petrÓ, vanessa. profissionais do sexo. uma perspectiva antropológica do estigma da prostituição

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  • PROFISSIONAIS DO SEXO UMA PERSPECTIVA ANTROPOLGICA DO ESTIGMA DA PROSTITUIO

    Vanessa Petr*1

    Introduo O presente artigo tem o intuito de desenvolver algumas idias acerca de

    comportamentos desviantes ou estigmatizados como o caso da prostituio. Para a realizao deste parte-se de algumas leituras sobre a teoria do comportamento desviante e sobre a prostituio1. Delimitamos como ponto de partida para a pesquisa o Ncleo de Estudo sobre Prostituio (NEP). Trata-se de uma associao de prostitutas que conta com o apoio da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e do Ministrio da Sade e visa dar apoio s profissionais do sexo, seja quanto questo da preservao da sade, seja a quanto construo da auto-estima, seja na busca dos seus direitos sociais. Iniciaremos com algumas consideraes tericas acerca do tema e partiremos para uma exposio sobre o NEP e, por fim, faremos uma breve anlise sobre a prostituio, tendo por base a realidade das garotas de programa ligadas ao NEP.

    Comportamento Desviante e Estigma O indivduo l o mundo a partir da sua vivncia, das suas tradies e costumes. As

    diversidades culturais so muitas e as pessoas formam grupos que se organizam conforme suas proximidades e identidades. Entretanto, as diferenas nem sempre so consideradas desta forma, ou seja, como maneiras de ler a realidade. Mas como um desvio um equvoco daqueles que agem de maneira contrria estabelecida por determinado grupo. No se considera que o desviante possa estar apenas interpretando a realidade, mas imagina-se que ele no v um sentido e, portanto, age em descompasso. Encarando os fatos desta maneira estariam concebendo a cultura como algo acabado e homogneo, mas se a encaramos de forma contrria perceberemos que a interao dos indivduos que a forma e assim as atitudes divergentes no seriam um desvio, mas um carter diferente de interpretao proveniente de uma realidade dinmica que est sempre em movimento se construindo e, portanto, podendo se transformar, pois os indivduos no desempenham papis nicos ou permanentes, mas experincias particulares (Velho, 1985).

    A partir dessa perspectiva no podemos desconsiderar as contribuies de cada indivduo e nem consider-las como um problema passvel ou no de soluo, pois eles estariam construindo a identidade nessas relaes, e isso no seria necessariamente passvel de um desvio, seja ele proveniente do prprio indivduo, seja da estrutura social. O desvio nada mais que a acusao, de um indivduo a outro, que acontece na interao e no jogo de poder entre eles. Determinados grupos estabelecem normas de acordo com o poder que tm, assim h tambm um jogo, no qual os mais fracos precisam se submeter queles que tiveram mais influncia e conseguiram determinar as normas. Contudo, isso no fixo. H sempre uma possibilidade de mudana de parmetros e do estabelecimento de novos grupos. Quando determinados indivduos rompem com os cdigos at ento estabelecidos naquela realidade automaticamente so colocados margem, excludos e no aceitos, enfim so definidos como pessoas que possuem comportamentos desviantes. Geralmente essas pessoas so encaradas como doentes, criminosas ou perigosas.

    *Artigo escrito por alunas do 5 semestre do Curso de Cincias Sociais e orientado pela Dra. Lcia Mller 1 Este texto tem embasamento em pelo menos trs autores: Gilberto Velho, com Desvio e Divergncia (1985); Erving Goffman, com Estigma (1988) e Maria Dulce Gaspar, com Garotas de Programa (1985)

  • Segundo Gilberto Velho, quando se usa a denominao de desviante a esses comportamentos diferentes que vo se estabelecendo no se considera a complexidade e, muito menos, a dinamicidade das relaes scio-culturais, pois as conturbaes seriam fruto das relaes dos indivduos no espao social.

    Para tratar das questes de interesse neste momento faz-se necessrio recorrer literatura das Cincias Sociais sobre o conceito de estigma. Neste sentido encontramos a obra de Goffman2. Para este autor estigma um atributo depreciativo conferido a um indivduo, partindo de uma determinada caracterstica, tornando-a totalizadora e que incongruente ao esteretipo criado de como as pessoas devem ser ou agir. Desta forma, o estigma passa a existir a partir das relaes entre as pessoas, ou seja, dos choques entre os normais e os anormais. estabelecido um estigma a partir de uma determinada caracterstica do indivduo e ele passa a ser reconhecido apenas por ela como se em todos os momentos agisse utilizando apenas aquela identidade. Em contraposio, as pessoas estigmatizadas vo tentando manipular a sua identidade tentando sempre mostrar a melhor face. Este um processo de racionalizao e relativizao da identidade e que tambm constri a mesma, a partir de como o indivduo se v, como o grupo a que pertence o v e como os demais membros da sociedade o concebem atravs da sua conduta.

    Profissionais do Sexo: Representaes e Relativizaes Para fins de identificar empiricamente os conceitos acima tratados e poder contribuir

    para a compreenso desses fenmenos sociais, trabalharemos aqui com uma conduta considerada desviante que a prostituio. Pretende-se realizar um estudo, de carter antropolgico e bastante delimitado, com o NEP que um grupo formado por garotas de programa.

    O NEP est organizado desde 1989 e conta com o apoio da prefeitura de Porto Alegre. A idia de formar esse grupo nasce de algumas garotas de programa que foram convidadas para participar de palestras sobre a preveno de doenas, na poca promovidas pela AGAPA, a partir disso resolvem formar um grupo prprio para tratar das questes ligadas prostituio. Apesar de denominar-se como Ncleo de Estudos sobre Prostituio, o carter da instituio no este, mas apenas o de trabalhar com a prtica das garotas de programas, estimulando os cuidados com a sade e a defesa dos seus direitos sociais, proporcionando meios para o reconhecimento da identidade das mesmas e promovendo sua auto-estima.

    Para fins deste estudo, estabelecemos um breve contato com o NEP para que pudssemos ter conhecimento de como se organizam as garotas de programa ligadas ao ncleo e quais so as representaes que elas tm acerca da atividade que exercem, bem como as relaes que estabelecem com a vida social dita normal. A pesquisa no NEP deu-se atravs de um encontro com algumas participantes do ncleo, todas elas eram garotas de programa e tinham uma funo ligada coordenao, alm de serem membros do ncleo desde a sua formao. Na ocasio da visita percebemos boa receptividade por parte do grupo, o qual mostrou-se solicito, disposto a colaborar com a pesquisa. Contudo, verificamos a preocupao por parte das mesmas em saber qual seria a finalidade da pesquisa, pois apresentam receio de que a sua atividade venha a ser exposta no meio onde seus filhos convivem, porque isso poderia fazer com que eles sofressem preconceitos. Feita tal ressalva, podemos considerar que no mais no ocorreram restries por parte do grupo, inclusive percebemos que elas se mostram abertas discusso sobre a prostituio, imaginando que podemos ajud-las por estarmos interessados em conhecer as atividades realizadas pelo NEP.

    A prostituio, da mesma forma como os demais estigmas, exerce um carter totalizante na identidade das pessoas a quem atribuda. Portanto, estabelecido um atributo, essas pessoas passariam a se constituir apenas por ele em todos os momentos, como se no fizessem outras coisas e como se no houvessem diferenas no interior do grupo, no caso em

    2 Estigma: Notas sobre a manipulao da identidade deteriorada (1988)

  • estudo, as prostitutas. Entretanto, no caso em estudo percebemos que h uma constante relativizao por parte das garotas de programa a respeito disso. Sempre procuram estabelecer hierarquias para demonstrar que no so todas iguais

    ...tem muitos tipos de garotas... tem aquelas que

    esto ali porque precisam do dinheiro para sustentar os filhos e aquelas que s querem se drogar e se prostituir...

    A partir desse discurso percebemos as hierarquizaes que fazem demonstrando que

    elas no so todas iguais. Podemos perceber que ocorre a inteno de jogar a imagem negativa quelas que teriam uma conduta no aceitvel para as regras do grupo2. So sempre as outras que tm uma conduta desviante e assim tiram, neutralizam a imagem de que seriam todas iguais. Demonstram, desta forma, que cada grupo estabelece suas prprias regras, o cdigo que vo seguir. No porque desenvolvem uma conduta desviante que elas no tm seus cdigos e parmetros de tica.

    ... a prostituta tem muito mais tica que qualquer

    profisso, muito mais que poltico, que advogado, porque ela nunca comenta com as outras o que aconteceu com o cliente... o que acontece fica entre quatro paredes, porque ele vai ser um freqentador da casa, ento a gente tem que respeitar...

    Assim como caracteriza Maria Dulce Gaspar, muito presente a suposta histria de

    vida das garotas de programa. Quando falam sempre h espao para dizerem como que se tornaram prostitutas. Mas no se sabe at que ponto o que contam a verdade, pois criando histrias de vida poderiam estar preservando a verdadeira identidade e at mesmo gerando piedade atravs de histrias sofridas. A principal causa da prostituio e unnime, entre as garotas que tivemos contato, a falta de dinheiro num sistema de competio econmica que se acirra cada vez mais, exigindo muito dos concorrentes ao mercado de trabalho.

    ... pra conseguir qualquer emprego te pedem

    estudo... quem que consegue emprego com 40 anos, hoje? Na prostituio no tem isso... no tem idade, nem gorda, nem magra... a gente ganha muito mais do que uma empregada domstica...

    A questo econmica seria o que leva uma mulher a tornar-se prostituta. Entretanto,

    aqui tambm esto presentes as hierarquias, no so todas que agem desta forma simplesmente pela falta de dinheiro, mas tambm para manter um determinado padro de vida. Utilizando a necessidade de sobrevivncia para exercer esta atividade ocorre a legitimao da mesma e tambm uma espcie de piedade que justificaria a conduta. Nos casos analisados geralmente elas precisam sustentar os filhos, a famlia, ou pagar os estudos. Seria para dar condies dignas aos filhos que agiriam assim. Observamos um apreo muito forte famlia e tambm um discurso de que muito mais capazes de cuidar dos filhos do que as mulheres de famlia

    ... filho de prostituta no menino de rua...no

    porque a gente prostituta que no cuida bem...so cuidados at melhor que muita dona de casa por a...

    O apego famlia bastante visvel e geralmente os filhos tm conhecimento da

    atividade exercida por elas e aceitam.

    3 C.f. Maria Gaspar Dulce, em Garotas de Programa (1985)

  • Na tentativa de legitimar a atitude desviante elas ainda atribuem uma utilidade social para a prostituio. A existncia de garotas de programa seria uma forma de no levar a sociedade ao caos, seriam um mal necessrio que manteria o funcionamento da sociedade protegendo a famlia de um instinto sexual masculino no satisfeito (Maria Dulce Gaspar, 1985).

    ... se existindo prostituta os ndices de estupro so

    to altos imagina s se a gente no existisse... no daria mais pra sair na rua...

    Em comparao com outros pases onde a prostituio foi estudada e conforme retrata

    Maria Dulce Gaspar em seu trabalho3 percebemos que no Brasil h uma flexibilidade nas relaes das garotas de programa com os locais onde trabalham sejam esses as zonas, sejam as prprias casas. Segundo os relatos das garotas do NEP existe a liberdade para mudar de casa e tambm de ponto, para as que trabalham na rua. No entanto, como se trata de uma forma de ganhar dinheiro presente a concorrncia entre estes estabelecimentos.

    Durante este artigo nos referimos s prostitutas usando esta mesma denominao ou oscilando com garotas de programa. Contudo, elas no se definem desta forma, mas como profissionais do sexo. Observamos que elas passam a usar esta denominao depois de ingressarem no NEP e de a partir das atividades realizadas ali construrem uma identidade ou como dizem ter auto-estima.

    ... hoje em dia eu j digo profissional do sexo,

    mas antes dizia prostituta quando ia abrir um credirio, mas no tinha essa profisso. Agora tem, j uma ocupao...da eu j digo profissional, no por orgulho, porque a gente no se orgulha de ser uma prostituta...

    Segundo a definio das garotas de programa ligadas ao NEP, as profissionais do

    sexo so aquelas mulheres que trabalham pelo dinheiro e, eventualmente, podem consumir drogas, mas seu objetivo cumprir com o seu trabalho, satisfazendo o cliente e recebendo o pagamento no final para poder suprir s suas necessidades econmicas. Tambm consideram uma profisso pelo fato de j serem encaradas desta forma por segmentos da sociedade, a prostituio j consta no IBGE como uma ocupao e elas j podem declarar isso quando, por exemplo, vo abrir um credirio numa loja. Este foi um grande avano, segundo elas, e que tem mudado muito a forma como so tratadas, pois atualmente j tm direitos previstos e isso muda a forma como so abordadas, por exemplo, pelos policiais, inclusive dentre as atividades que desenvolvem elas do cursos para policiais mostrando a forma como devem agir quando forem abord-las. Segundo as profissionais do sexo a garantia, em lei, desta atividade no ameniza os preconceitos, mas d garantias.

    notvel que o tempo inteiro precisam recorrer a categorias que relativizem e hierarquizem a condio de prostituta. Isso ocorre em relao imagem que a sociedade tem destas e estaria as enquadrando de maneira igual, quando elas no se consideram assim e nem mesmo so. O discurso delas um dilogo com os preconceitos que sofrem, na medida em que passam a manipular as acusaes sofridas estabelecendo hierarquias.

    Em relao ao atributo que afirma serem todas iguais, o

    que implica vulgaridade e as totaliza sob o esteretipo de prostituta, as garotas apresentam um discurso bastante enftico evidenciando a hierarquizao existente no interior dessa categoria e se opem a maneira vigorosa aos segmentos considerados inferiores, sobre os quais recaem os prprios preconceitos.(Gaspar, 1985;p.119)

    4 Ver captulo III A Literatura sobre Prostituio, do livro Garotas de Programa (1985).

  • Consideraes Finais Neste estudo no pretendemos esgotar a anlise sobre o tema. Apenas levantamos

    algumas questes acerca de uma conduta considerada desviante, tentando confront-la com algumas das teorias existentes que tratam do tema abordado. A partir da realidade observamos que o jogo de identidades e atribuio de estigmas est sempre tentando ser relativizado pelos estigmatizados. As garotas de programa esto, permanentemente, recorrendo a hierarquizaes e jogando com os preconceitos tentando dar legitimidade as suas aes atravs da necessidade econmica que leva a isso ou pela necessidade social desta atividade, pois com esta atividade estariam contribuindo para a satisfao de desejos mal resolvidos.

    Atravs da atribuio de significados e legitimaes da atividade esto fazendo a construo da prpria identidade, tentando apresentar sempre o lado mais bonito da face, mas mesmo a partir das relativizaes permanece o estigma de terem um comportamento, por princpio, desviante.

  • Bibliografia GASPAR, Maria Dulce. A literatura sobre prostituio. In: Garotas de Programa:

    Prostituio em Copacabana e Identidade Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ____________________. O Jogo de Atributos: A construo da identidade social da garota

    de programa. In: Garotas de Programa: Prostituio em Copacabana e Identidade Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

    GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. Rio de

    Janeiro : LTC,1988. VELHO, Gilberto. Um estudo do comportamento desviante: A contribuio da Antropologia

    Social. In: Desvio e Divergncia . Rio de Janeiro: Zahar, 1985.