mantivessem posies diferentes em uma ampla parcela de resolues da Assemblia-Geral da ONU, relativas aos temas de desarmamento e direitos humanos. Enquanto os votos de ambos os pases raramente coincidem na Assemblia-Geral, eles normalmente convergem no Conselho de Segurana. Isso se explica pejo fato de que, na Assemblia-Geral, a identidade internacional do Brasil se guia pelas posies do Terceiro Mundo, que geralmente contrastam com as dos Estados Unidos e de outras potncias mundiais. Este perfil, entretanto, adquire novos matizes no Conselho de Segurana, que lida com uma agenda mais complexa e diretamente vinculada aos esforos de manuteno da paz mundial. De fato, os mais recentes eventos mundiais confirmavam a ampliao do alcance da convergncia com os Estados Unidos, particularmente em relao aos valores polticos e aos esforos pela paz mundial. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, o Brasil reagiu com dois tipos de resposta. De um lado, redobrou seus esforos em defesa do multilateralismo e, de outro, mostrou uma clara preocupao com o impacto humanitrio das aes de interveno militar e reforou as medidas de controle das operaes de lavagem de dinheiro no Brasil que poderiam facilitar as operaes terroristas. Dessa forma, o governo brasileiro evitou o alinhamento poltica de defesa dos Estados Unidos, mas assegurou seu apoio guerra contra o terrorismo, liderada por Washington. Na poltica de segurana regional, pouco a pouco, o Brasil passou a assumir urna postura mais atuante em questes de segurana regional. O uso da diplomacia presidencial pelo governo Cardoso tornou-se particularmente importante para estreitar o contato com a Casa Branca, em contextos de crises polticas na Amrica do Sul. Assim, a partir de uma convivncia menos tensa, Estados Unidos e Brasil concordaram, por exemplo, com a ideia de que o tema Colmbia deveria ser abordado de forma flexvel e aberta, levando-se em considerao as percepes de cunho regional, sub-regional ou dos pases individualmente. Na ecloso da guerra Equador-Peru em. 1995, bem como nos momentos de maior turbulncia poltica no Paraguai, esse dilogo foi crucial para coordenar posies. Aps os atentados de 11 de setembro, os interesses de segurana dos Estados Unidos na Amrica do Sul foram diretamente afetados, o que inevitavelmente repercutiu sobre as relaes com o Brasil. Na - reunio Ministerial de Defesa das Amricas, realizada em Santiago em 2002, novas tenses surgiram entre Brasil e Estados Unidos diante das demandas de Washington com respeito s polticas de segurana na regio, especialmente aquelas de combate ao terrorismo.A agenda de segundo nvel direitos humanos: em meados dos anos 1970, os direitos humanos tomaram-se um tema espinhoso no relacionamento do Brasil com os Estados Unidos. Durante a administrao Carter (1977-80), a poltica oficial dos Estados Unidos assumiu uma posio particularmente crtica s ditaduras militares latino-americanas, incluindo o Brasil. Com o fim da era autoritria na Amrica do Sul e o processo de paz na Amrica Central, o tema dos direitos humanos passa por uma redefinio de enfoque e de sujeitou. Confrontadas com a necessidade de se ajustarem realidade democrtica, as Organizaes No Governamentais (ONGs) de direitos humanos diversificaram sua agenda na Amrica Latina, adotando uma perspectiva inclusiva. Para fazer frente a esse cenrio e lidar com as presses da Comisso de Direitos Humanos da ONU, dos governos europeus e dos Estados Unidos e das ONGs internacionais, mesmo antes de dispor de uma poltica ativa de direitos humanos, o Brasil passou a fazer-se presente no campo da diplomacia de direitos humanos. Nos Estados Unidos, o tema ganhou nova relevncia na agenda oficial, com a administrao Clinton. Entretanto, a Casa Branca mostrou-se cuidadosa com o Brasil, no sentido de no incluir o tema dos direitos humanos na lista de questes pendentes da agenda bilateral. Vale ainda mencionar Que o fato de os abusos aos direitos humanos no Brasil tornarem-se foco de ateno de ONGs dos dois pases no se traduzia, necessariamente, em urna coincidncia entre estas quanto as percepes e s recomendaes de polticas. Enquanto nos Estados Unidos a estratgia destas organizaes apontava para a expanso do ativismo e para a possibilidade de interferncia crescent