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1 “MULHERES DE VIDA LIVRE”: A PROSTITUIÇÃO FEMININA EM CACHOEIRA – BAHIA 1940-1970. 1 Ana Cláudia da Anunciação dos Santos RESUMO A presente pesquisa tem por objetivo compreender como se deram as relações socioculturais das prostitutas sob o discurso da moralidade familiar, apresentado pela sociedade do município de Cachoeira entre as décadas de 1940 e 1970. Com o intuito de responder a problemática a respeito de como se estabeleceram as relações socioculturais das prostitutas, nas décadas de 1940 e 1970, no município de Cachoeira BA, realizou-se um levantamento bibliográfico sobre a prostituição na História, abordando questões de gênero, o espaço da mulher na sociedade e a sexualidade feminina em meados do século XX. Assim, destacou-se algumas mudanças no cenário sociopolítico, que do ponto de vista do movimento feminista, serviram para pensar as atividades ligadas à prostituição no Brasil. Além disso, realizou-se também uma pesquisa no Arquivo Público Municipal de Cachoeira sobre crimes relacionados à prostituição (no caso, lenocínio), entrevistas com moradores da cidade e clientes daquela época, para assim poder estabelecer uma familiarização com os estereótipos, estigmas e preconceitos vivenciados por essas mulheres de “vida livre”. Palavras-Chave: Prostituição Feminina, Relações socioculturais, Lenocínio. ABSTRACT This research aims to understand how to have socio-cultural relations of prostitutes under the discourse of family morality, presented by the waterfall municipal partnership between the 1940s and 1970. In order to respond to problems regarding how settled socio-cultural relations of prostitutes, in the 1940s and 1970s, in the city of Cachoeira - BA, there was a literature on prostitution in history, addressing gender issues, women's space the society and female sexuality in the middle of XX century. Thus, he stood out some changes in the socio-political scenario that of the feminist movement perspective served to think of activities related to prostitution in Brazil. It also took place a search on Waterfall Municipal Public Archives on prostitution-related crimes (in this case, pimping), interviews with city residents and customers of that time, so he could establish a familiarity with the stereotypes, stigma and prejudice experienced by these women "free life". Keywords: Prostitution Women, Socio-cultural relations, Pimping. 1 - Artigo Científico apresentado ao Departamento de Ciências Humanas do Campus V Santo Antônio de Jesus , da Universidade do Estado da Bahia, como pré-requisito para a obtenção do título de Licenciada em História.

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“MULHERES DE VIDA LIVRE”: A PROSTITUIÇÃO FEMININA EM CACHOEIRA – BAHIA 1940-1970.1

Ana Cláudia da Anunciação dos Santos

RESUMO

A presente pesquisa tem por objetivo compreender como se deram as relações socioculturais das prostitutas sob o discurso da moralidade familiar, apresentado pela sociedade do município de Cachoeira entre as décadas de 1940 e 1970. Com o intuito de responder a problemática a respeito de como se estabeleceram as relações socioculturais das prostitutas, nas décadas de 1940 e 1970, no município de Cachoeira – BA, realizou-se um levantamento bibliográfico sobre a prostituição na História, abordando questões de gênero, o espaço da mulher na sociedade e a sexualidade feminina em meados do século XX. Assim, destacou-se algumas mudanças no cenário sociopolítico, que do ponto de vista do movimento feminista, serviram para pensar as atividades ligadas à prostituição no Brasil. Além disso, realizou-se também uma pesquisa no Arquivo Público Municipal de Cachoeira sobre crimes relacionados à prostituição (no caso, lenocínio), entrevistas com moradores da cidade e clientes daquela época, para assim poder estabelecer uma familiarização com os estereótipos, estigmas e preconceitos vivenciados por essas mulheres de “vida livre”. Palavras-Chave: Prostituição Feminina, Relações socioculturais, Lenocínio.

ABSTRACT

This research aims to understand how to have socio-cultural relations of prostitutes under the discourse of family morality, presented by the waterfall municipal partnership between the 1940s and 1970. In order to respond to problems regarding how settled socio-cultural relations of prostitutes, in the 1940s and 1970s, in the city of Cachoeira - BA, there was a literature on prostitution in history, addressing gender issues, women's space the society and female sexuality in the middle of XX century. Thus, he stood out some changes in the socio-political scenario that of the feminist movement perspective served to think of activities related to prostitution in Brazil. It also took place a search on Waterfall Municipal Public Archives on prostitution-related crimes (in this case, pimping), interviews with city residents and customers of that time, so he could establish a familiarity with the stereotypes, stigma and prejudice experienced by these women "free life". Keywords: Prostitution Women, Socio-cultural relations, Pimping.

1 - Artigo Científico apresentado ao Departamento de Ciências Humanas do Campus V – Santo Antônio de Jesus –, da Universidade do Estado da Bahia, como pré-requisito para a obtenção do título de Licenciada em História.

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Introdução Esta pesquisa intitulada como Mulheres de vida Livre: a prostituição feminina em Cachoeira Bahia entre o período de 1940-1970 tem por objetivo compreender como se deram as relações socioculturais das prostitutas sob o discurso da moralidade familiar apresentado pela sociedade do município de Cachoeira entre as décadas de 1940 e 1970, o período escolhido para recorte, foi motivado pelas fontes encontradas. Nessa perspectiva, a discussão será em torno da opressão de gênero, legislação e vigilância, bem como dos espaços destinados para a prostituição na sociedade.

Durante um trabalho de campo na cidade de Cachoeira, pesquisando sobre a Irmandade da Boa Morte, foi possível perceber que ainda existiam bordeis em atividade na cidade. Os ‘bregas’ fazem parte do imaginário masculino, e a zona também é conhecida por clientes de cidades do recôncavo baiano. Desde então, a pesquisa se desenvolveu por meio de estudos sobre a prostituição em Cachoeira e sobre a existência de publicações de trabalhos acadêmicos sobre o tema na referida cidade que não foram publicados.

Diante da falta de trabalhos publicados em relação à prostituição feminina em

Cachoeira, surgiu o interesse de aprofundar mais na história regional e local, em busca de ter uma reconstrução da memória esquecida de uma sociedade.

O termo “Mulheres livres” é utilizado várias vezes nos processos crimes, entre outros codinomes como ‘mundanas’, ‘mulheres de vida fácil’, ‘raparigas’ e, ‘meretrizes’, para diferenciar ‘mulheres de vida livre’ que são aquelas que tinham liberdade e ‘mulheres de boa família’ que não tinha essa liberdade.

A prostituição é considerada a profissão mais antiga da sociedade, segundo Nickie Roberts (1998) no livro “As prostitutas na História”. Existe registro de prostituição desde 23.000 anos a.C. mesmo quando ainda predominavam sociedades com práticas matriarcais, na qual, as “meretrizes” eram admiradas pela inteligência e cultura, e também associadas a deusas, ou seja, manter relações sexuais com elas era necessário para conseguir poder e respeito. Com tal poder, elas controlavam sua

sexualidade. (p. 12)2.

A historiadora Margareth Rago (1991), publicou o livro “Os Prazeres da noite: Prostituição e códigos em São Paulo (1890-1930)” enfocando uma discussão sobre a prostituição em São Paulo naquele período pesquisado. A autora faz uma abordagem em relação às prostitutas estrangeiras e até mesmo as brasileiras que fingiam ser

estrangeiras, por conta do imaginário masculino3.

Rago (1991) relata sobre a existência das casas onde as prostitutas prestavam serviços como os cafés, as cabanas, os clubes noturnos, entre outros. Naquele

2 ROBERTS, Nickie. As prostitutas na história. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1998.p 12

3 RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991

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período, São Paulo passava a ser uma das cidades economicamente mais ricas do

país, saíam do mundo rural para o industrial urbano4.

Por meio do trabalho de Margareth Rago (1991) é possível perceber a situação das mulheres na historiografia com uma ressalva a várias pesquisas referentes à situação das mulheres na sociedade, assim agregando contribuições grandiosas para a historiografia atual. Contudo, ainda persistem algumas dificuldades acerca desses estudos que gradativamente vem sendo desconstruídas.

Os padrões comportamentais e as relações de gênero que foram construídos em Cachoeira tiveram suas raízes no processo de formação histórica da cidade, estruturado em seu caráter portuário. Os códigos comportamentais que transformaram as prostitutas marginalizadas pelos moradores e as deixaram guardadas na sua caixinha de memórias proibida, ditavam os espaços e as ações dessas mulheres na sociedade.

Mesmo querendo negar a presença das prostitutas, elas tiveram bastante evidência, sobretudo no processo de modernização da cidade, em que algumas casas de prostituição foram fechadas. A prostituição feminina em Cachoeira resiste até hoje, e alguns bregas têm fama.

As dificuldades encontradas para realizar essa pesquisa foram várias, como a escassez de fontes, e o tabu e o receio que algumas pessoas têm em relação à prostituição, assim faz com que essas pessoas não queiram compartilhar de suas memórias.

Para embasamento historiográfico, a pesquisa foi norteada pelas contribuições teóricas das autoras Margareth Rago (1991 e 2005), Joan Scott (1992), Rachel Soihet (1997 e 1998), Mary Del Priore (2011), e Nélia Santana (1996), posto que pesquisam o universo das mulheres no âmbito das ciências sociais, visando compreender a construção da identidade feminina, discutindo questões que permeiam a sexualidade das mulheres e, também, das prostitutas ao longo da história, das relações de violência, paixão, códigos sociais, condutas, solidariedades, entre outros temas.

Para contextualizar, foram utilizadas fonte de processos crimes de lenocínio, processos crimes de estupros e entrevistas orais com o objetivo de mapear a zona de meretrício de Cachoeira, a impressões dos cachoeiranos em torno da presença dos cabarés e das meretrizes. Com entrevistas orais de moradores da cidade que compartilharam suas memórias e muitas vezes, reticentes em falar da zona do meretrício que foram muitos valiosos para o estudo, pois foi elaborado o mapeamento a partir de seus olhares de suas lembranças e indicações.

Para complemento do trabalho foi analisado os processos crimes, encontrados no Arquivo Público Municipal de Cachoeira, no período de 1942 a 1943 e 1962 e também fontes orais para perceber quais foram as situações pelas quais as prostitutas passaram.

As casas de prostituição, na cidade de Cachoeira existem há muitas décadas, e a maioria delas estão situadas em ruas da antiga zona portuária. Os viajantes eram seus principais clientes, ainda no século XIX. Nesse período, a cidade servia como

4 Idem.

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entreposto comercial da Bahia, visto que era o último ponto navegável, depois da Baía de Todos os Santos.

Toda essa movimentação nas ruas que margeiam o rio Paraguaçu contribuiu para a instalação das casas de prostituição, conhecidas na região do Recôncavo baiano como bregas e assim atendiam às necessidades sexuais de moradores e viajantes.

A PROSTITUIÇÃO EM CACHOEIRA

1 Contexto Histórico e Geográfico

Entre as décadas de 1940 e 1970, Cachoeira passava por um processo de desaceleração no desenvolvimento econômico, pois deixaria de ser o principal meio de escoamento das mercadorias. A sua economia era proveniente do porto, que estendia o cultivo de toda região do Recôncavo e também do sertão vindo de Feira de Santana para a capital Salvador.

A “cidade heroica”, como é chamada Cachoeira, devido ao fato de a cidade ter sediado as lutas de independência da Bahia e do Brasil da colônia de Portugal em 1822, está situada no Recôncavo da Bahia a 110Km da capital Salvador, ao redor do Rio Paraguaçu, que é a seu único meio de navegação.

A imagem abaixo retrata o fluxo de pessoas nas mediações do porto:

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Fonte: Arquivo Municipal de Cachoeira

A cidade passou por várias transições econômicas entre o século XVII até início

do século XIX e exerceu um importantíssimo papel na economia baiana, pois se localiza em um local especifico, por onde passava mercadorias vinda do sertão e de toda região do Recôncavo, fazendo dela um entreposto comercial que ligava Feira de Santana e Vilarejos do Recôncavo, e também da cidade vizinha São Félix a Salvador, por meio do transporte marítimo realizado por saveiros e pequenos navios a vapor que atracavam no porto de Cachoeira.

O geógrafo Milton Santos (1998), cita que “Dali partia e chegavam mercadorias

tanto para Salvador como para os vilarejos situados mais a oeste do Recôncavo”5. O

meio mais rápido dessas mercadorias chegarem até a capital era através dos transportes marítimos e o porto mais próximo era o de Nossa Senhora do Rosário da Cachoeira, nome anterior da cidade até se passar a chamar Cachoeira.

Vale ressaltar que no período entre 1940 a 1970 já começava a implantar as primeiras rodovias no país e com isso intensificava-se um declínio da economia, fazendo com que Cachoeira perdesse o título de entreposto comercial para a cidade de Feira de Santana.

Assim, observa-se que através da atividade econômica bastante intensificada durante o os séculos passados, gerou-se muito dinheiro para a cidade aumentando o crescimento urbano, e assim atraindo pessoas de todas as escala sociais e de todas

5 SANTOS, Milton. A rede Urbana do Recôncavo. In BRANDÃO, Maria de Azevedo(org.) Recôncavo da Bahia: Sociedade e economia em Transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; Universidade Federal da Bahia, 1998.p.77.

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as profissões, inclusive a figura da prostituta que se instalava em casas de prostituição os chamados “bregas” no cento da cidade de Cachoeira. E assim, atendiam às necessidades sexuais dos viajantes.

As casas de prostituição na cidade de Cachoeira existem há muitas décadas, sendo os viajantes seus principais clientes, desde o século XIX. Não sabe ao certo quantas casas de prostituição existiam entre 1940 a 1970 na cidade, porém, atualmente a Rua 07 de Setembro, conhecida como a Rua do Brega é uma das zonas mais antigas, situada ao lado do antigo porto, localizada no centro da cidade, próximo ao cinema e ao arquivo municipal. Hoje existem dois bregas em funcionamento nesta rua, sendo o mais famoso o “Brega de Cabeluda” que já existe há quase 50 anos.

A PROSTITUIÇÃO NA HISTÓRIA

2 Contextualizando a Prostituição

Segundo Souza (2014), a prostituição só se tornou tema de análise histórica no

Brasil a partir da década de 19806, quando surgiu a possibilidade de estudos

embasados nas abordagens da Nova História Cultural7.

A prostituição pode ser definida como a troca consciente de favores sexuais, por interesses não sentimentais, afetivos ou por prazer. Apesar de a prostituição consistir numa relação de troca entre o sexo e dinheiro, isso não é uma regra, pois se podem trocar relações sexuais por favorecimento profissional e por bens materiais.

Na Idade Média, a prostituição era vista como um “mal necessário”, pois servia para acalmar os instintos masculinos, evitando algo pior. Jeffrey Richards (1993) em seus estudos sobre as minorias no período medieval aborda o vínculo entre a prostituição e a sociedade naquele período. As prostitutas estavam em toda parte e era raro uma cidade que não tivesse sua “boa casa”, como às vezes se referiam ao bordel. No século XV, havia de cinco a seis mil prostitutas em Paris para uma população de 200 mil pessoas; em Dijon, em uma população de 10 mil, foram

identificadas 100 prostitutas8.

A prostituição está presente no Brasil desde os primórdios, isto é, desde a época do descobrimento, sendo notada a prática entre os indígenas (RAMINELLI, 2008 apud RISSIO). No período colonial, houve um aumento no número de registros históricos sobre a existência dessa atividade.

6 SOUZA, Hercília Maria de Andrade. Nos territórios da sedução, violência e prazeres proibidos: a prostituição em Ingá – PB (1940-1960). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Estadual da Paraíba, Centro de Educação, 2014. P 10. 7 A chamada História Cultural é uma nova linha de pesquisa que se difere da História dedicada a estudar as artes, a literatura, a filosofia, deve ser encarada como a Nova História Cultural, que não descarta as expressões culturais das classes sociais elevadas, mais prioriza a construção histórica a partir das manifestações das massas anônimas, por aquilo que é considerado popular. Leia mais em:http://www.webartigos.com/artigos/a-nova-historia-cultural/27489/#ixzz3pv37NJFP 8 RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação. Jorge Zahar Editor, 1993.

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Autores citados por Rissio (2011) afirmam que as prostitutas se vestiam muito bem, sendo brancas ou negras. Além disso, nos locais de mineração, a prostituição era como um complemento ao comércio ambulante, mesmo que combatida pelas autoridades em Minas Gerais. Dessa forma, a prostituição era tolerada, desde que

fosse praticada nos locais e nos moldes determinados pelas autoridades policiais9.

De acordo com Rago (1985, apud SOUZA, 2014), a prostituição é marcada pelo discurso médico e criminológico da nova república como um “vício” que deve ser controlado. Assim, criou-se um projeto que regulamentaria a prática com a finalidade de disciplinar a prostituição impedindo que “formas aberrantes” de comportamento

sexual se manifestassem, além de servir para combater a prostituição clandestina10.

Segundo Rago (2005) no que se referia às prostitutas, havia por parte dos especialistas, muita preocupação em discipliná-las. O chamado regulamento provisório às meretrizes de 1897 era destinado a controlar o exercício de sua profissão, estabelecia entre outros pontos:

a) Que não são permitidos os hotéis ou conventilhos, podendo as mulheres

públicas viver unicamente em domicílio particular, em número nunca excedente a três; b) as janelas de suas casas deverão ser guarnecidas, por dentro, de cortinas duplas e, por fora, de persianas; c) não é permitido

b) chamar ou provocar os transeuntes por gestos ou palavras e entabular conversação com os mesmos; d) das 6hs da tarde às 6hs da manhã nos meses de Abril e Setembro, inclusive, e das 7hs da tarde às 7hs da manhã nos demais, deverão ter as persianas fechadas, de modo aos transeuntes não devassarem o interior das casas, não lhes sendo permitido conservarem-se às portas; e) deverão guardar toda decência no trajar uma vez que se apresentem às janelas ou saiam à rua, para o que deverão usar de vestuários que resguardem completamente o corpo e o busto; f) nos teatros e divertimentos públicos que frequentarem deverão guardar todo o recato, não lhes sendo permitido entabular conversação com homens nos corredores ou nos lugares que possam ser observados pelo público. (RAGO, 2005, p. 99-100)

Segundo Schmidt (1998; p.1460), tratava-se, pois, de ocultar estas “messalinas” dos olhares das “famílias de bem”, evitando a degeneração do “corpo social”, segundo as metáforas organicistas da época. Através desse regulamento, criou-se um ideal de prostituição, refletindo o contexto socioeconômico que caracterizava o início do século XX, e dessa forma, a prática da prostituição deveria ser exercida de maneira disciplinada em bordeis registrados na polícia, sob vigilância

9 RISSIO, Isabela Pesce Storolli. A prostituição no Brasil: trabalho, silêncio e marginalização. Monografia (Graduação em Direito) Universidade Federal do Paraná - Curitiba, 2011. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/31569/1534%20ISABELA%20PESCE%20STOROLLI%20RISSIO.pdf?sequence=1&isAllowed=y 10 RAGO, Margareth. Amores lícitos e ilícitos na modernidade paulistana ou no Bordel de madamme Pommèry Pesquisa. Revista Teoria &, n. 47, jul/dez. de 2005.

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das autoridades sanitárias, e, além disso, estarem situados longe de escolas, internatos e bairros residenciais11.

Segundo Nélia Santana (1996), os valores e ideias acerca da segurança e moralidade pública apontavam a prostituição como fenômeno que poderia por em risco a estabilidade da família no momento em que os cafés, restaurante, teatros entre outros espaços, mudaram o cotidiano das mulheres das camadas alta e média da sociedade, contribuindo para ampliação de novos espaços de sociabilidade12.

De acordo com autora, é no período republicano que certo grupo de mulheres se destaca no âmbito da vida pública. Tal repercussão poderia ser responsável por uma definição mais clara das identidades da mulher “honesta” e da prostituta.

Carvalho (2000; p. 89) ressalta que ao longo da história, a prostituição foi tomando novas formas e se alterando de acordo com o contexto social, político e religioso que estava inserida, passando por vários estágios. No primeiro momento, é vista como sagrada, no segundo sendo gerenciada pelo Estado e no terceiro período sendo repudiada e atacada pela igreja católica em nome da moral e dos bons costumes, depois passa por uma fase de tolerância como algo necessário que cumpriria o papel de preservar a virgindade da moça de família13.

Assim, a prostituição no estado da Bahia, como em outras partes do Brasil, tem uma relação com a condição socioeconômica das mulheres decorrentes das mudanças provocadas pelo início da industrialização do país. Outro fator importante a ser considerado era a influência da Igreja e do poder médico nas questões políticas. Segundo Santana (1996), em Salvador no período do século XIX e início do século XX, um grupo dominante da sociedade exaltava a ligação entre casamento e procriação, ou seja, as relações sexuais no casamento não davam lugar a uma sexualidade mais erotizada, ficando isso a cargo das meretrizes.

Santana (1996; p.5) disse que Salvador, com seu caráter comercial e portuário apresentava-se também como um espaço privilegiado para a profissionalização dessa atividade, constituindo-se em mais uma alternativa remunerada para o grande

contingente de mulheres pobres14. Na cidade de Cachoeira não foi diferente, o

município passou por grandes mudanças no início do século XX, sobretudo no contexto do pós-abolição que o país estava inserido, e com isso aumentou o número de mulheres negras e pobres nas ruas da cidade. A maioria delas não tinha como se sustentar, assim algumas tiveram que se prostituir para sobreviver.

11 SCHMIDT, Benito Bisso. “Companheiras!”: as mulheres e o movimento operário brasileiro (1889 – 1930).Curitiba: casa de Collon, 1998. Disponívelem:http://coloquioscanariasamerica.casadecolon.com/index.php/CHCA/article/viewFile/8233/7293 Acessado em: 06 Jul. 2015. p 1460. 12 SANTANA, Nélia de. A prostituição feminina em Salvador (1900-1940). Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Salvador, 1996. 13 CARVALHO, Silvia Barbosa de. As virtudes do pecado: narrativas de mulheres a "fazer a vida no centro da Cidade". [Mestrado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2000. p. 89 14 SANTANA, Nélia de. A prostituição feminina em Salvador (1900-1940). Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Salvador, 1996. P.5.

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Segundo Walter Fraga (2006; p. 368), foi o período pós-abolição que propiciou um novo momento da sociedade brasileira. Muitos ex-escravos tiveram que se organizar para poder sobreviver ou teriam que voltar a trabalhar nos seus antigos empregos nos engenhos de açúcar. Entre esses ex-escravos estavam as mulheres negras que além de sofrerem com a descriminação racial ainda sofriam por serem do sexo feminino, algumas delas migraram para o trabalho doméstico e outras para a prostituição, pois haviam as que se vendiam pela prostituição e também as que se vendiam pelo casamento, a única diferença consiste no preço e na duração do

contrato"15.

A inserção dos ex-escravos no meio urbano, especialmente, em Cachoeiras, São Félix e Salvador foi um dos caminhos percorridos pelos libertos para sobreviver e encaminhar a vida. “Para além dos temores das elites e das preocupações repressivas das autoridades policiais, é necessário pensar a

movimentação geográfica do período a partir dos referenciais dos libertos”,16.

Na cidade de Candeias, a construção da refinaria e a exploração petrolífera

atraiu mão-de-obra especializada e emergencial, sobretudo masculina. Os trabalhadores da região sobreviviam, em sua maioria, das atividades agrícolas. Assim, foi necessário que homens de outros lugares do país migrassem para a cidade. Muitos solteiros ou casados desacompanhados das mulheres fizeram da zona do meretrício um lugar para diversão e entretenimento. Esses homens petroleiros eram vistos como

os “novos ricos”17.

2.1 A Questão da Mulher e a Sexualidade

Conforme Vânia Vasconcelos (2006; p. 23), a representação da mulher ao longo da história esteve pautada na ideia de dicotômica de “frágil ou forte, vítima ou culpada, santa ou pecadora”. Ainda de acordo com a autora “a mulher apareceu na história através do olhar masculino, sendo a figura Eva e Maria a principal referência simbólica

dessa oposição”18. Ou seja, a figura de Eva, a mulher que caiu em tentação, é expulsa,

15 FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade. História de escravos e libertos na Bahia (1870-

1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006.p368 16 Idem e Ibidem. 17 NASCIMENTO, Daniela Nunes do; VANIN, Iole Macedo. O silêncio nas fontes: histórias, relações de gênero e oralidade sobre prostituição em Candeias/BA/Brasil (1949-1964). XI Encontro Nacional de História Oral. Rio de Janeiro, 10-13 de julho de 2012. Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – IFSC – IH. Disponível em: http://www.encontro2012.historiaoral.org.br/resources/anais/3/1340385989_ARQUIVO_ArtigoencontrohistoriaoralDanielaNunesdoNascimentoeIoleMacedoVanin.pdf. 18 VASCONCELOS, Vânia Nara Pereira. Evas e Marias em Serrolândia: práticas e representações sobre as mulheres em uma cidade do interior (1960-1990). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2006. p. 23.

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segundo a tradição bíblica do paraíso, levando o pecado original como herança aos seus descendentes. Ela representa a desobediência, o pecado e a culpa, o corpo dominado pelos desígnios da paixão, do prazer, transformando-a numa ameaça, responsável pelos pecados do homem. Sobretudo, destaca-se a mulher como a principal culpada, a desgraça do sexo masculino é proveniente do sexo feminino.

De acordo com essa visão, a mulher destinada ao casamento e à maternidade não poderia procurar prazer na relação sexual. RAGO (1985 apud SOUZA, 2014; p.14) afirma que tal situação justifica os desvios matrimoniais dos homens que ao buscar afirmar sua virilidade utilizavam as prostitutas, uma vez que poderiam satisfazer seus desejos sexuais e continuar com suas esposas, nesse sentido, as

prostitutas habitam o imaginário de quase todos os homens19.

A diferença sexual é colocada como oposição “natureza ou cultura, biologia ou socialização”. A dicotomia segue a ideia de polo dominante ao dominado. Romper a dicotomia poderá abalar o caráter heterossexual que abalaria o conceito de gênero. “A construção do gênero se faz da desconstrução do mesmo”. Isso remete a ideia que identidade de gênero está continuadamente se transformando para atender a relação

de homens e mulheres para a continuação de gênero20.

Segundo Rachel Soihet (1997), houve uma grande reviravolta da história nas últimas décadas, pois começaram a serem desenvolvidos vários estudos sobre grupos sociais que eram excluídos da historiografia e com isso, obteve contribuições para o

desenvolvimento de estudos sobre as mulheres21.

Fundamental nesse processo foi o interesse da história cultural, que lançava os seus estudos preocupada com as identidades coletivas de vários grupos sociais: os operários, camponeses, escravos e as pessoas comuns. Neste contexto, as mulheres também se tornaram objeto de pesquisa, isto é, o sujeito da história.

Outro fator que acabou contribuindo para esses novos estudos foi a onda dos movimentos feministas ocorridos a partir da década de 1960 que desencadeou no surgimento da história das mulheres. A emergência da história das mulheres como um campo de estudo não só acompanhou as campanhas feministas como envolveu a expansão dos limites da história.

Joan Scott (1997) enfatiza a importância das contribuições recíprocas entre a história das mulheres e o movimento feminista. Alguns historiadores sociais, por exemplo, já superaram a ideia de que as “mulheres” eram uma categoria homogênea. A fragmentação de uma ideia universal de “mulheres” por classe, raça, etnia e sexualidade associava-se às diferenças políticas que seriam o seio dos movimentos feministas. Assim, a ideia de “mulheres” como uma identidade única passou a ser

representada como múltiplas identidades22.

19 RAGO 1985 apud SOUZA, 2014.p14 20 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e Educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ. Ed Vozes, 1997.p 20 e 21. 21 SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história ensaios de teorias e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 22 SCOTT, Joan. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história ensaios de teorias e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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Rachel Soihet (1997 in VASCONCELOS, 2006) ressalta também a questão de gênero. Segundo a autora, o conceito gênero tem sido utilizado desde a década de 1970 para teorizar a questão da diferença sexual. Inicialmente foi bastante utilizado pelas feministas americanas, pois queriam insistir no caráter social das mulheres

baseando-as no sexo23.

A palavra gênero indica uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”. Cabe salientar que esse termo foi usado por pessoas que acreditaram que as pesquisas sobre as mulheres transformariam fundamentalmente alguns paradigmas. Para Joan Scott:

“Gênero” foi um termo usado para teorizar a questão da diferença sexual. [...] Embora os usos sociológicos de “gênero” possam incorporar tônicas funcionalistas ou essencialistas, as feministas escolheram enfatizar as conotações sociais de gênero em contraste com as conotações físicas de

sexo. (Scott 1992 p. 86) 24

Alguns estudos preocuparam-se em articular a questão do gênero com a classe

social e a raça das mulheres. Outro aspecto dos estudos de gênero reside na rejeição da discussão em torno do masculino versus feminino.

Soihet (1997) enfatiza que as pesquisas sobre a ação e luta das mulheres configuravam-se em duas vertentes. A primeira seria a preocupação com os movimentos organizados visando à conquista da cidadania, isto é, os movimentos feministas, outra seriam as manifestações informais que expressam de diferentes

formas de intervenção nas atuações femininas.25

Observam-se vários estudos sobre a história das mulheres na historiografia, sobretudo a classe de mulheres trabalhadoras na inserção da mulher no meio industrial. Outros estudos vêm mostrando que os modos de produção não determinam automaticamente uma transformação nos padrões familiares.

Soihet (1997) ressalta que outras pesquisas sobre a maternidade revelam as várias transformações na historiografia. A maternidade feminina simbolizava nos males provocados na sua recusa. A autora cita os trabalhos da pesquisadora Simone de Beauvoir sobre a veneração generalizada da maternidade, e alerta para os perigos que estreitam os filhos a partir das crenças da exemplaridade de toda mãe que, na

maioria das vezes, procura compensar as suas frustrações26.

Diante disso, a autora aborda também a questão da mulher e sexualidade na década do ressurgimento do movimento feminista e da consolidação da história das

23 VASCONCELOS, Vânia Nara Pereira. Evas e Marias em Serrolândia: práticas e representações sobre as mulheres em uma cidade do interior (1960-1990). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2006. 24 SCOTT, Joan. “Histórias das Mulheres”. In: BURKE, Petter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992. P 86. 25 SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história ensaios de teorias e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 26 Idem

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mulheres. Dentre os estudos sobre a sexualidade, cabe ressaltar a abordagem sobre relações homossexuais femininas. Algumas pesquisadoras falam dos movimentos de libertação das lésbicas. Rachel Soihet faz uma ressalva em relação a escassez de vestígios sobre o passado das mulheres produzidas por elas mesmas, e isso se constitui em um dos grandes problemas enfrentados pelos historiadores.

2.2 O Olhar da Sociedade: a estigmatização

Desde o século XIX, as noções de modernidade, salubridade, progresso passaram a compor o imaginário e os discursos de grupos da elite e tornaram-se base teórica para alguns projetos sociais. Essas noções eram oriundas da Europa e sua emergência foi motivada pelo fato de as principais cidades europeias terem sofrido um processo crescente de urbanização, tendo como consequência o crescimento da população e da pobreza, o que ocasionou um aumento da criminalidade, surtos epidêmicos, expansão da prostituição, ameaças e explosão de revoltas.

Deste conjunto de fatores surgiu a necessidade de redefinição da ordem no Brasil no início do século XX, traduzindo-se na reordenação do espaço público por parte de autoridades civis, policiais e sanitárias. Muitos recursos de caráter político, econômico, sanitário e urbanístico foram acionados com o objetivo de fazer uma cidade com ruas controladas e higienizadas. De acordo com Rago (2005):

Preocupados com a moralização das condutas sociais, com a preservação da família e do casamento, os médicos elegeram a prostituição como um fantasma que ameaçava desestabilizar as instituições e os valores sociais. A crescente atenção que passaram a devotar aos amores ilícitos, desde meados do século XIX, assim como sua preocupação com a necessidade de definir rigorosamente as fronteiras entre as práticas sexuais permitidas das proibidas, entre as figuras da mulher honesta e da degenerada-nata, segundo a terminologia lombrosiana, atestam menos um interesse em promover melhores condições de vida para as meretrizes exploradas, do que uma preocupação obsessiva com a definição dos códigos modernos da

sexualidade. (RAGO, 2005)27

Com base nos estudos sobre sexualidade e família da historiadora Mary Del

Priore (2011), destaca-se algumas mudanças no comportamento da sociedade, pautada na modernização. A autora dá boas contribuições sobre a prostituição, apesar de não ser o objeto de sua pesquisa (p. 121).

Segundo a autora, durante o Estado Novo, Getúlio Vargas selou um “pacto moral” com a igreja que se tornaria uma grande aliada na consolidação de uma ética cristã baseada na valorização da família, do bom comportamento, do trabalho e da obediência ao Estado.

27 RAGO, Margareth. Amores lícitos e ilícitos na modernidade paulistana ou no Bordel de madamme Pommèry. Revista Teoria & Pesquisa, n. 47, jul/dez. de 2005.

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Essa nova aliança se deu graças ao apoio de cardeais28 e provocou algumas

mudanças sociais e culturais na sociedade brasileira do século XX, principalmente no lado religioso em que ditava o comportamento da sociedade e principalmente das mulheres. Nesse período, surgiu o movimento “casa ou larga” que incentivava as classes subalternas, nas cidades ou no interior, a contrair o matrimônio na Igreja. Foi o momento que houve uma grande valorização da virgindade da mulher, pois sua reputação social se media exclusivamente pela capacidade de resistir aos avanços

masculinos29.

Por outro lado, avesso das “puras”, estavam as “mundanas” e “artificiais” que eram sinal de problema. Festas e bailes sem medidas, a frequentação de lugares fechados, a promiscuidade de contatos físicos ou a excessiva “coqueteria” feminina horrorizavam os médicos higienistas que ficaram preocupados com uma nova percepção dos corpos voltada para a vida ao ar livre, natural e saudável.

As mundanas, que faziam o possível e impossível para atrair atenções eram alvo de recriminações vindas de todos os lados.

A autora ressalta que no Estado Novo valorizou-se a ideia de coesão necessária para fortalecer a pátria. Esse apelo implicava na definição de um modelo de família que expurgaria todas as ameaças à ordem: imoralidade, sensualidade e indolência. A população suspeita de incorrer nesses “delitos” sofria repreensões. O

papel da mulher não era na rua trabalhando, era em casa cuidando dos filhos.30

Nos anos 70, auge do governo militar, gemidos e sussurros nos porões da ditadura, os dos presos políticos. No escurinho das salas de cinema, os dos amantes. Era a explosão das pornochanchadas. As chanchadas dos anos 40 e 50 e a influência das comédias italianas abriram o caminho do gênero fabricado, inicialmente, na boca

do lixo, zona da prostituição da cidade de São Paulo. 31

Na Rua do Triunfo, conhecida como Hollywood doméstica, foi instalada uma indústria que respondia por 40% dos filmes nacionais nessa época, em média de noventa filmes populares de baixíssima ou péssima qualidade conceitual, formal e cultural, caracterizados por cenas de nudez e diálogos mesclados de pornofonia e

humor escatológico32.

Em Cachoeira, os filmes também chamavam a atenção da população, tanto que o cinema virou alvo de investigação, pois, segundo a denúncia que consta no processo de lenocínio que será utilizado no decorrer dessa pesquisa, era um local visto como coito de molequeira.

[...] Termino pedindo a V. Exia, o que mande averiguar se é ou não verdade. Pois fico certo da boa moral de V. Exia, o cinema desta cidade é o coito da

28 Del Priore, Mary Del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.p 121 29 Idem 30 Idem, p.144 31 Idem, p.186 32 Idem,p.186.

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molequeira sem que leva as famílias mereçam conceito algum. O secreta escolhido e desconhecido da cidade. Virá bem instruído pelo seu caminho

seguido, que estou certo que encontrará a verdadeira informação[...]33

Maria Odila (1995) em seus estudos sobre a cidade de São Paulo no século

XIX ressalta que um dos fatores contribuintes para a inserção da mulher no trabalho foi o comércio, pois era voltado para a exportação, que com os seus lucros contribuiu pouco para a cidade e com isso ocasionou no aumento da pobreza.

As mulheres enquadravam-se dentro dessa realidade, assim como os demais elementos sociais sofriam com aquela realidade “essas mulheres pobres, sós ou chefes de famílias” precisavam de uma forma de trabalho para conseguir o seu próprio sustento e dos seus dependentes. A solução era optar por trabalhos ambulantes como: quitandeiras, vendedoras de tabuleiros, lavadeiras, artesãs, entre outras profissões consideradas de âmbito feminino,

assim, elas eram desvalorizadas pela sociedade da época. 34

Através dessa atividade econômica, gerou-se muito dinheiro para a cidade, contribuindo para o aumentou do crescimento urbano, e assim atraia pessoas de todas as escalas sociais e de todas as profissões, e com elas a figura das prostitutas que se instalavam em casas de prostituição, os chamados “cabarés”, nesse meio que se destacaram.

Autores citados por Santana (1996) argumentaram sobre a prostituição em Salvador que:

A prostituição não se devia apenas por causa da questão econômica, afirmando que obedece a uma “forma degenerativa do organismo feminino”. Esta interpretação concebia a meretriz como pessoa anormal, que comandava outra maneira de explicar a existência da prostituição. Assim, a prostituta era vista como degenerada, portadora de debilidade mental, associada a uma configuração orgânica patológica. Somando-se a essa explicação a visão da mulher como inferior física e mentalmente, em especial

a prostituta. 35

Nesse contexto, os motivos para a prostituição feminina, de acordo com

Santana, estavam associados à condição econômica, tratando-as como vítimas, ou a anormalidade dessas mulheres, julgadas como portadoras de uma personalidade doentia, sendo também uma forma de vitimizá-las. Partindo desse aspecto, Duarte (2010) diz que a prostituição era vista como uma forma de subsistência, uma vez que

33 Arquivo Municipal de Cachoeira. Processo crime de lenocínio de 1942. 34 DIAS, Maria Odila da Silva. Quotidiano e poder em S. Paulo no século XIX: São Paulo: Brasiliense, 1995. 35 SANTANA, Nélia de. A prostituição feminina em Salvador (1900-1940). Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Salvador, 1996.p.5-6.

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a grande maioria das mulheres envolvidas nessa atividade era pobre e o mercado de

trabalho para a mulher era restrito e igualmente concorrido.36

Em Cachoeira, a maioria das mulheres que se enveredavam para o caminho da prostituição era de outras cidades da Bahia e tinham motivações variadas, além das condições sociais, conforme a entrevista realizada em outubro de 2014, na qual, o senhor Otílio disse que “As meninas eram todas de fora, daqui naquela época era

difícil, vinha muito era do sertão, Itabuna, Feira de Santana”37.

Para Rodrigues (2004), o Código Penal Brasileiro instituído pelo decreto Lei n. 2848, de 7 de dezembro de 1940 e que ainda vigora, não trata a prostituição como crime. A regulamentação que conduz o sistema de justiça criminal criminaliza somente as atividades correlacionadas à prostituição. Da mesma forma como nos códigos anteriores, a prática da prostituição em si não é considerada crime. Com isso, as atividades categorizadas como crime, pela perspectiva do Código Penal, institui ao sistema de justiça criminal, e principalmente à polícia o papel de destaque no

enfrentamento da questão38.

No Brasil, de acordo o antigo Código Penal, a prostituição era associada à contravenção, porém, a partir de 1942, a prostituta passou a ser vista como vítima, pois era coagida por outra pessoa que a explora e lucra com a profissional do sexo.

O lenocínio, ato que consiste em explorar, provocar ou facilitar a prostituição ou corrupção de qualquer pessoa, haja ou não mediação direta ou intuito de lucro, é categorizado no Código Penal como crime contra os costumes. O Título VI, que é dedicado a essa categoria criminal e inclui o Capítulo V – Do lenocínio e do tráfico de mulheres, e capítulos dedicados aos Crimes contra a liberdade sexual.

TÍTULO VI: Dos crimes contra os costumes. CAPÍTULO I: DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL: Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude: Pena – reclusão, de um a três anos. Parágrafo único. Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze anos: Pena – reclusão, de dois a seis anos. Atentado ao pudor mediante fraude. Art. 216. Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso

diverso da conjunção carnal: Pena – reclusão, de um a dois anos.39

36 Idem 37 Entrevista do senhor Otílio em 20/10/14 38 RODRIGUES, Marlene Teixeira O Sistema de Justiça Criminal e a prostituição no Brasil contemporâneo: administração de conflitos, discriminação e exclusão. Sociedade e Estado, Brasilia, v. 19, n. 1, p. 151-172, Jan/Jun. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/se/v19n1/v19n1a07.pdf Acessado em: 09.07.2015. 39 CÓDIGO PENAL BRASILEIRO – Legislação Informatizada: Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de Dezembro de 1940 – Publicação Original. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-publicacaooriginal-1-pe.html Acessado em: 09 Jul. 2015

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Vale ressaltar, conforme Rodrigues, que mesmo os artigos não fazendo uma referência direta à prostituição ou ao lenocínio, atingem as mulheres que se prostituem quando colocam como pré-condição para qualificação do crime o fato de a mulher ser “honesta” e não levar “vida dissoluta”.

2.3 Opressão e Vigilância da Prostituição em Cachoeira – BA

A busca por processos crimes envolvendo a questão da prostituição, esbarrou num obstáculo que é a escassez de fontes, sendo encontrados apenas dois processos

crime da década de 1940. O primeiro se refere ao Despacho ao DCA40 para designar

um delegado especial para instaurar inquérito de lenocínio contra elementos perniciosos.

O segundo processo pedido foi realizado no dia 06 de Maio de 1942, emitido para o Exmo. Sr. Dr. Pedral Sampaio, então Secretário de Segurança da Bahia. O conteúdo do pedido expressava abertamente que a investigação secreta era de interesse da boa moral, posto que o comportamento de mulheres de vida livre colocavam em questão os valores da família e da sociedade, o que para o denunciante implicava na quebra de costumes da sociedade de Cachoeira da época.

Atenciosas saudações. Venho pelo presente recorrer da nobre autoridade que V. Exia., que fico certo que serei atendido. Vejo de grande feito a bem da moral que V.Exia., mande para esta cidade desprezada uma secreta para averiguar a verdade, que muito vem se passando com grande afronta a parte familiar e a sociedade pela liberdade que dispõem as mulheres de vida livre nesta terra, já não querendo falar rua mais escura, aqui no jardim em frente ao cinema é o lugar de maior frequência das famílias, pois é aqui mesmo ficam as mundanas e especialmente no passeio da pensão Marieta, tem uma permanente que fica das sete as onze da noite, coberta por uma preta ganhadeira de nome Maria, é a mundana Isaura, tomando deboche com os viajantes da pensão e outros que vão chegando, isto sem receio nenhum, também no mesmo local tem o prédio Teixeira de Freitas que é digno de melhor sorte e este que serve de coito das mundanas apoiadas pelo delegado. Termino pedindo a V. Exia, o que mande averiguar se é ou não verdade. Pois fico certo da boa moral de V. Exia, o cinema desta cidade é o coito da molequeira sem que leva as famílias mereçam conceito algum. O secreta escolhido e desconhecido da cidade. Virá bem instruído pelo seu caminho seguido, que estou certo que encontrará a verdadeira informação, pelo caminho indicado como subida estima a V. Exia. A moral Despacho: A Diretoria de investigações a para designar um elemento a fim de fazer uma

sindicância reservada em Cachoeira. BA. 22/5/1942.41

Em um discurso pautado na defesa da moral da familiar da cidade de

Cachoeira, observa-se que o denunciante afirma que esse fato é uma “afronta a parte familiar e a sociedade”, pois para ele as “mundanas” causavam uma desordem na sociedade local e era um afrontamento para as famílias. Segundo o autor dessa denúncia anônima, as mulheres de vida livre dispunham de uma “liberdade”. Essa

40 Não foi encontrada a tradução da referida sigla. 41 Arquivo Municipal de Cachoeira. Processo crime de lenocínio de 1942.

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liberdade era pelo fato das mulheres de vida livre perambular pelas ruas durante o dia, pois existia uma lei local que só permitia que elas saíssem nas ruas durante o período da noite.

Em resposta a esse pedido, foi realizada uma sindicância secreta no município de Cachoeira com o intuito de averiguar se realmente o local indicado na carta anônima funcionava como casa de raparigas ou cabaré. O relatório da sindicância foi enviado ao encarregado pela captura e vigilância da Secretaria de Segurança. O documento citava outras localizações que funcionavam como cabaré, mas não encontrou nenhuma evidência no local mencionado no pedido ao secretário de segurança.

Percebe-se que no discurso anterior do anônimo na carta mencionou-se que a cidade era “desprezada”. Por meio do discurso abaixo, se refere à questão policial, pois afirma em sua carta que o delegado local protegia o proprietário do cabaré, Artur Durval e também que o delegado era proprietário do cinema que foi uns dos locais sugeridos pelo anônimo para serem investigados.

Ao senhor encarregado da secção de capturas e vigilância. Em cumprimento a Vossa determinação viajei para a cidade de Cachoeira a fim de fazer uma sindicância discreta, em torno de uma denuncia em carta anônima, dirigida ao Exmo. Sr. Dr. Secretario de Segurança. Cumprindo a determinação acima tenho a expôr o seguinte: que as minhas diligências, verifiquei que definitivamente, tem fundamentos a referida denuncia, que na Rua 7 de Setembro tem uma pensão de raparigas de propriedade do Sr. Antenor de Tal, que é administrada por uma rapariga de nome Maria a onde existem as maiores depravações e ao mesmo tempo servindo de acoito. Acresce mais na Rua do Caquende, zona familiar, funciona aos sábados e domingos um “Cabaret” de raparigas de “baixa esfera” de propriedade do Sr. Artur Durval, que constantemente registra ali barulhos ao ponto de surgir facadas e tiros. O Artur é proprietário do citado “cabaret” é pessoa protegida da autoridade localidade. As raparigas fazem do largo Teixeira de Freitas ponto predileto de seus deboches, onde é localizada a pensão de Marieta e o cinema que é propriedade do Sr. Delegado. Ainda na Rua 7 de Setembro, n. 30, existe uma pensão de raparigas de uma tal Odocha, e serve também para encontros amorosos clandestinos. No coração da cidade, estão localizadas as ruas de nomes Caés de Maria Alves e Beco de Tavares, que são pontos ocupados pelas mundanas. Quanto ao prédio Teixeira de Freitas, nada apurei que denunciasse ser ali um casa de raparigas, mas sim uma pensão familiar de nome Santo Antonio. Bahia 1º de junho de 1942. A) Antonio Crispiniano

Santos INV. 133 – confere com o original, Bahia 18 de junho de 1942.42

O segundo registro encontrado foi um processo contra o crime de lenocínio, de

1943. O processo foi movido por um homem desconhecido contra Antenor e Eudoxia, dona de um bar, suspeita de explorar outras mulheres, aliciando-as para prostituição.

Processo crime. CRIME DE LENOCINIO de 1943. Contra Antenor de Tal e Eudoxia Maria da Silva. Álvaro Ramos Batista 2ª testemunha. Brasileiro, casado com trinta e quatro ãnos de idade, filho de Euclides da Silva Batista e de Maria Domintila Ramos Batista, conviveram residente nesta mesma

42 Arquivo Municipal de Cachoeira. Processo crime de lenocínio de 1942.

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cidade, na Rua Treze de Maio, número vinte e um. Aos costumes disse nada. Compromissada na forma da lei, prometeu dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado. Sendo inquerido sôbre o fato constante no presente inquérito, disse que reside nesta cidade há sete ãnos, onde é estabelecido com um bar, à Praça Teixeira de Freitas cujo local tem sido alvo das acusações que acaba de ouvir, as quais a testemunha acha não serem bem fundamentadas; que afetivamente as mulheres de vida livre preambulam pela praça já citada e ruas adjacentes, isto depois das vinte e três horas quando já as famílias se acham recolhidas, que as mesmas se portam de maneira conveniente e durante o tempo que é estabelecido, ainda não vir nem soube de atos praticados pelas mesmas que pertubaram a ordem e a moral das famílias, que o policiamento feito pelo Delegado de polícia local é eficiente, não deixando vasa para comentário que conhece as indiciadas presentes, Julia Milton e Maria do Carmo, pois as mesmas ficam estacionadas nas mediações da pensão de Marieta vendendo doces e frutas etc... em taboleiros, sendo duas senhoras de idade avançadas e de respeito, que enquanto as denuncias feitas aos indiciados Aparício Cordim e Artur Durval da Silva, são mal cabidas, que o primeiro tem uma casa que aluga cômodos às raparigas vendendo também comida, limitando-se receber os alugueis e o dinheiro da comida fornecidas mesmas, que de referencia ao segundo era proprietário de um cabaré que funcionava com as mulheres de vida fácil, dentro das boas normas que tanto como um como o outro tem bom procedimento, não vivem explorando mulher alguma e nas suas casas nunca se ouviu falar que fosse praticada casos de desordem na moral policial, que quanto a Eudoxia Silva que é pessoa do seu conhecimento é que tem uma pensãozinha para as pessoas que se acham em transito por esta cidade, ainda não ouvir falar que a casa da mesma servisse de coito para qualquer qualidade de mulheres e que a mesma vive de seu trabalho. Nada a mais lhe

foi perguntado.43

Em ambos os documentos, a conduta das prostitutas, principalmente no que se

refere aos horários em que estas “preambulam” pelas praças e jardins e para os denunciantes, significa uma afronta à moral e bons costumes das famílias e da sociedade cachoeirana. Alega-se uma desordem na sociedade, pois nesses lugares (cabarés, pensões e bares) ouvem-se barulhos, e é comum ocorrem facadas e tiros. Também são tratadas por mundanas as mulheres de vida livre ou vida fácil, raparigas. Há suspeitas de que tais lugares que recebem proteção da polícia são apoiados pelo delegado.

O terceiro registo é de 1962, diz respeito a uma acusação de estupro de Maria Izabel, no qual a “meretriz”, Dalva Maria da Piedade foi chamada para testemunhar. Um fato que não era muito peculiar, pois as prostitutas não eram bem vistas pela sociedade, em alguns casos as prostitutas eram sempre as culpadas.

Dalva Maria da Piedade (Meretriz) de Bom Jesus da Lapa. Mora em Cachoeira, nasceu em 1940. É analfabeta e cor parda, afirma ser católica, profissão doméstica e de classe pobre. Depoente no crime de estrupo de Maria Izabel, que acusa Valdé Alves. Dalva relatou que conhece Valdé Alves a poucos dias, o juiz (...) perguntou se a testemunha sofreu alguma consequência do acusado. Respondeu afirmativamente; que de certa feita

43 Arquivo Municipal de Cachoeira. Processo crime de lenocínio de 1942.

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pediu ao acusado a quantia de quinze cruzeiros, pois a depoente estava grávida e não podia “receber” nenhum homem e estava passando fome. Foi atendida pelo acusado, que logo em seguida quis dormir e têr relações sexuais com a depoente que recusou a oferta, e então êle o acusado, já no quarto da depoente deu-lhe uma sorra tâo violenta que no outro dia, vinte e quatro de fevereiro do corrente ano, abortou um “menino” de sexo feminino, completamente deformado e roxo, vítima das pancadas que sofrera do acusado. Perguntaram a depoente porque a depoente não trouxe o fato ao conhecimento da polícia? Respondeu que foi aconselhada por amigas, pois o acusado era acostumado a enfrentar a polícia. Nada mais disse e nem lhe foi perguntando. Por findo o presente interrogatório que depois de lido achado conforme, vai assinado pela autoridade e por três pessoas que assinam pela

testemunha, por motivo da mesma não saber lêr nem escrever.44

Nesse último documento que trata de um interrogatório, pontua o quanto as

prostitutas eram vítimas de sua condição social e sofriam frequentes agressões físicas e sexuais. Eram raras as queixas de agressões desse tipo, pois temiam retaliações dos agressores e não eram ouvidas adequadamente pelas autoridades policiais, quando as denúncias eram feitas. Esse fato implica também no medo que tinham as meretrizes em fazer uma denúncia porque a sociedade não dava a devida atenção a elas e em alguns casos, o acusado sairia absorvido e a prostituta condenada, por se tratar de uma sociedade machista e patriarcal, na qual as mulheres eram reprimidas.

Esses fatos acabam implicando na quantidade de fontes relacionadas ao tema, e tornam-se raros os registros de denúncias por parte de prostitutas aos seus agressores.

3. Métodos da pesquisa, e o uso história oral como uma metodologia.

Este trabalho será desenvolvido na forma conceitual e teórica (método histórico), respaldado por pesquisa bibliográfica, uma metodologia qualitativa envolvendo a coleta de dados e de processos crimes. O primeiro processo diz respeito à denúncia de crime de lenocínio de 1942-1943 e o segundo denúncia um estupro ocorrido em 1962. Foram utilizadas fontes orais em um caráter investigativo e analítico a partir dos dados coletados com as entrevistas.

A história oral é utilizada como recurso metodológico para obter fragmentos da memória humana. Foram realizadas três entrevistas com os moradores mais velhos da cidade na faixa entre 80 e 88 anos, no período de Outubro de 2014. Eles são moradores antigos do município e vivenciaram as mudanças e permanências pelas quais a cidade passou. As suas falas contribuíram muito nesse processo de compreensão da memória. Para Thompson (1992):

[...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A

44 Arquivo Municipal de Cachoeira. Processo crime de Estrupo de 1962.

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memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos

fatos coletivos.45.

Para este autor, a história oral é um recurso que foi utilizado para extrair a

memória humana e a sua capacidade de tentar reconstruir o passado enquanto vivido. As entrevistas têm como fundamento a tentativa de recordar através da memória dos sujeitos envolvidos como testemunhas de algo vivenciado. Para a concretização desse trabalho foi preciso à utilização da história oral, com recortes locais. A história oral possibilita o trabalho com discursos de pessoas de diferentes classes sociais, reconhecendo a identidade e a memória das pessoas que vivem anonimamente46. Raquel Soihet (1997; p 296), ressalta que a história oral é um instrumento dos mais adequados para preservar a memória feminina, já que a mulher não teve participação na escrita da mesma forma que o homem.47

Segundo (GALIAN, 1996 apud SANTOS, 2003) apesar de toda a importância exercida pela história oral como fonte de reconstrução da história local, as pessoas não permitem que o passado, muitas vezes “enterrado”, torne-se público, e em se tratando do tema prostituição feminina, requer revolver o passado de mulheres que hoje constituíram família. Assim, remexer no passado implica repercussões no seu presente, e por isso “a história oral deve ser entendida não só como um documento sobre o passado, mas também e principalmente sobre o presente” 48 4 Memorias sobre a prostituição na cidade de Cachoeira

Buscando entender as representações e os significados da prostituição no município de Cachoeira – BA, foram realizadas três entrevistas semiestruturada, cujas questões estavam baseadas em alguns aspectos pertinentes à pesquisa, tais como as relações das prostitutas com a sociedade local, queixas contra as casas de prostituição e preconceito em relação às prostitutas. Os três participantes da pesquisa são antigos moradores do município e contam como era a relação das prostitutas com as outras pessoas da sociedade.

Ao serem solicitados para serem entrevistados eles responderam:

Meu nome é Otílio conhecido como Índio tem 81 anos, Católico, casado tem meia dúzia de filhos. Mora aqui, sou filho daqui, agora. Eu vim parar aqui no

45 THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p 17. 46 Para uma discussão mais aprofundada ver Fhilippe Joutard. Hitória Oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. Janaína Amado e Marieta Ferreira (org.) in: Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro. FGV 1992. 47 SOIHET, Raquel. In CARDOSO, Ciro. Op. Cit. 1997:p 296 48 GALIAN, Marcelo Dante. Memória do exílio. Reflexões sobre interpretação de documentos orais. In. Meihy. José Carlos Sabe Bom. (org.). Encontro Regional de História Oral no Brasil. São Paulo, Xamã, 1996/ série eventos. P.141.

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centro em 1960 ...foi quando cheguei de São Paulo. Mas eu não sou de São

Paulo, sou filho de Cachoeira. Mas eu levei uma temporada em São Paulo”.49

O senhor Otílio conhecido como Índio concedeu a entrevista para que a partir dos seus relatos, fosse possível compreender, através de sua memória, os fatos que ocorreram na cidade e no universo da prostituição.

Esse trabalho traz um diálogo entre o narrador e as temporalidades. Permite relacioná-lo com Alistair Thomson (1997) quando ele sugere que: “a memória gira em torno da relação passado-presente e envolve um processo contínuo de reconstrução

e transformação das experiências lembradas”50.

Sabendo que a prostituição se desenvolveu na cidade de Cachoeira por conta do movimento no porto e depois por causa do comércio local, perguntou-se ao entrevistado como era o fluxo de pessoas na cidade, e ele fez a seguinte comparação:

“Antigamente o movimento do comércio era outro a população era menos da metade do que é hoje (risos), porque vamos dizer, em 1960 se Cachoeira muito tivesse era 15 mil habitante, hoje já tamos (sic) perto de 40 mil, algumas coisa

mudou de lá pra cá”. 51

O exemplo destituído de regras da vida pública das prostituas, bem como o exercício da sua sexualidade destoava da moral da mulher-mãe, vista como cuidadora e que tinha uma vida limitada ao lar, à convivência privada. Ao serem questionados a respeito do comportamento das prostitutas em relação às vestimentas e outros aspectos, os entrevistados deram as seguintes respostas:

“As roupa eram normal, lá na área era diferente né e no centro era normal. Sai na rua, da pra pessoa divulgar que ela era de lá da região é por causa que ela fumava na rua, as mulher não fumava na rua e quando via uma mulher com cigarro no dedo ai dizia é da área, era o que dá mas destaque elas, quando elas saiam da área delas o destaque era esse, e hoje elas nem fumam na rua, e as meninas as crianças, que fuma por ai

veja só como a coisa mudou” (sic.). 52

A autora Mary Del Priore (2011) ressalta que: [...] Eram consideradas “artificiais” as que usavam recursos externos como trajes da moda e cosméticos, mas também as que tinham um comportamento corporal – poses e gestos – considerado

excessivamente estudado [...]53

Com o relato do Senhor Otílio, pode-se analisar que existiam padrões comportamentais em Cachoeira, nos quais as mulheres eram severamente cobradas. O entrevistado revela que existia um local, onde as prostitutas ficavam, “quando elas

49 Entrevista do senhor Otílio em 20/10/14 50 THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: Questões sobre a relação entre História Oral e as memórias. In: Revista de Estudos de Pós -Graduação e Departamento de História-PUC\S . Projeto História. São Paulo, 1997, p. 57. 51 Entrevista do senhor Otílio em 20/10/14 52 Idem 53 Del Priore, Mary Del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.p 121.

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saiam na área delas o destaque que se tinha era esse”. Ele completa dizendo que hoje elas nem fumam nas ruas e que as coisas mudaram. Uma espécie de inversão de comportamentos.

Autores citados por Rissio (2011) afirmam que as vestimentas das prostitutas se diferenciavam, pois estavam sempre bem vestidas, sendo elas, brancas ou negras. Além disso, nos locais de mineração, a prostituição era como um complemento ao comércio ambulante, mesmo que combatida pelas autoridades em Minas Gerais. Dessa forma, a prostituição era tolerada, desde que fosse praticada nos locais e nos

moldes determinados pelas autoridades policiais.54

A segunda entrevistada, Dona Silbene, 80 anos, moradora de Cachoeira, também compartilhou de suas memorias sobre o que aconteceu na cidade. Sobre os comportamentos e as vestimentas das prostitutas ela respondeu: “As roupas eram comum. Nossa! Elas saiam normalmente. A zona funcionava muito pouco, eu não

tenho muito pra contar, não”.55

Percebe-se que, em seu relato existe certa resistência em falar das prostitutas, pois se trata de um tema que para muitos ainda é um tabu.

É sabido que havia temores e condutas discriminatórias em relação às meretrizes. As mulheres que praticavam a prostituição foram definidas como responsáveis pelo rebaixamento físico e moral dos homens e, como exemplo, a decadência das famílias e desonra das crianças, conforme Guimarães e Merchán-

Hamann56.

Dentro desse contexto, os entrevistados relataram como se davam as relações entre as prostitutas e as “mulheres de família”.

Não existia briga de moças de famílias com prostitutas, não existia isso, possa que exista hoje, não que chega ao meu conhecimento na década de 70 pra cá, possa que exista hoje, a gente vê as mulher prostitutas

na rua e hoje as jovens é pior que elas, coisa mudou muito (sic.”).57

Outra entrevistada foi Dona Maria, 88 anos, moradora de Cachoeira, ela diz que foi nascida e criada na cidade. Ao ser questionada sobre o referido assunto ela respondeu: “Convivia com as mulheres ia pegavam navio, nunca me incomodou eu falo até com elas, nunca ouvi falar essas, mulheres eram tão respeitadas do que certas

pessoas da rua”. 58

54 RISSIO, Isabela Pesce Storolli. A prostituição no Brasil: trabalho, silêncio e marginalização. Monografia (Graduação em Direito) Universidade Federal do Paraná - Curitiba, 2011. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/31569/1534%20ISABELA%20PESCE%20STOROLLI%20RISSIO.pdf?sequence=1&isAllowed=y 55 Entrevista da senhora Silbene em 20/10/14 56 GUIMARÃES, Katia; MERCHÁN-HAMANN, Edgar. Comercializando fantasias: a representação social prostituição, dilemas da profissão e a construção da cidadania. Estudos Feministas, Florianópolis, 13(3): 320, 57 Entrevista do senhor Otílio em 20/10/2014 58 Entrevista da senhora Maria em 20/10/2014

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Rago (2005) diz que: Preocupados com a moralização das condutas sociais, com a preservação da família e do casamento, os médicos elegeram a prostituição como um fantasma que ameaçava desestabilizar as instituições e os valores sociais

[...]59.

Em ambos os relatos dos entrevistados, o comportamento das prostitutas das décadas de 1940 á 1970 e para “mulheres de hoje” não os incomodavam. Embora a historiografia mostre que era grande o descontentamento da sociedade da época em relação ao funcionamento dos bordeis, o que implicava em muitas denúncias de desordem, os barulhos e confusões decorrentes do movimento dos cabarés, pensões e bordeis. Apenas um dos entrevistados falou a respeito da presença das casas de prostituição na vizinhança, quando perguntada se havia algum problema entre o funcionamento da zona de prostituição e o cotidiano da cidade. “A zona nunca incomodou, na cidade as pessoas não falavam, tem muita gente que não passa na

rua até hoje”.60

É possível ver contradição em seu relato, pois a mesma disse que a zona nunca incomodou, mas em seguida ela afirma que tem pessoas que não passa na rua até hoje. Isso indica que a prostituição é visto por parte da sociedade de Cachoeira como algo ruim, e se as pessoas de “boa moral” fossem vistas passando pela rua poderiam ser mal interpretados. Nélia de Santana (p. 54) afirma que as reivindicações das famílias “descentes”

em relação ao controle das “horizontais” nos espaços públicos relacionam-se a contaminação moral pela simples presença da prostituta. Este aspecto tem grande relevância devido à diminuta população que propicia a relação entre as pessoas esteja

muito mais próxima e personalizada61.

As visões estigmatizadas construídas em torno da prostituição permitiram que houvesse uma tímida “guerra de lugares” sociais entre mundanas e mulheres “descentes”. A cultura moralizante que predominava, muitas vezes, não permitia que estes mundos se confluíssem com mais afinco.

Apesar de não falarem sobre a existências dos bregas, o silêncio também acontecia evitando-se passar pelas ruas que constituíam a zona de meretrício na cidade de Cachoeira.

De acordo com Souza (2011; p.13) a depreciação das meretrizes serve de contenção à liberdade sexual feminina, pois subjugá-la é uma forma de reprimi-la e segregá-la. Dentro dessa perspectiva, os entrevistados falaram a respeito do

preconceito contra as prostitutas62.

Ao analisar o discurso de uma das entrevistadas que ao ser questionada se as prostitutas sofriam algum tipo de preconceito ou violência, a senhora Silene responde:

59 RAGO, Margareth. Amores lícitos e ilícitos na modernidade paulistana ou no Bordel de madamme Pommèry. Revista Teoria & Pesquisa, n. 47, jul/dez. de 2005. 60 Idem. 61 SANTANA, Nélia op cit. Pág. 54 62 SOUZA, Manuela Cunha de. “Entre tantas Marias”: nuances da identidade feminina no romance A prostituta, de Herberto Sales / Manuela Cunha de Souza. – Salvador, 2011.p.13.

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“Moro em Cachoeira, mas não sei te responder por que não chegava a conversar com

ela”. (...)63.

Nota-se que através desse discurso, algumas pessoas têm receio em falar das prostitutas, um tabu ou talvez um meio encontrado para que a imagem da prostituta não refletisse em seu caráter, na moral familiar tão defendida na cidade. Apesar da sociedade de Cachoeira ter passado por algumas mudanças durante algumas décadas ainda é possível encontrar pessoas totalmente conservadoras.

Assim, como acontece em relação a ter como vizinhança um brega, o preconceito ocorre de forma velada, não se conversa sobre o assunto, nem tão pouco com as prostitutas. Esse “não saber” pode significar a repetição de um discurso do tempo em que a prostituta era vista como degenerada e louca por transgredir as normas sociais oriundas do século XIX. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho foram abordadas questões relacionadas ao Código Penal que não há punição para a prática da prostituição, mas sim para aquelas atividades que visam ao lucro a partir da exploração sexual das mulheres. No entanto, o código que vigorava nas décadas de 1940 a 1970 continha expressões tais como “mulher honesta”, cujo valor das palavras tinham certo peso quando comparadas a das prostitutas.

Dessa forma, foi visto através da historiografia que a exigência da virgindade feminina colocava a prática da prostituição como uma ameaça à moral e à conduta das famílias. A sexualidade dessas mulheres seguia na contramão daquelas mulheres ditas honestas, das moças de família. Assim, elas eram vistas como desregradas ou portadoras de doença mental. Eram chamadas de mundanas, meretrizes, mulheres de vida livre ou de vida fácil, entre outros termos.

No início do século XX, a polícia de costumes foi uma concretização das ações destinadas a reprimir abertamente a prática da prostituição. Segundo Mazzieiro (1998; p. 247-285), a repressão era feita apenas às mulheres, tratando como um crime a prostituição, mesmo que essa prática fosse considerada como um mal necessário, pois garantia a moral da família à medida que satisfazia os atos libidinosos dos

homens e preservando a honra das moças de família64.

Visto que a sexualidade dentro do lar era limitada, não devendo cometer excessos, as práticas sexuais mais “livres” deveriam ficar fora do lar. A liberdade sexual era praticada nos bordeis, e as ações consideradas como um atentado à moral e aos bons costumes deveriam ser severamente reprimidas e repreendidas.

Tudo isso pautado no discurso da medicina higienista e dos juristas em consonância com as normas da Igreja, uma vez que delimitavam não apenas os

63 Entrevista da senhora Silbene em 20/10/14 64 MAZZIEIRO, João Batista. Sexualidade Criminalizada: Prostituição, Lenocínio e Outros Delitos – São Paulo 1870/1920. Rev. bras. Hist., São Paulo, v. 18, n. 35, p. 247-285, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201881998000100012&lng=en&nrm=iso>. Acessado em: 10 Jun. 2015.

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espaços que as mulheres de vida livre poderiam ocupar nas cidades, segregando-as à zona do meretrício e aos bordeis, como também controlar os horários em que deveriam realizar suas atividades.

A área do meretrício do município de Cachoeira está localizada na zona portuária e nas ruas adjacentes, pois no início do século passado era onde se concentrava a maior circulação de dinheiro e movimentava a economia, que acabava atraindo as prostitutas para essas áreas.

Assim como em outras cidades do Recôncavo Baiano, Cachoeira teve em seu desenvolvimento a existência de uma zona de meretrício que servia entre outras coisas (bares e pensões, por exemplo), para satisfazer os desejos sexuais de viajantes ligados ao crescimento do comércio local.

Entre as décadas de 1940 e 1970, a prostituição na cidade teve seus momentos de auge e também de declínio a exemplo da Rua 7 de Setembro que ficou conhecida como Rua do Brega, por abrigar uma das casas de prostituição mais famosas da cidade. Atualmente, apenas duas dessas casas ainda se mantêm, embora não com a mesma intensidade que as primeiras décadas do século XX.

Quanto ao que se refere às fontes de crimes ligados à prostituição no município, foram encontrados poucas, e mesmo assim, consegue oferecer um entendimento a respeito de como a sociedade lidava com a prostituição e qual o valor das mulheres de vida livre tinham perante a sociedade, o que fica claro é um preconceito velado quando afirmaram nunca terem conversado com “essas” mulheres e evitam transitar pela Rua do Brega.

Para realização da pesquisa esbarrou-se na escassez de fontes, encontrou-se apenas dois processos de crime de lenocínio e de estrupo, além disso, as pessoas entrevistadas contribuíram bastante para o mapeamento da cidade.

Embora se acredite que são necessários estudos mais aprofundados sobre a sexualidade feminina nas cidades do interior, em especial das mulheres do Recôncavo Baiano pela similaridade histórica que une as cidades da referida região.

Foram encontradas nas fontes diversos codinomes relacionados às prostitutas, identificadas também “mundanas”, “mulheres de vida livre”, “meretriz”; raparigas. Sujeitos sociais que permearam este universo com uma riqueza de experiências, muitas vezes despercebidas e ignorada pela “boa sociedade”.

Com isso, observa-se que mesmo em um município, no qual a moral da família imperava, as prostituição e os “bregas” conseguiram manter-se vivos até os dias atuais, pois a prostituição no período pesquisado incomodavam parte da população, mesmo com o discurso contraditório dos moradores dizendo que elas não as incomodavam.

Diante do exposto fica evidente a necessidade de abordar mais este tema, pois as dificuldades encontradas no desenvolvimento deste trabalho mostram que há uma grande carência de fontes, mesmo em uma cidade onde a prostituição perdurou por anos.

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REFERÊNCIAS: Fontes documentais: Arquivo Público de Cachoeira Processo crime de lenocínio de 1942 e 1943. Processo crime de Estrupo de 1962. Fontes orais: Otílio conhecido como Índio tem 81 anos, Católico, morador da cidade, proprietário de um bar. Entrevista 20/10/2014, 60 mim; Maria. Católica. 88 anos. Nasceu na Pitanga de Dentro, moradora da rua 07 se setembro. Entrevista 20/ 10/ 2014, 40min; Sylbene. Católica. 80 anos. Nasceu em Salvador, moradora da cidade. Entrevista 20/10/2014, 40 min. Referências bibliográficas:

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