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1 Pluralidade, Inovação Social e Gestão no Brasil Contemporâneo Autoria: Maurício Serva, Luciano A. Prates Junqueira Resumo Integrador Contemplando o tema do IV ENEO — Apropriando teoria e prática, deslocando o centro — propomos um olhar atento sobre um dos aspectos mais marcantes desse centro. Primeiramente, consideramos como centro “o Brasil em sua enorme diversidade de locais e regiões”, tal como está colocado como uma das opções na apresentação da chamada de trabalhos do evento. Ao considerar o Brasil como centro, deparamo-nos com a pluralidade, dentre outras dimensões deste centro tão plural. Abundante em biodiversidade, o Brasil também o é no que diz respeito à “sociodiversidade”. Esta dimensão sofre um constante incremento pela intensidade da ação coletiva expressa em vários segmentos sociais e em diversas regiões deste país continental. Por sua vez, a intensidade e a criatividade que caracterizam a ação coletiva no Brasil nos conduzem a examinar os processos de inovação social. A inovação social pode ser concebida a partir de três níveis de análise: o indivíduo, a organização e o meio social (território). No nível de análise do indivíduo, a inovação social é vista como um processo dirigido para mudanças que venham a promover o desenvolvimento do indivíduo de forma que ele retome o poder sobre o desenrolar de sua própria vida. No nível organizacional, as inovações sociais se relacionam com o desenvolvimento de estruturas de produção, com ênfase em novas formas de organização do trabalho. A inovação social orientada para o meio social visa desenvolver um dado território em vista de melhorar a qualidade de vida dos atores. O estudo da inovação social no nível territorial abrange uma vasta gama de aspectos, neste sentido a inovação pode ser examinada ao menos em função da incidência sobre os planos econômico, social, ambiental, político e cultural. Assim, podemos identificar inovações sociais concernentes à regulação e/ou à concretização de objetivos de crescimento econômico, de aumento da produtividade, de melhor utilização de recursos do território, etc. Há também inovações destinadas à promoção de grupos sociais específicos ou mesmo de coletividades mais amplas compreendidas num mesmo território, melhorando as condições de vida de seus membros. Igualmente, não se pode negligenciar a importância das inovações sociais no campo político, que muitas vezes objetivam a afirmação da identidade de determinados grupos marginalizados do processo político, o avanço da democracia, ou ainda o aperfeiçoamento da organização da sociedade civil, dentre outros objetivos. Esta proposta de sessão coletiva é centrada neste último nível de análise e discute seis casos. O primeiro caso discutido (Inovação Social e Governança em Parceria – o Caso da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco) nesta proposta é uma inovação engendrada no seio da administração pública. Na cidade de Curitiba, desenvolve-se há seis anos um arranjo em rede de instituições estatais e organizações da sociedade civil que vem obtendo um destaque nacional no campo da proteção de crianças e adolescentes. A rede foi criada de forma espontânea por profissionais lotados em diversos órgãos da Prefeitura Municipal de Curitiba. Em seguida, várias organizações da sociedade civil foram se agregando à rede, compondo atualmente 93 pontos de referência distribuídos pela cidade. Assim, além de órgãos municipais das áreas de educação e saúde, fazem parte da rede associações de bairro, Ministério Público, Conselhos Municipais, hospitais privados, escolas, polícia civil, dentre outras instituições. Uma espécie de governança em parceria desempenha a gestão dessa rede. O segundo caso de inovação social (Identidade Territorial e Gestão de Redes Sociais Produtivas: um Estudo de Caso Comparativo na Rede Ecovida de Agroecologia) aborda dois núcleos da maior rede de agricultores familiares agroecológicos do país. Situada ao longo dos três

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Pluralidade, Inovação Social e Gestão no Brasil Contemporâneo

Autoria: Maurício Serva, Luciano A. Prates Junqueira Resumo Integrador

Contemplando o tema do IV ENEO — Apropriando teoria e prática, deslocando o centro — propomos um olhar atento sobre um dos aspectos mais marcantes desse centro. Primeiramente, consideramos como centro “o Brasil em sua enorme diversidade de locais e regiões”, tal como está colocado como uma das opções na apresentação da chamada de trabalhos do evento. Ao considerar o Brasil como centro, deparamo-nos com a pluralidade, dentre outras dimensões deste centro tão plural. Abundante em biodiversidade, o Brasil também o é no que diz respeito à “sociodiversidade”. Esta dimensão sofre um constante incremento pela intensidade da ação coletiva expressa em vários segmentos sociais e em diversas regiões deste país continental. Por sua vez, a intensidade e a criatividade que caracterizam a ação coletiva no Brasil nos conduzem a examinar os processos de inovação social.

A inovação social pode ser concebida a partir de três níveis de análise: o indivíduo, a organização e o meio social (território). No nível de análise do indivíduo, a inovação social é vista como um processo dirigido para mudanças que venham a promover o desenvolvimento do indivíduo de forma que ele retome o poder sobre o desenrolar de sua própria vida. No nível organizacional, as inovações sociais se relacionam com o desenvolvimento de estruturas de produção, com ênfase em novas formas de organização do trabalho. A inovação social orientada para o meio social visa desenvolver um dado território em vista de melhorar a qualidade de vida dos atores. O estudo da inovação social no nível territorial abrange uma vasta gama de aspectos, neste sentido a inovação pode ser examinada ao menos em função da incidência sobre os planos econômico, social, ambiental, político e cultural. Assim, podemos identificar inovações sociais concernentes à regulação e/ou à concretização de objetivos de crescimento econômico, de aumento da produtividade, de melhor utilização de recursos do território, etc. Há também inovações destinadas à promoção de grupos sociais específicos ou mesmo de coletividades mais amplas compreendidas num mesmo território, melhorando as condições de vida de seus membros. Igualmente, não se pode negligenciar a importância das inovações sociais no campo político, que muitas vezes objetivam a afirmação da identidade de determinados grupos marginalizados do processo político, o avanço da democracia, ou ainda o aperfeiçoamento da organização da sociedade civil, dentre outros objetivos. Esta proposta de sessão coletiva é centrada neste último nível de análise e discute seis casos.

O primeiro caso discutido (Inovação Social e Governança em Parceria – o Caso da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco) nesta proposta é uma inovação engendrada no seio da administração pública. Na cidade de Curitiba, desenvolve-se há seis anos um arranjo em rede de instituições estatais e organizações da sociedade civil que vem obtendo um destaque nacional no campo da proteção de crianças e adolescentes. A rede foi criada de forma espontânea por profissionais lotados em diversos órgãos da Prefeitura Municipal de Curitiba. Em seguida, várias organizações da sociedade civil foram se agregando à rede, compondo atualmente 93 pontos de referência distribuídos pela cidade. Assim, além de órgãos municipais das áreas de educação e saúde, fazem parte da rede associações de bairro, Ministério Público, Conselhos Municipais, hospitais privados, escolas, polícia civil, dentre outras instituições. Uma espécie de governança em parceria desempenha a gestão dessa rede.

O segundo caso de inovação social (Identidade Territorial e Gestão de Redes Sociais Produtivas: um Estudo de Caso Comparativo na Rede Ecovida de Agroecologia) aborda dois núcleos da maior rede de agricultores familiares agroecológicos do país. Situada ao longo dos três

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estados do sul do país, a Rede Ecovida, criada em 1998, reúne cerca de 1.500 famílias de pequenos agricultores organizadas em grupos e em 22 núcleos regionais. O seu funcionamento é descentralizado e baseado na articulação desses núcleos, configurando um modelo singular de gestão em se considerando o contexto da agricultura familiar brasileira. O estudo empreende uma análise comparativa da gestão de dois desses núcleos: um na Região Metropolitana de Curitiba e outro no município de Francisco Beltrão localizado no extremo oeste do Paraná. Dois territórios distantes, com culturas díspares, uma predominantemente urbana e moderna, outra predominantemente rural e tradicional, mas uma mesma rede, com mesmos objetivos. A categoria chave para a análise comparativa da gestão de tais núcleos é a formação sócio-espacial. Um olhar interdisciplinar, partindo da geografia e passando pela administração, história, economia e sociologia é construído para melhor compreender as semelhanças e diferenças internas na gestão. Nessa ótica, as noções de espaço, território e identidade são fundamentais para analisar as práticas de gestão dessa inovação social.

A terceira ilustração de inovação social focaliza a atividade do surfe e o seu impacto na região de Florianópolis. O estudo intitulado O Surfe Além das Ondas: uma Atividade de Desenvolvimento Local da Região Metropolitana de Florianópolis, aborda o surfe como um fenômeno social amplo, transcendendo a prática esportiva em si. O surfe foi introduzido em Florianópolis no ano de 1974, mas nos últimos dez anos uma série de inovações sociais foi engendrada em torno dessa prática esportiva, desembocando no estabelecimento definitivo da cidade como a “capital do surfe” no país e ponto de referência internacional. Apesar de ser praticado em toda a costa brasileira, apenas Florianópolis é sede de etapas da primeira divisão do circuito mundial do surfe. Atualmente, a cidade é o centro produtor de 28% de todas as pranchas de surfe do Brasil, concentrando cerca de 70 fábricas que disputam um mercado altamente competitivo. Ao longo da cadeia de valor da produção ligada ao surfe, centenas de empregos são ocupados em sua maioria por jovens, considerando a esfera da produção e comercialização de pranchas e acessórios, comércio da moda inspirada no surfe, organização de eventos e infraestrutura do turismo incrementado pela atividade. O estudo de caso busca examinar a problemática do surfe e toda a inovação social produzida em torno dela, como um possível caso de desenvolvimento local. Para tanto, estabelece um quadro de análise que contempla as dimensões social, cultural, ecológica, econômica, política e territorial.

O quarto caso (A Bolsa de Valores de São Paulo e a Responsabilidade Social Corporativa) aborda a inovação compreendida pela criação da Bolsa de Valores Sociais – BVS pela Bolsa de Valores de São Paulo – BOVESPA. Experiência única no seio das bolsas de valores, a BVS é uma ilustração expressiva da capacidade de inovação da ação coletiva no Brasil. A BVS utiliza toda a credibilidade institucional alcançada pela BOVESPA, como também a sua infraestrutura com o intuito de captar recursos e destiná-los a diversos projetos sociais desenvolvidos e mantidos por organizações não-governamentais. Os recursos captados são imediata e integralmente transferidos para as organizações sociais e há um acompanhamento por parte da BVS. Em termos operacionais, a BVS é uma “carteira” de trinta projetos sociais previamente selecionados por um Conselho composto por atores envolvidos publicamente com o Terceiro Setor. Esse processo é uma inovação social, pois a Bolsa de Valores inova ao criar a BVS, uma vez que ela passa a dar sua contribuição captando recursos para investir no social. O estudo empreende uma pesquisa de campo com atores da BOVESPA no sentido de mapear sua percepção da responsabilidade social corporativa face à instituição da BVS, como também com dirigentes de 35 corretoras que atuam nos processos de captação (“corretoras sociais”).

O quinto caso, intitulado Privatização do Porto de Santos e o Novo Arranjo Organizacional para a Gestão da Mão-de-Obra Portuária, analisa a inovação social que se produziu a partir da privatização dos portos brasileiros. Tomando o Porto de Santos como caso exemplar, uma vez que esse é o maior e mais importante porto do país, o estudo busca ampliar o

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conhecimento sobre essa inovação que atinge uma das atividades mais tradicionais da economia brasileira. Antes gerida pelos sindicatos, a mão-de-obra portuária passa a ser administrada, após a privatização do porto, por um novo organismo denominado Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO), uma organização híbrida, pois situada na fronteira entre a esfera pública e a esfera privada. O OGMO é administrado por um Conselho de Supervisão, congregando representantes dos sindicatos de trabalhadores e dos sindicatos patronais. Assim, a privatização dos portos, defendida por muitos como uma das formas de redução do “Custo Brasil”, desemboca no estabelecimento de uma inovação que incita o nosso senso inquisitivo, pois cria uma entidade com a finalidade de integrar capital e trabalho no seio de uma das atividades historicamente mais afetadas pelas lutas de classe. O estudo aborda tanto as diferentes visões dos trabalhadores sobre o novo arranjo e o OGMO, como questões específicas sobre essa entidade híbrida, tais como suas características, seu funcionamento, a gestão do Conselho, e as diferenças na gestão da mão-de-obra com relação ao modelo anterior no qual os sindicatos de trabalhadores exerciam a gestão do pessoal.

O sexto caso (Turismo Sustentável como Agente de Desenvolvimento Local) busca demonstrar a inovação social expressa pela mudança das grandes políticas de desenvolvimento para o desenvolvimento local na dimensão do turismo, apresentando como evidência empírica a análise do caso de Cumuruxatiba, uma comunidade pesqueira situada no extremo sul da Bahia. A região apresenta um potencial significativo para o desenvolvimento do turismo, em razão de vários fatores, dentre os quais a sua localização no interior da Mata Atlântica, os atrativos naturais do litoral sul da Bahia e a proximidade do local exato do descobrimento do Brasil. O turismo, atividade para qual a região tem vocação natural, vem adquirindo cada vez mais importância na economia regional ao vislumbrar no desenvolvimento de atividades turísticas a possibilidade de minimizar parte dos problemas sócio-econômicos, podendo ser a alternativa para a inclusão social, a geração de emprego e renda e a conscientização da comunidade. O estudo analisa as inovações geradas pela atividade turística, focalizando a oferta de trabalho, a cultural local, a geração de renda e a preservação da natureza. O pano de fundo da análise concentra-se na participação da comunidade e na construção da identidade que geram um desenvolvimento local inovador e sustentável.

Esses diferentes exemplos de inovação social, dignos do Brasil plural, do “Brasil como centro”, nos impulsionam a empreender um esforço para apropriar teoria e prática, à luz da análise da gestão. Em que poderíamos contribuir para o desenvolvimento da administração a partir de uma melhor compreensão da inovação social num país tão plural? Eis o desafio que assumimos com esta proposta de sessão coletiva.

Coordenadores da sessão coletiva: Maurício Serva e Luciano A. Prates Junqueira Instituições: PUCPR, PUCSP, CIRIEC, UNISANTOS Membros-autores de trabalhos: Evandro Márcio Aresi Marcel Mendes da Silva Paulo Cruz Filho

Maurício Serva Luciano A. Prates Junqueira

Maria Amelia Jundurian Corá Rodrigo Nunes de Oliveira

Wagner R. Roxo de Pádua Souza Maria Aparecida Ferreira Aguiar

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Pluralidade, Inovação Social e Gestão no Brasil Contemporâneo Autoria: Maurício Serva e Luciano A. Prates Junqueira Resumo

Este trabalho aborda a questão das inovações sociais do ponto de vista da gestão. Ao contrário das inovações tecnológicas, as inovações sociais não são objeto de estudos muito numerosos, principalmente pondo em destaque a gestão. Não obstante, a inovação social apresenta um rico potencial de estudos, notadamente num país como o Brasil, onde a pluralidade é uma das marcas mais expressivas da sua configuração sócio-histórica.

O estudo tem por objetivo primordial despertar o interesse dos colegas pesquisadores para o estudo das inovações sociais, para tanto fazemos um breve levantamento das abordagens teóricas da inovação social e, em seguida, apresentamos seis casos como ilustrações da riqueza das inovações sociais no Brasil. Algumas considerações sobre a problemática da gestão nesses casos são empreendidas, lançando um desafio e, ao mesmo tempo, um incentivo aos pesquisadores para a continuidade e o aprofundamento de estudos dessa natureza.

Inovação Social e Governança na Gestão Pública Municipal – Um Estudo de Caso Autoria: Paulo Roberto Araújo Cruz Filho Resumo A governança é definida como um processo de coordenação de atores, de grupos sociais, de instituições para alcançar propósitos próprios discutidos e definidos coletivamente dentro de ambientes fragmentados e incertos. Para auxiliar na solução do problema da violência em Curitiba desenvolve-se ao longo de seis anos uma rede, inserida dentro de um contexto de inovação social, criada por uma ação de atores do Estado com organizações da sociedade civil: a “Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência”. A análise de suas características possibilitou ao autor avançar nos estudos sobre a governança e governança de redes, principalmente dentro do contexto sócio-econômico brasileiro, assim como incorporar a compreensão sobre a gestão de redes interorganizacionais inseridas em um regime de governança para o serviço público no contexto municipal. Como o estudo da governança ainda inicia-se no

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Brasil, pesquisas e estudos sobre o tema são extremamente necessários para o desenvolvimento e aproveitamento de seus conceitos.

Inovação social, formação sócio-espacial e gestão de redes sociais produtivas:

um estudo de caso comparativo da Rede Ecovida de Agroecologia Autores: Evandro Marcio Aresi e Maurício Serva Resumo O presente trabalho tem como objetivo principal contribuir para a análise da inovação social e da gestão de redes sociais produtivas a partir do conceito de formação sócio-espacial. Trata-se de um estudo de caso comparativo da gestão de dois núcleos da Rede Ecovida de Agroecologia: um núcleo da Região Metropolitana de Curitiba e outro da região de Francisco Beltrão – oeste do estado do Paraná. Trata-se de um estudo de natureza qualitativa. Os métodos de coleta de dados empregados são a entrevista semi-estruturada, a análise de documentos e a observação direta. Foram entrevistados agricultores e técnicos das ONGs que compõem os núcleos da Rede Ecovida analisados. A geografia serve como ponto de partida para a fundamentação teórica para esse tipo de inovação social através das noções de espaço, de formação sócio-espacial e de identidade territorial. Consideramos como pressuposto que a formação sócio-espacial pode ser considerada como uma dimensão da realidade a partir da qual os processos de gestão de uma rede social de produção familiar agroecológica pode sofrer influências. A identidade territorial, de seu modo peculiar, fornece os subsídios necessários para o aprofundamento e coerência da discussão.

O Surfe Além das Ondas: Uma Atividade de Desenvolvimento Local da Região de Florianópolis

Autoria: Marcel Mendes Silva. Resumo O estudo em questão tem como objetivo principal analisar a atividade empresarial do surfe, na região de Florianópolis, segundo a abordagem do desenvolvimento local e sob o prisma da inovação social. Através do método qualitativo, por meio de entrevistas semi-estruturadas com representantes da cadeia de valor do surfe, e logicamente com a devida fundamentação teórica, chegou-se a conclusão sobre a relação de tal atividade com os princípios do desenvolvimento local e que o leitor pode conhecer nas páginas que seguem.

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A Bolsa de Valores de São Paulo e a Responsabilidade Social Corporativa

Autoria: Wagner R. Roxo de Padua Souza, Maria Aparecida Ferreira Aguiar. Resumo

Este estudo de inovação social refere-se a um processo organizacional, a criação pela Bolsa de Valores de São Paulo – BOVESPA de uma Bolsa de Valores Sociais. Diversas organizações têm se preocupado com o tema da responsabilidade social corporativa, declarando ter assumido uma postura ética e socialmente correta, pela qual procuram firmar-se como instituições de destacada importância na sociedade. A BOVESPA, lançando em 2004 a Bolsa de Valores Sociais – BVS, teve uma iniciativa não apenas inovadora como pioneira, pois é a primeira experiência dessa natureza realizada por uma bolsa de valores. Este trabalho analisa os resultados de uma pesquisa junto a atores da BOVESPA para verificar seu entendimento da responsabilidade social corporativa e de sua prática com a criação da Bolsa de Valores Sociais, e também com os dirigentes de 35 corretoras envolvidas no projeto de captação, denominadas de corretoras sociais.

Privatização do Porto de Santos e o Novo Arranjo Organizacional

para a Gestão da Mão-de-Obra Portuária Autoria: Luciano A. Prates Junqueira, Rodrigo Nunes de Oliveira. Resumo

Este trabalho examina a inovação social que se dá no âmbito da organização do Porto de Santos. Com a implantação da Lei dos Portos 8.630/93, é criado um novo Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO), que muda a lógica da relação capital e trabalho no interior dos portos nacionais e implanta uma nova forma de gestão da produção no Porto de Santos. Por força da lei, surge uma nova figura organizacional com a finalidade de gerenciar a mão-de-obra portuária avulsa, retirando dos sindicatos o seu papel gestor. A pesquisa foi realizada em 2005 junto aos trabalhadores avulsos portuários, e com ela pretendemos melhor compreender o caráter inovador da mudança portuária, buscando privilegiar a inovação social que está presente na criação do OGMO, que traz em seu bojo uma nova perspectiva de gestão para os trabalhadores e para o

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Porto de Santos. Neste sentido, o estudo aborda questões tais como: como era gerenciada anteriormente a mão-de-obra e como está sendo agora, com a criação do OGMO e a eliminação do papel gestor do sindicato? Quais as características do OGMO, como funciona, como organiza a mão-de-obra? Como se dá a gestão do Conselho que integra trabalhadores organizados e operadores, sindicatos trabalhista e patronal?

Turismo Sustentável como Agente de Desenvolvimento Local Autoria: Maria Amélia J. Corá RESUMO

Esse trabalho procura mostrar que sob o enfoque de inovação social a mudança das políticas de desenvolvimento tradicional para o desenvolvimento local como uma alternativa para se alcançar a melhoria na qualidade de vida da população. A atividade turística tornar-se alavancadora desse processo, uma vez que o turismo deve ser pensado como um elo de integração entre os vários atores sociais da comunidade local. Apresenta como estudo de caso de uma comunidade pesqueira no extremo sul da Bahia: Cumuruxatiba. O turismo, atividade para qual a região tem vocação natural, vem adquirindo importância na economia local ao vislumbrar a possibilidade de minimizar os problemas sócio-econômicos, permitindo a inclusão social, a geração de emprego e renda e a conscientização da comunidade. O objetivo é analisar as transformações ocorridas pela atividade turística no desenvolvimento local sustentável bem como verificar as mudanças ocasionadas pela atividade turística quanto: a oferta de trabalho, a capacitação profissional, a cultura local, a geração de renda.

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Pluralidade, Inovação Social e Gestão no Brasil Contemporâneo Autoria: Maurício Serva e Luciano A. Prates Junqueira Introdução

Contemplando o tema do IV ENEO — Apropriando teoria e prática, deslocando o centro

— propomos um olhar atento sobre um dos aspectos mais marcantes desse centro. Primeiramente, consideramos como centro “o Brasil em sua enorme diversidade de locais e regiões”, tal como está colocado como uma das opções na apresentação da chamada de trabalhos do evento. Ao considerar o Brasil como centro, deparamo-nos com a pluralidade, dentre outras dimensões deste centro tão plural. A pluralidade, enquanto produto do encontro de diversas etnias no território brasileiro, proporcionou a ocorrência de uma sociedade ímpar na contemporaneidade, marcada por formas múltiplas de sociabilidade integradas sob a égide de uma mesma nação (RIBEIRO, 1995).

A pluralidade social sofre um constante incremento pela intensidade da ação coletiva expressa em vários segmentos sociais e em diversas regiões deste país continental. Por sua vez, a intensidade e a criatividade que caracterizam a ação coletiva no Brasil nos conduzem a examinar os processos de inovação social e sua relação com a gestão.

A inovação social pode ser concebida a partir de três níveis de análise: o indivíduo, a organização e o meio social ou território (CLOUTIER, 2003). No nível de análise do indivíduo, a inovação social é vista como um processo dirigido para mudanças que venham a promover o desenvolvimento do indivíduo de forma que ele retome o poder sobre o desenrolar de sua própria vida. No nível organizacional, as inovações sociais se relacionam com o desenvolvimento de estruturas de produção, com ênfase em novas formas de organização do trabalho. A inovação social orientada para o meio social visa desenvolver um dado território em vista de melhorar a qualidade de vida dos atores. O estudo da inovação social no nível territorial abrange uma vasta gama de aspectos, neste sentido a inovação pode ser examinada em função da incidência sobre os planos econômico, social, organizacional, ambiental, político e cultural.

Neste trabalho, abordaremos a inovação social na interrelação entre os níveis organizacional e territorial, partindo do pressuposto de que a gestão se coloca justamente na interface entre esses dois níveis, abrindo vias para uma melhor compreensão dos processos de inovação social. Primeiramente, discutiremos algumas abordagens teóricas da inovação social e, em seguida, apresentaremos alguns casos de inovação produzidas no Brasil, fazendo algumas observações sob o enfoque da gestão. Algumas abordagens da inovação social

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Ao contrário da inovação tecnológica, a inovação social não tem sido alvo de muitos estudos, e, conseqüentemente, muito há que se fazer para o aprofundar o conhecimento científico desse fenômeno. Não obstante, tentaremos esboçar um breve panorama dos estudos realizados, visando dar uma idéia ao leitor do direcionamento geral desses estudos. Iniciaremos pela tentativa de Cloutier (2003) de responder às seguintes questões: a) o que é a inovação social? b) quais são suas dimensões e características fundamentais? Como vimos acima, a autora concebe a inovação social sob três níveis: do indivíduo, da organização e do território.

No nível do indivíduo, Cloutier (2003) faz referência, principalmente, às inovações que visam minorar ou eliminar os efeitos nocivos da exclusão social, promovendo o desenvolvimento integral do indivíduo através de mudanças nos processos sociais dos quais ele participa. Assim, Cloutier indica que “a inovação social se dá a partir do potencial dos indivíduos e consiste em um processo de aprendizagem visando a aquisição de conhecimentos, a modificação de representações, bem como uma nova aprendizagem da cooperação” (CLOUTIER, 2003, p. 5). Uma ilustração desse tipo de inovação é aquela gerada pela participação de usuários de determinados serviços sociais na criação de redes que venham a aperfeiçoar a prestação desses serviços. Segundo a autora, esse tipo de participação reconhece a autonomia das pessoas e seu potencial para solucionar problemas que lhes afetam. Enfim, a inovação neste nível se definiria mais pelas suas conseqüências positivas para o indivíduo que pelo seu processo.

Já no nível organizacional, a inovação é relacionada à (re)organização do trabalho, isto é, a uma nova divisão do trabalho e à modificação das estruturas de poder. No bojo dos estudos sobre a inovação social nas organizações, Cloutier (2003) identifica duas perspectivas distintas: a perspectiva instrumental e a perspectiva não instrumental. Na primeira, a reorganização do trabalho é vista como um novo arranjo social que favorece a criação de conhecimentos técnicos e a inovação tecnológica em si. A inovação social aqui é sobretudo uma condição necessária e mesmo essencial para a criação e a colocação em prática da inovação tecnológica; ela é analisada em termos de uma lógica puramente instrumental, na qual o bem estar dos indivíduos é ignorado no processo. Entretanto, os estudos interpretados por Cloutier (2003) como sendo gerados por uma perspectiva não instrumental considera as novas formas de organização do trabalho a título de inovação social porque elas permitem melhorar a qualidade de vida no trabalho. Tais estudos estariam ligados a abordagem sociotécnica do Tavistock Institute, nos quais a mudança na organização do trabalho “exige que se leve em conta as lógicas de ação dos empregados. A inovação social consiste então em novas formas de organização do trabalho que, levando em conta os interesses dos indivíduos e assegurando a satisfação de suas necessidades, os conduzem a cooperar em vista de realizar os objetivos da empresa” (CLOUTIER, 2003, p. 23). Vê-se que a autora reduz a atribuição dos tipos de racionalidade na mudança organizacional — questão extremamente complexa — à tentativa de integração dos objetivos individuais aos objetivos organizacionais (tentativa já posta em questão há muito tempo pelo paradigma crítico na teoria das organizações).

No terceiro nível, Cloutier (2003) identifica que a inovação social é reconhecida em razão das conseqüências sociais positivas que ela gera para um determinado território. Seriam, então, “novas formas de agir” que contribuiriam tanto para resolver problemas econômicos e sociais, como para melhorar a qualidade de vida. Neste sentido, a inovação social também pode se constituir em atitudes de prevenção de problemas sociais. Os alvos da mudança podem agrupar desde valores, crenças e representações compartilhados por uma sociedade, passando por suas instituições e alcançando seu sistema produtivo. A autora cita dois conjuntos principais de abordagens nos estudos da inovação social territorial: as abordagens do desenvolvimento (territorial e sustentável) e abordagem do consumo. Nas abordagens do desenvolvimento, o debate é intenso e alcança fóruns como as conferências internacionais promovidas pela ONU, nas

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quais a questão ambiental ocupa lugar de destaque. As parcerias, reunindo atores diversificados e situados no mesmo território, são também um tema de grande interesse na atualidade, e se constituem em formas de ação típicas da inovação social no nível territorial. Neste nível, a amplitude da inovação é a maior, com relação àquela abordada nos níveis do indivíduo e da organização, pois as variáveis e os fatores concernentes muitas vezes estendem-se às dimensões econômica, social, organizacional, ambiental, político e histórico-cultural. Seus efeitos tendem a apresentar uma maior tendência à propagação no longo prazo, principalmente quando partem de mudanças institucionais. Na abordagem do consumo, “a inovação social representa uma nova maneira para uma população de consumir uma categoria de bens (nutrição, transporte, saúde, lazer, etc.)” (CLOUTIER, 2003, p. 18). Essa inovação estaria ligada às mudanças no estilo de vida de uma população e seria responsável por uma variação da demanda de produtos e serviços, acarretando a modificação da estrutura econômica; neste sentido, ela ajudaria a explicar, por exemplo, a passagem de uma sociedade agrária a uma sociedade industrial.

Analisando historicamente as inovações sociais face ao capitalismo tardio, Lévesque (2002) identifica os anos 90 como o início de um período de grandes mutações. Tais mutações ocasionam, dentre outros efeitos:

• Novas configurações espaciais das relações entre o Estado-nação e o local, a partir da globalização, das novas tecnologias de informação e das configurações que reúnem o Estado, o mercado e a sociedade civil, favorecendo assim novas formas de governança;

• Novas relações de produção que exigem, ao mesmo tempo, flexibilidade e integração, agregando inovações técnicas e inovações sociais;

• Novas relações de consumo, incentivando a participação mais intensa de usuários e clientes nas questões ligadas à qualidade e diversidade dos produtos;

• Novas relações entre empresas, ensejando ao mesmo tempo a cooperação e a concorrência, além de novas interações entre as empresas e o seu ambiente. Por conseqüência, há uma redescoberta da importância dos territórios inovadores e do capital social, das instituições socioculturais e das comunidades centradas sobre a importância do conhecimento.

Para Lévesque (2002), ao lado do mercado e da hierarquia, se impõem outras modalidades de coordenação com melhor desempenho no contexto de uma economia geradora de inovações: “de um lado, essas novas modalidades se apóiam no engajamento das pessoas e das comunidades, contrariamente ao mercado; de outro lado, elas requerem a horizontalidade, contrariamente às hierarquias privadas e do Estado” (LÉVESQUE, 2002, p. 8). O autor cogita que se essas são as tendências fortes de um novo modelo emergente, então isso representa um impacto nada desprezível para repensar as inovações sociais, implicando necessariamente dois aspectos: a) uma reconfiguração das relações entre o social e o econômico, na qual o social não é somente um output, mas também um input, ou seja, uma parte importante das vantagens comparativas; b) uma redefinição do social e do econômico. Esse último aspecto indica que a economia não pode mais ser definida exclusivamente em termos mercantis, pois ela requer cada vez mais recursos não mercantis e não monetários. Ademais, o social não pode mais ser definido exclusivamente como um custo, pois ele se constitui como um capital social, um espaço para investimento. O autor aponta um paradoxo causado pelas mutações do próprio capitalismo: no momento em que o capitalismo neoliberal parece se impor como dominante na economia mundial, a necessidade de intervenções sociais adquire uma amplitude jamais esperada (LÉVESQUE, 2002). Desse modo, a inovação social torna-se crucial no seio da economia atual, descortinando mais uma dimensão de estudos para a pesquisa científica.

Petitclerc (2003) aborda a questão da inovação social sob três dimensões, tendo em vista a concepção geral de uma teoria das transformações sociais. As três dimensões são as interações

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sociais, as organizações e as instituições. Em primeiro lugar, o autor estabelece uma matriz contendo níveis de análise, formas de ação e transformações sociais, a qual reproduzimos abaixo no quadro 1.

Quadro 1 Níveis de análise, ação e transformação social

AÇÃO / INOVAÇÃO

ESTRUTURA /

TRANSFORMAÇÃO

Nível microssocial

Interações sociais

Organizações

Nível macrossocial

Movimentos sociais

Instituições

Fonte: PETITCLERC, Martin. Rapport sur les innovations sociales et les transformations sociales. Cahier du Crises, no 313, p. 10, 2003.

A matriz acima dispõe a inovação e a transformação social nos planos analíticos básicos das ciências sociais: a ação e a estrutura. No nível de análise microssocial , são identificadas as interações sociais como vetores da ação inovadora, assim como as organizações como lócus para a transformação das estruturas sociais. No plano de análise macrossocial, temos os movimentos sociais como lócus principal da ação inovadora e as instituições como vetores da transformação estrutural. Ao focalizar as interações sociais, Petitclerc dá destaque às redes e às demais formas de reciprocidade como promotoras das inovações sociais na atualidade: “a lógica fundamental das interações sociais, quer se fale de redes, de capital social ou de dom, é a estruturação num tempo mais ou menos longo das relações sociais concretas segundo o princípio das ‘obrigações mútuas recíprocas’” (PETITCLERC, 2003, p. 11). Outro aspecto ressaltado é a negociação, a qual é considerada de grande importância para o processo de difusão das inovações. As redes, mesmo não escapando aos condicionamentos determinados pelas relações estratégicas e de poder, criam condições propícias para a confiança e a reciprocidade, construindo “pontes” entre atores que ocupam posições diferentes e, por vezes, contraditórias. A negociação, quando viabilizada pelos arranjos em rede, pode se constituir num processo facilitador para o florescimento da confiança e da reciprocidade. Ainda no nível de análise microssocial, as organizações são abordadas como espaços de produção de inovações sociais. As organizações seriam um meio para superação de interesses particulares, promovendo a aspiração a projetos inovadores com graus mais elevados de generalidade. Em alguns casos, ela permitiria ancorar projetos inovadores de forma mais durável no tempo do que aqueles impulsionados por determinadas redes sociais. Neste sentido, as organizações podem legitimar projetos inovadores dos atores, oferecendo canais eficazes para a difusão das inovações sociais (PETITCLERC, 2003). As organizações podem ser vistas também como espaços de mediação entre as interações sociais e as instituições, viabilizando a concretização das inovações pretendidas.

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No nível macrossocial, o autor ressalta o papel inovador dos “novos movimentos sociais” surgidos a partir dos anos 60. Tais movimentos, atuando num nível elevado de generalidade, poderiam ser portadores de transformações profundas na dita sociedade pós-industrial. Os conflitos ocasionados ou debatidos pelos novos movimentos sociais poderiam produzir estruturas institucionais que regularizariam comportamentos no nível organizacional. Segundo Petitclerc, “as regras do jogo institucional, como também os comportamentos no nível das organizações, seriam em parte determinadas pela natureza dos compromissos mais ou menos estabelecidos entre atores sociais” (PETITCLERC, 2003, p. 20). Dessa forma, o autor tenta traduzir o potencial de reconstrução de estruturas e, conseqüentemente, de transformação social dos novos movimentos. Entretanto, a autonomia transformadora dos movimentos sociais deve, necessariamente, ser considerada como relativa, uma vez que o seu potencial precisa ser analisado em contraste com os limites estabelecidos pela concorrência de lógicas identificadas no nível das interações sociais, das organizações e das instituições existentes. Assim, os movimentos sociais devem ser compreendidos no longo prazo e em estreita interação com a configuração institucional que caracteriza cada época. No que concerne às instituições, o autor abre a discussão reconhecendo o peso da dimensão temporal. Seria o caso de se colocar a questão de saber como as inovações sociais poderiam se estruturar no tempo e no espaço para formar um modelo institucional. Para Petitclerc, o que falta a muitas experiências inovadoras para que elas engendrem uma transformação social é o longo tempo das instituições. A análise das mudanças sociais, no nível institucional, demanda uma maior consideração do fator tempo, comparada à análise das interações e das organizações, além de remeter a análise à esfera das relações dos atores inovadores com o Estado. O autor define um sistema institucional como “um conjunto de normas, geralmente codificadas pelo Estado, que visa reduzir a incertezas causadas pela natureza conflituosa das relações sociais” (PETITCLERC, 2003, p. 16). Baseado na literatura existente, o autor argumenta que a autonomia de um sistema de institucional parece ser confirmada pela análise dos “sistemas nacionais de inovação”, nos quais os compromissos institucionais passados determinam durante muito tempo a dinâmica das inovações no interior de um território. Desse ponto de vista, “as margens de autonomia do sistema institucional são o produto de um contexto histórico preciso, que está na origem de uma série de conceitos (modelos de desenvolvimento, sistema nacional de produção, etc.) e que visa dar conta da combinação sempre original de mecanismos de coordenação no seio de um território” (PETITCLERC, 2003, p. 18). Numa outra perspectiva, a da abordagem da ação coletiva, Reynaud (2004) faz referência à inovação social. Para Reynaud (2004), uma condição sine qua non para a ação coletiva é o estabelecimento de regras; para que um grupo latente passe a ser um grupo ativo, não é suficiente que seus membros compartilhem valores ou interesses, mais que isso, é necessário que o grupo seja capaz de criar e impor a si próprio o cumprimento de regras. Isso significa reconhecer que a ação coletiva é função da capacidade de regulação. Ora, a inovação social sendo uma criação coletiva por definição, é também uma função da capacidade reguladora do grupo que a empreende. Segundo Reynaud (2004), o estabelecimento de regras marca a estruturação de um ator coletivo e, nesta visão, é possível identificar vários tipos de regras, como por exemplo: a) as regras de eficácia, que prescrevem as operações a realizar para o alcance de um objetivo determinado; b) as regras de coordenação e de autoridade que portam sobre as boas maneiras de trabalhar ou de decidir em conjunto; c) as regras que dizem respeito à hierarquia, a divisão e à organização do trabalho.

O autor postula que a inovação implica uma espécie de aprendizagem coletiva que consiste numa mudança de regulação, isto é, em substituição de regras existentes por novas regras sociais. Numa situação de inovação, emerge um fenômeno que o autor denomina “concorrência de regulações”, exigindo do grupo inovador uma capacidade adicional de impor,

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democraticamente ou não, a regulação que sustenta a inovação pretendida. Da mesma forma que uma inovação social necessita do convencimento daqueles que a ela estão sendo apresentados, a regulação que lhe é subjacente também necessita do mesmo convencimento. Isto quer dizer que não basta dominar tecnicamente o know how correspondente a uma inovação social proposta, a difusão e a concretização dessa inovação exige também uma espécie de expertise social: a capacidade, habilidade e legitimidade para substituir as regras anteriores. A inovação social não se dá num “campo vazio”, ela se instala, quando tem êxito, num espaço social já marcado por sistemas de regras anteriormente estabelecidos. Para Reynaud, a concorrência de regulações se manifesta também no cotidiano das organizações burocráticas, uma vez que ele considera a oposição entre sistema formal e sistema informal como um embate entre regulação de controle (sistema formal) e regulação autônoma. Neste sentido, o estabelecimento de regras através da relação hierárquica é uma manifestação da regulação de controle, enquanto a criação de regras que brota da convivência entre os membros do grupo e independem da relação hierárquica fazem parte da regulação autônoma. O autor afirma que “a oposição entre autonomia e controle é a oposição de duas estratégias coletivas diferentes. [...] Em outros termos, cada regulação ambiciona obter uma legitimidade, advinda das finalidades da organização” (REYNAUD, 2004, p. 112). No que concerne ao estudo das inovações sociais geradas no seio de organizações burocráticas, a compreensão dos processos de geração, difusão e concretização das inovações poderia ser significativamente ampliada ao considerarmos tais processos sob o ponto de vista da concorrência de regulações de controle e de autonomia. Casos de inovação social no Brasil – breves ilustrações Nesta seção, apresentaremos brevemente seis casos de inovação social geradas em diversos pontos do Brasil. Menos do que a análise detalhada desses casos, visamos ilustrar a intensidade e a criatividade que caracterizam a ação coletiva no nosso país.

O primeiro caso é de uma inovação engendrada no seio da administração pública. Na cidade de Curitiba, desenvolve-se há seis anos um arranjo em rede de instituições estatais e organizações da sociedade civil que vem obtendo um destaque nacional no campo da proteção de crianças e adolescentes. A Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco foi criada de forma espontânea por profissionais lotados em diversos órgãos da Prefeitura Municipal de Curitiba. Não se trata de um programa governamental, e sim de um projeto criado informalmente por técnicos da gestão municipal. Trata-se portanto de uma inovação social oriunda de uma regulação autônoma, mantendo ligações estreitas com o aparelho burocrático do governo municipal, mas não se confundindo com ele.

Em seguida à criação da Rede, no início dos anos 2000, várias organizações da sociedade civil foram se agregando, compondo atualmente 93 pontos de referência e de atendimento distribuídos pela cidade. Assim, além de órgãos municipais das áreas de educação e saúde, fazem parte da rede associações de bairro, Ministério Público, Conselhos Municipais, hospitais privados, escolas, polícia civil, dentre outras instituições. Uma espécie de governança em parceria é subjacente à gestão dessa rede. A forma de gestão praticada na Rede também pode ser considerada como uma inovação, no sentido que nenhuma outra ação organizada no âmbito do poder público municipal em Curitiba tem qualquer semelhança com o que se faz na Rede. Partindo das interações espontâneas entre atores sociais, inicialmente de cunho voluntarista, essa inovação social projeta-se na dimensão estrutural, alcançando as organizações que compõem a estrutura burocrática do governo municipal. Neste ponto, a ação coletiva se vê em face da concorrência das regulações de controle e autônomas, o que influencia decisivamente o modelo híbrido de gestão que a Rede pratica.

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O segundo caso de inovação social aborda a maior rede de agricultores familiares agroecológicos do país. Situada ao longo dos três estados do sul do país, a Rede Ecovida de Agroecologia, criada em 1998, reúne cerca de 1.500 famílias de pequenos agricultores organizados em grupos e em 22 núcleos regionais. O seu funcionamento é descentralizado e baseado na articulação desses núcleos, configurando um modelo singular de gestão em se considerando o contexto da agricultura familiar brasileira. No âmbito da agricultura “orgânica”, existem processos de certificação internacionalmente estabelecidos, realizados mediante auditagem externa e com algumas semelhanças aos modelos de certificação ISO. Uma das inovações introduzidas pela Rede Ecovida é a “certificação participava”, por meio da qual uma espécie de controle social da qualidade da produção agroecológica substitui o processo de auditagem externa (ANDION; SERVA, 2004). A Rede é composta por grupos formados por famílias de agricultores residindo no mesmo território; os agricultores, dentro dos seus respectivos grupos, responsabilizam-se mutuamente pelo controle das normas de produção agroecológica, segundo um conjunto de regras instituídas pela Rede (“Caderno de Normas da Produção Agroecológica”) e colocadas à disposição do público em geral. A Rede também assegura a rastreabilidade exigida pela recente lei (Lei 10.831/2003) da produção de alimentos orgânicos no país. No momento, a referida lei encontra-se em processo de regulamentação, no qual serão definidas quais as modalidades de certificação serão aceitas; a Rede Ecovida empreende esforços para que o seu processo de certificação participativa seja inserido na regulamentação da lei, isto é, seja aceito pelo Estado.

Podemos ver que este também é um caso de inovação social gerado através da regulação autônoma, uma vez que se tenta implantar um controle social dos riscos ambientais na produção de alimentos e, como afirma Reynaud (2004), essa regulação aspira à legitimidade no nível institucional.

A terceira ilustração de inovação social focaliza a atividade do surfe e o seu impacto na região de Florianópolis. O surfe aqui é abordado como um fenômeno social amplo, transcendendo a prática esportiva em si. O surfe foi introduzido em Florianópolis no ano de 1974, mas nos últimos dez anos uma série de inovações sociais foi engendrada em torno dessa prática esportiva, desembocando no estabelecimento definitivo da cidade como a “capital do surfe” no país e ponto de referência internacional. Apesar de ser praticado em toda a costa brasileira, apenas Florianópolis é sede de etapas da primeira divisão do circuito mundial do surfe. Atualmente, a cidade é o centro produtor de 28% de todas as pranchas de surfe do Brasil, concentrando cerca de 70 fábricas que disputam um mercado altamente competitivo. Ao longo da cadeia de valor da produção ligada ao surfe, centenas de empregos são ocupados em sua maioria por jovens, considerando a esfera da produção e comercialização de pranchas e acessórios, comércio da moda inspirada no surfe, organização de eventos e infraestrutura do turismo incrementado pela atividade. Esse fenômeno enseja a sua abordagem enquanto um possível caso de inovação no nível territorial, na linha do desenvolvimento local. A sua amplitude em Florianópolis já compreende um grau elevado de complexidade, contemplando as dimensões social, cultural, ecológica, econômica, política e territorial.

O quarto caso aborda a inovação compreendida pela criação da Bolsa de Valores Sociais – BVS pela Bolsa de Valores de São Paulo – BOVESPA. Experiência única no seio das bolsas de valores, a BVS é uma ilustração expressiva da capacidade de inovação da ação coletiva no Brasil. A BVS utiliza toda a credibilidade institucional alcançada pela BOVESPA, como também a sua infraestrutura com o intuito de captar recursos e destiná-los a diversos projetos sociais desenvolvidos e mantidos por organizações não-governamentais. Os recursos captados são imediata e integralmente transferidos para as organizações sociais e há um acompanhamento por parte da BVS. Em termos operacionais, a BVS é uma “carteira” de trinta projetos sociais previamente selecionados por um Conselho composto por atores envolvidos publicamente com o

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Terceiro Setor. Esse processo pode ser compreendido como uma inovação social no nível macrossocial, pois a Bolsa de Valores inova institucionalmente ao criar a BVS, além de dar a sua contribuição para além da dimensão econômica, captando recursos para investir em projetos sociais. Os mecanismos de gestão dessa inovação merecem ser analisados em profundidade, revelando toda a sua riqueza e também suas ambivalências.

O quinto caso é a inovação social que se produz a partir da privatização dos portos brasileiros. Tomando o Porto de Santos como caso exemplar, uma vez que esse é o maior e mais importante porto do país, observa-se que essa inovação atinge uma das atividades mais tradicionais da economia brasileira e geradora de uma cultura que possui uma tradição comparável à cultura operária: a cultura dos trabalhadores portuários. Antes gerida pelos sindicatos, a mão-de-obra portuária passa a ser administrada, após a privatização do porto, por um novo organismo denominado Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO), uma organização híbrida, pois situada na fronteira entre a esfera pública e a esfera privada. O OGMO é administrado por um Conselho de Supervisão, congregando representantes dos sindicatos de trabalhadores e dos sindicatos patronais. Assim, a privatização dos portos, defendida por muitos como uma das formas de redução do “Custo Brasil”, desemboca no estabelecimento de uma inovação que incita o nosso senso inquisitivo, pois cria uma entidade com a finalidade de integrar capital e trabalho no seio de uma das atividades historicamente mais afetadas pelas lutas de classe. Uma inovação social e produtiva, no nível institucional, que certamente traz conseqüências de grande porte para toda as comunidades que têm o porto como referencial simbólico, material e, portanto, econômico e cultural. A problemática da gestão nesta inovação apresenta-se como crucial para o futuro dessas comunidades.

O sexto caso busca ilustrar a inovação social expressa pela substituição das grandes políticas de desenvolvimento pela política de desenvolvimento local na atividade do turismo, apresentando como evidência empírica a região de Cumuruxatiba, uma comunidade pesqueira situada no extremo sul da Bahia. A região apresenta um potencial significativo para o desenvolvimento do turismo, em razão de vários fatores, dentre os quais a sua localização no interior da Mata Atlântica, os atrativos naturais do litoral sul da Bahia e a proximidade do local exato do descobrimento do Brasil. O turismo, atividade para qual a região tem vocação natural, vem adquirindo cada vez mais importância na economia regional ao vislumbrar no desenvolvimento de atividades turísticas a possibilidade de minimizar parte dos problemas sócio-econômicos, podendo ser a alternativa para a inclusão social, a geração de emprego e renda e a conscientização da comunidade. As inovações geradas pela atividade turística, focalizando a oferta de trabalho, a cultural local, a geração de renda e a preservação da natureza, ultrapassam em muito a dimensão econômica. O pano de fundo das transformações sociais é a ação coletiva baseada na participação da comunidade, na construção da identidade e no processo de gestão das mudanças que podem gerar um desenvolvimento territorial inovador e sustentável.

A questão que se apresenta, dentre outras, é de saber se as inovações geradas pela participação da comunidade conseguirão engendrar realmente transformações sociais que se institucionalizem ao longo do tempo. A experiência de Cumuruxatiba, independente do seu resultado, pode servir de referência para a reflexão dos atores pertencentes a centenas de outros territórios situados ao longo da vasta costa brasileira, os quais apresentam problemáticas semelhantes a essa comunidade do Sul da Bahia.

Considerações finais

Esses diferentes exemplos de inovação social, dignos do Brasil plural, do “Brasil como

centro”, nos impulsionam a empreender um esforço para apropriar teoria e prática, à luz da análise da gestão. Em que poderíamos contribuir para o desenvolvimento da administração a

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partir de uma melhor compreensão da inovação social num país tão plural? Eis o desafio que aqui estamos apenas começando a assumir.

As seis ilustrações brevemente apresentadas acima contêm um rico potencial que revela a força da pluralidade característica da sociedade brasileira. Não é nosso objetivo aqui empreender uma análise profunda de cada uma delas, e sim de chamar a atenção dos colegas pesquisadores para o fértil campo de estudos que se descortina ao assumirmos o desafio de abordar cientificamente a inovação social no Brasil.

Cremos que os pesquisadores dedicados aos estudos organizacionais têm uma contribuição imprescindível a dar para a compreensão do fenômeno das inovações sociais, tanto pela abertura interdisciplinar desse campo de estudos, como pela própria posição que a atividade de gestão ocupa nos interstícios da manifestação desse fenômeno: na mediação entre os níveis do indivíduo, da organização e da instituição; na passagem do microssocial ao macrossocial; na fronteira entre as dimensões econômica, sócio-política, cultural, ambiental; nos processos cruciais de estabelecimento e cumprimento de novas regras e de concorrência de regulações.

Assim, fechamos estas considerações — que não as queremos finais —, com uma provocação positiva, incentivando os colegas pesquisadores a se lançarem nesse que pode vir a ser um novo e promissor campo, o estudo das inovações sociais e a gestão da ação coletiva nelas embutida. Referências bibliográficas ANDION, Carolina; SERVA, Maurício. O Controle Coletivo dos Riscos Ambientais na Produção de Alimentos - uma análise do sistema de certificação participativa na Rede Ecovida de Agroecologia. II ENCONTRO NACIONAL da ASSOCIAÇÃO NACIONAL de PÓS-GRADUAÇÃO e PESQUISA em AMBIENTE e SOCIEDADE, 2004. Indaiatuba, Anais, CD Rom, 2004. CLOUTIER, Julie. Qu’est-ce que l’innovation sociale ? Cahier du Crises, no 314, 2003. LÉVESQUE, Benoît. Les entreprises d’économie sociale, plus porteuses d’innovations sociales que les autres ? Cahier du Crises, no 205, 2002. PETITCLERC, Martin. Rapport sur les innovations sociales et les transformations sociales. Cahier du Crises, no 313, 2003. REYNAUD, Jean-Daniel. Les règles du jeu – l’action collective et la régulation sociale. 3ème édition. Paris: Armand Colin, 2004. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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Inovação Social e Governança na Gestão Pública Municipal – Um Estudo de Caso Autoria: Paulo Roberto Araújo Cruz Filho Introdução Historicamente o Estado sempre foi o provedor dos recursos e definidor das normas nas sociedades. A evolução nos formatos e características dos regimes governamentais teve sempre em foco o poder do Estado. Entretanto, apesar de toda a evolução desses regimes e das crescentes tentativas de atender ao interesse geral das sociedades, o consenso sobre os benefícios do papel do “Estado positivo” – como único planejador, produtor direto de bens de serviços, e empregador de nível básico – começou a ruir nos anos setenta (MAJONE, 1997). O Estado já não era mais capaz de atender às necessidades gerais da população, e não tinha mais competência para satisfazer o interesse geral da sociedade governada. A chamada crise do Estado culminou na implementação do “Estado mínimo”, ou seja, o Estado fornecendo o mínimo de sustento à sociedade. E não há como somente o Estado, nem apenas a sociedade ou as organizações, com ou sem fins lucrativos, por si só possuírem condições para alcançar altos níveis de satisfação dos interesses gerais. Para cobrir estas falhas individuais, diferentes arquiteturas de satisfação de tais interesses são necessárias, assim como uma articulação de diferentes tipos de organizações. O interesse geral deve ser atendido por arranjos institucionais entre Estado, mercado e sociedade civil. Seguindo essa lógica é que emergiu no fim dos anos setenta um modelo que incluiu dinâmicas como a privatização, liberalização, reforma do Estado do bem-estar (welfare state) e também desregulação (GIDDENS, 1999). As cidades americanas e européias, neste período, experimentaram, em níveis diferenciados, a substituição da administração direta do governo por uma cooperação e ao mesmo tempo competição regulada entre Estado, sociedade civil e organizações privadas com ou sem fins lucrativos. O Estado passou a ser apenas mais um ator, e sua função passou a ser de regular a interação entre as três esferas. A estas formas de gestão compartilhada de poder entre os atores governamentais, da sociedade civil e das organizações privadas, em níveis diversos, designou-se chamar de governança. Nesse ambiente, a formação de redes como ferramenta para o exercício da governança constitui-se em uma proposta para reorganizar o poder político, transformando-o verdadeiramente em um provedor de serviços que satisfaçam o interesse geral. Nesse contexto, o Estado, combinando diversas estruturas de parcerias com organizações privadas e da sociedade civil, atua de modo a reverter o quadro de exclusão e problemas sociais, em busca de uma melhoria contínua no planejamento, na execução e avaliação das políticas sociais.

Dentro dos diversos problemas sociais presentes em todo o mundo, a realidade da violência sofrida pela infância e adolescência no Brasil impõe ao poder público e à sociedade civil organizada uma abordagem ampla e integrada para o seu enfrentamento. É um período da vida que, em tese, crianças e adolescentes têm maior contato com os diversos setores e serviços, em especial de educação, saúde e assistência social. Neste sentido, estes serviços podem ser concebidos como lugares legítimos de proteção, transcendendo suas especificidades.

Nesta perspectiva, foi concebida e estruturada em Curitiba, no estado do Paraná, pela integração dos vários setores da cidade envolvidos no atendimento deste grupo etário, a denominada “Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência”, doravante neste trabalho denominada de Rede de Proteção. A Rede de Proteção iniciou as suas atividades em 1998 e desde então vem crescendo e se desenvolvendo em toda Curitiba e Região Metropolitana através de sua inovadora forma de relacionar organizações

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estatais e da sociedade civil em torno de uma temática. A Rede de Proteção objetiva contribuir para a redução do problema da violência contra crianças e adolescentes, especialmente da violência intrafamiliar, além de intervir precocemente nas situações geradoras de violência, interrompendo o processo de repetição e agravamento dos maus-tratos, oferecer o atendimento necessário às vítimas, suas famílias e agressores, bem como produzir informações e indicadores que permitam conhecer o problema e construir propostas e projetos voltados para a prevenção da violência. Ela é formada por uma Coordenação Municipal, que controla as nove Coordenações Regionais, constituídas por diversas Coordenações Locais, no total de noventa e um pontos de atuação na cidade de Curitiba.

A Rede de Proteção é pioneira no seu campo de atuação. Ela caracteriza-se principalmente pela distribuição de responsabilidades entre todas as organizações estatais que prestam atendimento a crianças e adolescentes na cidade de Curitiba. Além disso, se destaca pelo arranjo de interesses individuais e coletivos diversos em torno de um objetivo social principal, através de uma formação em rede de organizações e atores que favorece a participação democrática da comunidade.

Os conceitos de governança são discutidos em todo o mundo como uma das formas mais eficazes de reestruturar as políticas públicas em favor da sociedade. Lebessis e Paterson (1997) destacam que há uma tendência em se discutir mudanças que fazem com que o Estado atue mais próximo aos cidadãos, de modo que esteja mais atento aos problemas e anseios das comunidades pelas quais é responsável. Essa aproximação favorece a transparência e a legitimidade das ações públicas, por meio de descentralização, delegação de responsabilidades e parcerias que superam o comando centralizado e hierárquico nocivo. Mecanismos de integração entre atores, tanto sociais quanto públicos e privados, representam respostas pragmáticas aos problemas sociais e assim, através da representatividade democrática, novas formas de coordenação de interesses emergem. Cada relação de governança existente possui características próprias que moldam as soluções propostas de acordo com cada comunidade na qual as ações estão inseridas. Tais ações se diferenciam dependendo do nível e forma de relacionamento entre os atores e organizações, dos processos de gestão interna, das estruturas de tomada de decisões, do relacionamento com o território, entre outros. Tais configurações locais moldam determinadas estruturas nas quais a governança se desenvolve, estruturas essas que, segundo Bernier et al (2003), podem ser agregadas de modo a descrever a governança em quatro tipos ideais: governança pública, corporativa, comunitária e em parceria.

A atualidade do tema e a necessidade da exploração da governança como forma de desenvolver as políticas públicas no Brasil, somados com a abrangência que a Rede de Proteção possui na gestão municipal em Curitiba, destacam a importância em se estudar em quais níveis a governança se expressa dentro da Rede de Proteção. Além disso, a Rede de Proteção, pela forma que está estruturada, tem potencial para oferecer contribuições importantes sobre a utilização da solução de redes para o serviço público no Brasil, e também incorporar a compreensão teórica sobre a gestão de redes interorganizacionais inseridas em um regime de governança. Redes Interorganizacionais

Recentemente tem-se descoberto no Brasil a potencialidade do uso de redes como forma ou estrutura de organização capaz de reunir pessoas e organizações em torno de objetivos comuns. A rede é um padrão organizacional que prima pela descentralização na tomada de decisão, pela democracia, flexibilidade e dinamismo de sua estrutura, pelo alto grau de autonomia de seus membros e pela horizontalidade das relações entre seus elementos. A rede opera por meio de um processo de radical desconcentração de poder. Segundo Castells (2003), “a nova morfologia da rede é uma fonte de drástica reorganização das relações de poder”.

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As redes interorganizacionais se constituem em um sistema de organizações autônomas legal ou socialmente equivalentes conectadas por relações pré-determinadas e estáveis (VAN AKEN E WEGGEMAN, 2000). Conforme os autores, essas redes caracterizam-se pela consistência, pois uma quebra entre suas conexões não destrói as estruturas individuais dos seus componentes. Além disso, seu funcionamento descentralizado define duas características importantes: há considerável divisão de trabalho, seja ela implícita ou explícita, entre os componentes da rede, e é comum à formação de outras redes dentro da rede instituída, devido aos relacionamentos e formas de trabalho existentes, baseados em critérios de confiança e obrigações morais (ANDERSEN, 2000; FUKUYAMA, 1995). Segundo Castells (2003), a interação entre os atores de uma rede são maiores se esses atores forem os nós de uma determinada rede.

Nesse contexto do entendimento do funcionamento das redes desenvolveu-se o conceito de governança de redes. Segundo Le Galès (2004), a governança é definida como um processo de coordenação de atores, de grupos sociais, de instituições para alcançar propósitos próprios discutidos e definidos coletivamente dentro de ambientes fragmentados e incertos. A governança devolve a orientação, a capacidade de dirigir e de fornecer serviços e a afirmação de legitimidade ao conjunto de organizações, de redes, de diretivas, de regulamentações, de normas, de costumes políticos e sociais, de atores públicos e privados que contribuem para a estabilidade de uma sociedade e de um regime político. Assim, a governança de redes envolve uma constituição estável e estruturada de organizações com ou sem fins lucrativos que objetiva desenvolver produtos ou serviços, com base em contratos irrestritos e ilimitados para se adaptar às contingências do ambiente, e coordenar e se resguardar às mudanças. Esses contratos são socialmente, e não legalmente, firmados (JONES et al, 1997). Os princípios de governança aplicados às redes permitem definir o alinhamento estrutural ideal a um conjunto de organizações no qual as relações são baseadas em interações e condições de troca. Por se tratar de um arranjo de instituições, uma formação em rede depende da interdependência entre seus componentes e consequentemente das relações interpessoais entre seus atores. Conforme Jones et al (1997), o conceito de governança de redes baseia-se nos padrões de interação de troca e de relacionamentos interpessoais, e no fluxo de recursos entre os atores e as organizações. Assim, constitui uma forma de gestão flexível de coordenação que auxilia no controle e gerenciamento das trocas de informações e tarefas entre as organizações.

Cardoso et al (2002) concluíram que os mecanismos de coordenação formais e informais existentes em redes de organizações dependem, em grande parte, dos níveis de confiança e conhecimento entre os parceiros da rede. Woolthuis et al (2002) destacam em seu estudo que uma baixa confiança requer controle formal, enquanto altos níveis de confiança permitem uma flexibilização desse controle formal. Devido a isto, dentro do conceito de governança de redes, o estudo de mecanismos de gestão, e consequentemente de controle e de conflitos pessoais e interorganizacionais torna-se uma questão importante. Assim, um dos principais mecanismos de gestão de redes é a horizontalização. Agranoff e McGuire (1999) defendem a importância da horizontalização como forma de evitar a dependência hierárquica e assim permitir a flexibilidade de uma rede. Segundo os autores, a coesão de uma rede depende da correta formulação dos mecanismos de gestão de modo a garantirem uma horizontalização harmônica entre as organizações e atores da rede.

O conceito de governança de redes é extremamente benéfico nas redes em que, para o alcance de suas propostas, são exigidas interações entre suas organizações que necessitem superar ou ignorar uma parceria hierarquicamente imposta. Para se determinar qual o grau de governança existente em uma rede, conforme o conceito de governança de redes, deve-se analisar um conjunto de características que fornecerão indícios sobre a organização interna da rede e que indicam em quais pontos a rede demanda uma interação ou forma de atuação diferenciada.

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A formação da Rede de Proteção trouxe para o Estado, no caso a Prefeitura Municipal de Curitiba, o conceito de governança como uma nova maneira de lidar com um problema cuja solução estava sendo fragmentada, e até mesmo disputada, por várias organizações estatais. Os órgãos da gestão municipal estavam tão centrados em seus objetivos próprios, de forma que cada um estava desempenhando apenas a sua parte, pouco perto do todo necessário. Não havia uma integração desses serviços, fazendo com que o Estado, ao invés de promover a prevenção da violência, e evitar que crianças e adolescentes fossem violentados, estivesse simplesmente procurando tratar os ferimentos, físicos e emocionais, e punir os pais ou responsáveis pelas agressões.

Essa solução não estava sendo abrangente o suficiente de modo que pudesse possibilitar o surgimento de ações preventivas e principalmente o acompanhamento uma determinada criança ou adolescente nas suas atividades diárias. A Rede de Proteção, através da integração dos órgãos públicos e coordenação dos atores individuais, ofereceu ao Estado uma nova forma de reflexão sobre as soluções para o problema da violência. Caracterizando-se assim por ser uma estrutura originada da reestruturação de atividades da gestão municipal. Uma nova coordenação de organizações e atores dentro da prefeitura da cidade de Curitiba. A Rede de Proteção aproximou a sociedade da gestão pública, e agregou organizações da sociedade civil tanto no atendimento quanto na tomada de decisões. O conceito de governança também envolve esforço na obtenção de sinergia dentro e entre as organizações. As habilidades e informações dos atores da Rede de Proteção são exploradas objetivando aumentar o seu nível de aprendizado e geração de novas soluções. Tipologia da Governança

Durante as décadas de sessenta e setenta do século XX, as elites políticas das cidades norte-americanas, especialmente as localizadas no nordeste do país, estavam sendo desestabilizadas pelas revoltas urbanas e falências financeiras causadas pela fissura do modelo fordista, pelo conseqüente declínio industrial e pela saída das classes média e burguesa, que possuíam os recursos necessários para novos investimentos (LIPIETZ, 1991).

Pouco sustentadas pelo Estado e dependentes dos recursos cada vez mais escassos, as elites políticas locais então se reorganizaram, e objetivando atrair novamente tais recursos, ofereceram poder aos representantes privados, principalmente do setor imobiliário, para o desenvolvimento das cidades. Observou-se assim o início de uma redefinição do papel do Estado. Uma mudança que concretizou a crise do Estado Providência, ou seja, o Estado como principal responsável pelo planejamento e operação das políticas públicas, historicamente conduzidas de forma centralizada e homogênea (KERNAGHAN et al, 2000). Dessa mudança na concepção do Estado e influência de interesses do setor privado sobre a direção política das cidades é que se generalizou, nos anos oitenta, o termo governança.

Como citam Ruano-Borbalan e Wemaëre (2004), a governança tornou-se o conceito inevitável de todas as reflexões sobre a gestão das organizações, como empresas, universidades e hospitais, e a conduta das políticas públicas, sendo urbanas, regionais, nacionais ou internacionais. Reaparecida nos anos 90 do século XX, esta reflexão corresponde de fato a uma transformação importante de poder, quaisquer que sejam os lugares de seu uso. Este conceito é em primeiro lugar a conseqüência de mutações do Estado e da soberania. Não é mais uma questão válida, pelos cidadãos das sociedades democráticas, aceitar que o interesse público seja unicamente pensado do alto, via sistemas administrativos fechados à negociação, a parcerias ou à cooperação. A mudança provocada pela governança gera conseqüências nas organizações, tornando-as menos hierárquicas. O sentimento de responsabilidade e a tendência ao debate, presentes no espaço público, tomam com a governança uma forma de necessidade

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de reconhecimento do papel dos diferentes atores, de suas competências e de suas decisões envolvidas no processo.

A governança é definida como um processo de coordenação de atores, de grupos sociais, de instituições para alcançar propósitos próprios discutidos e definidos coletivamente dentro de ambientes fragmentados e incertos. A governança devolve a orientação, a capacidade de dirigir e de fornecer serviços e a afirmação de legitimidade ao conjunto de organizações, de redes, de diretivas, de regulamentações, de normas, de costumes políticos e sociais, de atores públicos e privados que contribuem para a estabilidade de uma sociedade e de um regime político (LE GALÈS, 2004).

Lynn et al (2000) descrevem governança como uma configuração de leis, estruturas, recursos, regras administrativas e padrões institucionais que programam e condicionam serviços e regulação estatal. A defesa do interesse geral prossegue através dos mecanismos de governança. Resumidamente, governança pode ser definida como o processo pelo qual uma sociedade, economia e política regulam elas mesmas (BERNIER et al, 2003). A principal idéia da governança é que ela assume que o Estado não é mais o foco central de análise, mas apenas mais um ator dentre outros, que deve justificar a sua existência. Com a crescente popularidade do conceito de governança, idéias sobre o que deve ser feito para reformar o Estado também evoluíram. A administração pública tradicional foi desafiada pelos pressupostos das novas teorias de gerenciamento público. A governança, portanto, resiste à hierarquia e à centralização, se baseia na complexidade, diferenciação, diversificação, descentralização e networking.

O conceito de governança pode ser definido, portanto, como sendo o regime pelo qual Estado, organizações privadas e sociedade civil, em diferentes formas de atuação conjunta e auto-regulação, gerem o interesse geral, objetivando o bem-estar social da comunidade na qual estão inseridos. A governança permite a redefinição do papel do Estado que, de único provedor dos recursos à sociedade, passa a atuar como regulador, gestor e estrategista das políticas públicas e riquezas repassadas à sociedade. Além disso, principalmente, permite a auto-regulação das atividades e auditoria das ações por parte de todas as instituições envolvidas, sendo elas públicas, privadas ou da sociedade civil (LE GALÈS, 2004). Um regime de governança caracteriza-se por:

(i) Os atores das esferas sociais envolvidos na provisão dos serviços de interesse público;

(ii) As modalidades de elaboração de políticas no regime, ou seja, as definições pelas quais os atores são coordenados e pelas quais eles interagem objetivando elaborar as políticas do regime;

(iii) Os instrumentos políticos utilizados para a implementação das políticas a fim de alcançar o interesse público e suas combinações. Suas aplicações demandam esforços organizacionais.

(iv) Os modos de regulação dos atores. Este item completa a definição dos tipos de governança, agregando as características principais do modo pelo qual os atores interagem entre si e se auto-regulam.

Essas quatro características, cada uma com seu nível de variação determinado, definem um regime de governança. Como cada uma dessas dimensões pode variar de acordo com as especificidades de onde o regime de governança está presente, Bernier et al (2003) determinaram quatro tipos de regulação, que definem quatro tipos ideais de governança:

Categorias

Burocracia Hierárquica (Governança Pública)

Mercado (Governança Corporativa)

Comunitária (Governança Comunitária)

Parceria (Governança em Parceria)

Princípio Autoridade Oportunismo Confiança Deliberação

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Estado Intervencionista, regulador e produtor

Estado é fraco e minimalista

Comunidade do Bem-estar

Parceiro, regulador, distribuidor

Mercado Mercado é fraco (Limitador, socializador)

Auto-regulação Barganha Instrumentos superiores de coordenação, reconheceu fraquezas

Sociedade Civil Sociedade civil é fraca. Vista como um custo.

Caridade, benevolência, filantropia

Solidariedade Associação que garante os interesses sociais; é vista como importante

Governança Centralizada Hierarquicamente

Corporativa e mercantil

Baseada em comunidades locais

Distribuída, parceria

Relações entre as organizações Propriedade Estatal Externalização,

outsourcing Distritos industriais

Networking, clusters, redes de associados

Relação com o território Hierarquia Tecnocracia e

dualismo Comunidade Democracia e sistemas locais de inovação

Interesse Geral Benefício Público Uniformidade dos interesses individuais.

Benefício Privado Soma de interesses .

Benefício Conjunto Interesse coletivo.

Pluralidade de interesses. Acordo entre interesses individuais.

Elaboração de políticas

Tecnocráticas (simplista e informal)

Corporativista (simplista e formal)

Redes Políticas (pluralista e informal)

Parceria Institucionalizada (pluralista e formal)

Implementação de políticas

Governo direto (direta e não competitiva)

Incentivos fiscais (indireta e competitiva)

Regulação social (indireta e não competitiva)

Regulação (normas e leis) e contratos (direta e competitiva)

Quadro: Tipos de Governança. Fonte: o autor, baseado em BERNIER et al (2003). É importante destacar que Bernier et al (2003) classificam os quatro tipos de governança citados como modelos ideais. Isso significa que os regimes de governança existentes ou estudados não tenham que se enquadrar de forma idêntica a um determinado tipo em todas as suas características. Esses tipos ideais servem como referência para estudos futuros. Variações, segundo os autores, são normais e até mesmo desejadas, para que seja possível evoluir no estudo da governança. Análise da Rede de Proteção

Baseado nos princípios indicados na tipologia de governança estabelecida por Bernier et al (2003), identifica-se que os princípios que regem as atividades da Rede de Proteção são confiança e deliberação. Uma das características principais que se verificam na Rede de Proteção é a de confiança entre seus componentes, e principalmente entre seus componentes e seu público-alvo: as crianças, adolescentes e suas famílias. Isso porque as famílias atendidas e abordadas pela Rede de Proteção precisam sentir segurança nas suas ações e confiar que o trabalho que está sendo realizado pelas suas organizações visa unicamente o bem-estar da criança ou adolescente envolvido no caso. O princípio de confiança se destaca também internamente da Rede de Proteção. O atendimento prestado pela Rede de Proteção depende da integração e da relação de confiança entre cada um dos atores individuais que compõe o conjunto. Mais do que a integração dos órgãos, secretarias e fundações, a união desses profissionais é essencial. A confiança promove o engajamento individual de cada um dos seus membros, e a consciência de que o trabalho em rede facilita a integração dos serviços que são oferecidos às crianças e aos adolescentes, sendo possível oferecer um atendimento adequado a cada um dos casos atendidos. Além da confiança, outra característica que se destaca é a deliberação, pois o conceito do trabalho realizado pela Rede de Proteção, a proteção da criança e do adolescente em situação de risco para a violência, é um assunto que necessita de uma ampla discussão, de modo a se estudar, procurar alternativas de soluções para os problemas e tomar decisões em conjunto. A concretização do

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princípio de deliberação traz implícita a necessidade do trabalho em grupo, de um esforço coletivo para buscar as melhores decisões. E uma das formas de aperfeiçoar o atendimento à criança e ao adolescente que sofreram, sofrem ou estão em risco de sofrerem violência doméstica é a integração entre todos os órgãos que prestam algum tipo de serviço nesta área.

Verifica-se, portanto, que predominam na Rede de Proteção as características de uma governança comunitária, por ser a confiança o elo integrador entre os atores, e de uma governança em parceria, pois os atores das diversas organizações, tanto do Estado quanto da sociedade civil, deliberam em conjunto sobre cada caso a ser resolvido, em um ambiente de parceria.

O papel do Estado na Rede de Proteção é estruturar a formação em rede, fornecendo os recursos humanos e materiais, além de manuais, treinamentos e capacitações. Além disso, a atuação do Estado como integrador pode ser considerada forte, sendo ele que determina as regras, de forma intervencionista, e que regula as atividades das organizações. Entretanto, apesar de atuar como base da Rede de Proteção, o Estado não pode ser considerado como seu principal articulador. Os verdadeiros articuladores são os atores individuais, profissionais que trabalham nos órgãos estatais e fazem com que a Rede de Proteção fixe raízes, cumpra o seu papel e amplie o seu leque de parcerias.

Um fator muito importante deve ser destacado nesse ponto. A Rede de Proteção surgiu de dentro do Estado. Entretanto, não surgiu devido a uma lei, decreto ou norma formal, mas a partir da ação conjunta de atores individuais, profissionais locados em algum órgão ou secretaria estatais, que formularam e implementaram os conceitos da Rede de Proteção. Foi de uma ação interna desses atores do próprio Estado que surgiu a iniciativa de repensar o processo de coordenação dos órgãos, reunindo-os e determinando objetivos comuns a serem atingidos com papéis delimitados para cada um deles, mas com uma Coordenação Municipal que visasse o bem-estar dos jovens e sua proteção contra a violência, acima de qualquer prioridade específica dos órgãos participantes. Portanto, uma ação de governança dentro do próprio Estado.

Essa governança originou-se do empenho e dedicação de três profissionais que idealizaram os conceitos iniciais da Rede de Proteção, obtiveram a aceitação por parte de outros profissionais do setor público, e assim possibilitaram o surgimento e evolução da Rede de Proteção. O seu desenvolvimento se deu exclusivamente dentro do Estado, através da integração de seus órgãos, secretarias e fundações, mas com a importante participação de alguns parceiros da sociedade civil, como a influência da Sociedade Paranaense de Pediatria na sua gestão e das diversas ONGs na execução dos serviços.

Destaca-se em sua origem que essa iniciativa de criar a Rede de Proteção e consequentemente trazer o conceito de governança para dentro da gestão municipal de Curitiba não foi determinada por uma ação formal do Estado, mas pela atuação conjunta de esforços individuais de profissionais estatais.

Segundo Ruano-Borbalan e Wemaëre (2004), este tipo de reflexão corresponde de fato a uma transformação importante de poder, quaisquer que sejam os lugares de seu uso. Não é mais uma questão válida, pelos cidadãos das sociedades democráticas, aceitar que o interesse público seja unicamente pensado do alto, via sistemas administrativos fechados à negociação, a parcerias ou à cooperação. A mudança provocada pela governança gera conseqüências nas organizações, tornando-as menos hierárquicas. O sentimento de responsabilidade e a tendência ao debate, presentes no espaço público, tomam com a governança uma forma de necessidade de reconhecimento do papel dos diferentes atores, de suas competências e de suas decisões envolvidas no processo. E foi exatamente isso que ocorreu com o início dos trabalhos da Rede de Proteção. A forma como a Rede de Proteção foi estruturada, surgindo do empenho e dedicação de funcionários e assistentes sociais, e não dos políticos em cargos de alta

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hierarquia, implementou no Estado uma composição horizontalizada, configurada como uma rede (JONES et al, 1997).

Assim, a Rede de Proteção mantém a sua característica informal que foi responsável por seu surgimento. A Rede de Proteção não foi oficializada como um órgão, secretaria ou fundação estatal, não possui nenhum tipo de nomeação formal, não possuindo, portanto, uma forma jurídica que lhe permita fazer contratos, nem contratações. A Rede de Proteção se mantém na estrutura estatal, mas de maneira informal. Suas Coordenações Municipal, Regionais e Locais são formadas por profissionais que, além de trabalharem em algum órgão formal do Estado, mantém as suas atividades na Rede de Proteção e prezam pela sua continuidade e crescimento.

Apesar de resultar da integração de diversas organizações, a Rede de Proteção não tem autoridade suficiente para garantir algumas de suas ações, o que enfraquece um pouco o seu elo com a burocracia estatal formal, e exige de seus atores que se baseiem nos princípios de confiança e deliberação para fortalecerem suas relações informais.

Granovetter (1973), em seu estudo sobre a força dos elos fracos, destaca que as relações informais são capazes de sustentar grandes redes que não se configuram por nós formais, mas são consistentes exatamente devido às suas características informais. Obviamente, por estar dentro do Estado, a Rede de Proteção muitas vezes sofre com a hierarquia estatal. Algumas de suas ações podem ser acuadas por normas políticas e seus atores estão, na maioria das vezes, limitados às atuações que seus superiores os permitem. Apesar disso, essa hierarquia não é atuante a ponto de desvincular relacionamentos ou ocasionar rupturas. A Rede de Proteção baseia-se nas relações pessoais e informais, e não nas relações hierárquicas obrigatórias formais, e por isso é flexível e suas ações adaptam-se às dificuldades causadas pela hierarquia e autoridade excessivas.

Ao analisar-se o papel da sociedade civil na Rede de Proteção, destaca-se primeiramente a sua abrangência por todo território da cidade de Curitiba. Sua inserção nas comunidades mais carentes é efetiva, de modo que cada Coordenação Local, ou seja, cada um dos noventa e um pontos, tem ampla liberdade de ação, definindo seus próprios cronogramas, responsáveis e sua própria forma de atuação, adaptando-se assim à realidade da comunidade na qual está inserida. O resultado de sua ação está nas comunidades, os beneficiados pela atuação da Rede de Proteção estão nas comunidades, que é o território de atuação dos seus atores. Assim, sua atuação nas comunidades torna-se o resultado do seu trabalho. Essa característica evidencia a proximidade da Rede de Proteção de uma governança comunitária.

Além disso, existem parcerias importantes com organizações da sociedade civil, que contribuem com participação direta nos cuidados às crianças e adolescentes, como diversos centros de educação infantil, creches, abrigos e lares. Além dessas, existem duas organizações não governamentais que participam ativamente da gestão e das ações de prevenção da Rede de Proteção, respectivamente, que são a Sociedade Paranaense de Pediatria e o Centro de Combate à Violência Infantil (CECOVI).

Assim, a Rede de Proteção fez com que as diversas organizações do Estado, mais algumas organizações da sociedade civil se unissem em parceria para atender a um apelo social que o Estado vinha tratando de forma parcial. Essa característica aproxima da Rede de Proteção as características de uma governança em parceria.

O mercado é a única esfera que não tem participação na Rede de Proteção. A participação de empresas do mercado privado não existe atualmente, sendo possível afirmar, portanto, que atualmente apenas organizações do Estado e da sociedade civil participam de suas ações.

O interesse geral que a Rede de Proteção propõe-se a atender é a melhoria da qualidade de vida da criança e do adolescente por meio da prevenção da violência. A temática obviamente é de grande interesse coletivo, e realizando ações sociais, ainda sem parceria formada com a Rede de Proteção, o interesse privado pelo tema é considerável. Portanto, participando ou não da Rede de

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Proteção, o tema tratado é de apelo geral, e mesmo que cada organização de cada esfera possa ter objetivos específicos ao participar ou apoiar a Rede de Proteção, considera-se que existe uma pluralidade de interesses. O que, conforme Bernier et al (2003), configura a governança como sendo uma governança em parceria. Como citam os autores, a defesa do interesse geral prossegue através dos mecanismos de governança.

Com relação ao processo de elaboração de políticas, nas Coordenações Locais os atores de diversas organizações tomam decisões com base na deliberação. A maioria das decisões tomadas é resultado de reuniões informais, mas que são aceitas por toda a estrutura da Rede de Proteção. Nas Coordenações Regionais e Municipal a tomada de decisões também é em conjunto, definida como pluralista, mas além de reuniões informais, a maioria das políticas são elaboradas em encontros formais, pré-agendados e com atas de reunião, para a formalização do que foi decidido. O fluxo de informações entre as Coordenações é aberto, e dá-se principalmente através de reuniões periódicas, além de reuniões marcadas de acordo com a necessidade. Todas as questões são discutidas e o maior número possível resolvidas dentro da própria Coordenação Regional, e os assuntos mais importantes são discutidos em nível municipal. Portanto, a elaboração de políticas na Rede de Proteção se caracteriza por ser pluralista, e por ser formal ou informal, dependendo da instância e gravidade das decisões. Assim evidencia características de uma governança comunitária, pela elaboração de políticas pluralista e informal, e de uma governança em parceria, pela elaboração de políticas pluralista e formal.

A implementação das políticas elaboradas é, em sua grande maioria, feita de maneira indireta, ou seja, os coordenadores de cada regional repassam as decisões para os demais atores, através de reuniões. Não há, salvo raras exceções, qualquer tipo de documento ou aviso formal das novas determinações. As políticas são implementadas com base na colaboração entre as organizações. Não há hierarquia formal de comando, portanto as decisões são implementadas de forma não-competitiva, mas colaborativa. Dessa maneira, pela implementação de políticas ser na grande maioria das vezes indireta e não competitiva, destaca-se a governança comunitária dentro da Rede de Proteção. Assim, os atores se encontram em um ambiente que não se configura nem como exclusivamente formal, nem exclusivamente informal. Esse ambiente os coloca entre as duas fronteiras, e suas ações variam de acordo com a fronteira a qual cada relação se aproxima. As relações, conforme destacou Souza (2004), são tão fundamentais em uma rede quanto seus atores, e na Rede de Proteção isso é fato. A característica variável entre relações formais e informais influencia as escolhas, orientações, comportamentos e opiniões dos atores, e facilita, por ser flexível, a troca de informação, conhecimento e competências. Enfim, apesar de não ser possível quantificar a sua influência, verifica-se que mais essa característica peculiar da Rede de Proteção auxiliou no seu desenvolvimento e ainda hoje é um dos fatores responsáveis pela coesão e estruturação da Rede de Proteção. O que se verifica na Rede de Proteção são características que variam entre uma governança comunitária e uma governança em parceria, definindo-a como um caso híbrido de governança, que se situa entre esses dois tipos ideais de governança. Essa situação vai de encontro ao que definiram Bernier et al (2003), quando listaram os quatro tipos ideais de governança. Segundo os autores, os tipos ideais servem de referência para se estudar casos de governança, e variações em suas características são consideradas evoluções nos estudos da governança.

Por sua concepção, pelo princípio de confiança que rege as ações de seus atores, pela sua atuação focada em comunidades locais, pelo interesse geral da comunidade que ela atende, e por suas características internas de coesão e implementação de políticas a Rede de Proteção demonstra características muito fortes de uma governança comunitária.

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Além disso, o diferencial que fez com que a Rede de Proteção surgisse e crescesse dentro de uma estrutura governamental burocrática e hierárquica, e que tornasse possível o oferecimento de um serviço de qualidade e flexível às comunidades que atende foi a integração em parceria de suas organizações. Sem essa estruturação de governança em parceria a Rede de Proteção não teria condições de exceder ao Estado e ser mais ativo que sua estrutura formalizada e mais resistente que as mudanças políticas. Contribuição para o Serviço Público

A governança assume que o Estado não é mais o foco central de análise, mas um ator dentre outros, embora se reconheça o seu peso institucional. Com a crescente popularidade do conceito de governança, idéias sobre o que deve ser feito para reformar o Estado também evoluíram. A administração pública tradicional foi desafiada pelos pressupostos das novas teorias de gerenciamento público (BERNIER et al, 2003).

Landrieu (2000) coloca em questão as competências técnicas e administrativas do Estado, ao mesmo tempo destaca que a descentralização do poder estatal, combinada a um contexto de crise econômica, impõe uma mudança dupla no posicionamento do Estado: descentralização e desconcentração das competências; passar de uma lógica de Estado normativo para uma lógica de Estado parceiro.

Para isso, os autores citam três questões imperativas que devem ser consideradas na reestruturação das ações do Estado. Primeiramente, deve-se enfatizar o desenvolvimento duradouro, e não apenas as condições de produção. Além disso, deve-se igualmente levar em conta as aspirações e interesses da sociedade, de forma a se buscar a melhor forma de eficiência social. E, finalmente, impõe-se a criação de valor nos projetos propostos, ao invés da simples redistribuição dos valores existentes.

Mas não somente pela vontade do Estado, a reestruturação dos serviços sociais evolui devido à emergência de uma sociedade urbana que busca novas formas de expressão. Mais do que sindicatos, movimentos ou insurreições, a sociedade civil toma uma nova forma de expressão dos seus direitos, ela se articula com a esfera privada, buscando ações no campo econômico e social. Um dos atores que se destacam nessa relação com a sociedade civil são os meios de comunicação. Eles a tornam onipresente, com poder de expressão e capacidade de reparar as ações do Estado a fim de legitimá-las.

A Rede de Proteção comprova o que Landrieu, Bernier et al (2003) comentam: o conceito atual de governança é resultado de um meio no qual a conjuntura sócio-econômica das últimas décadas incentivou uma reconsideração do papel do Estado como o agente central da política.

Como pode ser verificado no caso da Rede de Proteção, a governança permite a resistência à hierarquia e à centralização, baseando-se na complexidade, diferenciação, diversificação, descentralização e no networking. O ponto de maior destaque social da Rede de Proteção é a reestruturação que seus atores conseguiram fazer em relação ao papel do Estado.

Antes da Rede de Proteção, o Estado provia vários serviços de atendimento a crianças e adolescentes, mas o foco desses atendimentos era somente corretivo. Cada caso de agressão era tratado individualmente e o acompanhamento da vítima ao longo do tempo era possível, mas as informações disponíveis eram escassas. A Rede de Proteção integrou esses serviços, e somou a esse conjunto todos os órgãos estatais que de alguma maneira atendem as crianças e adolescentes, como escolas, creches, hospitais. O desenvolvimento da Rede de Proteção reorganizou a estrutura de atendimento do Estado e inseriu nas ações estatais uma estratégia de abordagem integrada do fenômeno, ou seja, o entendimento que o problema da violência só será resolvido se a preocupação com a temática for ampla, tratando tanto da criança quanto de sua família e do próprio agressor. Essa abordagem integrada só é possível com a intersetorialidade nas ações do Estado. Como não poderia ser diferente, a Rede de Proteção é um resultado da intersetorialidade.

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Somente com a união das diversas secretarias, órgãos e fundações estatais é possível desenvolver uma abordagem integrada. O que mais chama atenção nessa ação é que ela foi realizada não por uma política definida, mas pela ação dos atores individuais que trabalham na estrutura do Estado, que combinaram o interesse geral a um realinhamento informal da ação da máquina estatal.

O que se destaca na Rede de Proteção é que, se a sociedade civil se organizar, tomar atitudes em relação aos seus interesses, e tiver condições de aproveitar a estrutura estatal, o Estado poderá oferecer respostas surpreendentes em relação ao atendimento do interesse geral. Na Rede de Proteção foi necessário que os atores do Estado tomassem uma atitude de “iniciativa voluntarista” (FREY, 2004) e reformulassem a ação estatal para que atendesse ao interesse geral. O aprendizado que se toma desse caso é que, independente do Estado, a sociedade tem a obrigação de garantir os seus direitos, e ao invés de somente procurar eleger representantes que o façam, devem tomar atitudes estratégicas de fazer com que o Estado seja provedor da satisfação de seus interesses. Afinal, segundo Ruano-Borbalan e Wemaëre (2004), não é mais uma questão válida, pelos cidadãos das sociedades democráticas, aceitar que o interesse público seja unicamente pensado do alto, via sistemas administrativos fechados à negociação, a parcerias ou à cooperação.

Sachs (1986) defende que o Estado deve dar uma atenção muito maior às políticas sociais proativas. Além disso, deve encorajar outras formas de tomada de decisão, fornecendo autonomia para os atores sociais, exatamente como a Rede de Proteção, cujas decisões não costumam depender de aprovação ou intervenção estatal. Segundo o autor, para estabelecer ou consolidar os sistemas de governo democráticos, garantindo a implementação universal e efetiva dos direitos sociais e econômicos, exige-se o profundo reexame de quatro questões institucionais. A primeira é o desenvolvimento da governança, através da evolução das formas de articulação entre as esferas público, privada e a sociedade civil. O autor destaca a importância de transcender a dicotomia simplista Estado X Mercado. A segunda é a busca por novas formas de parceria entre os protagonistas sociais do desenvolvimento. Neste ponto o autor fala de opções como a Rede de Proteção, pois destaca a busca de cooperação entre entidades públicas, empresas e organizações civis que ofereçam proposições concretas ao postulado de participação popular em processos de desenvolvimento, explorando com esse fim as várias experiências sociais. A terceira é a ênfase nas iniciativas locais de desenvolvimento, delegando tomada de decisões, distribuição de poder e autonomia aos atores locais. A última questão é o lançamento de um sistema de governo global que se preocupe com a segurança, desenvolvimento e gerenciamento dos recursos do planeta.

A Rede de Proteção caracteriza um modelo de governança adaptado ao contexto sócio-econômico, no qual os recursos e a ação partem da estrutura do Estado, mas quem coordena essas ações são representantes da comunidade. Não de uma forma explícita, mas em posições estratégicas, fazendo com que as organizações do Estado cumpram seu verdadeiro papel de busca pelo bem-estar da sociedade, interligando essas organizações em torno de um objetivo comum. Em uma relação de parceria, sustentada pelas relações informais entre seus atores, como a Rede de Proteção mostrou ser possível.

Le Galès (2004) destaca que a governança permite a redefinição do papel do Estado que, de único provedor dos recursos à sociedade, passa a atuar como regulador, gestor e estrategista das políticas públicas e riquezas repassadas à sociedade. Além disso, principalmente, permite a auto-regulação das atividades e auditoria das ações por parte de todas as organizações envolvidas, sendo elas públicas, privadas ou da sociedade civil.

A Rede de Proteção consolida-se como um caso de sucesso de inovação social guiada pela governança surgida e desenvolvida dentro do território brasileiro. A Rede de Proteção redefiniu o papel do Estado em relação à proteção de crianças e adolescentes. A governança deve servir como meio de se modificar o contexto sócio-político em regiões em que o interesse geral não esteja sendo atingido. O contexto democrático e o modo pelo qual Curitiba era governada não

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permitia ao Estado garantir os direitos básicos de proteção de crianças e adolescentes. A implementação de um regime de governança, através da Rede de Proteção, fez com que a sociedade reformasse ações do Estado de modo que buscasse atingir seus interesses de modo mais efetivo. Referências AGRANOFF, R.; McGUIRE, M. Big questions in public Network Management research. In: Fifth National Public Management Research Conference, Texas A&M University, College Station, TX, George Bush Presidential Conference Center, December 3-4, 1999.

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Inovação social, formação sócio-espacial e gestão de redes sociais produtivas:

um estudo de caso comparativo da Rede Ecovida de Agroecologia Autores: Evandro Marcio Aresi e Maurício Serva 1. Introdução

O presente trabalho tem como objetivo principal contribuir para a análise da inovação social e da gestão de redes sociais produtivas a partir do conceito de formação sócio-espacial. Trata-se de um estudo de caso comparativo da gestão de dois núcleos da Rede Ecovida de Agroecologia: um núcleo da Região Metropolitana de Curitiba e outro da região de Francisco Beltrão – Sudoeste do Estado do Paraná.

A geografia serve como ponto de partida para a fundamentação teórica para esse tipo de inovação social através das noções de espaço, de formação sócio-espacial e de identidade territorial. Parte-se do pressuposto de que a formação sócio-espacial pode ser considerada como uma dimensão da realidade a partir da qual os processos de gestão de uma rede social de produção familiar agroecológica pode sofrer influências. A identidade territorial, de seu modo peculiar, fornece os subsídios necessários para o aprofundamento e coerência da discussão.

As redes sociais podem ser consideradas como estruturas organizacionais mais “porosas”. Não se pode negar que as elas fazem parte do universo organizacional contemporâneo, seja ele empresarial ou apenas social e por isso não podem ser ignoradas pelas pesquisas em administração. Mesmo não possuindo a densidade burocrática de uma organização tradicional, e de estarem sujeitas aos altos e baixos de variáveis tais como conectividade e informação, as redes podem engendrar inovações sociais dignas de estudo.

A Rede Ecovida de Agroecologia foi criada em 1998 em Santa Catarina e é formada por agricultores familiares, técnicos, consumidores e ONGs; seu funcionamento é descentralizado e baseado na articulação de 23 núcleos regionais. Trata-se da maior rede de agricultores familiares agroecológicos do país, é composta por cerca de 1.500 famílias e está situada nos três estados do sul do Brasil. A estruturação e o modo de funcionamento dessa rede não seguiram nenhum modelo pré-existente, constituindo assim uma inovação social no campo da agricultura familiar no Brasil.

A agricultura familiar é de importância vital para o cenário econômico brasileiro. Ela produz, de acordo com relatório do MDA/INCRA (2000), nada menos que 60% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros e absorve mais de 85% da mão-de-obra dos 18 milhões de trabalhadores existentes no campo, porém, utiliza somente 30,5% da área total disponível para plantio. Sua participação no valor bruto da produção é de 37,9%, o que representa aproximadamente 10% do PIB.

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Mas a agricultura familiar enfrenta inúmeros desafios, pois ela também não pode fugir da lógica da busca da eficiência e da lucratividade. Dentro disso, a agroecologia surge como um novo paradigma produtivo, como uma constelação de ciências, técnicas e práticas para uma produção ecologicamente sustentável.

Acreditamos que um olhar interdisciplinar, reunindo a administração e a geografia, poderá nos proporcionar condições de contribuir para uma melhor compreensão desse fenômeno. Assim, espaço, território e identidade são “lentes” que permitem um olhar diferenciado em relação ao complexo mundo das redes organizacionais. Por isso, torna-se importante apresentar contribuições capazes não somente de enriquecer o debate, mas, também, de fomentar a criação de modelos alternativos de compreensão desse tipo de inovação social.

Entrementes, muito mais que o exercício mental de simples entendimento do processo, o estudo de caso procura - dentro da análise da gestão das redes sociais - verificar o alcance efetivo de alguns aspectos da administração, como é o caso do desenvolvimento do agronegócio familiar, do processo decisório, das ações de marketing e da conectividade/comunicação de uma rede social produtiva de orientação agroecológica. Para tanto, é empreendida uma análise comparativa entre dois dos núcleos regionais da Rede Ecovida: um próximo a um grande centro urbano (Curitiba), e o outro situado num território tipicamente rural (município de Francisco Beltrão). Tais territórios tiveram formações sócio-espaciais bastante diferenciadas, as quais acreditamos exercerem uma significativa influência nas interações entre os atores membros dos respectivos núcleos, afetando assim a forma de gestão praticada. A análise da gestão à luz dos aspectos inerentes à formação sócio-espacial poderá contribuir para elucidar a forma de expressão da inovação engendrada pelas redes sociais produtivas contemporâneas.

2. Espaço, território e identidade

A realidade humana pode ser compreendida sob múltiplas dimensões e o espaço é uma delas. O espaço social, para Lefebvre (1991), é a materialização da existência humana. O espaço assim compreendido, portanto, é uma dimensão extremamente importante da realidade. Essa amplitude, na verdade, oferece diferentes desafios para a geografia - uma ciência que tem o espaço como categoria de análise e, com isso, necessita estudá-lo, a fim de contribuir com sua compreensão para transformação do ambiente social.

O propósito dos geógrafos de demonstrar que o espaço constitui um elemento ativo na organização social, na maior parte do tempo, esteve em descompasso com as demais áreas do conhecimento. Para Gomes (2002), existem duas hipóteses que justificam esse descompasso: a primeira refere-se à falta de diálogo entre a geografia e as demais ciências, isto é, os geógrafos, na sua grande maioria não conseguem despertar o interesse de pesquisadores de outras áreas do conhecimento; a segunda é a de que os outros domínios do saber ainda não se deram conta da importância da contribuição da análise espacial no processo de compreensão do fenômeno social.

Segundo Claval (1997), a idéia de um espaço caracterizado como categoria de análise tem origem na concepção aristotélica que, juntamente com o tempo, permite a classificação dos dados sensíveis. Para enfatizar a importância dessa categoria, Castells (2000) afirma que se se considera as dimensões materiais da vida humana como parâmetro, o espaço passa a ser o organizador do tempo na sociedade atual, isto é, na sociedade em rede. De acordo com Soja (1993), o desafio posto não somente para a geografia, mas para as ciências sociais como um todo, passa pelo reconhecimento de que agora é mais o espaço do que o tempo que oculta as

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coisas de nós, de que a desmistificação da espacialidade e de sua velada instrumentação do poder é a chave para dar sentido prático, político e teórico à era contemporânea.

2.1 Formação sócio-espacial

Segundo Santos (2002), a expressão formação espacial foi utilizada primeiramente por Nicole Mathieu em 1974 para identificar regiões homogêneas de acordo com as relações cidade-campo e as respectivas organizações espaciais. Milton Santos, por outro lado, foi quem mais trabalhou sobre o assunto, considerado como uma das mais representativas propostas de reformulação epistemológica não somente para a geografia, mas também para o grande grupo das ciências sociais.

Isso porque a geografia, para Santos (2002), que sempre considerou o espaço como teatro das ações humanas, preocupou-se demasiadamente com a forma e não pela formação. Somente a história da sociedade mundial, em conjunto com as especificidades locais, pode contribuir para que a geografia interprete o espaço humano de maneira satisfatória, um vez que não existe sociedade sem espaço. O espaço, conforme o autor salienta, é, em si mesmo, social, não podendo, portanto, ser analisado nem representado fora dessa característica.

Entretanto, afirmar que o espaço é social não significa incorporá-lo como parâmetro de análise, como uma espécie de conhecimento. Para Hissa (2002), não se pode afirmar com precisão que existe uma ciência sócio-espacial, isto é, uma disciplina científica com estatutos epistemológicos estabelecidos. Existem, isto sim, fragmentos de um conhecimento sócio-espacial dispersos e carentes de um contexto de integração. Por isso, continua Hissa (2002), “o que aqui se denomina conhecimento sócio-espacial demanda movimentos constantes de integração, de aproximação de discursos e de ruptura de fronteiras interdisciplinares” (HISSA, 2002, p. 285).

A noção de formação espacial compõe, através das diversas instâncias de produção, o estudo das sociedades humanas em sua obra de permanente reconstrução do espaço herdado das gerações precedentes. Santos (2002) ainda considera que na busca da compreensão da formação espacial “ocupar-se-ia o espaço humano transformado pelo movimento paralelo e interdependente de uma história feita em diversos níveis – internacional, nacional e local” (SANTOS, 2002, p. 240), nas suas diferentes dimensões: social, econômico, político, cultural e histórico.

Sem pretender confundir formação espacial com sociedade global, Santos (2002) argumenta que “as noções de totalidade e de estrutura, de universal e de particular, deverão ser unificadas em um mesmo movimento conjunto no qual a sociedade seria reconhecida e seu diálogo com a natureza transformada” (SANTOS, 2002, p. 240), não apenas como agente transformador mas também como um de seus resultados.

Considerando-se as afirmações acima, uma sociedade não pode ser analisada sem sua respectiva formação econômica e social. Por outro lado, a formação econômica e social não pode ser analisada sem incluir o espaço. Esta categoria, portanto, diz respeito à evolução diferencial das sociedades, no seu campo próprio e, também, em relação com as forças externas de onde lhes provém o impulso.

Por isso, para Santos (2002) trata-se de uma categoria de formação econômica, social e espacial e não somente uma formação econômica e social como até hoje tem sido interpretada. Dessa forma, aproxima-se de uma concepção do espaço que ultrapasse as fronteiras do ecológico e abranja toda a problemática social. Nessa configuração, o território e a identidade territorial representam um dos aspectos dos “guarda-chuva” conceitual denominado formação sócio-espacial.

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2.2 Território e identidade

Para Haesbaert (1997), Tuan foi um dos primeiros geógrafos a destacar a identidade espacial, produto de uma apropriação simbólica do espaço, tratado não somente como território, mas também como lugar. A territorialidade humana, diferentemente da animal, deve ser buscada na qualidade, emoção e pensamentos simbólicos que o homem possui. Dá-se, dessa forma, a “topofilia” – “elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico” (TUAN, 1980, p. 5).

Freqüentemente, na vida cotidiana, confunde-se espaço e território. A idéia de território traz consigo a noção de territorialidade humana que, para Santos e Silveira (2001), pressupõe a preocupação com o destino e com a construção do futuro. Por territorialidade, de acordo com os últimos autores, entende-se como sinônimo de pertencer àquilo que nos pertence, esse sentimento de exclusividade e limite ultrapassa a raça humana e prescinde da existência de Estado. Dentro dessa perspectiva, o território também é visto como o nome político para o espaço de um país.

Surge, então, um espaço geográfico e/ou social específico: o território. O território, para Haesbaert (1997), é o espaço apropriado por uma determinada relação social que o produz e o mantém a partir de uma forma de poder. O território é, ao mesmo tempo, uma convenção e uma confrontação. Exatamente porque o território possui limites, possui fronteiras, é um espaço social dialético porque é um espaço de conflitos de interesses.

A identidade social nunca pode ser vista como unitária e duradoura. Da mesma forma que a identidade individual ela se constrói e se desfaz constantemente no devir histórico. Com a identidade territorial não é diferente, uma vez que seu conteúdo simbólico pode mudar rapidamente com o tempo e ganhar, possivelmente, novos contornos e características. Por identidade territorial, portanto, entende-se “um conjunto concatenado de representações socio-espaciais que dão ou reconhecem uma certa homogeneidade em relação ao espaço ao qual se referem, atribuindo coesão e força (simbólica) ao grupo que ali vive e com ele se identifica (HAESBAERT, 1997:50). Uma vez constatada a existência da identidade territorial, resultado de uma formação sócio-espacial específica, a seguir discutiremos brevemente como a identidade foi analisada no âmbito dos estudos organizacionais.

3. Identidade e os estudos organizacionais

A identidade da era pós-industrial é múltipla e dependente de vários fatores como nação, estado, classe social, contexto geográfico, sexualidade, entre outros. Em organizações virtuais, sobretudo, ela só pode ser vista como algo fragmentado e efêmero, volatilizando ainda mais os aspectos-chave para a formação da identidade.

Dentro do debate dos estudos organizacionais, a questão da identidade tem ocupado espaço tanto no Brasil quanto no exterior. No debate acadêmico, ao menos duas vertentes principais podem ser identificadas: de um lado os estudos relacionados com a imagem organizacional ou corporativa e, de outro, os estudos centrados na subjetividade humana, ligados à identificação do indivíduo com a organização (CALDAS; WOOD, 1999).

Muitas pesquisas partem do pressuposto central de que a organização possui uma identidade, a qual, nesta concepção, constitui um de seus aspectos fundamentais no âmbito da dita cultura organizacional (ALBERT; WHETEN, 1985). Outros estudos analisam a temática da identidade sob a perspectiva da diversidade. Para Nkomo e Cox (1998), a diversidade vem ganhando notoriedade como tópico nas discussões ligadas aos estudos organizacionais. A

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questão central está em como administrar a diversidade. Entretanto, a diversidade, bem como a identidade, são conceitos que ainda carecem de rigor em relação aos seus respectivos desenvolvimentos teóricos e especificidades históricas, nas pesquisas em administração.

Um outro ponto de vista da identidade concentra-se na questão dos resultados obtidos pelas organizações. A contribuição de Ashforth e Mael (1989), por exemplo, indica três conseqüências gerais da identificação de um grupo com os resultados organizacionais: a) as pessoas se identificam e tendem a definir e escolher suas atividades e instituições que sejam coincidentes com suas definições mais coerentes; b) a ausência de identificação afeta não somente os resultados, mas também a coesão e a interação intergrupais; c) a identificação reforça o sentimento de pertencimento ao grupo e a seus respectivos valores.

No âmbito dos estudos organizacionais, a identidade também foi tratada a partir do chamado modelo de ação identitária (BAUER; MESQUITA, 2004). Tal modelo é inspirado nas teorias de Edmund Husserl e Jürgen Habermas sobre o mundo da vida, isto é, o mundo histórico e cultural visto na sua concretude, assentado sobre os usos e costumes, saberes e valores. Assim, para Bauer e Mesquita (2004), a identidade social está sempre relacionada ao sentimento de pertencimento a um determinado grupo. Desse sentimento decorre, como uma espécie de efeito, a facilidade ou não do grupo trabalhar em conjunto, compartilhando deveres e obrigações. Esta linha de pensamento constitui um dos fundamentos para o desenvolvimento da nossa pesquisa sobre inovação em redes sociais produtivas.

4. Redes sociais produtivas

Fenômeno emergente globalmente, resultante de grandes modificações nas estruturas sociais, políticas e econômicas, as redes interoganizacionais têm se caracterizado como um novo desafio para o estudo científico da administração. De gênese conceitual fundamentalmente pluridisciplinar, o termo rede não somente cresce em importância dentro da teoria das organizações, mas demanda estudos teóricos e empíricos que evidenciem suas dinâmicas. Acreditamos que, na maioria dos casos, as redes representam uma inovação social.

Dentre os verbetes mais ricos em significados, ao menos na língua portuguesa, certamente encontra-se a palavra “rede”, também é conhecida na administração como network, isto é, rede de trabalho. Tornou-se, evidentemente, um termo utilizado em diversas áreas do conhecimento. Na sua definição mais simples, de acordo com Marteleto (2001), pode-se compreender como um sistema de nodos e elos; uma estrutura sem fronteiras; uma comunidade não geográfica. Ao direcionar a atenção de seu intelecto, o homem contemporâneo percebeu que a tendência histórica, aliadas às funções e processos dominantes da era da informação, como bem resume Castells (2002), estão cada vez mais organizados em torno de redes. Elas constituem “a nova morfologia social de nossas sociedades e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura” (CASTELLS, 2002, p. 565).

O estudo das redes organizacionais tem ganhado destaque nos últimos anos devido a sua importância num cenário caracterizado pela complexidade das inter-relações em um mundo globalizado e competitivo. Pois, uma rede pode ser definida ainda como um agrupamento de organizações não necessariamente dependentes, mas que estão ligadas entre si por laços mútuos não formais na sua essência. Essas organizações, as quais podem ter ou não fins lucrativos, possuem interesses similares e, consequentemente, desenvolvem trabalhos similares, compartilhando riscos e recursos, efetuando apostas coletivas e, o principal, sabendo que suas relações evoluem com o tempo. As redes interorganizacionais, para Balestrin e Vargas (2002),

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possuem uma tendência de crescimento importante na vida econômica, pelo fato de facilitarem a complexa interdependência transacional e cooperativa entre as organizações.

Por outro lado, para Lipnack & Stamps (1992), a grande novidade do trabalho em redes reside na sua promessa como uma forma global de organização fundamentada na participação individual sem perder de vista o aspecto global. Uma organização social que apoia a interdependência sem deixar de lado a independência das dimensões envolvidas.

De uma forma sintética, as redes organizacionais, de acordo com Achrol e Kotler (1999) podem ser caracterizadas por: a) possibilitar melhor adaptação em ambientes ricos em informação; b) ser caracterizada por “enlaces frouxos”; c) possuir capacidade superior de processamento de informações; d) serem mais flexíveis e reativas a mudanças; e) minimizaram os investimento fixos e em tecnologias; f) baixa tolerância à hierarquia e a controles; f) e, por último, considerarem o poder dos contratos menos importantes que os mecanismos de governança e de relacionamento.

Diferentemente de outras formas hierárquicas, as redes compostas por organizações independentes têm como aspecto relevante a autonomia para efetuar tomadas de decisões a partir das peculiaridades do ambiente local. Entretanto, para Alvarez, Mecena e Proença (2002), essa autonomia do ponto de vista formal - onde cada um dos integrantes possui objetivos próprios, além de estratégias individuais diferenciadas e legitimamente estabelecidas – não significa abrir mão do conjunto das demais organizações.

5. Agricultura familiar e agroecologia

Ao analisar a situação da agricultura familiar brasileira, Evangelista (2000), destaca que são inúmeros os documentos que defendem a importância da agricultura familiar, atribuindo-lhe papel fundamental na produção de alimentos e geração de empregos. Contudo, sua definição permanece envolvida em muita confusão conceitual, sobretudo no que tange ao tamanho da propriedade e na discussão entre agricultura de subsistência e agricultura comercial. Discussão, no entanto, que para Veiga (1996), não procede, uma vez que a agricultura comercial não se opõe à familiar. Neste contexto, o comercial seria visto como oposto à subsistência ou autarcia. De acordo com dados do IBGE (2004), a agricultura familiar representa 77% dos estabelecimentos rurais no Brasil e emprega mais de 12 milhões de pessoas. Detêm apenas 20% das terras produtivas, entrementes, responde por mais de 30% da produção de alimentos do país. Segundo Chiara (2005), no ano de 2003 o ritmo de crescimento da soma de todas as riquezas produzidas pelo agronegócio familiar, considerando desde o adubo colocado na terra até o alimento no prato do consumidor, foi quase o dobro do registrado pelo o que foi produzido pelo agronegócio patronal, e superou em cerca de 20 vezes o ritmo de avanço do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil.

Um estudo da Fipe/USP mostra que a agricultura familiar responde por um terço do PIB total do agronegócio e 10% do PIB do País. Tudo isso mesmo apesar das dificuldades na liberação de crédito e a falta de assistência técnica. A importância econômica do agronegócio familiar surpreendeu até os especialistas no assunto.

De acordo com os estudos realizados pelo INCRA/FAO (2000), o universo familiar pode ser caracterizado pelos estabelecimentos que atende, simultaneamente, às seguintes condições: a direção dos trabalhos do estabelecimento é exercida pelo produtor; o trabalho familiar é superior ao trabalho contratado; e, por último, tamanho da propriedade em relação a unidade máxima regional - definido também pela área em relação ao número de pessoas que dela dependem.

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Em função de suas especificidades, a agricultura familiar também pode adaptar-se com maior facilidade aos pressupostos da agroecologia. A agroecologia, para Caporal e Costabeber (2002), pode ser definida como “um promissor campo do conhecimento, uma ciência com especial potência para orientar processos de transição a estilos de agricultura e de desenvolvimento rural sustentáveis”(CAPORAL; COSTABEBER, 2002, p. 70). Ela, de acordo com os autores, não é um modelo de agricultura ou uma tecnologia e, muito menos, uma política pública. Sua definição deve estar necessariamente vinculada à idéia de sustentabilidade ecológica, econômica, social, cultural, política e ética.

Para Leff (2002), a agroecologia pode ser definida como um novo paradigma produtivo, como um conjunto de ciências, técnicas e práticas para uma produção ecologicamente sustentável. As práticas agroecológicas orientadas no intuito de recuperar os saberes tradicionais. Recuperar um tempo em que o saber humano determinava um lugar no mundo e atribuía um sentido à existência.

A agricultura familiar de produção agroecológica, conforme demonstrado, constituiu o pano de fundo da análise nesta pesquisa. Além de sua importância no cenário econômico nacional, inclui-se, ainda, o fato de ser um setor com necessidades e possibilidades de inovações sociais. 6. Procedimentos metodológicos

Em relação ao método é oportuno salientar que se trata de um estudo de natureza qualitativa. Os métodos de coleta de dados empregados são a entrevista semi-estruturada, a análise de documentos e a observação direta. Foram entrevistados agricultores e técnicos das ONGs que compõem os núcleos da Rede Ecovida analisados.

Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, a qual deve ser desenvolvida a partir de uma base teórica a partir da qual se evidencie a existência da inovação social. Entrementes, a abertura para descobertas de novas dimensões ou elementos surgidos a partir do contato mais próximo com a realidade é um fator importante para o qual o pesquisador deve estar sempre atento. A consideração de um número variado de dimensões é um aspecto relevante a ser destacado, já que a complexidade da realidade exige tal procedimento. Um estudo exploratório aborda um assunto com pouco conhecimento sistematizado, acumulado e disseminado. Quando não há informações suficientes, quando a formulação de hipóteses e a operacionalização das perguntas forem difíceis, recomenda-se uma pesquisa exploratória.

A população considerada na pesquisa é compreendida por produtores ligados à Rede Ecovida de Agroecologia de duas regiões do Estado do Paraná: o núcleo Maurício Burmester do Amaral, de Curitiba e Região Metropolitana, e o núcleo Sudoeste, da região de Francisco Beltrão – estado do Paraná. 6.1 Formação sócio-espacial dos núcleos pesquisados da Rede Ecovida

Na Região Metropolitana de Curitiba (núcleo Maurício Burmester do Amaral), incluído também o espaço rural, predominam as relações sócio-espaciais urbanas - fundamentadas na sociedade urbano-industrial da modernidade – ao mesmo tempo em que preserva alguns traços característicos da ruralidade. O camponês europeu, destaca Karam (2004), foi um ator social importante da ruralidade em construção, além de valorizado por suas características “branqueadoras”, era considerado muito mais qualificado que o camponês nacional. Com isso reforçava-se a idéia de superioridade dos imigrantes estrangeiros sobre os daqui. Esse foi, sem

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dúvida alguma, um dos principais fatores responsáveis pelo isolamento dos grupos que aqui se instalaram, além, é claro, do problema da comunicação decorrente do idioma português.

Apesar das relações mantidas com o núcleo central de Curitiba, comenta Karam (2004), os camponeses ainda nas primeiras décadas do século XX eram vistos como os de fora. Essa situação constitui-se como um fator adicional o qual delimita e reforça a divisão espacial entre o rural e o urbano, além das diferenciações sócio-espaciais próprias das comunidades rurais decorrentes do processo de colonização. A diversidade de atores e a multiplicidade de causas, entre outros fatores comentados acima, caracterizam a formação sócio-espacial de Curitiba e Região Metropolitana como sendo heterogênea do ponto de vista da construção da identidade territorial. Já no núcleo Sudoeste, a região desenvolveu-se baseada num processo de industrialização fundamentado em um mercado regional pouco desenvolvido, e nas condições de pequenas propriedades agrícolas policultoras com grande homogeneidade e relativa auto-suficiência. De acordo com Alves et al (2004), a análise da formação territorial do sudoeste paranaense deve centrar-se em dois fatores. De um lado a consideração da construção histórica do território e do outro a compreensão da singularidade regional a partir de outras dimensões escalares, tais como estadual, nacional e internacional. Ambas devem estar centradas na relação dialética entre espaço e tempo.

Para a “compreensão da formação territorial do sudoeste do Paraná, é de suma importância o rompimento com a dicotomia entre geografia física e humana” (ALVES et al, 2004, p. 152). Elementos bióticos e abióticos – unidos às variáveis culturais – constituem-se varáveis que apresentam íntima relação com as práticas agrícolas desenvolvidas, a estrutura fundiária e o uso do solo. Na relação homem-espaço prevalecia menos trabalho e mais espaço, em função, é claro, da quantidade abundante de terras virgens e da baixa densidade demográfica.

Um dos fatores mais determinantes ocorrido na região sudoeste foi a luta armada pela posse das terras ocorrida entre os colonos e as Companhias de Terra. A Revolta de 1957 ou Levante dos Posseiros - aliada à eliminação da ocupação efetivada pelos caboclos e pela conseqüente colonização por imigrantes do sul – contribuem para que a formação territorial do sudoeste paranaense siga uma lógica específica, pautada principalmente na instalação de pequenos produtores agrícolas.

De acordo com Alves et al (2004), nesse processo de conflitos e apropriação do sudoeste, o território foi constituído a partir das atividades cotidianas centradas na policultura de subsistência e no trabalho familiar dos migrantes gaúchos e catarinenses. Por isso, entende-se, também, que o território “é a expressão concreta/abstrata do espaço produzido a partir da multidimensionalidade de uma rede de relações sociais parametrizadas no trabalho e marcadas pelo poder” (ALVES et al, 2004, p. 156).

Considerando ainda os conflitos ocorridos, Boneti (2005) comenta que os conflitos no campo do sudoeste paranaense não apresentam - se comparados com outros movimentos sociais - as mesmas formas de expressão, mas apresentaram unidade quanto á causa. O Levante Armados dos Colonos do Sudoeste do Paraná “teve um caráter mais amplo, o de assegurar um sistema produtivo estruturalmente constituído na região. Neste caso o movimento não foi apenas dos colonos, mas da sociedade como um todo, representada pelos colonos e comerciantes”(BONETI, 2005, p. 119). Isso reforça a tese da construção de uma identidade territorial homogênea na região sudoeste do Paraná. Dentro dos dois núcleos, a atuação da Rede Ecovida somente ocorreu em virtude da atuação de duas Ongs: Assesoar (Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural) e Aopa (Associação Orgânica do Paraná).

A Assesoar esteve fortemente ativa desde o início do processo de formação da região Sudoeste, com mais de 40 anos de existência e pautada essencialmente na formação dos

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agricultores, ela se tornou uma referência quanto o assunto é educação do agricultor e desenvolvimento do agronegócio familiar. Ela fomenta um dinamismo específico à região onde ela atua e, também, contribuiu para o fortalecimento da identidade sócio-cultural e da valorização da identidade profissional dos agricultores.

Já a Aopa é uma organização bem mais jovem, nasceu em 1995. Ela é uma organização que, apesar de ter como foco a agricultura familiar, nasceu a partir de iniciativas de agrônomos, técnicos e profissionais com uma trajetória de vida ligada à urbanidade. O suporte ideológico de seus fundadores, de acordo com Karam (2004), pautava-se nos movimentos contestatórios do final dos anos 70, sobretudo na contraposição à revolução verde. A história da Aopa espelha o processo de construção de uma nova ruralidade na Região Metropolitana de Curitiba. Ela é o resultado de um conjunto de ações desencadeadas por diferentes agentes sociais. Nos mais distintos âmbitos da esfera social. Como um típico movimento urbano, ela também mudou de foco nos últimos anos e passou a ser designada como uma entidade de articulação para trabalhar somente com projetos, afastando-se um pouco, na prática, do cotidiano e da problemática dos agricultores. 7. Resultados da pesquisa 7.1 Processo decisório/participação

A análise dos resultados das entrevistas e da observação evidenciou algumas preocupações comuns em relação à participação, cuja conexão com o processo de tomada de decisão é direta. Parece haver um consenso nos núcleos de que sem participação efetiva dos membros não há como construir um processo decisório assentado sob as bases democráticas requeridas pela inovação social.

O deslocamento é um problema para os dois núcleos. No núcleo Maurício Burmester do Amaral ele parece ser mais pontual, enquanto que no núcleo Sudoeste ele é muito mais freqüente. Em partes isso se deve ao fato de que a locomoção para Curitiba – local da reunião no núcleo Maurício B. do Amaral – é mais fácil do que no núcleo Sudoeste, que se reúne em Francisco Beltrão. As influências das características do espaço (SANTOS, 2002) parecem estar interferindo, neste caso, na participação dos membros da rede.

Visualiza-se uma diferença considerável a partir de uma fala de um agricultor do núcleo Sudoeste: “tem gente que reclama, mas não sai de casa para participar de nada.” Trata-se de um problema típico de indivíduos com contato social constante, somente percebido no núcleo Sudoeste. Em função da proximidade, a vida de cada um fica exposta e vulnerável a críticas e comentários. Para a gestão de uma rede social isso pode ser um fator que estimule a participação. No caso do líder, ele pode agir de forma mais responsável se conhece o sistema de cobrança de seus vizinhos e membros do grupo, corroborando, assim, o que Granovetter (1973) comentou sob esse aspecto nas redes. Por outro lado, isso pode fazer com que a participação não seja em função de interesses comuns, mas em virtude dos possíveis “falatórios”, como os próprios agricultores chamam esses tipos de comentários.

A heterogeneidade do núcleo Maurício Burmester do Amaral foi considerada por uma parcela considerável dos entrevistados como um problema para a gestão da Rede Ecovida. Contudo, dentro do processo decisório, ela pode propiciar o exercício da democracia de forma peculiar.

A evidência mais contundente da constatação acima é a freqüência com que o tema da certificação da produção orgânica aparece nas reuniões dos núcleos. Enquanto que no núcleo

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Sudoeste o assunto é debatido esporadicamente, no núcleo Maurício Burmester do Amaral, temas como certificação, controle social e validação externa estão presentes em todas as reuniões. A participação dos indivíduos está diretamente ligada com essa questão, ao menos para este último núcleo.

Em resumo, a participação é um problema para os dois núcleos. O processo de tomada de decisão, consequentemente, não apresenta consideráveis diferenças. Tanto a homogenedidade quanto a heterogeneidade das identidades, frutos de processos de formação sócio-espacial diferenciados, parecem não ser as únicas causas responsáveis pelos baixos níveis de participação. Neste caso, pode-se questionar os mecanismos de gestão da rede, os quais são praticamente todos informais, uma vez que não existem procedimentos, somente princípios e objetivos.

7.3.2 Ações de marketing

Em termos de atividades desenvolvidas na área de marketing percebe-se que os dois núcleos estão na mesma situação. Nesta questão, a proximidade ou a distância com um grande mercado consumidor faz a diferença. Enquanto que no núcleo Maurício Burmester do Amaral os agricultores possuem inúmeros canais de distribuição, no núcleo Sudoeste os canais de distribuição são restritos. Neste último caso, a ausência de ações de marketing são sentidas com uma intensidade maior. Isso fica evidente a partir das constatações nas reuniões dos núcleos: no núcleo Sudoeste a temática da comercialização aparece em todas as reuniões, enquanto que no núcleo Maurício Burmester do Amaral ela é discutida com uma freqüência bem menor.

A atuação da Aopa na Região Metropolitana de Curitiba quando do início dos trabalhos da Rede Ecovida produziram resultados cujos efeitos ainda hoje são percebidos. Apesar de atualmente a Aopa ser basicamente uma entidade de articulação, no início de suas atividades ela exerceu o papel de associação de produtores, procurando divulgar e comercializar os produtos orgânicos ou agroecológicos. A Assesoar, como não foi criada para fins exclusivos de comercialização, abrangendo um escopo de atuação bem maior, desenvolveu menos atividades nessa direção.

A identidade dos atores da Rede Ecovida, resultado da formação sócio-espacial, também contribui para a existência de diferenças na gestão das ações de marketing. A proximidade territorial - a qual forma uma relação identitária entre produtor e consumidor - que ocorre no núcleo Sudoeste pode possibilitar a realização de atividades indiretas de marketing. Entretanto, alguns problemas também podem decorrer disso, como é o caso de um item processado produzido no município de Francisco Beltrão. De acordo com um coordenador, “a gente não sabe como chagar e falar para o agricultor que o produto dele não está satisfazendo ao cliente. Por outro lado, os clientes, pelo fato de conhecerem os agricultores há muitos anos, também não se sentem à vontade para reclamar. Aí fica esse impasse, ninguém sabe como agir numa situação dessas”.

Já no núcleo Maurício Burmester do Amaral o dilema praticamente não existe, já que a relação entre produtor e consumidor não é tão próxima quanto no núcleo Sudoeste. Evidencia-se, dessa forma, que o conjunto espaço, território e identidade causam impactos na gestão de uma rede social produtiva. Relacionado a isso tudo, ainda constata-se que no núcleo Sudoeste os agricultores reclamam para si os consumidores que pertencem ao mesmo território que eles. Essa constatação não foi evidenciada no núcleo da Região Metropolitana de Curitiba.

Outra dimensão que merece destaque - diretamente ligada à questão do marketing – é a certificação. No núcleo Maurício Burmester do Amaral, o selo da certificação é uma condição

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sine qua non para a comercialização – destaca-se neste quesito mais uma vez o trabalho no sentido de articular junto aos órgãos competentes para validar o selo verde da Rede Ecovida decorrente do processo de certificação participativa. Já no núcleo Sudoeste, o selo não é um requisito indispensável, dado que muitos produtores vendem seus produtos há mais de 10 anos para os mesmos clientes, dispensado a formalidade da certificação.

São as Ongs, nos dois casos, que fazem os trabalhos de marketing. Ações que na maioria dos casos ocorrem de forma indireta, salvo algumas ações específicas voltadas para a organização de feiras, exposições e divulgações dos produtos agroecológicos. Porém, as atividades de marketing não podem ser consideradas completas, uma vez que não existem, por exemplo, pesquisas com consumidores agroecológicos para saber de suas necessidades e desejos reprimidos.

7.3.3 Comunicação/conectividade

Foi constatado que existe consenso dentro da rede quando esse tema é abordado, pois ele representa, em termos de abrangência, o maior problema da Rede Ecovida. A fluência da comunicação não é intensa nas duas realidades analisadas, no entanto, ele tem se mostrado um processo em construção com avanços consideráveis.

Como já demostrado anteriormente, a comunicação na Rede Ecovida não ocorre nos mesmos níveis do ciberespaço (LÉVY, 2000). Vários fatores estão interrelacionados neste quesito específico. Destacam-se a ausência de meios técnicos que garantam o suporte necessário e a noção de tempo/espaço típica da formação sócio-espacial do agricultor familiar, isto é, um tempo e um espaço diferentes do tempo urbano da inter-conectividade e da interatividade simultâneas.

Tanto para os agricultores quanto para os coordenadores, a comunicação na Rede Ecovida deve estar relacionada com o aumento do número de trocas de sementes e, também, de conhecimentos populares. No entender dos membros da Rede de ambos os núcleos, a “comunicação deve facilitar o resgate do conhecimento popular acumulado ao longo dos séculos”, afirma de um dos membros da coordenação geral. Para eles, “isto não significa dizer que as novas práticas são ruins, nem que as antigas são melhores, apenas achamos que presente e passado devem estar em conversa contínua. Isso ajuda a resgatar a nossa identidade”, comenta um agricultor e coordenador.

No núcleo Sudoeste, constatou-se que a troca de informações entre os membros de um mesmo grupo ocorrem não somente com uma freqüência maior, mas também com uma maior intensidade. Isso se deve por dois fatores elementares: a formação sócio-espacial e a proximidade geográfica. Como conseqüência, a identidade também será homogênea e isso pode ser analisado sob dois pontos de vista distintos. O primeiro seria considerá-los sob a análise das conseqüências dos relacionamentos entre laços fortes e laços fracos (GRANOVETTER, 1973) . Neste aspecto, se consideradas as possíveis oportunidades para novos negócios, novas tecnologias, novas sementes, novos mercados, esse grupo de agricultores do núcleo Sudoeste evidencia estar restringindo consideravelmente o número de possibilidades, enquanto que no núcleo Maurício Burmester do Amaral as possibilidades parecem ser bem maiores em função da heterogeneidade decorrente do processo de formação sócio-espacial e da própria localização geográfica. O segundo ponto de vista está relacionado com a possibilidade de construção de uma ação coletiva, isto é, mobilizar-se em torno de estratégias coletivas comuns. Neste caso, a homogeneidade demonstra certas vantagens sobre a heterogeneidade.

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Para a gestão da Rede Ecovida, a comunicação tende a permanecer como um impasse sem soluções por um longo período. Isto pode causar perdas irreparáveis para a rede que, em última instância, serão refletidas na agricultura familiar brasileira. A análise da gestão da comunicação numa rede de agricultores familiares possibilita a compreensão das limitações de uma complexa realidade social que, de forma lenta mas gradual, aos poucos vai se dotando de autonomia e abrindo novas possibilidades.

A comunicação é dependente das atividades das Ongs. No núcleo Sudoeste, a Assesoar é a ligação entre a Rede e os agricultores. Pela sua história, ele tem desempenhado essa função de forma exemplar. Ela é uma organização que realmente acredita na Rede Ecovida e, por isso, para facilitar o processo de comunicação entre as Ongs e os agricultores, colocou um de seus técnicos para coordenar a Rede. Isso não pode ser constatado na mesma proporção no núcleo da Região Metropolitana de Curitiba.

7.3.4 Desenvolvimento do agronegócio familiar

A partir da análise dos dois núcleos parece evidente que a Rede Ecovida tem contribuído para o desenvolvimento do agronegócio familiar. As atividades da Rede Ecovida tendem a confluir para que a agricultura familiar no Brasil se desenvolva da maneira mais sustentável possível.

Na comparação desta dimensão de análise – fim último de rede como já frisado em várias oportunidades – uma outra constatação parece evidenciar-se: no núcleo Sudoeste, o trabalho da Assesoar há mais de 40 anos sobre a questão da agricultura familiar não possibilita uma maior clareza sobre a dúvida de quanto a Rede Ecovida contribuiu para o aprimoramento da realidade em discussão. Já no núcleo Maurício Burmester do Amaral, apesar do trabalho intensivo da Aopa na questão da comercialização, os resultados parecem ser mais palpáveis. Isso não significa afirmar, no entanto, que a Rede Ecovida tenha sido mais eficaz na Região Metropolitana de Curitiba que no núcleo Sudoeste. A verdade é que o trabalho da Assesoar é exemplar e em muitas questões antecipou a Rede Ecovida de Agroecologia.

Conforme demonstrado numa das falas dos agricultores durante as análises, um aspecto positivo da Rede Ecovida consiste no fato dela possibilitar uma maior visibilidade para os agricultores. Além do mais, com ela os agricultores agroecológicos dos três Estados dos Sul do Brasil ganham status de organização articulada da sociedade civil.

No núcleo Maurício Burmester do Amaral, muitos agricultores comentaram que o negócio ficou mais lucrativo após a associação com a Rede. Isso se deve, principalmente, pela possibilidade de venda direta para o consumidor através das feiras espalhadas pela região. O mesmo não ocorreu no núcleo Sudoeste, onde existe consenso de que o selo e a rede não fizeram com que aumentasse a rentabilidade do agronegócio familiar. As vendas, em muitos casos, continuaram sendo as mesmas. De acordo com depoimentos, raros são os agricultores satisfeitos com a rentabilidade da agricultura familiar no núcleo Sudoeste. 8. Considerações finais

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Na busca das respostas às inquietações iniciais pode-se afirmar de antemão que, em parte, a hipótese inicial se confirmou, isto é, a formação sócio-espacial impacta na gestão de uma rede social produtiva. Entretanto, na maior parte das constatações, verificou-se que tanto os problemas quanto as soluções encontradas apresentam algumas similaridades nos dois núcleos, apesar da diferença decorrente do processo de formação sócio-espacial.

A primeira constatação que diferencia o núcleo Maurício Burmester do Amaral do núcleo Sudoeste consiste nos tipos de laços sociais estabelecidos. No primeiro os laços são fracos e cada indivíduo possui – para utilizar um termo de Granovetter (1973), várias “pontes” com outros indivíduos. Esse fator aumenta o número de possibilidades e de escolhas e esses referidos indivíduos poderão realizar. Sendo assim, as chances de crescimento e de inovação do agronegócio familiar no núcleo Maurício Burmester do Amaral são relativamente maiores em relação aos agricultores do núcleo Sudoeste. Neste caso, os indivíduos permanecem restritos aos poucos e fortes laços estabelecidos ao longo da vida, diminuindo, dessa forma, as chances de encontrar oportunidades diferentes de negócios daquelas, até então, praticadas.

A segunda constatação importante está relacionada com o processo histórico de formação sócio-espacial das duas regiões. Isto porque a Rede Ecovida não se faz presente numa determinada região senão através das Ongs. Neste estudo de caso duas foram as Ongs indiretamente analisadas: a Aopa (núcleo Maurício Burmester do Amaral) e a Assesoar (núcleo Sudoeste). Duas importantes entidades e com trabalhos exemplares desenvolvidos, mas com origens e histórias diferentes, conforme demonstrado no capítulo seis deste trabalho. Pelos seus 40 anos de engajamento dentro da agricultura familiar da região Sudoeste, a Assesoar, juntamente com a Rede Ecovida, desenvolvem, por exemplo, um intenso trabalho de educação no campo não encontrado no núcleo da Região Metropolitana de Curitiba.

A terceira constatação importante que diferencia a gestão dos dois núcleos está relacionada com a proximidade geográfica dos membros dos grupos dos núcleos. Enquanto que no núcleo Maurício Burmester do Amaral a proximidade ocorre mais em função dos interesses de certificação participativa - a qual não onera o produtor com os custos das visitas dos auditores externos das certificadoras tradicionais, mas, em contrapartida, os obriga a associar-se com pessoas desconhecidas e sem referências, simplesmente porque são os membros da Rede mais próximos – no núcleo Sudoeste a aproximação praticamente nunca ocorre com pessoas estranhas ao círculo de amizades. Geralmente são vizinhos ou parentes próximos que vivem em localidades próximas. Essa questão é fundamental para entender a comunicação, a conectividade e o processo decisório. Quanto mais próximos, maior a conectividade, uma vez que as comunicações e, também, uma considerável parcela das decisões relativas aos pequenos grupos, ocorrem na informalidade dos bate-papos e nas rodas de chimarrão. Como não existem mecanismos formais de cobrança, a proximidade contribui para o bom andamento da gestão da rede.

Outra constatação que merece destaque refere-se diretamente á localização geográfica dos dois núcleos: um próximo do um grande mercado consumidor, enquanto que outro se encontra próximo a um mercado consumidor com muitas restrições. Essa diferença é refletida com maior intensidade nas ações de marketing. Atualmente, o núcleo Maurício Burmester do Amaral encontra-se numa posição mais confortável no que concerne à comercialização de seus produtos. Aliado à localização, ainda permanece o reflexo das atividades da Aopa, que num passado recente fora criada quase que exclusivamente para resolver as dificuldades de comercialização dos produtos orgânicos. Por outro lado, não é o que se evidencia no núcleo Sudoeste, que vê na comercialização o seu maior obstáculo a ser superado. Até o momento, a Rede Ecovida não demonstra ter conseguido muitos avanços, apesar dos esforços despendidos na solução da problemática da comercialização.

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Antes de finalizar, faz-se mister tecer alguns breves comentários sobre a Rede em geral. Ao analisá-la a partir do ponto de vista de seus atores principais, os agricultores familiares de produção agroecológica, ela tem contribuído de forma peculiar nas mais diversas dimensões da vida desses agricultores. De fato, ela se constitui numa inovação social. No entanto, de acordo com nossa percepção, essa realidade poderia ser mais favorável aos agricultores se estes não se pautassem demasiadamente na filosofia do assistencialismo e na eterna espera de soluções acabadas advindas dos técnicos e agrônomos ligadas às cooperativas agrícolas. Como já comentado durante a análise dos dados coletados, para que uma rede funcione é fundamental que os nodos estejam interessados na troca de informações. Sobretudo numa rede social de agricultores familiares, onde os recursos técnicos para trocas simultâneas de informações ainda são precários se comparados com as mais avançadas tecnologias existentes. Pela sua peculiaridade, a Rede Ecovida necessita de um grau de comprometimento elevado de seus membros e este é considerado por agricultores e coordenação como um processo social em construção.

A Rede também funciona como disseminadora de conhecimento. Isto ocorre principalmente pelo intercâmbio fomentado tanto nos encontros de grupos e núcleos quanto pelos encontros realizados com agricultores dos três Estados do Sul. A troca de sementes e tecnologias favorece o desenvolvimento da agricultura familiar, bem como a criação de uma identidade comum aos filiados da Rede Ecovida. Além do mais, essa identidade dá à organização um status de entidade da sociedade civil organizada e articulada. Em função deste último fator, justifica-se a preocupação com sua gestão, dado que são cerca de 1,5 mil famílias de algum modo conectadas em torno de consciências e interesses comuns.

A gestão permanece como uma incógnita para o futuro da Rede Ecovida. Uma constatação importante é que ela é administrada somente por voluntários, isso porque ela não despende recursos para pagar salários de funcionários contratados. Em outras palavras, ela não está profissionalizada como uma organização formal e burocrática tradicional. Ela não trabalha com resultados facilmente mensuráveis, ela é uma organização somente com princípios e objetivos. Para profissionalizar a gestão, ela careceria de uma estrutura formal mínima, fato este que a tornaria como uma organização tradicional. Na realidade, esta é a grande discussão empreendida atualmente pelos coordenadores gerais da Rede Ecovida de Agroecologia.

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O Surfe Além das Ondas: Uma Atividade de Desenvolvimento Local da Região de Florianópolis

Autoria: Marcel Mendes Silva. 1 Introdução O surfe é um esporte recente no Brasil, com menos de 50 anos de existência. Além de ser um esporte internacionalmente estruturado, com organizações e profissionais específicos, o surfe é também considerado como um estilo de vida, que possui toda uma indústria de moda, uma identidade de “tribo” com linguagem e características próprias, e também uma ligação direta com a natureza. Em termos econômicos o surfe também se destaca como um setor forte. Apresenta cerca de 2,4 milhões de praticantes de surfe; movimenta anualmente 2,5 bilhões de reais, com crescimento de 10% ao ano desde 2000; e emprega 140 mil pessoas, e possui 15% do mercado mundial do segmento (CUNHA, 2002). Nesse cenário, Florianópolis, além de ser a capital do estado de Santa Catarina, é atualmente considerada a capital nacional do surfe. Uma ilha com ótimas condições naturais para o esporte e que, ao longo dos últimos anos, promoveu uma inovação social de grande impacto ao desenvolver a melhor organização desse esporte no país. Naquela cidade são atletas, juízes, fabricantes, comerciantes, profissionais liberais e muitos outros atores que tem no surfe sua fonte de renda. Observando-se a representatividade nacional do surfe para o Brasil e a condição do esporte na Ilha de Santa Catarina, percebe-se uma ampla dimensão de análise para estudo. Se o surfe está nacionalmente associado ao desenvolvimento econômico, gerando empregos e movimentando todo um segmento de indústria, como se dá essa relação em Florianópolis?

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O surfe em Florianópolis ultrapassa a condição do conceito de desenvolvimento econômico. Ele envolve a geografia da cidade, a condição cultural dos seus habitantes, o aspecto ecológico, a dimensão social e também política (SACHS, 1994; SAUVAGE, 1996). Dessa forma, o presente artigo tem por objetivo descobrir se a atividade do surfe em Florianópolis, Santa Catarina, pode ser considerada como um fator de desenvolvimento local. 2 Desenvolvimento Local como Inovação Social Problemas como o desemprego, seja em países em desenvolvimento ou até mesmo na própria Europa, a diminuição global das rendas familiares, a pobreza, a fome, as más condições sanitárias e a intensa degradação do meio ambiente são indícios de que o modelo de desenvolvimento baseado apenas na dimensão econômica está à beira de um colapso (SAUVAGE, 1996). Os problemas atuais são tão crônicos que o desenvolvimento econômico está cada vez mais voltado a uma idéia de curto prazo. As empresas pretendem se sustentar no agora, esquecendo-se do amanhã. Isso traz sérios problemas para as futuras gerações e também para o ambiente como um todo. Para que um modelo de desenvolvimento sustente-se, é vital que ele siga além da economia, relacionando aspectos ambientais, sociais e culturais, como foi observado na introdução. Nessa linha de raciocínio, Sachs (1994) faz várias considerações sobre essa sustentabilidade, argumentando que o desenvolvimento deve ser sempre observado diante de uma visão de longo prazo, com referências estratégicas e globais, mas ligadas à uma dimensão territorial, combinando políticas setoriais para se avaliar impactos ambientais, sociais, econômicos e seus efeitos cumulativos. Para Ferreira e Ferreira (1995), o desenvolvimento sustentável é um modelo que deve superar os efeitos de arrasto do gigantismo industrial, combinando a política, a cultura, a economia, a saúde e a ecologia em um novo paradigma produtivo, visando a satisfação das necessidades humanas por meio das potencialidades biofísicas, ultrapassando a racionalidade econômica comum e realizando um "contrato natural" de evolução da sociedade. E quando o foco é no local observa-se outra realidade de desenvolvimento. Sauvage (1996) defende a idéia de formação de uma base de raiz para que a economia global possa ser sustentada. Para ele, mesmo para uma economia macroambiental, é no microambiente que a economia se desenvolve, sendo preciso preservar as bases, até para possibilitar que as futuras gerações colham os frutos gerados por essa economia, proporcionando o crescimento financeiro, a qualidade ambiental e a integração social. É nesse contexto que surge o desenvolvimento local. Em termos de conceituação, Andion (2003) afirma que o desenvolvimento local é um novo tipo de desenvolvimento que agrupa conceitos pós-fordistas, com foco em valores mais amplos que a produção de bens de consumo, voltados à sustentabilidade, proteção de bens e valores sociais, políticos, culturais e ambientais, isto é, um tipo de desenvolvimento cuja participação ativa do território e da comunidade local são fundamentais. Para Casarotto Filho e Pires (2001), o desenvolvimento local atribui-se a um processo de orientação à especialização e a complementaridade produtiva de habitantes de uma região, nas esferas pública ou privada, que contribui para a aceleração do crescimento. Em termos práticos, esse crescimento é a capacidade de se criar em condições locais certas regras que possibilitem a cooperação entre os atores com o objetivo do desenvolvimento individual e comum, o qual gera acúmulo de conhecimento e crescimento coletivo. Os autores também completam que o desenvolvimento local é uma espécie de cooperação de competências, que o regionalismo, em si, é uma resposta à globalização e que esta nada mais é do que a competição de diversos sistemas locais abertos ao mundo.

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Semelhante a esse conceito, o próprio Comitê Econômico e Social das Comunidades Européias define que o desenvolvimento local é um processo de reativação da economia e dinamização de uma sociedade local, fundamentado na otimização de recursos endógenos, objetivando o crescimento da economia, a geração de empregos e a melhoria da qualidade de vida (MARTINS, 2002). Wittmann, Dotto e Boff (2003) complementam esta definição afirmando que o desenvolvimento local apóia-se em diferentes modelos e fatores que proporcionam diferentes dinâmicas e práticas, envolvendo um conjunto de princípios, como associativismo, capital social, liberdade, cultura, tradição e crenças que podem potencializar uma determinada região. A região, ou melhor, essa visão de território, é inerente ao desenvolvimento local. Há muita discussão de que o local, a região ou o território seriam apenas mais uma dimensão de análise do conceito de desenvolvimento, o que já foi anteriormente contrariado por Andion (2003). Doniak (2002) cita que muito que se atribui ao sentido de território é o mesmo dos animais, isto é, o habitat natural, mas quando se fala do território habitado por humanos, esse sentido é ampliado. Para o autor, o território humano não é apenas um lugar onde se vive, mas um local que exige uma governança; que se tem uma preocupação com o destino e com a construção de um futuro, características únicas dos seres humanos. O território não deve ser entendido como uma limitação geográfica, pois esse conceito pode ser estendido para uma particularidade cultural. Pode ser compreendido como território uma determinada comunidade (religiosos, pescadores, etc), um bairro, ou um município; enfim, uma região que não ultrapasse grandes fronteiras, mas que tenha raízes culturais, características próprias ou peculiaridades que podem ser percebidas facilmente. Sachs (1994) enfatiza que o local é um modelo que deve ser atribuído como estratégico às esferas públicas de todo o mundo, pois é muito mais fácil tomar várias decisões para cada região e, com resultados, do que tentar tomar decisões mais amplas para várias regiões, que tampouco focalizam a necessidade de cada local. Casarotto Filho e Pires (2001) chamam essa estratégia de desenvolvimento personalizada para cada local de descentralização, e apontam como uma tendência da economia moderna. Para estes autores, a descentralização permite que cada região possa tornar-se competitiva utilizando seus próprios recursos, sejam eles humanos, naturais ou até mesmo materiais. Esse tipo de estratégia torna o desenvolvimento local um evento sui generis, o qual é fruto do pensamento e da ação da escala humana em um nível de interação que confronta problemas com soluções que visam o aumento da qualidade de vida dos habitantes da região, da comunidade em si. Nesse sentido, o local não é apenas o território onde esse pensamento e ação se manifestam, mas é um fator relevante, um agente tão forte que pode facilitar ou dificultar o desenvolvimento (MARTINS, 2002). Moraes (2003) enfatiza que é preciso pensar o território como um sistema que recebe influência de fatores internos (meio ambiente, sociedade, economia e cultura) e interage com outros sistemas territoriais de maior âmbito. Essa interação deve ser motivada para a geração de benefícios internos que possam sustentar a região para a condição econômica do global. Percebe-se assim que o local não é uma mera adjetivação ou um ponto adicional de análise para o desenvolvimento, mas uma outra forma deste conceito, que foge às regras econômicas globais, sendo orientado pela busca contínua de melhorias para o padrão de vida da comunidade que participa da região. Dessa forma, o desenvolvimento local surge como uma inovação social que aproveita as habilidades e cultura de uma região, promovendo a transformação dessas vocações em benefícios duradouros para a própria sociedade que refletem na proteção do meio ambiente.

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3 O Surfe O simples ato de deslizar em uma onda sobre uma prancha representaria o que o surfe significa, mas não há como limitar a essa simples explicação o que ele realmente é. Na realidade, deslizar em uma onda sobre uma prancha é uma proeza física, uma combinação de diversos tipos de forças que formam uma complexa equação matemática. É a expressão da real relação entre o homem e as forças da natureza (KAMPION, 1997). Para os entrevistados no documentário Step into Liquid (2003), de Dana Brown, surfar é algo que está dentro do coração, algo que é mais forte que a própria vontade, é como um vício que se leva para todo o sempre, uma coisa que se faz uma vez e se quer fazer todos os dias por toda a vida, uma força que mexe com o modelo mental das pessoas, pois uma vez surfista, tudo se volta para essa atividade. George (2001) aborda a motivação do surfe, argumentando que os surfistas vivem ansiosos, agitados e sempre “antenados” à próxima possibilidade de surfar. São pessoas que esperam a próxima ondulação, a próxima frente fria, a próxima onda, a próxima manobra. Chegam a abandonar a família, a fazer sacrifícios financeiros, a passar fome, a ir a pé para casa, tudo pelo surfe. É uma motivação que não existe igual, pois não há rotina; é um amor transcendente e incondicional. O Brasil, apesar do extenso litoral, não é um dos melhores locais do mundo para a prática do esporte. As ondulações são fracas e não tão freqüentes. Os fundos são, em sua maioria, de areia (beach breaks). O vento “maral” é predominante e a melhor época de ondas é o inverno que, com as águas geladas, também dificulta o surfe. O amor incondicional pelo surfe talvez tenha uma explicação. Todo surfista tem uma busca interior pela “onda perfeita”. A ansiedade e a agitação abordadas por George (2001) podem ser resultado desta busca interior. A “onda perfeita” é uma representação onírica do surfista, a imagem de uma onda do jeito que ele gosta de surfar, com tamanho e formação ideais, em um local paradisíaco, em uma temperatura de água e clima desejados. A busca pela “onda perfeita” é citada pela maioria dos surfistas. Em 1964 chegou aos cinemas o filme The Endless Summer, de Bruce Brown, o primeiro e um dos maiores sucessos de filme sobre surfe. A história fala da viagem do surfista em busca dessa onda desconhecida. O filme se passa nos locais mais variados, como Nova Zelândia, Havaí, Taiti, Senegal, Gana, África do Sul, Nigéria, Austrália e Califórnia. Esse tipo de viagem em busca da perfeição de ondas é chamado de surfari (KAMPION, 1997). E essa busca é tão verdadeira e até mesmo inusitada que se revela pelos próprios locais e condições já buscados pelos surfistas. Um exemplo disso é o surfe na Amazônia, que ao invés de ondas marinhas, apresenta uma diferente onda de água doce, a famosa pororoca, a onda de maré considerada como a mais extensa do planeta. Em 1997 o surfista Eraldo Gueiros foi o primeiro a surfar a pororoca. Gueiros conta no filme Pororoca (2004) que, quando chegou no Rio Araguari, no Amapá, para surfar a pororoca, os habitantes locais não queriam deixá-lo realizar esse sonho, tamanho o medo do imponente fenômeno. A onda de maré, a pororoca, é um fenômeno que acontece em apenas trinta locais no mundo, e a mais poderosa onda de maré acontece no Amapá, mais precisamente no rio Araguari, que é formado pelo rio Amazonas. Picuruta Salazar, outro surfista explorador da onda da pororoca, cita no filme que mesmo com tanto tempo de surfe, mais de 30 anos, ficou impressionado, pois esta onda é algo novo, mostrando quanto o surfe é fascinante, permitindo a eterna busca por uma onda nova, cada vez melhor e mais perfeita. O surfe, por ser dependente da natureza para ser praticado, tem uma importante relação com a ecologia. Há um respeito por parte dos surfistas à mãe-natureza. A maioria dos campeonatos sempre promovem ações ecológicas, como o mutirão para limpeza das praias

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Segundo Grijó e Baasch (2003) o Brasil produz 50 mil pranchas por ano. Estima-se que de 50% a 70% do material utilizado são jogados no lixo comum, isto é, cerca de 380 toneladas de materiais extremamente nocivos e poluentes. Isso representa um sério risco ambiental, uma vez que estes resíduos possuem alto grau de toxinas e pelas propriedades inflamáveis. Este problema ambiental acontece em todo o mundo e em razão da constante expansão do mercado do surfe, é vital para a sustentabilidade da própria prática do esporte que haja uma iniciativa para resolver ou pelo menos amenizar o problema. A imagem do surfista, seja no Brasil ou no mundo, sempre foi enquadrada diante de um estereótipo: jovem malandro, com alergia a serviço, cabelos compridos e ressecados do sol, pele bronzeada, desprovido de inteligência, consumidor de drogas e desleixado. Essa imagem deu-se em razão de uma mentalidade “praiana” que se criou sobre o surfe. A liberdade que a praia proporcionava e o fato de muitas gangues de jovens, como motoqueiros e arruaceiros, passarem a praticar o surfe, contribuíram para que esse estereótipo fosse formado (KAMPION, 1997). No entanto, esta imagem vem sendo modificada ao longo dos anos porque o surfe mostra-se como uma atividade profissional, um esporte rentável que faz crescer uma ampla indústria ao seu redor. George (2001) argumenta que o surfe nos anos 60 já deixava de ser um lazer para se tornar uma ampla cultura esportiva, que atingia diretamente a economia, a forma de pensar, de vestir e de falar das pessoas que o praticam. O surfe como cultura atinge também a música, e tem um estilo musical próprio, denominado surf music, nascido nos anos 60 com o grupo Beach Boys. O campo editorial também conta com produtos como revistas especializadas, livros, jornais e até história em quadrinhos. A televisão também rendeu-se ao surfe: programas jornalísticos, campanhas publicitárias e outras produções passam a incorporar essa atividade em suas imagens plásticas, assim como ocorre no cinema (GEORGE, 2001). 4 Metodologia Como o objetivo deste estudo é descobrir se a atividade do surfe é um fator de desenvolvimento local da região de Florianópolis, Santa Catarina, procurou-se viabilizar uma pesquisa de predominância qualitativa, pois segundo Richardson (1999), é a maneira indicada para a investigação de um fenômeno social. Trata-se de uma pesquisa descritiva, não-experimental, cuja estratégia é o estudo de campo, que é uma técnica utilizada para se ter um aprofundamento das questões propostas, abrangendo o entendimento sobre uma determinada comunidade ou região, em aspectos de estrutura social (GIL, 1999). Para se levantar os dados, realizou-se entrevistas em profundidade com categorias profissionais condizentes com a cadeia de valor da atividade do surfe, as quais são: shapers (fabricantes de pranchas); proprietários de pousadas; surfistas profissionais e amadores; profissionais de órgãos municipais ligados ao meio ambiente; proprietário de veículo de comunicação especializado; prestadores de serviço da organização competitiva; escritor de livro específico da área; representantes da federação pertinente; moradores locais; profissional de grande empresa do ramo, e um pesquisador da área. A decisão dos perfis entrevistados partiu do pesquisador, em razão da cadeia de valor da indústria do surfe e seus respectivos profissionais estarem presentes na cidade de Florianópolis. Em termos de quantidade, uma vez que o trabalho é qualitativo, a amostra para realização da pesquisa é diretamente proporcional à quantidade de informação necessária para interpretar fatos. Os perfis propositadamente escolhidos têm relação direta com o fenômeno (THIOLLENT, 1988). Richardson (1999) argumenta que quando se conhece as características da população, é comum o

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uso de amostras intencionais, também chamadas de seleção racional, as quais podem representar o universo a ser pesquisado. 5 Levantamento e Interpretação de Dados Para se atingir o objetivo deste artigo, o autor elaborou um quadro de análise para orientar a interpretação dos dados levantados. QUADRO 1 - CATEGORIAS E ELEMENTOS DE ANÁLISE I

Categorias de Análise Elementos de Análise Dimensão Social Inclusão social do jovem

Mobilização (participação) dos atores sociais Gerações futuras

Dimensão Cultural Vocação Preservação da identidade sócio-cultural

Dimensão Ecológica Consciência ecológica Riscos ambientais

Dimensão Econômica Desenvolvimento da mão-de-obra Nível de qualidade de vida Diversificação da cadeia de valor

Dimensão Política Apoio e alianças políticas Organização da atividade do surfe Estratégias de desenvolvimento da atividade

Dimensão Territorial Aspectos geográficos Infra-estrutura urbana Atratividade estratégica Perspectivas de desenvolvimento local

FONTE: O autor. 5.1 Dimensão Social As opiniões dos entrevistados foram unânimes do ponto de vista desta dimensão de análise: todos acreditam que o surfe é uma atividade de integração social. A empregabilidade no setor do surfe diversifica-se de várias formas. Há possibilidade de trabalho na indústria direta do surfe (fábricas de pranchas, fábricas de acessórios, têxteis de surfwear, surfshops, representação de marcas, eventos de surfe, cargos nas federações, promoção de surfe e mídia especializada e também como atleta profissional). Ou em setores secundários (bares, restaurantes, hotéis, pousadas e fornecedores específicos). Apesar das perspectivas da maior parte dos entrevistados serem favoráveis aos jovens, há contradições. Em termos de vagas nas fábricas de prancha, por exemplo, observa-se que a maior parte dos shapers entrevistados já possui uma larga experiência, assim como seus principais empregados e prestadores de serviço. A alta competitividade do ramo requer os melhores profissionais para ter os melhores produtos. Desta forma, aqueles com mais experiência são os mais requisitados, não dando chance para o jovem. Outro aspecto é que não existe nenhum curso profissionalizante de shape em Florianópolis. Aparentemente, o jovem não tem condição de aprender, a não ser por método autodidata, como grande parte dos shapers iniciaram, ou com algum profissional que lhe ensine,

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o que, notadamente, só pode acontecer por proximidade familiar, de amizade, ou pelas mínimas oportunidades que um ou outro jovem consegue. Também deve-se destacar que neste mercado de fabricação de pranchas, muitos shapers, principalmente aqueles que contratam os profissionais conforme os pedidos, reclamam da escassez de mão-de-obra qualificada, em especial no período de verão, o que prejudica o cliente, pois o produto é entregue em maior prazo que o normal. Esses profissionais que são contratados por pedidos cobram por produção e geralmente se associam aos shapers que pagam mais. São poucos os profissionais que ganham um salário fixo e estão de acordo com a regulamentação das leis do trabalho Os shapers também reclamam da excessiva concorrência que sofrem, inclusive de ex-funcionários que aprenderam com eles a arte do shape e resolveram empreender em marcas próprias. Até aqui as oportunidades de inserção social do jovem restringiram-se a empregos de cunho operacional em estabelecimentos comerciais e pequenas indústrias. No entanto, não se comentou a oportunidade que é mais concorrida e desejada entre os jovens: a de atleta do surfe. Florianópolis possui ótimas ondas, excelentes profissionais da área, um centro de treinamento bem estruturado, mas não possui a sede dos principais patrocinadores do esporte no país, que ficam em São Paulo. Um exemplo que elucida este fato é que São Paulo é a cidade-sede da realização da maior feira especializada em surfe da América Latina, a Surf e Beach Show, que no ano de 2005 teve sua 12a edição, movimentou negócios na ordem de 230 milhões de reais e contou com um público de 40 mil visitantes (VELLOSO, 2005). Essa dificuldade de patrocínio reflete a realidade do empresariado de Florianópolis. Não há uma aglomeração de grandes empresas e grandes marcas, características dos principais patrocinadores esportivos. Florianópolis ainda é uma cidade predominantemente turística e secundariamente, tem um setor de comércio que se faz presente. As empresas destes setores não possuem perfil de patrocinadoras de atletas, mas acabam auxiliando o esporte de outras maneiras: anunciando em comerciais dos programas de mídia sobre surfe, fornecendo premiações para campeonatos, disponibilizando verba para algum evento, etc. Observa-se que há oportunidade para o jovem, mas são oportunidades limitadas pela sazonalidade do mercado; pela predominância econômica do local e a consequente falta de investimentos no esporte; pela falta de escolas profissionalizantes e pela alta competitividade. Contudo, há muito potencial a ser explorado. Observou-se, ainda que nas entrelinhas, que a indústria do surfe, pelas oportunidades de trabalho que oferece, é bastante diversificada e estende-se a outros setores produtivos de Florianópolis. Esta característica dificulta uma união de pensamento entre os atores sociais, o que proporcionaria um processo de tomada de decisão por um grupo de pessoas que acarretaria em consequências positivas à própria comunidade, favorecendo o lado social, econômico, cultural, ecológico e político, como retrata Doniak (2002). Como atores sociais dentro da indústria do surfe, tem-se os empresários diretos do ramo (fábricas de pranchas e acessórios, confecções, surfshop, mídia especializada, infra-estrutura e organização de campeonatos, prestadores de serviços); os atletas, federação e associações; o governo, por meio da prefeitura e das secretarias especializadas; os empresários indiretos (pousadas, restaurantes e serviços); e, em nível mais abrangente, a comunidade florianopolitana como um todo,. Com tamanha diversificação de negócios, é difícil atribuir interesses comuns a partir de ações coletivas, uma vez que cada ator social possui uma realidade distinta. Observa-se que há lacunas de interseção entre estes atores quando cada uma das classes é analisada de forma segmentada.

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Primeiramente a fábrica de pranchas, que além de ser um negócio vital para a prática do esporte, é um dos setores mais predominantes em Florianópolis. Segundo os entrevistados, não há menos que 50 e mais que 100 fábricas. Rodrigo Silva fez pesquisa em toda a Florianópolis, onde constatou a existência de cerca de 70 fábricas na Ilha. Grijó (2004) afirma que Florianópolis produz 14 mil pranchas ao ano, o que representa 28% da produção nacional. Mesmo com tal representatividade no mercado de pranchas, os fabricantes apresentam uma total desunião. A maior parte trabalha individualmente e pouco se interessa por melhores condições da classe, do ponto de vista da coletividade. Sobre as confecções, fábricas de surfwear, os entrevistados comentam a respeito da falta de interesse dos consumidores locais em utilizar tais marcas. Ao se analisar o setor de surfshop, que por se tratar de um comércio é mais organizado e legitimado, encontra-se uma união e participação mais efetiva. Os empresários sofrem com a pirataria das marcas de surfwear e para evitar o problema, uniram-se em forma de associação para juntar forças e fiscalizar mais acirradamente os pontos de venda destes produtos. Já no ramo de organização de eventos e mídia especializada, onde não há uma concorrência tão acirrada nem tantos players como nos outros dois setores analisados, há mais cooperação e sinergia. Grande parte dos entrevistados reverenciam a atuação da Federação Catarinense de Surf (FECASURF), o órgão responsável pela organização dos campeonatos e relacionamento com os atletas. Mas há ressalvas. Alguns criticam a postura da federação de se concentrar apenas nos eventos de massa e esquecer de fazer um trabalho com as associações locais. Também há críticas com relação ao fato da federação se envolver somente com campeonatos e não em outras questões que dizem respeito ao surfe, como o caso da organização profissional dos shapers, por exemplo. No lado político, o governo, que é muito criticado pelos entrevistados, apóia o surfe de várias formas: financeiramente, apoiando a realização dos grandes eventos; e com trabalho de pessoas e órgãos competentes, como é o caso da Fundação Meio Ambiente (FATMA); e das Secretarias do Turismo e do Desporto. Observa-se que a ampla diversificação da indústria do surfe torna difícil a união dos atores presentes. No entanto, como descrito, há aspectos comuns, como o caso da consolidação do esporte, a intensa proteção do meio ambiente, que se mostram como caminhos para essa união. O problema é que os atores até conversam entre sua classe, sobre a evolução daquilo que representam, mas não enxergam as outras dimensões de evolução, que estão acima dessa ótica, o surfe como indústria e fator de desenvolvimento local. Quando se analisa o futuro da região de Florianópolis, Os entrevistados destacam uma certa preocupação, mas não demonstram uma visão apurada de uma Florianópolis a longo prazo, algo como daqui a 50 anos. O maior lamento em relação ao futuro é referente à situação ecológica da cidade frente ao crescimento populacional. Estas percepções dos entrevistados em relação à tendência do futuro da cidade, baseada no incremento populacional, é coerente. Segundo dados da Prefeitura Municipal de Florianópolis (2003) e do IBGE (1996, 2003), a população de Florianópolis no ano de 2003 era de 369.102 habitantes, enquanto que em 1996 haviam 271.281 habitantes. Conclui-se que houve um crescimento de 36% em apenas 7 anos. A atividade do surfe ainda é nova e está em estruturação e transformação, como está sendo descrito desde o inicio deste tópico. Ressalta-se que há muito potencial para as gerações futuras, mas o sucesso de toda a atividade fica condicionada à preservação do ambiente, especificamente das praias que dão condição à prática do esporte. Esta é a característica marcante que atrai os turistas, atletas e todos aqueles envolvidos com o surfe. Por isso, para que as

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próximas gerações possam se beneficiar de toda a cadeia econômica existente, é vital que o surfe possa ser praticado nestas praias ao longo do tempo. 5.2 Dimensão Cultural É relevante destacar que a Ilha tem enraizado o surfe em sua cultura e o surfe, por sua vez, carrega uma outra cultura. Por ser um esporte de origem havaiana, local de costume forte e de raiz, e ser atualmente praticado no mundo inteiro e ser muito bem organizado, o surfe apresenta, como também foi abordado, toda uma cultura que influencia o ato de falar, pensar, agir e vestir das pessoas (KAMPION, 1997; GEORGE, 2001). Florianópolis é considerada a capital do surfe, segundo muitos dos entrevistados. Essa característica marcante da união de Florianópolis com o surfe é facilmente percebida. Como os próprios entrevistados falam, a cidade “respira surfe”. A vocação dos habitantes de Florianópolis em relação ao surfe está diretamente associada ao aspecto geográfico. O fato da cidade ser uma ilha e possuir uma das melhores condições para a prática do surfe influencia a vocação. No entanto, um quesito que se deve considerar é esta relação do homem com o mar, característica de Florianópolis desde quando ainda se chamava Ilha de Desterro, nos tempos da colonização açoriana. Esta relação dava-se por meio da pesca que de artesanal e subsistente passou a ser, ao longo dos anos, industrial e predatória. Tal como o surfe, a vocação para a pesca foi influenciada pela natureza da região, uma ilha, cercada de diversas oportunidades de sustento por meio desta atividade. O que se pode perceber é que Florianópolis, no lado cultural, está passando por uma mudança. O surfe, que tem uma história recente, trouxe um novo estilo de vida para a cidade. E junto dela vieram e estão vindo muitas pessoas que simpatizam com este estilo, mas que possuem culturas diferentes. Essas diferença cultural está transformando a Ilha como um todo. É de se destacar que o surfe não é a única motivação da emigração, há também o índice de qualidade de vida, a beleza natural, a metrópole sem problemas de metrópole, etc. O aspecto geográfico permitiu que a cultura do surfe fosse enraizada rapidamente, a partir do modo de pensar e agir dos habitantes da Ilha, que sempre tiveram uma relação direta com o mar, seja por trabalho, admiração, fascínio ou respeito. 5.3 Dimensão Ecológica Para uma cidade que produz 14 mil pranchas ao ano e representa 28% da produção nacional, é importante entender o processo de fabricação e os impactos ambientais que afetam diretamente a cidade, ainda que não sejam percebidos (GRIJÓ, 2004). Para cada prancha produzida, a massa de resíduos chega a ser de sete a oito quilogramas, que são na maioria das vezes lançados em um depósito de lixo, e na minoria, em aterros sanitários, quando na verdade estes resíduos deveriam ser lançados em um aterro industrial. Considerando os dados de desperdício, tem-se 98 toneladas de resíduos lançados em condições não-ideais de tratamento, gerando riscos de intoxicação, incêndios, poluição e explosões. Infere-se que muito dinheiro está sendo jogado fora, pois este resíduo, que tem um volume considerável, pode ser reutilizado, sem contar o impacto ambiental que está causando e os empregos que não está gerando, por não ser aproveitado. No mundo do surfe em Florianópolis este pensamento ecológico é percebido e destaca-se como um facilitador para a disseminação da cultura ambiental. O convívio direto com a natureza e sua dependência, para que o esporte seja praticado, são fatores que resumem as motivações

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pelas quais os envolvidos com o surfe tenham uma pré-disposição em se posicionar a favor da natureza, em aceitar com facilidade as decisões que protegem o meio ambiente. Contudo, outros entrevistados afirmam se preocupar com a falta de aproximação entre a mentalidade e a ação. Observa-se que há a consciência ecológica, mas falta a atitude. O fato de existir a consciência ecológica já é um grande avanço para que uma estratégia de desenvolvimento local seja viabilizada com uma probabilidade maior de sucesso. O maior risco ambiental é a especulação imobiliária gerada, entre outros fatores, pelo crescimento populacional ocasionado pela emigração de pessoas de outros estados e países em busca de uma melhor qualidade de vida. Os riscos existem e como se observa, serão impactantes no longo prazo. E para que a sociedade não sofra com as respostas da natureza, é importante que as atitudes da consciência ecológica sejam pensadas para o longo prazo, visando a utilização dos recursos pelas gerações futuras, o que são princípios do desenvolvimento local e da gestão de recursos naturais (MORAES, 2003; ANDION, 2003; SAUVAGE, 1996; SACHS, 1994; VIEIRA E WEBER, 2000). 5.4 Dimensão Econômica Os dados analisados até o presente momento demonstram a importância de Florianópolis para o cenário do surfe nacional, desde o nível técnico dos atletas, a organização do esporte, a presença das melhores condições de surfe, até a ampla cadeia de indústrias e fornecedores que envolvem toda esta atividade. A fabricação de pranchas, de acordo com dados levantados, é a que tem maior expressividade para o setor na cidade, não só por fabricar um produto indispensável para a prática do esporte, como também por reunir muitas fábricas e representar 28% da produção nacional (GRIJÓ e BAASCH, 2003). Mesmo com um mercado amplo e diversificado, encontra-se muita informalidade e falta de profissionalismo. Todos os shapers entrevistados aprenderam sozinhos, utilizando materiais pouco convencionais e somente com a prática do dia a dia é que conseguiram desenvolver-se. Eles definem que as experiências no exterior, em locais mais tradicionais de fabricação de pranchas, como o Havaí, Califórnia e Austrália, como fundamentais para atingir a evolução. Nota-se que mesmo diante da dificuldade em conseguir informações e um método adequado para aprender a arte do shape, o que motivou os entrevistados a aprender foi o amor ao esporte, a paixão pelo surfe, a vontade em viver daquilo que eles mais gostam de fazer: deslizar sobre as ondas. A qualidade de vida é um assunto muito comentado pelos entrevistados. Seja na hora de explicar porque Florianópolis é um lugar bom para viver ou para justificar o modo como resolveram seguir a vida. Como em todos os outros setores da sociedade, observa-se muita desigualdade social na atividade do surfe. No caso dos atletas, são poucos que realmente vivem bem do surfe, como acontece com os atletas de ponta. A maioria apenas sobrevive com o esporte. No surfe, como também há empresas, há empregadores e empregados, que possuem nível de qualidade de vida diferentes. Os atletas, apesar de serem como empregados, dependem apenas de si para atingir os objetivos dos patrocinadores. E aqueles que trabalham na parte de competição, em sua maioria, são autônomos, que dependem da realização dos eventos. Observa-se que no surfe tem-se muito mais empregadores e pessoas autônomas que em outro ramo. São muitas micro empresas, sem contar aquelas que atuam na informalidade, além de prestadores de serviço que atuam conforme a realização dos eventos. É um setor com

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características empreendedoras, que tem um ideal de amor e paixão pelo esporte muito consolidados. Sobre a cadeia de valor do surfe, encontra-se os seguintes elementos: Ondas: existem em Florianópolis 19 praias surfáveis e uma posição geográfica privilegiada. Pranchas: o negócio de fabricação envolve não só os fabricantes, mas fornecedores da

matéria-prima principal, o bloco, e outros que atuam no processo de laminação e acabamento da prancha. Fornecedores: são os fabricantes de quilhas, resinas, tecidos de laminação, instrumentos de

shape e o bloco. Acessórios: existem fábricas locais de parafina, leash (cordinha que prende a prancha ao

surfista), deck (adesivo anti-derrapante), capa da prancha e racks para motocicleta. Surfistas: há muitos surfistas em Florianópolis. Segundo os entrevistados, os principais

surfistas do Brasil moram na cidade. Patrocinadores: existem alguns patrocinadores locais, embora a maior parte deles não tenha

sede em Florianópolis. Campeonatos: são vários os campeonatos disputados na cidade. Amadores e profissionais, de

bairro, universitário, mundial nível principal e secundário. Federação: existe a FECASURF, que representa todas as associações de surfe de cada uma

das praias de Florianópolis e de todo litoral catarinense. Prestadores de Serviço: são as pessoas que possibilitam que os campeonatos aconteçam. São

os organizadores principais, os fotógrafos, assessores de imprensa, montadores, mídia especializada e locutores. Surfshop: local onde se encontram as pranchas, acessórios e moda surfe. Surfwear: fazem parte da surfwear as pequenas fábricas de confecção existentes em

Florianópolis e as lojas especializadas, as surfshops. Setores Secundários: são negócios que ganham com a realização dos eventos de surfe, como

hotéis, bares, restaurantes, profissionais liberais especializados, academias especializadas, estacionamento e ambulantes das praias. Observa-se que são muitos negócios e muitas pessoas presentes na cadeia de valor do surfe. Aqueles que lidam diretamente com o surfe, como os atletas e fabricantes entrevistados, afirmam que Florianópolis está muito bem estruturada em termos de produtos e serviços necessários aos profissionais do surfe, que tudo do bom e do melhor está disponibilizado no mercado local. 5.5 Dimensão Política Em relação ao surfe, apesar da maior parte dos entrevistados criticar o governo quando o assunto é investimento no setor, todos reconhecem sua participação na atividade e sabem da existência de uma preocupação com o surfe diante do quesito desenvolvimento. Por outro lado, pelo que se identificou em termos de participação do governo na atividade do surfe, está aquém do que é necessário para que o esporte seja um processo de desenvolvimento local. A maior parte dos investimentos estão atrelados aos eventos de massa, e não a projetos que envolvam as dimensões do desenvolvimento local. A FECASURF é elogiada pelos entrevistados. É reconhecida como uma entidade de força, com bastante representatividade no mundo do surfe e extremamente competente e organizada no quesito surfe de competição. A parte de indústrias de pranchas e acessórios, que como se observou em tópicos anteriores, é muito informal e conta com a desunião dos participantes, não tem força política e se mostra preocupada com a administração do governo, que não inibe a informalidade.

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Já as empresas de surfwear, sabendo da morosidade do governo em fiscalizar a pirataria e falsificação de marcas, resolveu se unir e por conta da sua associação conquistou força para auxiliar o governo nesta tarefa. Percebe-se claramente que dentro da indústria do surfe esta segmentação de mercado, especificamente o surfe de competição, a indústria de pranchas e acessórios e as empresas de surfwear, atua de forma isolada do ponto de vista político. Se essas forças se unissem, poderiam fazer muito mais diferença para o surfe, beneficiando a todos de formas diferentes. O governo, como acaba apoiando com maiores atenções os eventos de massa, ao passo que poderia ser o órgão integrador, primeiro unindo cada um dos participantes desses segmentos e posteriormente, entrelaçando cada um desses setores, teria uma atitude pró-ativa diante de um potencial de desenvolvimento local e poderia mensurar os resultados com muito mais clareza, por meio de indicadores sociais, ambientais, econômicos, políticos e culturais. Os elogios ao apoio do poder público apenas se resguardam à realização dos grandes campeonatos, as etapas do WCT e do WQS (eventos oficiais do circuito internacional de surfe). Os outros segmentos, em especial a indústria de pranchas, reclamam da falta de incentivos e investimentos do poder público. Nota-se que o papel do governo em relação ao surfe poderia alcançar outras áreas, até mesmo dentro do próprio cenário de competição, incentivando campeonatos locais e com atletas jovens. Outros investimentos são sentidos na área industrial, com a falta de pessoal qualificado para atender as fábricas. Com 28% da produção nacional de pranchas, Florianópolis faz por merecer uma competência governamental dedicada ao surfe. Em termos de alianças políticas, existe a aproximação entre o governo e a FECASURF, mas como se viu, restrita às grandes competições. E também entre o governo e os lojistas de surfwear, uma aliança que tem obtido resultados contra a falsificação e a pirataria. Mais uma mostra de que a união da classe caracteriza uma força que promove resultados. O apoio e as alianças políticas, diante deste quadro, devem estar voltadas para a criação de regras que possibilitem a cooperação entre os atores com o objetivo do desenvolvimento individual e comum, o qual gera o acúmulo de conhecimento e permite o crescimento coletivo, como afirmam Casarotto Filho e Pires (2001). São outras dimensões como a identificação cultural com o surfe, a correspondência com o meio ambiente e os efeitos geográficos da Ilha que fazem esta atividade ir além da unidimensionalidade da globalização. O surfe, de fato, pode ser encarado como um elemento de alto potencial para estratégias de desenvolvimento de Florianópolis. Toda a excelência na organização competitiva do esporte deve servir como um espelho para os outros segmentos da cadeia de valor do surfe, que pela falta de profissionalização, ainda deixam a desejar em quesitos como a cooperação, inclusão social, proteção ambiental, preservação cultural, dentre outros aspectos. O surfe como um fator de desenvolvimento local exige uma estratégia coletiva, pois como trata de toda uma sociedade da região, precisa da conscientização dos atores para posteriormente obter a participação e iniciar todo o processo de busca pelo bem-estar e qualidade de vida da coletividade (WITTMANN, DOTTO e BOFF, 2003). Assim, cabe às autoridades usar o surfe como um elemento estratégico, pois em uma perspectiva de desenvolvimento local, é muito mais fácil tomar decisões para cada uma das regiões de Florianópolis e medir resultados com eficiência, pois esta atividade possibilita resolver a problemática da globalização, a desigualdade social e o descuido ecológico, aproveitando os recursos naturais e não-naturais da cidade (MORAES, 2003; SACHS, 1993; SAUVAGE, 1996). 5.6 Dimensão Territorial

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Em termos de infra-estrutura, a cidade se apresenta como um atrativo turísticos, cujos investimentos ocorrem mais na época do verão que em outros períodos do ano, em virtude do turismo ser a principal fonte econômica da cidade Com relação à concentração geográfica, a atividade do surfe em Florianópolis é bastante dispersa. Há praias de ondas em toda a Ilha e as empresas e profissionais envolvidos com o surfe comumente estabelecem-se nas proximidades destas regiões. Sobre a especialização setorial, observou-se ao longo de todos estes tópicos uma ampla diversificação da cadeia de valor da atividade do surfe, a qual está presente, quase que em sua totalidade, na região de Florianópolis. O baixo nível de eficiência coletiva é identificado no setor de fabricação de pranchas, em que além da acirrada competitividade, há também a desunião dos fabricantes. Em contrapartida, a área de competição tem um nível mais aceitável de eficiência coletiva, pois mobiliza vários profissionais e empresas, incluindo também os órgãos governamentais, no que diz respeito ao sucesso de campeonatos de surfe. Muitas empresas de surfe surgiram na cidade e muitas são de pessoas que não nasceram na Ilha. Dos seis shapers entrevistados, somente três deles são naturais da própria cidade. A maior empresa de surfe de Florianópolis é de propriedade de um cidadão paulistano. Essa atratividade que motiva a concentração e o crescimento de empresas deste ramo consolida-se, aos poucos, como uma tendência de transferência da sede administrativa de grandes marcas internacionais. Algumas já administram a operação nacional de Florianópolis, outras planejam essa transferência. Toda a geografia privilegiada para o surfe atrai muitas pessoas que são envolvidas com o surfe e que passam a morar na Ilha. Essas pessoas possuem conhecimento do setor e a soma de todo esse conhecimento intensifica ainda mais a atratividade de Florianópolis como um pólo de desenvolvimento nacional do surfe. Observa-se no ramo do surfe uma intensa divisão de trabalho, o que é apresentado na constituição dos negócios da cadeia do valor, que estão todos entrelaçados e cujas interações entre os atores acontecem na própria cidade. 6 Considerações Finais Observou-se, até o momento, que surfe é uma atividade que está presente em Florianópolis diante destas seis dimensões de análise. É tanto uma atividade econômica como faz parte da cultura. Existe principalmente em razão da geografia presente na Ilha. E possui uma consciência ecológica mais apurada que outras atividades, além de envolver-se com o contexto social do local. Esse enquadramento da atividade do surfe nestas dimensões de análise o colocam, a priori, em uma perspectiva de potencial para uma estratégia de desenvolvimento local. Dessa forma, até pela atividade do surfe ser muito recente, a perspectiva de desenvolvimento local é positiva, e a palavra que pode resumir toda essa evolução é amadurecimento. É com o tempo que a atividade vai se profissionalizar, seja por exigência do mercado e da própria sociedade, seja na sua necessidade de ser uma estratégia de desenvolvimento a longo prazo para a região de Florianópolis. Após cuidadosa análise dos dados coletados, conclui-se que a atividade do surfe, neste momento, não se constitui integralmente como um fator de desenvolvimento local. A detecção de elementos significativos, face o conceito de desenvolvimento local abordado neste trabalho, conduz esta conclusão. Não obstante, também percebe-se vários outros aspectos positivos relacionados ao desenvolvimento. É por isso que frisa-se que a atividade do

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surfe em Florianópolis apresenta um grande potencial de se tornar um fator real de desenvolvimento local. Primeiramente, é importante destacar que não há uma política governamental voltada para este tipo de desenvolvimento. A maior parte dos investimentos do setor público voltam-se aos eventos de massa, como os campeonatos mundiais que acontecem na cidade. O governo parece enxergar o potencial da atividade, mas não como um elemento estratégico de desenvolvimento local, e sim como algo que fomenta a economia local, baseada em comércio e serviços. O surfe é algo que explora a imagem de Florianópolis para outros locais do país, atraindo mais pessoas e ajudando a fomentar o turismo. Há investimentos voltados ao lado social, mas são mínimos se comparados ao que se investe nos eventos de massa, não trazendo benefícios de sustentabilidade. Também não se nota uma preocupação com o lado ecológico. Todos os entrevistados sentem que a Ilha está deteriorando-se ao longo do tempo e temem pelo futuro. As ações que estão sendo tomadas apenas atendem ao período de um mandato político: quatro anos. São atitudes efêmeras e o lado ecológico precisa de algo voltado aos seus próprios recursos. Outro detalhe é a questão do tratamento dos resíduos gerados pela indústria de pranchas, o qual é um problema ambiental grave, não solucionado pelas autoridades, e que certamente vai gerar impactos para Florianópolis no longo prazo (GRIJÓ, 2004). Em segundo lugar, percebe-se que a atividade do surfe tem três divisões bem definidas: a) a parte de competição; b) a indústria de pranchas e acessórios, e c) surfwear e setores indiretos. Estes três setores conversam entre si, mas não são unidos para causa comuns, como o interesse em preservar o ambiente e em consolidar o esporte. Nota-se também que estas três divisões atuam de forma isolada e bastante diferenciada, uma em relação a outra. Enquanto a parte de comércio e a competitiva são extremamente organizadas e unidas, ainda que cada uma em seu negócio, a indústria de pranchas é desunida e desorganizada. Por outro lado a parte competitiva, que se mostra como uma referência para o Brasil na organização de campeonatos, deixa a desejar no quesito mobilização social e na falta de fazer um trabalho de base com as associações locais, assim como buscar profissionais competentes para fomentar o setor de patrocínio esportivo a partir das empresas da Ilha e também com grandes empresas de outros locais. Outro detalhe, que é consequência da falta de cooperação e sinergia entre os participantes da cadeia de valor e do governo, é a carência de centros de formação profissional para atender a demanda de mão-de-obra existente. As pessoas percebem o surfe como uma carreira profissional, mas as autoridades não. Falta uma idéia-guia, baseada na evolução e desenvolvimento do surfe, que seja atrelada à causa ambiental, o que é interesse de todas estas divisões, para que se promova a união destas classes (CASAROTTO FILHO e PIRES, 2001). Isso tudo provoca muitas externalidades, positivas e negativas, as quais atingem todas as seis dimensões de desenvolvimento local analisadas. O que se espera, inicialmente, é que as autoridades compreendam o modelo de desenvolvimento local e a importância para a vida de Florianópolis no longo prazo. Entendendo isso, pode-se estruturar este setor para que seja uma das bases da estratégia de desenvolvimento. Por estes motivos ainda não se pode considerar o surfe como um fator de desenvolvimento local na sua totalidade, mas como se afirmou, ele pode vir a ser. A principal conclusão deste artigo é que Florianópolis representa uma inovação social, um pólo de desenvolvimento do surfe, pela cultura existente atrelada ao esporte, pelas ações políticas, pela consciência ecológica dos praticantes e simpatizantes, pela cadeia de valor

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presente e pela geografia propícia, o que permite a afirmação de que a atividade do surfe pode vir a ser um fator de desenvolvimento local. Referências ANDION, C. Análise de redes e desenvolvimento local sustentável. In: Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: [S.n], 37(5): 1033-54, 2003. CASAROTTO FILHO, N.; PIRES, L.H. Redes de pequenas e médias empresas e desenvolvimento local: estratégias para a conquista da competitividade global com base na experiência italiana. São Paulo: Atlas, 2001. CUNHA, R. V. Surfe dá trabalho: para ganhar dinheiro com o surfe, não é preciso saber ficar em pé numa prancha. Revista Você S.A. Julho, 2002. Disponível em: <http://vocesa.abril.uol.com.br/edi49/1101_1.shl> Acesso em 9 mar. 2005. DONIAK, F. A. Participação comunitária no processo de desenvolvimento local: estudo do caso do município de Rancho Queimado. Florianópolis, 2002. Dissertação (Mestre em Engenharia de Produção) - Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção, Universidade Federal de Santa catarina. FERREIRA, L.C.; FERREIRA, L.C Limites ecossistêmicos: novos dimemas e desafios para o estado e para a sociedade. In: HOGAN, D. J.; VIEIRA, P. F. Dilemas socioambientais e desenvolvimento sustentável. Campinas: Editora Unicamp, 1995. GEORGE, S. The perfect day: 40 years of surfer magazine. San Francisco: Chronicle Books, 2001. GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Editora Atlas, 1999. GRIJÓ, P. E. A. Alternativas de recuperação dos resíduos sólidos gerados na produção de pranchas de surfe. Florianópolis, 2004. Dissertação (Mestre em Engenharia Ambiental) - Curso de Pós-Graduação em Engenharia Ambiental, Universidade Federal de Santa catarina. GRIJÓ, P.E.A.; BAASCH, S.S.N. Estudo para o uso dos dejetos da indústria do surf. Saneamento Ambiental, n 100, 2003. Disponível em: <http://www.sambiental.com.br/SA/pdf/100/100%20-%20Rejeitos%20do%20Surf.pdf> Acesso em 11 jun. 2005. IBGE. Censo Demográfico 1996. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1997. ______. Censo Demográfico 2003. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2004. KAMPION, D. Stoked: história da cultura do surf. Los Angeles: Taschen, 1997. MARTINS, S. R. O. Desenvolvimento local: questões conceituais e metodológicas. Interações, Revista Internacional de Desnevolvimento Local, Vol 3, n 5, Set. 2002. MORAES, J. L. A. Capital social: potencialidades dos fatores locais e políticas públicas de desenvolvimento local-regional. In:BECKER, D. F.; WITTMANN, M. L. Desenvolvimento regional: abordagens interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.

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A BOLSA DE VALORES DE SÃO PAULO E A RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA

RESUMO Diversas organizações têm se preocupado com o tema da responsabilidade social

corporativa, declarando ter assumido uma postura ética e socialmente correta, pela qual procuram firmar-se como instituições de destacada importância na sociedade. A Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA), ao lançar, em meados de 2003, a Bolsa de Valores Sociais (BVS), teve uma iniciativa não apenas inovadora como pioneira, pois é a primeira experiência realizada pelas bolsas de valores. A BOVESPA procurou reproduzir o seu ambiente operacional, o seu conhecimento especializado, bem como seus ativos intangíveis como credibilidade, transparência e segurança, para criar uma estrutura cuja finalidade principal foi auxiliar o processo de captação de recursos para diversos projetos sociais desenvolvidos e mantidos por organizações não-governamentais. Este trabalho procura identificar como a Bolsa de Valores de São Paulo entende e pratica a responsabilidade social corporativa, a maneira como se deu a criação da Bolsa de Valores Sociais e os atores envolvidos neste processo. Analisa os resultados obtidos com essa iniciativa com uma pesquisa de opinião junto a 35 corretoras sociais diretamente envolvidas com

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o projeto de captação, sua visão desse trabalho e o retorno que adveio para a BOVESPA em termos de imagem e de envolvimento com a sociedade.

INTRODUÇÃO

Há um contexto de crescente envolvimento de significativa parcela do empresariado nacional com a prática da responsabilidade social corporativa, principalmente a partir de meados da década de 1990, como mostra a Pesquisa Ação Social das Empresas, realizada pelo IPEA (2005).

A prática da responsabilidade social no Brasil revela a preferência por uma atuação direta, através de projetos próprios ou em parcerias, ao invés da prática de doações, pois a responsabilidade social integra os objetivos empresariais, representa uma abordagem mais eficaz, articulada com modernas estratégias de desenvolvimento social. Ademais, permite ganho em termos de visibilidade através da divulgação das ações realizadas. (BNDES, 2000).

A questão da responsabilidade social pode ser abordada tanto sob o enfoque ético quanto instrumental. Esta se fundamenta numa suposta relação positiva entre o comportamento socialmente responsável e o desempenho econômico da empresa, bem como na expectativa de construção ou de melhoria da imagem institucional (Camargo et al, 2001; Fischer, 2002).

O argumento ético, normalmente relacionado ao atendimento pelas empresas de expectativas mais amplas da sociedade, isto é, que excedem a alocação eficiente de recursos para a produção de bens e serviços, verifica-se em declarações que ensejam deveres da empresa para com terceiros, os quais se constituem num conjunto de comportamentos a serem mantidos perante o público com vistas a criar uma sociedade melhor. Os defensores desta argumentação de ordem ética acreditam que ser socialmente responsável é a ação moralmente correta (Buchholz, 1991).

Carroll (1991) propõe uma gestão moral da organização, isto é, que concilie os objetivos econômicos da empresa com as expectativas e reivindicações das partes interessadas. O desafio da alta administração é decidir qual parte interessada (stakeholder) deve ser considerada no processo decisório, levando em conta a legitimidade e o poder da parte interessada. Ora, se a gestão moral resulta de decisões dependentes da legitimidade e do poder da contraparte interessada, isso permite enfocar a responsabilidade social através das relações de poder, isto é, ser compreendida como assumir responsabilidades em favor de terceiros, como resultado dos interesses em jogo (Srour, 1998). Havendo interesses em jogo, disputas e conflitos, não há que se falar em ética ou moral da empresa, pois o mérito da ação moral é justamente a falta de interesse. Neste contexto, a pergunta que problematiza este trabalho é: em troca do que as empresas assumiriam responsabilidades sociais?

Também é importante identificar as noções de responsabilidade social corporativa que norteiam as iniciativas empresariais, com o intuito de contribuir para a discussão do tema. O quê está se chamando de ética e responsabilidade social corporativa?

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Como parâmetro para estudar as questões ora levantadas, este trabalho utilizará a Bolsa de Valores de São Paulo, doravante denominada “BOVESPA”, organização que tem demonstrado interesse e liderança orientada para a responsabilidade social. Serão abordadas as razões, isto é, a motivação de natureza ética e instrumental que subsidiou sua decisão de ampliar as ações no campo da responsabilidade social, principalmente a criação da Bolsa de Valores Sociais (BVS). Diante do exposto, o que se deseja saber é como a BOVESPA compreende e pratica a responsabilidade social, dedicando especial atenção à sua inovadora BVS, por meio da qual, a BOVESPA coloca a serviço da sociedade uma estrutura que facilita o processo de captação de recursos para diversos projetos sociais desenvolvidos e mantidos por organizações não-governamentais.

O objetivo deste trabalho é estudar o fenômeno da responsabilidade social, enfatizando os aspectos ligados à imagem corporativa e à conquista ou manutenção de uma boa reputação no mercado, associados às chamadas práticas socialmente corretas.

Para atingir o objetivo proposto, será estudado como a BOVESPA se posiciona diante da responsabilidade social, destacando o desenvolvimento da BVS, bem como se os efeitos desta iniciativa contribuíram para a melhoria de sua imagem institucional e se trouxeram algum benefício para a sociedade. Buscar-se-á o entendimento da bolsa social a partir da opinião das corretoras sociais, isto é, instituições especialmente envolvidas na bolsa social, possuindo um representante habilitado a dar todas as informações sobre como realizar o investimento social, denominado embaixador social.

Esta pesquisa pretende colaborar com o desenvolvimento científico ao tratar de um assunto que tem despertado inequívoco interesse não só das empresas, mas também da sociedade, havendo muito a ser debatido e estudado. Ao estudar a inédita e recente experiência da BOVESPA, busca-se contribuir para o entendimento da prática da responsabilidade social no Brasil, seu perfil, sua motivação, e também como uma organização pode ter uma abordagem inovadora ao investimento social.

1. DA RESPONSABILIDADE SOCIAL À CIDADANIA CORPORATIVA

Não obstante a necessidade de se delimitar o campo da responsabilidade social corporativa, não há uma teoria da responsabilidade social que seja amplamente aceita, mas diversos trabalhos (pesquisas) não-integrados, independentes, ou mesmo modelos de responsabilidade social da empresa (Waddock, 2004). No entanto, é possível adotar uma linha de caracterização geral do fenômeno da responsabilidade social. Neste sentido, tem-se, por exemplo, a definição de Wood (1991:695), a saber, que “a idéia básica da responsabilidade social corporativa é que negócios e sociedade são entidades interligados e não independentes”. Com base nesta idéia, prossegue a autora, “a sociedade tem certas expectativas quanto ao comportamento apropriado dos negócios e de seu desempenho”.

1.1 A VISÃO TRADICIONAL DA RESPONSABILIDADE SOCIAL

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De acordo com o ponto de vista tradicional, a responsabilidade social está no contexto do

desempenho do mercado. A sociedade deseja comprar produtos e serviços a um preço acessível. Para atendê-la, as empresas combinam os recursos eficientemente, ou seja, organizam-se de modo a obter a melhor alocação de recursos possível. O princípio moral que se legitima é, portanto, de natureza econômica, pois um negócio bem sucedido provê bens e serviços, empregos e renda, além de aumentar a riqueza da sociedade. Como acentua Buchholz (1991:25) “... a noção de economizing [valor da eficiência econômica, do uso ou da alocaçao eficiente dos recursos] é um profundo conceito moral em e a partir de si mesmo, que prescreve um curso moral de ação para ser seguido por indivíduos e empresas”.

O pensamento da escola dos economistas de Chicago, destacando-se os trabalhos de

Milton Friedman, coaduna-se com o referido ponto de vista tradicional, colocando os interesses dos acionistas acima de todos os demais (Waddock, 2004). Para Friedman (1982), a responsabilidade social é uma prática subversiva, anti-ética e anti-econômica, empregada por pessoas que não compreendem ou não aceitam o caráter e a natureza de uma economia livre. Subversiva, por ser alheia aos interesses da sociedade livre, organizada sob o sistema de propriedade privada; antiética, por pressionar o executivo para que descumpra sua responsabilidade para com seu empregador; e anti-econômica, uma vez que as ações pontuais dos administradores são tecnicamente inadequadas, incapazes de satisfazer às demandas sociais, implicando custos para terceiros, como acionistas, consumidores e empregados.

1.2 – RESPONSIVIDADE SOCIAL “Responsividade social corporativa se refere à capacidade de uma empresa responder às

pressões sociais” (Frederick, apud Wood, 1991: 703). “O ato literal de responder ou de alcançar uma postura geralmente responsiva à sociedade é o foco da responsividade social corporativa” (Buchholz, 1991:24).

São três os comportamentos de uma empresa responsiva segundo propõe Ackerman (apud

Wood, 1991): ela monitora e avalia as condições ambientais, atende a muitas demandas colocadas sobre ela pelas contrapartes (stakeholders) e estabelece planos e políticas para responder às mudanças de condições (ambientais).

Na leitura de Wood (1991), responsividade social corresponderia a uma segunda fase do

desenvolvimento conceitual., significando uma forma de redirecionar o pensamento acadêmico e gerencial para a implementação de um programa de responsabilidade social (isto é, de transformar em ações práticas o que foi prescrito na fase precedente, a da responsabilidade social).

1.3 – ÉTICA NOS NEGÓCIOS Segundo a visão tradicional do papel social das empresas, não há nem pode haver

incompatibilidade entre um negócio bem-sucedido e uma organização socialmente responsável, pois a responsabilidade social está submetida ao (ou totalmente contida no) desempenho do mercado. O princípio ético que inspira esta visão acerca da empresa, legitimando-a na sociedade, é o da eficiente alocação ou uso dos recursos (economizing): basta não haver grandes abusos do poder econômico e político, manter-se dentro das regras do jogo e respeitar a lei, que o empreendimento está, digamos, eticamente justificado perante a sociedade.

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Nos domínios teóricos da responsabilidade social, no entanto, entende-se a sociedade como detentora de certas expectativas quanto ao comportamento apropriado dos negócios e de seu desempenho. Ao dar grande importância ao ambiente (sociedade, stakeholders), passou-se a enaltecer o inter-relacionamento entre sociedade e negócios. Davis (1973, apud Wood, 1991:695) postula que “a sociedade confere legitimidade e poder aos negócios. No longo prazo, aqueles que não fizerem uso do poder de uma maneira considerada responsável pela sociedade, tenderão a perdê-lo”. Esta nova maneira de pensar está presente no trabalho de Preston e Post (1975, apud Wood, 1991). Eles fizeram uma adaptação da teoria funcional (segundo a qual a sociedade funciona por meio de instituições sociais especializadas: a família para a reprodução, o governo para o bem-estar social, a economia para produzir bens e serviços, etc.) passando a destacar as relações negócios-sociedade, e postulando a idéia de sistemas inter-relacionados.

Ao privilegiar o enfoque nas relações das empresas com a sociedade, passou-se a dar uma grande importância aos efeitos que as decisões tomadas no âmbito da empresa, resultantes da administração do seu próprio negócio, poderiam gerar no seio da sociedade. Enfim, lançou-se a idéia de que as empresas deveriam se tornar sensíveis às repercussões das suas decisões junto às contrapartes (stakeholders), para não serem prejudicadas por elas.

1.4 – REPUTAÇÃO SOCIAL A reputação empresarial é a resultante de um conjunto de imagens feitas pelas

contrapartes da empresa e que dizem respeito à sua atratividade geral, a qual depende, sobretudo, de duas dimensões fundamentais: avaliação do desempenho econômico e da eficácia em atender às demandas dessas mesmas contrapartes, ou, em outras palavras, cumprir com as responsabilidades sociais (Fombrun; Rindova ,1996).

A ligação que se estabelece entre reputação empresarial e responsabilidade social é que esta é um meio de construir aquela. Por quê dirigentes alocam, sob permanente escrutínio de investidores e analistas, recursos (escassos) da empresa para fazer o bem? Em parte, para fortalecer os vínculos da empresa na comunidade em que se insere; em parte, para construir capital reputacional e, com isso, gerar certos benefícios para a empresa.

1.5 – TEORIA DOS STAKEHOLDERS Stakeholders são “aqueles grupos que podem ou são afetados pela consecução dos

propósitos de uma organização” (Freeman, 1984:49, apud Wood, 1991:697). A palavra stakeholder pode ser vista como um trocadilho da palavra stockholder

(acionista), para representar a existência de interesses outros que não os dos acionistas, isto é, demandas dos empregados, consumidores, fornecedores, comunidade e grupos ativistas, nas operações e nas decisões da empresa (Carroll, 1991).

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A proposta básica desta teoria é de que as empresas são conjuntos interligados de partes interessadas (stakeholders), cujo sucesso será tão maior quanto melhores forem as relações entre elas (empresas) e seus stakeholders. A relevância da qualidade dos relacionamentos entre as empresas e suas partes interessadas deriva da idéia da legitimidade social da empresa, segundo a qual, a sociedade, representada por diversos grupos de stakeholders, tem o poder de conceder ou de retirar a legitimidade das organizações empresariais, afetando seu funcionamento normal (Wood, 1991).

1.6 – CIDADANIA CORPORATIVA (CORPORATE CITIZENSHIP) Cidadania corporativa pode ser percebida como fazer o que é esperado moral ou

eticamente pela sociedade (stakeholders) e reconhecer que a integridade e o comportamento ético vão além do mero cumprimento das leis e regulamentações (Carroll, 1991). De maneira parecida, pode ser pensada como o processo de servir os diversos stakeholders, com foco tanto nas responsabilidades econômicas quanto sociais (Sexty, 2005), abrangendo os valores, políticas e práticas básicos da empresa, tais como o desenvolvimento de códigos de ética, estratégias de sustentabilidade e práticas de governança corporativa; a gestão de problemas de natureza social, ética e ambiental de acordo com a cadeia de valores da empresa; as contribuições voluntárias feitas para promover o desenvolvimento econômico e social da comunidade; e a compreensão das relações das partes interessadas através da elaboração de relatórios sociais e ambientais, da auditoria social e de consultas dirigidas aos stakeholders.

1.7 - RESPONSABILIDADE OU INTERESSE SOCIAL? Tomamos, inicialmente, a perspectiva de Morgan (2000), de que as teorias da

organização e da administração se baseiam em metáforas implícitas que têm o mérito de iluminar certos ângulos de seu objeto de estudo, porém deixam em segundo plano outros pontos igualmente importantes, que não podem ser negligenciados sob pena de se compreender a realidade organizacional de forma limitada e parcial.

A literatura sobre responsabilidade social pesquisada neste trabalho se apóia em diversas

metáforas que conferem às organizações empresariais atributos humanos ou inerentes à humanidade: a imagem de uma pessoa sensível (altruísta), caridosa, ética, justa, correta, filantropa, engajada e comprometida com as questões sociais e humanitárias, estimula a percepção de aspectos relevantes e verdadeiros da realidade das empresas, no caso, a teia de relações (e a qualidade desejável dessas mesmas relações) que se estabelecem entre elas (as empresas) e o público (stakeholders). Neste sentido, as imagens da organização são muito úteis, pois criam maneiras de ver e de compreender a realidade das organizações. Contudo, a literatura da ética e da responsabilidade social corporativa corre o risco de distorcer e encobrir a realidade mais ampla das empresas.

Em primeiro lugar, é preciso levar em consideração que a administração de um negócio

está no domínio da técnica e da competência; não da moral ou da ética. O que é preferível: um vendedor bom ou um bom vendedor? Este cumpre metas, prospecta clientes e negócios, sugere importantes adaptações nos produtos e serviços de modo a contribuir para a satisfação da clientela; aquele é bondoso, caridoso e honesto, a ponto de, às vezes, indicar o produto da concorrência. É bastante razoável supor que qualquer empresa que dependa de vendas desejará

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antes ter um bom vendedor que um vendedor bom. Não que ela queira afastar a moralidade de suas portas, mas porque vendas e faturamento estão no domínio da técnica, da competência e não da moral ou da ética.

Poder-se-ia objetar: mas e se o bom vendedor for desonesto? É de se supor que o bom

vendedor desonesto logo estará desempregado ou que a empresa onde trabalha, imaginando que seja conivente com sua desonestidade, perceba-se em apuros, quando sua credibilidade for afetada e a clientela debandar para a concorrência. Dessa forma, o bom vendedor será sempre honesto, talvez não por dever moral, mas sempre por interesse. É o exemplo do comerciante sensato de Kant (apud Comte-Sponville, 2005), que só é honesto para conservar a clientela: ele age de acordo com o dever, mas por interesse. Sua ação, embora seja conforme a moral, não tem nenhum valor moral, já que este se verifica, justamente, no desinteresse. Em segundo lugar, tem-se, portanto, que os negócios estão fundados no interesse e não na moral.

Importa, ainda, um terceiro argumento: que as empresas não podem assumir

responsabilidades. Boa parte, senão tudo o que propõem os teóricos da responsabilidade social, remete a uma ação moral, ora esperada da empresa, ora dos seus dirigentes, ora incluindo os funcionários. Uma ação moral, todavia, requer a existência de um sujeito da ação, livre, dotado de vontade e razão, capaz de controlar e orientar os seus atos segundo certos critérios e princípios, disposto a assumir conscientemente as conseqüências desses atos, responsabilizando-se por eles. (Freitag, 2002:15).

Posto isso, justamente por não haver responsabilidade empresarial, é preciso que as pessoas da empresa tenham e assumam responsabilidades; e, precisamente, por não existir uma moral da empresa que deve haver moral na empresa – pela mediação dos únicos que podem ser morais, pela mediação dos indivíduos que trabalham nela, em especial (maior poder, maior responsabilidade), os que a dirigem.” (Comte-Sponville, 2005:116).

Dessa forma, neste trabalho o conceito de responsabilidade social será entendido como assumir responsabilidades em favor de terceiros, como resultado dos interesses em jogo (Srour, 1998).

2. METODOLOGIA Este trabalho tem por objeto de estudo a Bolsa de Valores Sociais da BOVESPA. Visa-se

a realizar uma pesquisa quantitativa com o intuito de investigar se a BVS contribuiu para a melhoria da imagem da BOVESPA, para o reforço da confiança pública no mercado de capitais e para atração de investidores. Para atingir o objetivo proposto, aplicou-se um questionário do tipo Likert de 5 pontos (vide anexo), para levantar as opiniões das 35 corretoras sociais listadas no sítio da BVS na internet (disponível em <http://www.bovespasocial.com.br/Portugues/Corretoras.asp>, acesso em 19//06/05). Essas corretoras representavam 36% do total de corretoras associadas à BOVESPA.

Os 25 itens do instrumento de coleta de dados servirão para a realização de uma pesquisa mais ampla, na qual serão levantadas as opiniões de outros atores ligados ao projeto da bolsa social. Para o levantamento das opiniões das corretoras sociais, de que tratou esta pesquisa, foram escolhidos 8 itens. Esses 8 itens compuseram 3 escores distintos, como mostra a tabela a seguir:

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O escore IMAGEM se refere à contribuição da BVS para a melhoria da imagem da BOVESPA, na opinião das corretoras sociais; o escore CONFIANÇA se refere à contribuição da BVS para o reforço da confiança pública no mercado de capitais, na opinião das corretoras sociais e o escore ATRAÇÃO, refere-se à contribuição da BVS para atração de investidores para a BOVESPA, na opinião das corretoras sociais. Os 3 totais terão escores situados no intervalo fechado –30 e 30. O ponto neutro da escala é o zero. Saliente-se que todas as afirmativas (itens) do questionário são positivas. Portanto, um respondente que tenha assinalado “CT” (concordo totalmente) em todos os itens que compõem o subgrupo ATRAÇÃO (4 itens), significará que ele tem a opinião inequívoca (máxima) que a Bolsa de Valores Sociais trouxe um retorno positivo em termos de atração de investidores para a BOVESPA, pois o escore de suas respostas seria máximo (8 pontos, com média 2). Será possível também, dividindo-se cada um dos escores totais (IMAGEM, CONFIANÇA e ATRAÇÃO) pelo número de itens que os constituem (2, 2 e 4, respectivamente), obter 3 médias compreendidas no intervalo fechado de -2 a +2, isto é, os escores médios de cada grupo de itens.

A análise dos dados apoiou-se em medidas da estatística descritiva: para cada item do questionário, serão fornecidas a distribuição de freqüências das 5 possíveis respostas, a média e o desvio-padrão. As mesmas estatísticas também serão calculadas para os 3 escores totais.

3. BOVESPA E A RESPONSABILIDADE SOCIAL A organização, o funcionamento e as operações das Bolsas de Valores estão definidos em

lei (art. 1º da Lei 6.385/76) e seu objeto social está estabelecido em norma do Conselho Monetário Nacional (Resolução nº 2690, de 18/01/2000), a qual, em seu regulamento anexo, art. 1º, estabelece, entre outros deveres, que as bolsas de valores devem manter local ou sistema adequado à realização de operações de compra e venda de títulos ou valores mobiliários, em mercado livre e aberto, especialmente organizado e fiscalizado pela própria bolsa, sociedades membros e pelas autoridades competentes. No entanto, a BOVESPA entende que sua maior responsabilidade é “oferecer ao país um mercado seguro, regulado e tecnologicamente moderno, condição fundamental para que as empresas brasileiras se capitalizem, cresçam e ofereçam empregos”. (http://www.bovespa.com.br/InstSites/RespSocial/NossaVisao.asp, acesso em 14/05/05).

Na visão da BOVESPA, responsabilidade social significa “práticas éticas capazes de

gerar "lucro social", isto é, melhores perspectivas e oportunidades sociais para a nação e conseqüente fortalecimento do país no cenário global a curto, médio e longo prazo” (disponível em <http://www.bovespa.com.br/InstSites/RespSocial/Index.asp>, acesso em 26/06/05). Informa um estudo de caso (Zandee, D. P., 2004:3) que a BOVESPA passou por um processo de

ESCORE ITENS (questões)

IMAGEM Questões 6 e 8

CONFIANÇA Questões 9 e 24

ATRAÇÃO Questões 4, 5, 15 e 23

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questionamento da habitual abordagem filantrópica de “distribuir os recursos disponíveis por um número relativamente grande de projetos”, embora tenham sido mantidas contribuições para algumas entidades. Esse processo de questionamento resultou em decisões que firmaram a BOVESPA como uma organização que busca comprometimento com a responsabilidade social, o que se materializou nas seguintes iniciativas: assinatura do Pacto Global, criação da Bolsa de Valores Sociais e do segmento de negociação do Novo Mercado.

A BOVESPA foi a primeira bolsa do mundo a assinar o Pacto Global, “iniciativa do secretário geral da ONU voltada para o crescimento sustentado da economia e a inclusão social” (disponível em <http://www.bovespasocial.com.br/portugues/Not041105.asp>, acesso em 24/05/2005). Ademais, foi pioneira também na criação de uma bolsa social, que já despertou o interesse de outras bolsas de valores, como as do Chile, Espanha e França, nas quais já se considera a possibilidade de adaptação do formato adotado no Brasil a sua realidade local (Folha de São Paulo, 13/05/2005)

No Novo Mercado da BOVESPA, negociam-se ações emitidas por empresas que se comprometem, voluntariamente, com a adoção de práticas de governança corporativa e transparência que excedem a previsão legal. A empresa que adere a esse segmento de mercado, obriga-se a respeitar um conjunto de regras especiais que visam, basicamente, a oferecer aos investidores (acionistas) uma segurança adicional, seja através de um nível maior de informações (maior transparência) sobre a empresa, seja pela opção de resolver eventuais conflitos no âmbito de uma câmara de arbitragem (disponível em <http://www.bovespa.com.br/Principal.asp>, acesso em 30/08/05).

4. A BOLSA DE VALORES SOCIAIS A Bolsa de Valores Sociais funciona de maneira análoga a uma bolsa de valores

convencional. Toda a experiência, recursos técnicos, operacionais, as regras e as ferramentas utilizadas diariamente nas operações realizadas no âmbito da bolsa, enfim, seu conhecimento especializado, foram reproduzidos, de certa forma, na Bolsa de Valores Sociais. Regra geral, tudo funciona como se fosse uma bolsa de valores tradicional, sendo esse um indicativo da sinergia entre a BOVESPA e a Bolsa de Valores Sociais, a qual se aproveita não só da infra-estrutura técnica e organizacional, mas também da credibilidade da BOVESPA, já que transparência, segurança e confiabilidade são fatores relevantes na doação de recursos.

Para fazer menção ao universo da Bolsa de Valores Sociais, adaptam-se expressões de uso

corrente no mercado de capitais: ação social, em lugar das ações negociadas no pregão (valores mobiliários), lucro social (para diferenciar do lucro econômico), investimento social (para distingui-lo dos investimentos tradicionalmente ofertados na bolsa).

Em síntese, a BVS é uma carteira de trinta projetos sociais previamente selecionados, nos

quais os interessados (pessoas ou empresas) podem investir (doar recursos financeiros). As doações são realizadas através de sistema eletrônico (sítio da BVS na rede mundial de computadores, isto é, www.bovespasocial.com.br), com pagamentos através de boleto bancário ou cartão de crédito. Para fazer parte desta carteira de investimentos sociais, a organização social interessada deve fornecer informações detalhadas sobre suas operações, desempenho financeiro e

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situação legal. Além disso, em que pese a preferência da BVS por projetos educacionais que beneficiem crianças e jovens de comunidades carentes, na faixa etária de 7 a 25 anos, a ONG deverá ter seu projeto aprovado por uma equipe técnica da Atitude Marketing Social, e pelo conselho da BVS.

Referido conselho é formado por representantes da Unesco e Unicef, jornalistas e

educadores reconhecidos por sua atuação no terceiro setor. O processo seletivo favorece projetos que são desenvolvidos e apoiados pela comunidade local e que carecem de reputação e de visibilidade. Também se valoriza o conhecimento e a experiência adquiridos, o que pode auxiliar a BVS a alcançar o objetivo de estabelecer uma rede de melhores práticas. Importante salientar que a ´carteira de investimentos sociais´ listada na BVS é constituída de projetos, não de organizações sociais, de modo que quando se atinge o montante de recursos previsto para determinado projeto, ele é retirado e substituído por outro, e a carteira mantém seus trinta projetos em aberto. Uma vez captados, os fundos são imediata e integralmente transferidos para as organizações sociais e o acompanhamento de sua utilização é feito pela equipe técnica da Atitude Marketing Social, através de planos de aplicação de recursos, planilhas de controle, relatórios periódicos e visitas.

Segundo o Relatório Social da BOVESPA 2004-2005, em dezoito meses de

funcionamento (de junho/2003 a dezembro/2004), foram captados R$ 2 milhões, o que representa cerca de 21% do montante inicial. Onze dos trinta projetos listados alcançaram suas metas individuais de captação até 31/12/2004 (BOVESPA, 2005).

São partes fundamentais para o funcionamento da Bolsa de Valores Sociais: a BOVESPA, que oferece toda a infra-estrutura tecnológica, mantém em funcionamento o sítio da BVS na rede mundial de computadores, banca todos os custos, inclusive a CPMF incidente no repasse dos recursos, e que gerencia a BVS, através da empresa contratada, a Atitude Marketing Social; o trabalho de gerenciamento da Atitude Marketing Social inclui a pré-seleção dos projetos para aprovação do conselho da BVS, o acompanhamento da aplicação dos recursos pelas diversas organizações beneficiárias e a divulgação da BVS para os investidores e o público em geral; as corretoras são um canal alternativo de orientação e divulgação ao público e de captação de recursos; a parceria da Unesco agrega apoio e compartilhamento de conhecimentos globais sobre programas sociais e educacionais; a parceria da Visa e da Nossa Caixa são alternativas que oferecem comodidade aos investidores quando da realização de seus investimentos sociais.

5. RESULTADOS DA PESQUISA Todas as 35 corretoras sociais foram contatadas por telefone. Descobriu-se que uma das

corretoras sociais não estava mais associada à BOVESPA (Fair) e que outras duas (RMC e Coinvalores) haviam se fundido. Além disso, o embaixador social da Unibanco Corretora, que era um de seus principais executivos, tinha deixado a empresa e seu cargo de embaixador social estava vago até então. Desta forma, o número de corretoras sociais caiu para 32. Cerca de 47% delas responderam ao questionário (15 respondentes), o qual foi enviado por correio eletrônico, após uma breve explicação (dada por telefone) sobre a pesquisa.

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Os respondentes eram todos corretoras sociais da BVS, com média de 98 funcionários cada (mínimo de 25 e máximo de 323), média esta obtida a partir dos 12 respondentes que forneceram esse dado. Nenhum dos respondentes (0%) tinha controle estatístico de número de ligações e/ou correios eletrônicos respondidos por seus embaixadores sociais; 73% dos respondentes não possuíam estatística de quantas ´ações sociais´ haviam sido vendidas por seu intermédio. Os embaixadores sociais ocupavam diferentes cargos, entre os quais havia diretores (6), gerentes de recursos humanos (2) e analistas de investimentos (2).

A tabela abaixo fornece as freqüências das categorias de opinião e os escores, o impacto

médio e a porcentagem média de concordância para cada variável definida. Freqüências das respostas por categoria para cada variável estudada e escores

Categorias

de

Opinião

Discor-dância Alta

[-2]

Discor-dância

[-1]

Neutra-lidade

[0]

Concor-dância

[+1]

Concor-dância Alta

[+2]

Escores

1: IMAGEM

0%

4%

4%

60%

32%

1,23

2: CONFIANÇA

13%

0%

33%

27%

27%

0,53

3: ATRAÇÃO

13%

10%

30%

27%

20%

0,30

Conforme demonstrado no gráfico I (vide abaixo), os respondentes

concordaram/concordaram fortemente com as afirmativas feitas para levantar opiniões se a BVS contribuiu para a melhoria da imagem da BOVESPA (a moda é +1 para ambas as afirmativas). As questões 6 e 8 alcançaram as maiores pontuações na escala Likert (19 e 15, respectivamente) como também suas modas foram positivas, significando que os respondentes concordaram/concordaram fortemente com as afirmativas que se relacionavam com a contribuição da BVS para a imagem pública da BOVESPA. Isso é significativo, uma vez que as empresas estão cada vez mais preocupadas com a conquista de uma imagem positiva na sociedade, acreditando ser isso fundamental para seu sucesso no mercado. Focando sua atenção na cena social, esperam que suas ações sociais sejam compensadas por retornos tangíveis e intangíveis, como é o caso da imagem e da reputação (Fischer, 2002; Camargo et al, 2001).

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Gráfico I

1915

-28

-21

-14

-7

0

7

14

21

28

Acredita-se que o sucesso da BVSterá um impacto positivo na imagem

da Bovespa e do mercado acionário, eisso contribuirá para o crescimento

deste mercado.

Acredita-se que a BVS confere umrosto positivo e humano às

instituições financeiras e econômicas,ajudando a consolidar a confiança da

população nas boas intençõesdestes poderosos atores globais.

Nº 6 Nº 8

Esca

la L

iker

t ada

ptad

a

Gráfico II

6 7

-28

-21

-14

-7

0

7

14

21

28

A Bovespa, através da BVS, estáconseguindo devolver ao público em

geral a confiança no mercado decapitais.

A existência da BVS contribui muitopara o esforço da Bovespa de

popularizar o mercado acionário, poisajuda a explicar o que significa ser

acionista e como se pode investir emações.

Nº 9 Nº 24

Esca

la d

e Li

kert

ada

ptad

a

O Gráfico II, acima, mostra os escores das questões nº 9 e 24 (CONFIANÇA). Nesse

caso, houve indiferença/incerteza quanto à afirmativa nº 9, cuja moda é 0 (zero), embora somente um respondente (7%) tenha discordado dela. Além disso, 7 respondentes (47%) concordaram/concordaram fortemente com a afirmativa nº 9. A questão nº 24, por sua vez, teve

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moda +1 e 60% de concordância/forte concordância. Dessa forma, não obstante o escore CONFIANÇA ser mais baixo que o IMAGEM, os dados indicam que a BVS contribuiu para o fortalecimento da confiança pública no mercado de ações.

A confiança pública no mercado de capitais depende muito de uma nova imagem

(melhorada) da bolsa. De acordo com o principal executivo da BOVESPA, o público em geral perdeu a confiança no mercado de capitais e a percepção da maioria é de que a bolsa de valores é um cassino para uns poucos ricos (Zandee, 2004: 8). Nesse sentido, os respondentes demonstraram acreditar que a BVS ajudou (ou estava ajudando) a superar essa percepção negativa. Esse é mais um retorno intangível da abordagem socialmente responsável que a BVS representa (Camargo et al, 2001).

Finalmente, os respondentes entenderam que o objetivo da BOVESPA de atrair

investidores através da BVS não foi plenamente alcançado (vide Gráfico III, abaixo). A indiferença/incerteza dos respondentes, contudo, não significa que eles não acreditavam que o desenvolvimento de um “mercado social” não traria reflexos positivos ao mercado acionário. Na verdade, tendo em vista as respostas à questão nº 23, infere-se que os respondentes entenderam que o crescimento do mercado social foi menor do que o esperado. Esta questão obteve a pontuação de +14 na escala Likert e a moda foi 2, isto é 60%, dos respondentes concordaram/concordaram fortemente com a suposta frustração com relação a baixa participação dos investidores. Por investidores, entenda-se os chamados investidores sociais, alguns dos quais esperava-se que pudessem se tornar novos investidores da bolsa, contribuindo, assim, para o incremento dos negócios.

Gráfico III

6

-3

1

14

-28

-21

-14

-7

0

7

14

21

28

O "balanço deinvestimentos

sociais" enviadojunto com o extrato

mensal (normal)dos investidores

ativos da Bovespa,tem ajudado a

aumentar o númerode investidores

sociais.

Acredita-se queum aumento no

número deinvestidores emações sociaissignif icará umaumento donúmero de

investidores emações

convencionais da

A Bolsa de ValoresSociais temconseguidodivulgar a

importância dabolsa de valores e

do seufuncionamento, e

isso temcontribuído para

atrair novosinvestidores.

O entusiasmoinicial a respeito da

BVS ainda nãoestá sendo

correspondido pelaparticipação ativados investidores.

Nº 4 Nº 5 Nº 15 Nº 23

Ecal

a de

Lik

ert a

dapt

ada

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6. CONCLUSÃO As demandas e expectativas das contrapartes da empresa (stakeholders), por fugirem à

lógica da eficiência econômica, instalam-se, ainda que precariamente, no campo da moral e da ética. Todavia, uma gestão ética ou moral da organização, isto é, que concilie os objetivos primários da empresa (econômicos) com as expectativas e reivindicações das partes interessadas, como preconiza Carroll (1991) não é possível, pois se a ética fosse fonte de lucro ... não seria mais preciso trabalhar, não seriam mais necessárias empresas, não seria mais necessário o capitalismo – os bons sentimentos bastariam. (Comte-Sponville, 2005: 222). Portanto, a ética e a responsabilidade social das empresas devem ser deslocadas do campo da moral e da ética e situadas no seu devido lugar: o mundo real e material dos interesses. O próprio vocábulo stakeholder pode ser visto como um trocadilho da palavra acionista (stockholder), para representar, justamente, a existência de interesses e demandas dos empregados, consumidores, fornecedores, comunidade e grupos ativistas, nas operações e nas decisões da empresa.

Esta pesquisa revelou que a motivação dos executivos da BOVESPA ao criar a BVS está

de acordo com os postulados da área acadêmica chamada negócios e sociedade, isto é, apóia-se numa reflexão moral, a partir da qual a administração resolveu engajar-se ativamente em prol da solução dos problemas sociais do país, pretendendo, com isso, ser melhor vista pela sociedade, firmar uma nova imagem, que possa resultar no desenvolvimento de seu mercado (mercado de capitais), com ingresso de novos investidores. Estes são os interesses da BOVESPA.

A filantropia corporativa ainda é praticada pela BOVESPA. Contudo, sua administração

dedicou atenção a BVS para demonstrar seu compromisso com a responsabilidade social. A estratégia da BOVESPA está alinhada com o perfil de investimento social no Brasil, que é caracterizado por uma ênfase maior nas práticas de responsabilidade social corporativa do que na filantropia, pois ela tem buscado maior eficácia na alocação dos recursos em favor dos projetos sociais escolhidos e uma melhor articulação com modernas estratégias de desenvolvimento social. Também tem procurado ganhar visibilidade através da BVS e vem influenciando iniciativas semelhantes, o que se evidencia pelo propósito de promover o compartilhamento e intercâmbio de experiências entre as ONGs, de modo a construir uma rede de melhores práticas.

Em que pese o ineditismo da experiência e o pouco tempo de vida da BVS, conclui-se, a

partir das opiniões das corretoras sociais, que a BOVESPA alcançou seus objetivos: a BVS tem sido eficaz como forma de melhorar a imagem da BOVESPA e também para reforçar a confiança pública no mercado de capitais. A prática da responsabilidade social corporativa da BOVESPA tem ido ao encontro das expectativas da sociedade representadas pelos projetos sociais das ONGs beneficiadas pela BVS, o que contribui para a melhoria da imagem da bolsa. Essa conclusão também se confirma pelo interesse de algumas outras bolsas de valores fora do Brasil, que estão desenvolvendo experiências semelhantes.

7. REFERÊNCIAS Ashley, Patrícia de Almeida (coord) (2002) Ética e responsabilidade social nos negócios. São Paulo, Saraiva. Bolsa de Valores de São Paulo Relatório Social BOVESPA 2004/2005. Disponível em <www.bovespa.com.br/Pdf/RelatorioSocial_2004.pdf>, acesso em 25/07/2005

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Esta pesquisa visa a identificar como a Bolsa de Valores de São Paulo entende e pratica a

responsabilidade social corporativa, com ênfase na sua Bolsa de Valores Sociais. Os dados são confidenciais e não há qualquer risco em participar da pesquisa.

Instruções para o preenchimento do questionário. São feitas 25 afirmações a respeito

da Bolsa de Valores Sociais (BVS) e da responsabilidade social corporativa. Você deverá manifestar o seu grau de discordância ou de concordância, atribuindo uma nota a cada uma das afirmações, da seguinte maneira: [-2] = discordo totalmente; [-1] = discordo parcialmente; [0] = indiferente; [+1] = concordo parcialmente e [+2] = concordo totalmente.

1 Ter a chancela da BVS, facilita a obtenção de recursos. [ ]

2 As ONGs têm ajudado a promover a BVS entre seus doadores. [ ] 3 As corretoras têm exibido o selo de corretora social. [ ] 4 O "balanço de investimentos sociais" enviado junto com o extrato mensal

(normal) dos investidores ativos da Bovespa, tem ajudado a aumentar o número de investidores sociais.

[ ]

5 Acredita-se que um aumento no número de investidores em ações sociais significará um aumento do número de investidores em ações convencionais da bolsa.

[ ]

6 Acredita-se que o sucesso da BVS terá um impacto positivo na imagem da Bovespa e do mercado acionário, e isso contribuirá para o crescimento deste mercado.

[ ]

7 Se uma empresa doa dinheiro para uma causa social, tem de ganhar algo em troca, mesmo que seja marketing institucional, senão não é uma relação sustentável.

[ ]

8 Acredita-se que a BVS confere um rosto positivo e humano às instituições

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financeiras e econômicas, ajudando a consolidar a confiança da população nas boas intenções destes poderosos atores globais.

[ ]

9 A Bovespa, através da BVS, está conseguindo devolver ao público em geral a confiança no mercado de capitais.

[ ]

10 A equipe da Atitude Marketing Social/BVS mantém contatos estreitos com as organizações não-governamentais listadas, visitando, regularmente, os projetos apoiados pela Bolsa de Valores Sociais.

[ ]

11 Além de cumprir a legislação aplicável, pagar impostos e realizar o objetivo social para o qual foi criada (produzir bens e/ou serviços), a empresa tem responsabilidades sociais, devendo contribuir com seus recursos para projetos de interesse da sociedade.

[ ]

12 A Bolsa de Valores Sociais tem sido muito bem divulgada, tanto para os investidores quanto para o público em geral, e esta é uma das razões do seu sucesso.

[ ]

13 As corretoras têm oferecido ações sociais através de um "embaixador social", que assiste aos clientes em seus investimentos sociais.

[ ]

14 As organizações não-governamentais, em geral, gozam de boa reputação, sendo que eu doaria dinheiro para a maioria delas, sem precisar da recomendação de quem quer que seja.

[ ]

15 A Bolsa de Valores Sociais tem conseguido divulgar a importância da bolsa de valores e do seu funcionamento, e isso tem contribuído para atrair novos investidores.

[ ]

16 Tendo em vista o risco de diluição dos investimentos em um número grande de projetos, a carteira de investimentos da BVS contendo 30 opções de projetos é adequada.

[ ]

17 A maior responsabilidade social que uma empresa tem é gerar empregos e pagar impostos, tudo dentro da lei.

[ ]

18 Se uma pessoa doa dinheiro para uma causa social, deve receber algo em troca, senão não voltará a contribuir.

[ ]

19 A equipe da Atitude Marketing Social/BVS mantém contatos estreitos com as organizações não-governamentais listadas, avaliando o impacto social dos projetos nas respectivas comunidades.

[ ]

20 A equipe da Atitude Marketing Social/BVS mantém contatos estreitos com as organizações não-governamentais listadas, dando-lhes assessoria, sugerindo melhorias e ajudando em questões práticas, como na elaboração das propostas de financiamento.

[ ]

21 O lançamento da BVS reacendeu no Terceiro Setor a esperança de que mudanças sociais são factíveis.

[ ]

22 A BVS serve como exemplo para que outros atores poderosos empreendam iniciativas semelhantes.

[ ]

23 O entusiasmo inicial a respeito da BVS ainda não está sendo correspondido pela participação ativa dos investidores.

[ ]

24 A existência da BVS contribui muito para o esforço da Bovespa de popularizar o mercado acionário, pois ajuda a explicar o que significa ser

[ ]

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acionista e como se pode investir em ações. 25 Quanto mais atrativa se tornar a Bovespa, mais fácil será para as corretoras

negociar ações convencionais, podendo torná-las mais proativas na oferta de ações sociais.

[ ]

Turismo Sustentável como Agente de Desenvolvimento Local Autoria: Maria Amélia Cora RESUMO

Esse trabalho procura mostrar que sob o enfoque de inovação social a mudança das políticas de desenvolvimento tradicional para o desenvolvimento local como uma alternativa para se alcançar a melhoria na qualidade de vida da população. A atividade turística tornar-se alavancadora desse processo, uma vez que o turismo deve ser pensado como um elo de integração entre os vários atores sociais da comunidade local. Apresenta como estudo de caso de uma comunidade pesqueira no extremo sul da Bahia: Cumuruxatiba. O turismo, atividade para qual a região tem vocação natural, vem adquirindo importância na economia local ao vislumbrar a possibilidade de minimizar os problemas sócio-econômicos, permitindo a inclusão social, a geração de emprego e renda e a conscientização da comunidade. O objetivo é analisar as transformações ocorridas pela atividade turística no desenvolvimento local sustentável bem como verificar as mudanças ocasionadas pela atividade turística quanto: a oferta de trabalho, a capacitação profissional, a cultura local, a geração de renda.

INTRODUÇÃO

A realidade brasileira é marcada por enormes desigualdades sociais, econômicas, políticas, espaciais ou ambientais. Essa inconstância passou a ser combatida, na esperança de alcançar um desenvolvimento equilibrado e consciente. Dessa maneira, dois temas – desenvolvimento local e desenvolvimento do turismo – aparecem nos debates que buscam reduzir a desigualdade social e a pobreza no Brasil. É por meio do enfoque local que os problemas sociais são identificados, permitindo, portanto, ações facilitadoras para suas soluções. É nessa esfera que ocorre o atendimento às necessidades básicas. Daí a importância em fortalecer a autonomia das localidades, por meio da articulação dos atores, gerando condições favoráveis ao desenvolvimento. Assim, o desenvolvimento de uma região implica em novas articulações entre os atores públicos, privados e a sociedade. É dessa forma que a política local transcende as tradicionais polarizações entre o público e o privado, governo e sociedade. Estabelece novas relações e compromissos que possibilitam a promoção de políticas sociais de caráter interdependente. A escolha do turismo deve-se principalmente pelo fato do Brasil ter facilidade em promover essa atividade. Além do que, segundo Oliveira (2002), o turismo é uma força econômica das mais importantes do mundo. Por conta dele ocorrem fenômenos de consumo, originam-se rendas, criam-se mercados. Os resultados do movimento financeiro, decorrentes do turismo, são por demais expressivos e justificam a inclusão desta atividade no programa político e econômico de todos os países. O setor turístico deve ser pensado como um elo entre os diversos atores sociais de uma comunidade local. É a partir desta perspectiva que Butler (2002) afirma que o desenvolvimento local integrado, por meio do turismo, é a melhor forma de congregar comunidade e as alterações no entorno. Isso posto, por intermédio da participação no planejamento, os residentes locais vêem diminuída a distância entre o grupo e os recém-implantados recursos turísticos. Política que

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convida o cidadão a tomar parte das transformações ocorridas no lugar onde habita, abrandando a idéia de segregação. A expansão do turismo pode se tornar um catalisador de mudanças sociais. O que tem possibilidade de, em simultâneo, desenvolver a localidade e excluir socialmente a população. Essa dupla capacidade, de expansão e segregação, faz com que os residentes locais questionem a atividade turística. Estimula-os a pensar de que maneira podem ter resultados positivos, legitimando ações que busquem um desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, cabe perguntar: de que forma o turismo transforma uma comunidade local, proporcionando a inclusão social e a geração de trabalho e renda, permitindo seu desenvolvimento local com sustentabilidade? Esse estudo tem como objetivo avaliar as oportunidades criadas pela atividade turística para o desenvolvimento local sustentável em uma comunidade litorânea. Bem como, verificar as mudanças ocasionadas pela atividade turística na comunidade de Cumuruxatiba, quanto à oferta de trabalho e geração de renda, capacitação profissional, cultura local e preservação da natureza. Identificar, ainda, a participação dos líderes locais em negócios turísticos e na melhoria da qualidade de vida da comunidade local. Com base nos objetivos de pesquisa, supõe-se que em Cumuruxatiba, a população local não esteja integrada aos empreendimentos turísticos e que o desenvolvimento dessa comunidade depende da incorporação dessa população nas atividades turísticas. Acredita-se que o turismo seja a principal ferramenta para alcançar o desenvolvimento local de Cumuruxatiba. Trata-se de uma região que convive com grandes problemas sociais, desemprego, altos índices de mortalidade infantil e analfabetismo, entre outros. O turismo, atividade para qual a região tem vocação natural, adquire cada vez maior importância na economia regional como atenuador de parte dos problemas sócio-econômicos. METODOLOGIA A pesquisa é um estudo de caso que tem como objeto a atividade turística em uma comunidade do litoral baiano. Esse estudo procura abordar o turismo considerando o território onde atuam diversos atores sociais, em um modelo alternativo de turismo que valoriza as características locais, como uma possibilidade de inclusão social e de sustentabilidade. O caso é a vila de Cumuruxatiba, distrito do município de Prado, localizado no extremo sul do estado da Bahia. A escolha do local deveu-se à facilidade de acesso às informações e à participação da pesquisadora no processo de transformação ocorrido na vila de pescadores. Além disso, o estudo justifica-se por sua localização: uma região de grandes belezas naturais, com presença da atividade turística, produção de artesanatos e geração de emprego e renda. A escolha do local deu-se, igualmente, por ser uma região marcada pela exclusão social. Hoje, a economia da região, depende das atividades turísticas desenvolvidas principalmente nos meses de verão, sendo responsável pela sobrevivência econômica da comunidade local. A sazonalidade somada à desarticulação entre a comunidade local, os comerciantes (donos de restaurantes, pousadas, lojas de artesanato e varejo) e o poder público municipal, inviabiliza ações articuladas para o seu desenvolvimento. Foi realizado um survey com a aplicação de formulário para verificar as percepções da população sobre o desenvolvimento turístico e o desenvolvimento local; considerando as dimensões econômica, social, cultural, ambiental e política da região. Além de tornar visível a percepção quanto às mudanças na qualidade de vida, bem como na organização do trabalho e na geração de renda na comunidade. O formulário pré-testado foi aplicado em uma amostra aleatória de 90 domicílios. A amostra foi realizada a partir do Censo de 2000 que registra em Cumuruxatiba 1.303 (mil trezentos e três) domicílios. A amostra foi definida por quotas, com 90% de

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precisão e significância de 0,05, considerando a divisão geográfica da vila de Cumuruxatiba, que compreende quatro regiões: Morro da Fumaça, Morro da Areia Preta, Rio do Peixe e Vila de Cumuruxatiba. A amostra foi distribuída proporcionalmente à quantidade de moradores por região.

Além do survey, foram entrevistados 10 pessoas com papel significativo na comunidade. Com isso pretendia-se verificar suas visões quanto à importância do turismo na comunidade, as transformações que ocorreram no entorno, as expectativas de futuro e as ações propostas para se alcançar o desenvolvimento local.

Para a tabulação dos dados do survey utilizou-se o software denominado Statistical Package for Social Sciences (SPSS), o que permitiu processar as perguntas fechadas. Na análise foram utilizados os dados processados e a análise de conteúdo das entrevistas, permitindo aprofundar o debate sobre as transformações ocorridas em Cumuruxatiba a fim de se alcançar o desenvolvimento local e o papel do turismo nesse processo. DESENVOLVIMENTO LOCAL O desenvolvimento local é um tema controverso e de pouco consenso, não é apenas alvo de contestação em termos conceituais, mas também metodológicos. Assim colocado, as tentativas de avaliar ou medir o desenvolvimento econômico produzido pelas intervenções locais, torna-se uma tarefa difícil. Esse embaraço em sintetizar um único conceito de desenvolvimento local, parte da dificuldade inicial de definir a própria palavra desenvolvimento, como visto no início deste capítulo. Brose (2002, p.208), discutindo os diversos conceitos, destaca que abordagens como “uma nova forma de intervenção”, “uma nova metodologia de ação”, “uma nova proposta de atuação do setor público”, entre outras, não são satisfatórias para expor com precisão a idéia de desenvolvimento local. Já que o termo não é entendido como crescimento econômico, mas como melhoria da qualidade de vida. Não é nem uma metodologia ou uma forma de atuação, nem tem origem no setor público.

“Desenvolvimento compreende, antes de mais nada, um processo que permeia a história de cada sociedade, que envolve todos os tipos de avanço, retrocessos, conflitos e pactos entre os atores envolvidos, e que gradualmente ao longo do tempo, permite um incremento na qualidade de vida da população”. (BROSE, 2002, p.208).

Considerando o desenvolvimento local como processo, ele passa a ter um planejamento das ações e intervenções no local onde serão implantados. Segundo Milani (2004), o desenvolvimento local implica extravasar o local limitado por espaços geográficos e pensar a sua identificação a partir da desconstrução da falsa antinomia entre micro e macro. O local é um território. Conduz-nos a analisar sua endogenia (o desenvolvimento local torna efetivas e dinamiza potencialidades locais próprias) e as particularidades (fatores locais) do contexto em que se situa. O local é, nesse sentido, construído social e territorialmente; é delimitado pela permanência de um campo estável de interação entre atores sociais, econômicos e políticos. Santos e Rodríguez (2002) propõem o conceito de desenvolvimento local de base, ou seja, constituído “de baixo para cima”. A capacidade de decidir sobre esse desenvolvimento não é de exclusividade do Estado ou das elites econômicas. Enxerga-se na sociedade civil, o principal ator no processo de construção coletiva. Tal método cria certo potencial para que o efeito econômico dessas experiências chegue à esfera política e produza um ciclo de crescimento que contrarie as lógicas de exclusão. O desenvolvimento local é onde se exerce a cidadania e se criam condições para a estruturação de um espaço de interação, recuperando a iniciativa e a autonomia na gestão do que é público. Isso acontece porque cada local tem características peculiares, o que impede a aplicação de um único

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modelo de desenvolvimento local para todas as comunidades; sem que sejam analisadas as características inerentes daquele espaço e daquela cultura. Percebe-se a necessidade da participação dos atores sociais desde o momento da resolução de pequenos conflitos até a tomada de decisões políticas e públicas. Assim, Ferraz (2001) classifica como desenvolvimento local qualquer iniciativa fundada na animação de atores para a organização e busca de objetivos comuns para a melhoria da qualidade de vida em bases sustentáveis, ou seja, a partir da geração de ocupações e renda. Moura (2003) assinala duas abordagens de desenvolvimento local, uma cujo foco é a competitividade e outra centrada na exclusão social. Denomina-se a primeira, competitiva, e a segunda, social, de acordo com o centro dos discursos e práticas adotadas. Na primeira abordagem, o objetivo é a inserção competitiva da região no mercado. Nesse caso específico, as ações tendem a se dirigir, preferencialmente, para médias e grandes empresas. Já na segunda, o combate à exclusão social aparece como o eixo norteador e as ações tendem a enfocar os pequenos empreendimentos e os segmentos que estão à margem do grande mercado. Ou seja, ações para enfrentar os efeitos da exclusão social consideradas como um meio para se atingir maior competitividade ou podem assumir caráter estratégico, de forma a integrarem uma política econômica de fortalecimento da economia popular. Ambas as visões se juntam no discurso oficial do desenvolvimento local que remete à combinação entre estabilidade e transformação, inovação e permanência, competição e solidariedade, sentidos que são manejados, simultaneamente, por interesses coletivos e representados por atores locais em diversas escalas (FISCHER, 2002). Em outras palavras, lida-se com um processo de diversificação e de enriquecimento das atividades econômicas e sociais locais de um território, a partir da mobilização coordenada dos seus recursos e energias, integrando componentes econômicos, ambientais, sócio-culturais e político-administrativos. Nesse contexto, a disponibilidade de recursos físicos, materiais, humanos, econômico-financeiros e tecnológicos, possuem sua importância acentuada pela capacidade de acelerar o processo de mudanças, ao elaborar sistemas flexíveis de parcerias nos mais diversos níveis de atuação (DOWBOR, 1998). Brose (2002) sintetiza as definições do desenvolvimento local quando o caracteriza em cinco dimensões: inclusão social, fortalecimento da economia local, inovação na gestão pública, gestão ambiental com uso racional de recursos naturais e mobilização da sociedade. O desenvolvimento local, assim, mostra a preocupação com a participação da comunidade na busca de melhoria das condições de desigualdade social. Para que isso ocorra, é necessário: a definição do espaço onde as ações serão desenvolvidas, incentivo e crescimento do poder local como gestor das políticas que serão planejadas e implantadas na localidade.

Poder Local: Quando se fala em poder local, além do poder público, estão indicados todos os agentes da comunidade. Todas as pessoas que atuam na localidade a fim de mobilizar, planejar e gerir ações de interesse público. Assim, o foco na localidade e na articulação implicam em reconhecer um palco mais ou menos delimitado, onde diferentes atores protagonizam jogos de poder, constituindo, dessa maneira, a noção de poder local. Segundo Fischer (2002, p.13) esta noção remete “às relações de forças, por meio das quais se processam alianças e conflitos entre os atores sociais, bem como a formação de identidades e práticas de ações especificas”. As decisões do poder local conduzem suas comunidades de maneira sóbria e equilibrada, num mundo em constante mutação, levando às mudanças necessárias, com participação ativa da sociedade, para complementaridade e desenvolvimento das potencialidades locais.

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Dowbor (1999) aponta para a contradição crescente entre as formas centralizadas de elaborar, implementar e controlar os projetos; além do fato das necessidades mais prementes do desenvolvimento exigirem grande número de ações de lógica local. É na zona local onde se identifica com clareza as principais ações redistributivas. Enfim, é o lugar que permite a democratização das decisões, na medida em que o cidadão – ator social – pode intervir com muita objetividade e facilidade em assuntos da sua própria vizinhança, dos quais tem conhecimento direto, sem a mediação de grandes estruturas políticas. Dentro da discussão do poder local, aparece um novo conceito que deve ser compreendido: o de ator social. Para Gehlen (1998), conceituar sociologicamente o termo ator social significa colocá-lo em posição alternativa de atuação com os outros e com as condições sociais. Posições determinadas pela concepção de mundo, pelo estilo de vida, pelas relações com a natureza, pelo sistema de trabalho e de produção dos bens, pelo religioso, pelas formas de reprodução biológica e social. Reafirmando a necessidade da comunidade nesse processo de descentralização do poder, Dowbor (1999) assevera que o instrumento básico do poder local é a participação comunitária, que adquire importância como mecanismo complementar de outras transformações concomitantes. Trata-se da descentralização, do planejamento municipal. São esses diversos sistemas de participação das comunidades, nas decisões referidas ao espaço de vida do cidadão, que dão corpo ao chamado poder local. Poder local, então, é a base onde se equilibra o tripé: desenvolvimento local, capital social e sustentabilidade. Isso porque é a partir do poder local que a comunidade passa a comandar e planejar as ações de desenvolvimento. Sem esse poder nas mãos dos cidadãos, o desenvolvimento local fica fragilizado. Sustentabilidade:

O princípio de sustentabilidade surge para Leff (2002) no contexto da globalização como marca de um limite, um sinal de reorientação do processo civilizatório da humanidade. E, dentro dessa realidade, a crise ambiental veio questionar a racionalidade e os paradigmas teóricos que impulsionaram e legitimaram o crescimento econômico, negando a natureza.

O princípio de sustentabilidade implica, na visão de Bartholo e Bursztyn (2001), em incorporar o horizonte da intervenção transformadora do mundo da necessidade, o compromisso com a perenização da vida. Isso requer um acervo de conhecimentos e de habilidades de ação para a implementação de processos tecnicamente viáveis e eticamente desejáveis. Tal acervo constitui o conjunto das tecnologias da sustentabilidade, que se traduzem em ordenações sistematizadas de modos diferenciados de interação. Esses saberes e habilidades, desenvolvidos pelo princípio de sustentabilidade, são identificados por Sachs (2002) por meio de cinco dimensões simultâneas, que todo planejamento sustentável precisa levar em conta: sustentabilidade social; sustentabilidade econômica; sustentabilidade ecológica; sustentabilidade espacial e sustentabilidade cultural. Essas cinco dimensões são vistas conjuntamente e não podem ser trabalhadas de maneira isolada, já que uma se reflete na outra. A sustentabilidade torna-se um princípio necessário ao debate do desenvolvimento da localidade, quando se preocupa com a melhoria da qualidade de vida da população não só em curto prazo, mas também em longo prazo; considerando o não comprometimento das gerações futuras. Daí surge o desafio de gerar estratégias que permitam articular as economias locais com a economia de mercado nacional e mundial, preservando a autonomia cultural, as identidades étnicas e as condições ecológicas para o desenvolvimento sustentável de cada comunidade, isto é, integrando as populações locais em um mundo diverso e sustentável.

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Esse processo em construção demonstra que todos os agentes locais estão em constante troca com o ambiente. Isso implica dizer que as mudanças devem ser pensadas em total perspectiva espacial, já que dentro do ambiente tudo se encontra interligado e dependente entre si. Toda formação social e todo tipo de desenvolvimento estão fundados num sistema de valores, em princípios que orientam as formas de apropriação social e transformação da natureza. A racionalidade ambiental incorpora, assim, as bases do equilíbrio ecológico como norma do sistema econômico e condição de um desenvolvimento sustentável; da mesma forma que se fundem os princípios éticos (respeito e harmonia com a natureza) e os valores políticos (democracia participativa e equidade social). Ambos os paradigmas, abordagem ética e ação política, constituem os novos fins do desenvolvimento e se entrelaçam como normas morais nos fundamentos materiais de uma racionalidade ambiental. Desse modo, Leff (2002) argumenta que, para a conservação da racionalidade ambiental, deve-se respeitar uma nova ética. Um juízo em que se manifestem os comportamentos humanos em harmonia com a natureza; com princípios de vida democráticos e com os valores culturais que dão sentido à existência humana. O desenvolvimento local sustentável requer, dessa maneira, o planejamento local e participativo, no plano micro, das autoridades locais, comunidades e associações de cidadãos envolvidos na proteção da área. Assim, segundo Sachs (2002 p. 60): “É necessário uma combinação viável entre economia e ecologia, pois, as ciências naturais podem descrever o que é preciso para um mundo sustentável, mas competem à ciência social as articulações das estratégias de transição rumo a este caminho”. Logo, para alcançar o desenvolvimento local sustentável é preciso analisar a variedade e a intensidade dos problemas globais. Eles são, em larga escala, um sério desafio às instituições existentes e aos métodos dos quais fazemos uso atualmente para administrar os negócios. Deve, ainda, considerar áreas para as quais idéias e métodos inovadores podem indicar melhoria no gerenciamento dos problemas globais. Incluem-se no rol: ciência, tecnologia, educação, valores e padrões éticos, contabilidade dos recursos naturais, governos nacionais, organizações internacionais, negócios, indústrias e organizações não-governamentais. A sustentabilidade, junto ao poder local, passam a incorporar os projetos de desenvolvimento local. Enriquecendo o planejamento de ações que protejam o meio ambiente e a comunidade; respeitando recursos naturais a fim de não comprometer, mas sim desenvolver, as gerações futuras.

TURISMO E DESENVOLVIMENTO LOCAL SUSTENTÁVEL: O Brasil, com seus mais de 8 milhões de Km², imensa costa marítima, inúmeros rios e florestas, variedade de fauna e flor, além de grande diversidade cultural e folclórica, possui um enorme potencial turístico. A promoção do turismo no Brasil constitui uma oportunidade para o desenvolvimento local sustentável, na medida em que aproveita as potencialidades locais, proporciona a geração de empregos, estimula a criação de renda e contribui para a redução das desigualdades sociais (RODRIGUES, 2000). Assim, o turismo pode ser considerado como uma alternativa econômica capaz de alavancar o desenvolvimento local de regiões socialmente excluídas. Entretanto, para que alcance os objetivos desejados, ele deve ser planejado para que se torne uma atividade sustentável. O mais importante é que ele seja concebido de forma que beneficie as comunidades locais, contribua para a equidade social, mantenha uma relação harmoniosa com a cultura e o patrimônio locais e, finalmente, preserve o meio ambiente para as gerações futuras. O turismo transforma o local e a comunidade onde ele é desenvolvido. Por isso, é necessário que ele seja pensado para trazer a sustentabilidade a partir do desenvolvimento local, ou seja, na

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perspectiva da diminuição da pobreza, da exclusão social e da redução da desigualdade em busca da inclusão social e da autonomia local. De acordo com Cruz (1995) se, por um lado, o turismo representa uma possibilidade viável de amenização dos graves problemas econômicos e sociais que afligem a região, por outro, pode se transformar em um fator importante de degradação dos recursos naturais e sócio-culturais que permitem a sua existência no presente e sua continuidade no futuro. A sustentabilidade do turismo tem sido abordada com freqüência em conferências e documentos oficiais sobre o tema. Está atrelada ao conceito de desenvolvimento sustentável, popularizado a partir do relatório Brundtland, de 1988, na Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento:

“Para ser sustentável e bem sucedido, o turismo deve melhorar a vida da população local, proteger o meio ambiente e lhe oferecer um futuro melhor. Se o turismo consistir em salários baixos, trabalho braçal, redução de padrões e prejuízos à agricultura, não será um bom investimento” (MICT-BID 1993, p. 5).

O turismo deve ser usado como uma ferramenta para se alcançar a sustentabilidade, se partir do pressuposto de que o ambiente é sistêmico e as ações devem ser pensadas e planejadas em busca da melhoria da qualidade de vida. Dessa forma, Krippendorf (2000, p.69), apesar de citar as dificuldades encontradas quanto à sustentabilidade e criticar algumas práticas do turismo, propõe a humanização da atividade, de forma que as suas políticas não sejam centradas exclusivamente nas finalidades econômicas e técnicas, mas acreditando que o desenvolvimento tem que ser focado no ser humano para “assegurar e otimizar a satisfação das múltiplas necessidades turísticas dos indivíduos de todas as camadas sociais no âmbito das instalações adequadas e num ambiente intacto, levando em consideração os interesses da população autóctone”. Diante das preocupações locais, os atores conseguem implementar ações que foquem as necessidades reais da comunidade, permitindo soluções que gerem melhoria para a qualidade de vida da sociedade. Assim, para Swarbrooke (2000), o controle local é o elemento-chave da ideologia do turismo sustentável. Por isso as iniciativas geradas localmente devem ser aplaudidas, ou seja, é preciso maximizar os benefícios econômicos, sociais e ambientais para a comunidade local.

O planejamento, segundo as perspectivas de sustentabilidade, procura dar ênfase ao local. Ele é o espaço onde todas as intervenções acontecem. Daí ser necessária maior preocupação, uma vez que nessas regiões já havia uma cultura existente antes do turismo se instalar e transformar toda a comunidade local.

O meio ambiente e a população local ganham destaque nessa nova postura adotada: quando se fala em preservar o meio ambiente, a reunião do meio natural com o meio urbano, o que se deseja é garantir a qualidade de vida. Essa é a única maneira de resguardar a sobrevivência do turismo como atividade econômica com visão de longo prazo. Na definição da OMT (2003, p. 24):

“O desenvolvimento do turismo sustentável atende às necessidades dos turistas de hoje e das regiões receptoras, ao mesmo tempo em que protege e amplia as oportunidades para o futuro. É visto como um condutor ao gerenciamento de todos os recursos, de tal forma que as necessidades econômicas, sociais e estéticas possam ser satisfeitas sem desprezar a manutenção da integridade cultural, dos processos ecológicos essenciais, da diversidade biológica e dos sistemas que garantem a vida.”

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Representa um modelo de desenvolvimento econômico projetado para melhorar a qualidade de vida da população local, manter preservado o meio ambiente, aumentar os níveis de rentabilidade econômica da atividade turística para os residentes locais, assegurar a obtenção de lucros pelos empresários e prover experiência de melhor qualidade para o visitante. Mas, para que este modelo seja desenvolvido com sucesso, é necessário que haja um planejamento turístico voltado para melhoria das condições de vida dos residentes e para a proteção do entorno local, natural e cultural. Há uma preocupação cada vez maior em tornar o turismo um agente de desenvolvimento local sustentável para a comunidade, tornando-a autônoma e permitindo atuações do poder local que contribuam para a melhoria da qualidade de vida da comunidade. Nesse processo, Butler (2002) atenta para a importância do planejamento do turismo de forma sustentável, como meio de introduzi-lo em uma área de maneira harmoniosa e adequada, para que daí resulte na participação da comunidade e que seja funcionalmente ideal, em termos tanto ecológicos quanto humanos. A integração ideal entre comunidade e atividade turística é aquela que torna o desenvolvimento mais acessível tanto para os residentes locais quanto para os que se utilizam dos recursos turísticos existentes. Semelhante integração difere da idéia de um desenvolvimento turístico imposto de forma segregada e indesejável. Quando pensado e planejado de maneira sustentável, o turismo tem como principal pressuposto a preservação social, ambiental e cultural dos povos, valorizando a diversidade de cada cultura. Esse planejamento e conscientização tornam-se diferenciais de regiões turísticas, trazendo um desenvolvimento local integrado para toda a comunidade. O turismo, quando planejado poderá viabilizar o desenvolvimento local e possibilitar a incorporação e participação da comunidade tanto na formulação das idéias como na execução dos projetos. A atividade turística torna-se assim um elemento fomentador de ações que buscam o desenvolvimento local; isso significa que se procura alinhar essas ações ao conceito de sustentabilidade com a descentralização do poder a fim de incentivar a participação da comunidade nas decisões fazendo com que haja um fortalecimento do capital social e – principalmente – que se concretize ações de respeito e de valorização das características físicas, sociais e culturais da localidade para haver inclusão de todos no processo.

ESTUDO DE CASO: CUMURUXATIBA Cumuruxatiba é um distrito do município de Prado, no extremo sul do estado da Bahia, criado pela Lei Estadual nº 234 de 5 de Junho de 1898. A população é de 5.886 (cinco mil, oitocentos e oitenta e seis) habitantes (IBGE, Censo 2000). Segundo a historia local, até década de 40, a vila era dividida em duas partes: próximas à igreja existiam casas de madeira, onde moravam os pescadores e próximas à represa havia casas de taipa, onde residiam os índios pataxós. A partir de então houve um processo de concessão de áreas, visando o desenvolvimento no extremo sul da Bahia.

Inicialmente, a concessão de terras visava o desenvolvimento extrativista de madeira e de areia monazítica, sendo a primeira com a doação de terras para a Bralanda e a segunda para o Conselho Nacional de Energia Nuclear (CNEN).

Como as únicas atividades produtivas, até então, na vila de Cumuruxatiba, eram a extração da areia monazítica e de madeira, o esgotamento dessas riquezas fez diminuir o interesse pela região; tornando necessário repensar a forma de planejar a ocupação local. Procurou-se uma alternativa para gerar desenvolvimento na região. Espelhado no modelo original de concessão de terras, o município de Prado abriu grandes loteamentos. Doou terrenos para baianos e mineiros interessados em construir casas de veraneio e pousadas. O objetivo era povoar

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a região, ou seja, em troca dos terrenos recebidos, os beneficiários investiriam na localidade, gerando emprego e renda para os moradores. Com a construção da rodovia BR – 101, na década de 70, houve uma redescoberta da região; aumentando o fluxo de visitantes, os novos moradores e o número de estabelecimentos comerciais. Com a estrada vieram, também, os vícios urbanos, quais sejam: devastação das florestas, extinção das espécies, marginalização das culturas indígenas sobreviventes, crescimento populacional desordenado, precariedade da infra-estrutura urbana, inexistência de saneamento básico e dos indispensáveis serviços de saúde, aumento e fluxo incontrolável de veículos, incêndios e desmatamentos de parques e reservas, turismo predatório e especulação imobiliária desenfreada. Atualmente, a economia de Cumuruxatiba é baseada na pesca e no turismo, sendo esse segundo uma atividade sazonal que tem sua alta temporada no verão. Em relação ao meio ambiente, a localidade encontra-se entre três parques ecológicos de grande destaque nacional: Reserva Marítima de Abrolhos, Parque Nacional do Descobrimento e Parque Nacional do Monte Pascoal, o que possibilita o desenvolvimento do turismo, bem como do comércio de artesanato; atividades capazes de alavancar o desenvolvimento organizado e sustentável da região. O acesso ao local dá-se por estrada de terra (23 km do Prado) ou transporte marítimo, a região possui energia elétrica, água proveniente de poços artesianos e gerenciamento de resíduos por meio de fossas. A vila de Cumuruxatiba possui posto dos Correios, terminal da Caixa Econômica Federal, posto de saúde, posto dentário e posto policial. Não há uma sede administrativa para referência dos moradores e da própria prefeitura de Prado. Nos verões de 2005 e 2006 estavam funcionando, em Cumuruxatiba, 29 restaurantes, 37 pousadas, 8 lojas de artesanato, 3 centrais de passeios e 1 museu histórico. Na vila, ainda há festivais e cerimônias religiosas como: Festa do Pau de São Sebastião (20 de janeiro), Festa de Iemanjá (2 de fevereiro), Festa de Santo Antonio, São Pedro e São João (Junho), Corrida de Canoas (Janeiro), entre outras. Os moradores estão organizados em algumas associações para articular ações e defender seus interesses, sendo elas: Associação de Comerciantes e Pousadeiros, Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Assentamento Projeto Cumuruxatiba e Associação de Pescadores da Resex (Reserva Extrativista de Corumbau).

Resultados da pesquisa: Perfil dos entrevistados: A pesquisa foi realizada com uma população composta por 48,9% de nascido em Cumuruxatiba (cumuruxatibenses), 21% de regiões circunvizinhas como Corumbau, Prado, Itamaraju e Teixeira de Freitas, sendo os demais entrevistados provenientes de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e outros países. Ao considerar a escolaridade por naturalidade dos entrevistados, notou-se que 54,5% dos paulistas possui ensino superior completo, enquanto 43,2% dos nascidos em Cumuruxatiba possui o segundo grau completo., revelando que a implantação do ensino médio na localidade fez com que os jovens dessem continuidade aos estudos. Essa continuidade se dá, principalmente, pelo fato de não coincidir o ano escolar e a principal época de trabalho, que ocorre no verão, durante as férias escolares; o que faz com que os jovens não tenham que abandonar os estudos para trabalhar. Nesse sentido, é interessante considerar o discurso da diretora da escola, Rosangela, sobre a melhoria do nível de escolaridade da população em função da necessidade do turismo: “hoje, o

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nível de educação da comunidade melhorou, as pessoas se preocupam com as mudanças, os jovens se preocupam porque eles precisam estar engajados com o turismo. Essa, para mim, foi a principal mudança de tudo que aconteceu. É a coisa de querer mais, de querer progredir. Isso é o mais importante”. O turismo, nesta dimensão, é visto como um fator de mudança de comportamento local. Agora, para trabalhar, é necessário saber ler, escrever, fazer contas e falar bem; o que antes não era tão importante, já que os empregos eram predominantemente braçais. Outra variável que permite visualizar o perfil dos moradores da comunidade é o rendimento familiar, onde 52,3% dos nascidos em Cumuruxatiba e 57,9% dos provenientes de cidades circunvizinhas baianas recebem apenas 1 (um) salário mínimo, enquanto a maioria proveniente de outros estados recebe acima de 4 (quatro) salários mínimos. Isso revela que os moradores procedentes de outras localidades, e que hoje moram em Cumuruxatiba, possuem melhor situação financeira. Isso se deve muitas vezes ao fato de ser proprietários de negócios turísticos, pousadas e restaurantes, ou possuir empregos qualificados, sejam gerentes ou funcionários públicos na área da saúde e educação. Já a comunidade local em sua maioria ocupa atividades de baixa remuneração como serviços domésticos e construção civil. Para se ter uma visão melhor do rendimento a análise foi feita em dois momentos, ou seja: no primeiro, foi calculada a receita média mensal domiciliar recebida durante o ano; no segundo, a receita média mensal auferida no verão. Essa diferença é dada pelo fato da economia local se transformar completamente nos meses de alta temporada (dezembro a março), aumentando a oferta de emprego e o acúmulo de renda da população. A demanda de mão-de-obra é na região, em sua grande parte, para garçom, serviços domésticos e jardinagem; e nos meses precedentes à alta temporada, há maior ocorrência de vagas de trabalho na construção civil, para reparos, reformas e construção de estabelecimentos comerciais e casas de veraneio. A alteração dos níveis de renda da população, do inverno para o verão, pode ser visualizada no Gráfico 1. Nele observa-se que as categorias salariais abaixo de dois salários mínimos reduzem sua incidência. No primeiro caso, durante o ano, tem-se 43,3% da população que recebe até 1 salário mínimo, no verão, essa percentagem passa para 22,2% dos entrevistados. Na segunda faixa, de 18,9% passa para 16,7%. A partir daí, cada faixa salarial tem um aumento no número de ocorrências. Durante o ano, 14,4% dos entrevistados pertencem a faixa de renda de 2 a 3 salários mínimos, aumentando – no verão - para 20% dos entrevistados. O mesmo ocorre na faixa de 3 a 4 salários mínimos: dos 5,6% da população, durante o ano, passa para 13,3%, no verão. Porém, o aumento mais significativo ocorre para quem pertence a faixa de mais de 4 salários mínimos, que de 17,8%, durante o ano, passa para 27,8%, no verão; ou seja, há um aumento de 10% dos entrevistados que passam a receber mais de 4 salários mínimos nos meses de alta temporada. Gráfico 1: Relação entre o rendimento mensal durante o ano e rendimento durante o verão

43,3%

17,8%22,2%13,3%

27,8%

5,6%14,4%18,9% 20,0%16,7%

0,0%

20,0%

40,0%

60,0%

80,0%

100,0%

≤ 1 sal.mínimo

> 1 e ≤ 2sal. mínimos

> 2 e ≤ 3sal. mínimos

> 3e ≤ 4 sal.mínimos

> 4 sal.mínimos

RerndimentoanualRendimento verão

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O aumento do rendimento da população é também reiterado pelas entrevistas realizadas com os proprietários das 37 (trinta e sete) pousadas. Há uma variação do número de funcionários contratados nas pousadas da vila: os 79, durante o ano, saltam para 174, no verão; equivalendo a um aumento de 120% na oferta de emprego. Isso revela que durante os meses de alta temporada a mão-de-obra disponível em Cumuruxatiba dedica-se às atividades turísticas. É uma oportunidade de sobrevivência, uma vez que o rendimento do verão aumenta a receita das famílias. Assim, há famílias que sobrevivem o ano com o que ganham nos três meses de verão. Diante disso, a sazonalidade do emprego ocasiona uma dependência da população em relação ao volume de veranistas. Essa questão é estudada de maneira mais detalhada nos itens seguintes.

A importância do turismo para o desenvolvimento local: Quando perguntado como era Cumuruxatiba há dez anos atrás, 63,3% dos entrevistados considera que pior do que hoje. Desses, 42,2% afirma que antes a vila não possuía infra-estrutura. Essa situação de precariedade pode ser percebida no discurso da Sra. Dolores, sobre as transformações ocorridas na comunidade nos últimos anos: “houve muitas mudanças da época que eu cheguei em 1993. Nós não tínhamos absolutamente nada, não tínhamos acesso ao pão, ao leite... A escola era bastante precária, não tínhamos posto de saúde. Hoje, o comércio melhorou bastante. Não tínhamos carne, verdura, frutas. Hoje em dia já temos isso tudo. Melhorou bastante, sim, e essas melhoras têm interferência do turismo e das pessoas de fora que vieram morar para cá e trouxeram os hábitos de São Paulo, Rio de Janeiro e até estrangeiros... Dessa forma o comercio é obrigado a melhorar”. De acordo com o discurso anterior, nota-se que as transformações aconteceram de maneira gradativa, conforme a necessidade dos novos moradores e do turismo; uma vez que se tornou fundamental a melhoria na prestação de serviços para conquistar os clientes mais exigentes principalmente no comércio da região. Quanto ao que ainda deve melhorar em Cumuruxatiba, sugere-se segundo os moradores:

• Manoel, proprietário de restaurante popular: “Eu acredito que precise melhorar a educação e melhorar o meio de locomover. A estrada está um pouco precária, mesmo para o nativo. Porque se é melhor para o turismo, é melhor para o nativo. O que eu sei é que têm muitas coisas para melhorar”. • Dolores, proprietária de restaurante sofisticado: “É difícil de dizer... Eu vejo que as casas são precárias, então quer dizer que as pessoas têm pouca coisa, tem pouca alimentação, precisam de conforto. Então, acho que o básico tem que melhorar, para ter uma vida mais saudável e confortável”. • Antonio, proprietário de pousada: “Melhorar o social é melhorar a vida da pessoa, precisa de mais emprego”. • Antonio Carlos, pescador: “Para se desenvolver, falta muita coisa. Eu não posso nem te explicar, mas é a respeito de serviço... Emprego só tem na área do verão e da pescaria. Pescaria, hoje, não está compensando mais, está muito ruim. É só no turismo mesmo”. • Raimundo, vereador da comunidade: “Educação, saúde e policiamento também. Por que nós não temos segurança aqui e a estrada que não é muito boa. Melhorar a estrada para ficar mais cômoda dos turistas virem”.

Nos depoimentos acima, as melhorias apontadas são: educação, estrada, infra-estrutura, policiamento, saúde, geração de empregos. Percebe-se que, dentre o levantado, apenas a geração de emprego não seria uma política pública, ainda que, fortemente influenciada pelas ações de cunho político. Dessa maneira, o depoimento da Sra. Rosangela, diretora da escola municipal, sintetiza as necessidades de melhoria local: “Eu acho que, basicamente, o que precisaria era de

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uma política governamental mais decente. Isso em Cumuru e no Brasil inteiro, onde as pessoas tenham mais oportunidades, que dessem salários mais dignos e decentes”. Já a Sra. Jalene, é quem mais se aproxima do conceito de desenvolvimento local, proposto neste estudo por autores como Moura (2000), Santos e Rodrigues (2002), Milani (2004), entre outros: “Deve-se buscar uma infra-estrutura básica para a gente desenvolver a comunidade. A gente precisa dos serviços básicos públicos como água, saneamento, esgoto, educação de melhor qualidade e cursos profissionalizantes. E, dessa forma, manter realmente aquilo que tem atraído o turista para cá. Desenvolver com consciência, com parceria. Um trabalho sendo desenvolvido com a comunidade, empresários e políticos para que a gente possa ver a cidade crescer de forma ordenada. Por que a gente não pode mais crescer em tamanho, a gente tem que crescer em qualidade de vida”. No caso de Cumuruxatiba, a melhoria da qualidade de vida é essencial para o local, pois se trata de região marcada pela exclusão. Então o discurso da Sra. Jalene mostra que o turismo além das oportunidades econômicas possibilita um processo de inclusão social, porém isso só ocorrerá se houver maior integração entre os atores sociais, fundamentados no planejamento de suas ações pelas utopias propostas por Sposati (1999): autonomia, qualidade de vida, desenvolvimento humano e equidade. Considerando as mudanças ocorridas em Cumuruxatiba devido ao turismo percebe-se, 85,6% dos entrevistados afirma que as mudanças foram positivas, sendo que, 36,6% assinala que, graças ao turismo, Cumuruxatiba pôde crescer e 32,2% acha positiva posto que a atividade econômica gera emprego e renda para o local. Somado ainda com 16,7% acredita que turismo possibilitou o desenvolvimento da região. Para o Sr. Pedro “a vantagem do turismo é inegável. É ele que promove o enriquecimento da região, seja cultural, seja econômico, proporcionando às pessoas emprego, infra-estrutura. A desvantagem é que venha de uma maneira predatória que, evidentemente, vai custar o paraíso que a gente tanto quer manter”. A elevada percentagem de pessoas que consideram o turismo positivo justifica-se, portanto, por ele ser o instrumento de propulsão para o desenvolvimento local. Porém, deve se ter em conta o alerta do Sr. Pedro em relação aos problemas que o turismo pode causar à comunidade. Nesse sentido há moradores que tem uma visão negativa da atividade turística. Dos entrevistados que recebem até 1 salário mínimo, 7,7% destaca a dependência financeira da vila. Já 23,2% dos entrevistados que ganha de 2 a 3 salários mínimos, acredita que o turismo destrói a cultura local. Em ambos os casos, o turismo – mesmo sendo reconhecido como gerador de emprego e renda – começa a perceber que sem o turismo não há outra forma de sobrevivência. Uma maneira de contornar a situação de dependência econômica em relação ao turismo é sugerida pelo Sr. Jaime. Ele afirma haver a necessidade de novos negócios para o fortalecimento da economia local: “Cumuruxatiba depende de muitas coisas para melhorar. Por que, além do turismo, que é a fonte de renda, nós precisamos de empresas e outros investimentos para todos viverem. O turismo é um período que antes falava de 90 dias e, hoje, dá de 30 a 40 dias, a depender do carnaval e do tempo. Pois, se pegarmos um verão de muita chuva, acaba o turismo... 10 ou 15 dias, e só”. A relação entre o que deveria melhorar em Cumuruxatiba e as mudanças ocasionadas pelo turismo, faz perceber o seguinte: dos entrevistados que consideram as transformações positivas, por possibilitarem o crescimento da região, a maioria, 56,3%, ainda acredita que é preciso aperfeiçoar a infra-estrutura local. É também elevada a percentagem da melhoria da infra-estrutura para aqueles que consideram o turismo positivo por ter trazido o desenvolvimento, 60%. Já aqueles que acham que as mudanças provocadas pelo turismo foram positivas, por gerarem emprego e renda na comunidade, 40% sente falta de melhorias na infra-estrutura, seguido por aqueles que querem o asfaltamento da estrada, 26,7%. Apenas 23,3% considera haver necessidade de aumento no número de empregos. Nesse caso, percebe-se uma incongruência,

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pois mesmo para aqueles que o turismo é considerado como gerador de emprego tendem a privilegiar melhoria da infra-estrutura invés da criação de novos postos de trabalho. Quanto aos entrevistados que percebem como negativas as mudanças ocasionadas pelo turismo, ou seja, os que consideram a destruição da cultura local como ocasionada pelo turismo, 71,4% defende a melhoria da infra-estrutura local, nesse caso, deve-se tomar cuidado, pois muitas vezes melhorar a infra-estrutura implica na mudança das características locais podendo impactar negativamente na cultura caso não haja um planejamento. Daqueles que se manifestaram negativamente, por dependerem financeiramente do turismo, 33,3% acredita que há necessidade de aumento da oferta de empregos. Essa situação é controversa, pois quanto mais emprego é gerado pelo turismo, mais dependente a comunidade se torna dessa atividade. Na perspectiva do turismo como agente de mudança, voltado para o alcance de desenvolvimento local, destaca-se a maneira como os entrevistados enxergam as alterações no entorno: 42,2% afirma que o turismo pode ajudar a comunidade, gerando emprego e renda. A atividade é vista, por si só, como multiplicadora de postos de trabalho. Uma situação interessante, é que, considerados os moradores nascidos em Cumuruxatiba, o turismo é visto não só como gerador de empregos (31,8%), mas, também, como atividade responsável pelas novas oportunidades para o local (31,8%). O fato revela que, para os cumuruxatibenses, o turismo tem importância para além da geração de empregos; dado que se torna a ligação entre a vila e as grandes cidades; trazendo inovações, novos negócios e conhecimento. Assim, graças ao turismo, Cumuruxatiba tem a chance de conhecer outras culturas e, com elas, novas oportunidades de negócios e profissões. Logo, o turismo em Cumuruxatiba ao mesmo tempo em que gera emprego e desenvolve a localidade, proporciona uma relação de dependência social e econômica, ou seja, sem o turismo a vila não tem condições para se sustentar, para Lage e Milone (2004) com o desaparecimento do entusiasmo do turismo a população local compreende sua dependência econômica, além de não controlar mais as transformações de seu território. Dessa forma, a comunidade sente o reflexo da atividade turística no seu cotidiano, sendo necessário perceber se mesmo com os impactos negativos o turismo é considerado instrumento positivo de desenvolvimento. Outra questão relevante a ser analisada é a participação da comunidade no planejamento e na mobilização para a tomada de decisões. 82,2% dos entrevistados não participa do processo deliberativo; essa percentagem aumenta para 93,2% entre os nascidos em Cumuruxatiba. A falta de participação da comunidade no planejamento e nas decisões locais sobre o turismo enfraquece a busca pelo desenvolvimento sustentável. As ações ficam restritas a um pequeno grupo de interessados e não à comunidade como um todo. Para a Sra. Jalene, é necessário “uma conscientização comunitária e uma capacitação para manter a vila como ela é; não perdendo suas características”. Continua: “acredito que a comunidade precise interagir mais com os empresários e as pessoas de fora e, dessa forma, estarem dispostas a terem o turismo como meio de vida para que a gente possa viver melhor.” Com a mobilização social, a comunidade conseguirá negociar com os demais atores para ter suas necessidades atendidas transformadas em potenciais ações de desenvolvimento. Dowbor (1999) afirma que o instrumento do poder local é a participação da comunidade. Essa participação complementa ações como a descentralização do planejamento local, pois as decisões serão tomadas no espaço de vida do cidadão. Ao considerar qual a maneira de ampliar a participação da comunidade nas decisões, 37,5% dos entrevistados que participa das decisões considera que a população deve se engajar e atuar nas associações já existentes de moradores, agricultores, comerciantes e pescadores. 62,5% acredita que haveria maior participação caso fossem realizadas reuniões e assembléias comunitárias. Os moradores que não participam da tomada de decisões, 31,1%, acha que a participação em associações já existentes deve ser incentivada. 58,1% sugere o formato de reuniões e assembléias

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comunitárias para mobilizar a população e apenas 10,8%, dos que não participa da tomada de decisões, acha que a população não tem interesse em participar. Percebe-se que parte da população tem interesse em mobilizar a comunidade para defender sua cultura, participando do planejamento das ações, em busca do desenvolvimento local. As associações de moradores, comerciantes, pescadores e agricultores já existem, basta que haja uma atuação mais efetiva dos mesmos. As reuniões e assembléias coletivas, contudo, deveriam ser iniciativas do povo e ter o apoio do administrador do distrito. Essa mudança de atuação segue a recomendação da OMT (2003) que afirma a necessidade do envolvimento dos moradores no processo de desenvolvimento turístico, para que possam compreender as transformações e participar das benfeitorias proporcionando um desenvolvimento local integrado para a comunidade. Outro ponto importante de impacto na comunidade é a sazonalidade. A maioria dos entrevistados, 78,9%, considera que se houvesse turismo durante o ano todo, a população teria mais emprego. A sazonalidade, logo, é vista como prejudicial à economia local. Ainda nessa tabela, 11,1% dos entrevistados - com renda menor que 3 salários mínimos - afirma que a sazonalidade impede o desenvolvimento de Cumuruxatiba. Apenas 10,0% acredita que ela é boa, dado permitir que a comunidade se dedique a outras atividades durante a baixa temporada. Segundo Baptista (1997) a sazonalidade deve ser vista como um desafio, que faz com que novas atrações sejam desenvolvidas para promover outras formas de turismo. A Sra. Thais, durante sua fala, aponta alternativas para o combate da sazonalidade e o turismo de massa: “a temporada das baleias é uma forma de acabar com isso (sazonalidade). Atrair pessoas em um outro período pode ser um atrativo novo. Aqui ninguém quer aquele turismo o ano todo. Eu acho. Pelo que eu já conversei com as pessoas, ninguém quer trabalhar 365 dias por ano com turismo e, também, ninguém quer um turismo de massa. Mas viver do verão é muito difícil. Então, eu acho que a temporada das baleias é interessante, por que vai aumentar o fluxo de turistas de julho a novembro”. A necessidade de uma alternativa ao desenvolvimento turístico local, concentrado no período do verão, inclui a busca de atrativos que façam aumentar o número de meses em que há movimento. É mais conveniente a presença constante de turistas, intervalada durante o ano, do que uma superlotação durante o verão. Uma das alternativas é a categorização do turismo em ecológico (caminhadas, natureza, passeios de barco, mergulho, etc.), para que se conquiste um novo nicho de mercado. Bom exemplo é o citado pela Sra. Thais, sobre a vistagem de baleias, atração diferenciada da região. A importância do turismo para a comunidade está relacionada ao desenvolvimento social e humano dos moradores, que consideram positivo o fato do segmento ter dado oportunidades de emprego e renda, possibilitando a qualificação e a criação de novas atividades profissionais. Além disso, a comunidade é bastante receptível à atividade turística, integrando-se com os visitantes. Conclui-se, portanto que a falta de mobilização e participação da comunidade na tomada de decisões e a sazonalidade do turismo, influenciam negativamente a vida dos moradores. Tornam-se fatores impeditivos para o alcance do desenvolvimento local. Além da comunidade, o meio ambiente merece destaque na análise das transformações sofridas pelo espaço local, uma vez que o turismo influencia e é influenciado diretamente pelo conjunto de condições naturais, conforme pode ser visto no próximo item. CONCLUSÃO Esse estudo surgiu da necessidade de se unir dois conceitos: desenvolvimento local sustentável e turismo, tendo em vista a melhoria das condições sociais de uma localidade. No caso brasileiro, o

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turismo é uma atividade potencial, devido às suas belas paisagens, praias, chapadas, matas e florestas. Nessa perspectiva, o turismo aparece como um possível instrumento de implementação de ações que gerem o desenvolvimento local. Uma vez pensado sob o enfoque da sustentabilidade, percebe-se que cada localidade tem características únicas e, por isso, deve ser planejado de forma particular. Deixa-se de lado o turismo padronizado, com redes de hotéis e resorts internacionais, para um turismo que valoriza a participação da comunidade, pretendendo-se que essa atividade transforme a região; construindo na comunidade uma identidade social, cultural e ambiental. Essa pesquisa privilegiou uma situação comum em várias vilas de pescadores no litoral brasileiro: a vinda de turistas atraídos pela beleza das praias nativas transformando a economia da região, que antes era pesqueira e agora é dependente financeiramente do turismo. Essa dependência agrava-se por ser uma atividade marcada pela sazonalidade, com grande movimento na época do verão e longo vazio na época de inverno; uma vez que os turistas querem ir à praia somente nos meses de sol e não em tempos de frio ou chuva. Analisando a percepção dos moradores locais conclui-se que o turismo em Cumuruxatiba é visto como gerador de empregos e de oportunidades para a vila. As mudanças ocasionadas pelo turismo são encaradas de maneira positiva para a comunidade, mas também como um fato de dependência econômica que necessita ser combatido, por ser uma atividade sazonal. Duas alternativas foram apontadas para superar a sazonalidade: a primeira é mudar o foco do turismo, valorizando o turismo ecológico que se estrutura no destaque das paisagens virgens, natureza, praias para caminhadas e recifes de mergulho. A segunda é a divulgação de eventos que ocorrem na região como a presença das baleias jubartes, de julho a novembro. Com isso, a vila superaria o turismo sazonal dispondo durante o ano todo de turistas na região. São alternativas integradas, pois ambas estão ligadas à natureza, mas o seu sucesso depende da conscientização ambiental dos moradores. Essa mudança de enfoque turístico é dependente da participação da comunidade na tomada de decisões que no caso de Cumuruxatiba ainda se envolve muito pouco. Mesmo existindo associações locais, a população não se mobiliza nas discussões de planejamento e de desenvolvimento turístico na região, principalmente em debates de temas como o acesso e a divulgação da localidade. Em muitos casos pode até considerar a população apática quanto às transformações provocadas pelo turismo. Essa situação de inércia faz com que as decisões sejam tomadas aleatoriamente, não atendendo às necessidades de aperfeiçoamento da infra-estrutura local e muito menos de melhoria na qualidade de vida dos moradores. Portanto para alcançar o desenvolvimento local sustentável implementado a partir da atividade turística tem-se que superar a sazonalidade, mudar o comportamento participativo dos moradores, valorizar o poder local, criar a consciência ambiental e fortalecer a identidade local nesta nova realidade social.

E necessário discutir os caminhos a percorrer em busca da sustentabilidade como propõe Sachs (2002), alcançando novos níveis sociais, ambientais, culturais, espaciais e econômicos. O desenvolvimento local sustentável não poderá estar vinculado apenas à geração de emprego, à sobrevivência da população, às mudanças da condição de vida, mas sim a uma vida com qualidade.

A população deve perceber a relevância do meio ambiente para vila. Compreender que seu crescimento deve ser controlado e ordenado para não aumentar os impactos ambientais uma vez que a procura por Cumuruxatiba é motivada pelas suas belezas naturais, rusticidade e o aconchego dos moradores e sem isso o turismo perde seu apelo.

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Cumuruxatiba tem tudo para atingir um desenvolvimento local graças ao turismo, mas, para isso, a população precisa mudar suas prioridades e incorporar os objetivos da sustentabilidade. O que falta é incentivar a população a participar do processo de planejamento e formulação de políticas que visem à melhoria da vila. Aumentando a conscientização sobre a importância do meio ambiente, da participação comunitária, da manutenção da cultura local e da implantação de infra-estrutura básica para sociedade.

Por fim, esse estudo revela que o turismo pode ser fomentador do desenvolvimento local, desde que a população participe da tomada de decisões, sendo elas voltadas para melhoria das condições do espaço social, cultural e ambiental.

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