peter brown a ascensao do cristianismo no ocidente

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Aulas 6 e 7/Unidade 2 Instituto de Ciências Humanas Departamento de história Curso: História medieval I Professor: Clinio Amaral Texto base: BROWN, Peter. A ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Editorial Presença, 1999. Capítulo 2 – Cristianismo e Império Bardaisan morreu em 222. No Livro das Leis das Nações sustentava a possibilidade de mudanças para os costumes, vistos como imóveis segundo Peter Brown, através da adoção do livre-arbítrio. No mesmo século de sua morte, houve significativas transformações no cenário romano. No mundo oriental, a dinastia sassânida (que governou a Pérsia entre 224 e 651) formou um império poderoso. Na região do império romano, após a crise do século III (235-284), houve uma recuperação que engendrou profundas mudanças. No período de crise, ocorreram falências, fragmentação política, grandes derrotas militares. Mas a ação de Diocleciano entre 284 e 305 trouxe a superação. A sua política garantiu maior controle sobre as regiões por causa do sistema de co-imperadores, chamado de “Tetrarquia”. Dessa forma, o imperador e os seus agentes passaram ter as funções que, durante muito tempo, eram delegadas às elites locais. Como o autor demonstrou, apesar da reestruturação, a sociedade romana estava abalada e ansiosa pelo retorno da nova lei. O primeiro grande artífice da renovação imperial foi Diocleciano. Embora o peso da burocracia tenha aumentado em seu governo, Peter Brown sustentou que a cobrança de impostos não passou de 10% do excedente agrícola. Na realidade, a grande modificação foi em relação da forma como o Estado lidava com as elites locais. Os poderes locais perderam os privilégios; apenas a corte imperial passou a ser fonte de privilégios honoríficos, as cidades que se desenvolveram, a partir de então, foram aquelas transformadas em centros administrativos. O exemplo mais visível desse novo tipo de cidade foi o de Constantinopla, criada em 327, pelo imperador Constantino. Tratava-se da “nova

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Ascensao Do Cristianismo No Ocidente

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  • Aulas 6 e 7/Unidade 2

    Instituto de Cincias Humanas

    Departamento de histria

    Curso: Histria medieval I

    Professor: Clinio Amaral

    Texto base: BROWN, Peter. A ascenso do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Editorial

    Presena, 1999.

    Captulo 2 Cristianismo e Imprio

    Bardaisan morreu em 222. No Livro das Leis das Naes sustentava a possibilidade

    de mudanas para os costumes, vistos como imveis segundo Peter Brown, atravs da adoo

    do livre-arbtrio. No mesmo sculo de sua morte, houve significativas transformaes no

    cenrio romano. No mundo oriental, a dinastia sassnida (que governou a Prsia entre 224 e

    651) formou um imprio poderoso. Na regio do imprio romano, aps a crise do sculo III

    (235-284), houve uma recuperao que engendrou profundas mudanas.

    No perodo de crise, ocorreram falncias, fragmentao poltica, grandes derrotas

    militares. Mas a ao de Diocleciano entre 284 e 305 trouxe a superao. A sua poltica

    garantiu maior controle sobre as regies por causa do sistema de co-imperadores, chamado de

    Tetrarquia. Dessa forma, o imperador e os seus agentes passaram ter as funes que,

    durante muito tempo, eram delegadas s elites locais. Como o autor demonstrou, apesar da

    reestruturao, a sociedade romana estava abalada e ansiosa pelo retorno da nova lei.

    O primeiro grande artfice da renovao imperial foi Diocleciano. Embora o peso da

    burocracia tenha aumentado em seu governo, Peter Brown sustentou que a cobrana de

    impostos no passou de 10% do excedente agrcola. Na realidade, a grande modificao foi

    em relao da forma como o Estado lidava com as elites locais.

    Os poderes locais perderam os privilgios; apenas a corte imperial passou a ser fonte

    de privilgios honorficos, as cidades que se desenvolveram, a partir de ento, foram aquelas

    transformadas em centros administrativos. O exemplo mais visvel desse novo tipo de cidade

    foi o de Constantinopla, criada em 327, pelo imperador Constantino. Tratava-se da nova

  • 2Roma oriental. Assim, foram criadas em cada regio uma metropolis, ou seja, uma cidade

    cuja funo era a de centralizar a administrao, levando as demais cidades a uma condio

    menor.

    Outro aspecto abordado pelo autor como sendo indcio de alteraes no imprio

    romano diz respeito funo da religio. Para o autor, as sociedades, mesmo aquelas que

    esto a passar por tenses, mantm-se conformadas se pelo menos um aspecto da vida social

    permanecer inalterado. Os habitantes do imprio sentiam que poderiam manter a

    contemplao aos seus deuses. O conhecimento sobre o sagrado era perpetuado por meio de

    ritos e gestos do passado.

    Assim, a religio a forma mais adequada de venerar cada deus servia de suporte

    social e de coeso de famlias ou mesmo de comunidades inteiras. Nesse sistema, a religio

    que os deuses recebiam estava relacionada imagem que os prprios homens tinham de si

    mesmos. Por exemplo, os filsofos msticos buscavam os deuses mais elevados e pela ao

    deles almejavam unir-se ao Uno a fonte plena e intoxicante e ainda metafisicamente

    necessria a qualquer indivduo. No entanto, apesar de privilegiar um determinado tipo de

    divindade, isso no implicava na negao dos outros deuses1.

    No contexto de recuperao do imprio, Peter Brown lembrou como Diocleciano, para

    comemorar 20 anos de governo estvel, erigiu um monumento no foro, em 303. No entanto,

    poucos anos depois disso, em 29 de outubro de 312, o imperador Constantino, aps ter

    vencido o seu oponente Maxncio, entrou em Roma. Apesar do altar do Capitlio estar

    ornamentado para as celebraes, o imperador no compareceu, indo diretamente para o seu

    palcio. Posteriormente, justificou a sua ausncia em funo de um sinal que recebeu do

    Deus nico dos cristos. Alis, atribuiu s suas conquistas ao Deus cristo.

    Em 325, em Niceia, cidade de Iznik da atual Turquia, Constantino promoveu um

    conclio com todos os bispos cristos do seu imprio. A sua ao ofereceu uma situao nica

    para a Igreja crist, pois pode ver-se a si mesma e, pela primeira vez, teve a elaborao de

    uma lei universal. Para o autor, a escolha desse imperador pelo Deus cristo no poderia ter

    sido prevista em 300 do mesmo modo que no se poderiam prever os seus xitos como

    imperador.

    Segundo Peter Brown, para compreender o significado da medida adotada por

    Constantino, torna-se fundamental entender a situao da Igreja crist anterior ao ano de 312.

    Nessa data, a Igreja crist no era mais uma religio nova no imprio. Em 303, houve a

    ltima perseguio oficial a instituio, trata-se das leis imperiais de Diocleciano, conhecidas

    1 BROWN, Peter. A ascenso do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Editorial Presena, 1999, p. 39.

  • 3pelos cristos como Grande Perseguio. As medidas foram aplicadas durante 11 anos em

    partes da sia Menor, da Sria e do Egito. Para o autor, essa perseguiu assinalou a

    maturidade da Igreja crist.

    Desde o seu surgimento at as perseguies do incio do sculo IV, a prpria Igreja

    havia passado por modificaes. Em 303, j contava com uma hierarquia bem definida, alis,

    desde as perseguies de 250 e de 257, o imprio havia perseguido os bispos, padres e os

    diconos da Igreja. No discurso dos cristos do final do sculo III e do incio do sculo IV

    existiam referncias s igrejas como lugares claramente definidos para a venerao.

    As igrejas do sculo III foram construes humildes que constituam apenas uma sala

    de reunio. Provavelmente, aproveitavam estruturas de casas j existentes. Esse autor criticou

    os autores que reproduziram imagens equivocadas sobre a Igreja, que conheceu a paz com

    Constantino, em 312. Primeiramente, seria impossvel determinar o nmero de cristos no

    imprio. Segundo a estimativa apresentada, representavam certa de 10% da populao cuja

    maioria estava na regio da Sria e da sia Menor e nas mais importantes cidades do

    Mediterrneo. No obstante, o mito, desenvolvido posteriormente, segundo o qual os cristos

    eram uma minoria constantemente perseguida que foram levados clandestinidade por causa

    da represso, no condiz com a realidade histrica. Tambm no h qualquer base para o

    outro mito de que o cristianismo representasse uma religio dos menos favorecidos.

    Pesquisas recentes demonstraram a existncia de uma pequena nobreza estabelecida na

    sia Menor. Alm disso, havia cidades em que os cristos eram reconhecidos como membros

    de uma instituio e o conclio de Elvira, em 300, na Andaluzia, tomou decises sobre os seus

    membros que, devido s suas funes no imprio, eram obrigados a participar do culto

    imperial e presenciar os sacrifcios feitos. Na verdade, tais exemplos foram dados para

    demonstrar como, dificilmente, seja possvel aceitar que os cristos do perodo de Constantino

    fossem completamente desprovidos de bens, de escravos e no estivessem, de forma alguma,

    vinculados ao poder. A instituio da qual faziam parte aambarcava uma variedade muito

    grande de tipos sociais.

    Por essa razo, o autor props compreend-la como o imprio em miniatura porque os

    grandes e poderosos encontravam-se com os menos favorecidos como iguais. Afinal, estavam

    sujeitos a uma mesma lei universal e veneravam o mesmo Deus. Isso no quer dizer que as

    diferenas sociais desaparecessem, no, pelo contrrio, nos momentos de reunio, havia

    lugares para todos. Porm, a condio de cristos os igualava e isso explica o fato de que

    todos estavam preocupados com dois temas-chave: a salvao e o pecado2.

    2 Cf. Ibidem, p. 44.

  • 4O discurso cristo apresentava todos os homens como sujeitos a uma lei universal cuja

    inteno era a de salv-los do pecado. Salvao significava o abandono da idolatria e a

    negao do poder dos demnios, pois os cristos no negavam a existncia dos deuses pagos;

    apenas afirmavam que eles eram demnios que estavam na Terra para afastar os homens do

    verdadeiro Deus. Por isso, as preocupaes de Diocleciano em relao aos ritos dos deuses,

    foram entendidas como mais um subterfgio malfico para afastar os homens do imprio do

    Deus cristo, visto como Deus nico.

    Por no negarem os deuses pagos, mas lhes atribuir poderes malficos, uma das

    prticas comuns entre os cristos poca era a do exorcismo. Tal atitude tornava visvel o

    poder do verdadeiro Deus, pois os possudos, quando exorcizados, berravam os nomes dos

    deuses pagos em um espetculo que despertava a ateno de todos. Outra forma de tornar

    visvel o poder do verdadeiro Deus era o martrio. Afinal, no mundo romano, as execues

    eram um espetculo pblico e violento. Era a oportunidade para o cristo dar o seu

    testemunho de f e, apesar das violncias sofridas, no se curvar aos deuses pagos. A morte

    para o cristo tinha um significado especial, pois representava o nico triunfo desejado. Na

    verdade, simbolizava a entrada na glria de Deus e, por isso, em ltima instncia, o triunfo

    sobre o pecado capaz de levar vitria contra a morte.

    No mundo antigo j havia indcios de uma linguagem filosfica relativa ao pecado e

    converso. Os cristos desenvolveram a tese segundo a qual a filosofia era a arte da

    transformao pessoal. Sustentaram que a sua religio era uma filosofia dada por Deus,

    aberta a todos. A possibilidade da transformao total por meio da converso e do batismo foi

    um tema importante entre os autores cristos3. No sistema filosfico dessa religio o pecado

    era visto como um problema comum a todos. Nesse sentido, diferenciava-se dos outros

    sistemas presentes no imprio, pois esses sustentavam o melhoramento da pessoa de forma

    individual.

    Como o pecado pertencia a todos, o cristianismo desenvolveu a noo de penitncia,

    alis, era a prpria comunidade quem decidia o tipo de penitncia a ser realizada pelo

    pecador. Na maior parte das regies, a chefia da luta contra o pecado foi incumbida ao bispo,

    que era visto como juiz e rbitro dos pecadores. Essa era a funo do bispo que deveria ser

    auxiliado pelo seu clero.

    A preocupao com a salvao e a arbitragem do bispo criou uma situao nova para

    as religies do perodo. Para a absolvio do pecado havia a necessidade do arrependimento,

    desenvolveu-se subjacente a essa concepo a noo de caridade, ou seja, uma espcie de

    3 Cf. Ibidem, p. 47.

  • 5reparao concreta e visvel. Para o autor, isso serviu com um instrumento de controle sobre

    a riqueza atravs de um novo tipo de justificao ideolgico.

    Esse sistema de transferncia de riqueza foi importante porque fez com que a Igreja,

    como instituio, no precisasse da generosidade de doadores ricos. Alis, como acontecia

    com os templos pagos, os quais sofreram com a crise do sculo III. Os cristos, atravs da

    noo de esmola, engendraram um significado importante doao de recursos, como o

    pecado era ordinrio, tal tipo de ao tambm deveria ser. Por essa razo, a Igreja do final do

    sculo III era coesa e altamente solvente; os seus membros eram reconhecidos pela

    capacidade que tinham de tratar si mesmos e dos outros.

    Em 251, a Igreja crist de Roma sustentava, com base nas ddivas dos fiis, 154 membros do clero (dos quais 52 eram exorcistas) e cuidava de 1500 vivas, rfos e desamparados. S estes ltimos eram mais numerosos do que os membros da maior parte das associaes profissionais da cidade; e o clero constitua um corpo to vasto, e consciente de si mesmo, quanto a ordo, ou conselho urbano, de qualquer pequena cidade. Foi deste ponto de vista crucial que a Igreja crist ganhou uma proeminncia desproporcionada em relao ao nmero pequeno de cristos na totalidade do Imprio. A sociedade politesta era constituda por um imenso nmero de pequenas clulas; apesar de apoiada nos costumes ancestrais, era to delicada e quebradia como uma colmeia. A Igreja crist, pelo contrrio, juntava actividades que se tinham mantido separadas no antigo sistema de religio, criando uma constelao macia, compacta, de compromissos.4

    Com base nisso, o autor demonstrou como a moralidade, a filosofia e o ritual

    estavam interligados, todos esses elementos faziam parte de uma religio. Isso era diferente

    do mundo politesta em que cada um dos aspectos citados formava corpos desconexos.

    Captulo 3 Tempora Christiana: Tempos cristos

    Desde a converso de Constantino, institui-se a sensao entre os cristos de que a

    histria estava do lado deles. Viam o seu tempo como uma poca de triunfo. As

    modificaes do sculo IV tinham ocorrido em um cenrio preparado por Cristo para

    evidenciar Sua vitria. Alm disso, na maior parte dos relatos do perodo nota-se, segundo

    Peter Brown, a ideia de que a histria move-se para um fim anteriormente preparado.

    A colaborao de Constantino e dos imperadores posteriores representou a opo por

    ajudar um grupo defensor de mudanas. Assim, desde 312, Constantino e o seu filho,

    4 Ibidem, p. 50.

  • 6Constncio II (337-361) foram progressivamente cerceando o culto pago. Alm disso,

    fecharam templos e foram omissos em relao s violncias cometidas pelos cristos contra os

    templos pagos.

    O sculo IV marcou ainda a institucionalizao da palavra paganus, pago para

    demonstrar a condio inferior do culto politesta. Inicialmente, a palavra significava uma

    distino entre os civis, vistos como cidados de segunda classe, em comparao aos

    militares. O padre Osrio, de Braga, a pedido de Santo Agostinho escreveu a Histria contra

    os Pagos cujo contedo adicionou outro senso pejorativo a esse adjetivo. Para Osrio,

    pagus, de paysans, paesanos, era uma religio de camponeses provincianos, que negavam as

    transformaes sofridas no imprio5.

    As polmicas com os pagos colocavam-se para alm da pregao do clero. Em 436,

    Teodsio II (408-450) reuniu-se com os seus juristas a fim de unificar os ditos publicados

    pelos imperadores anteriores sobre os cristos. Assim, em 438, nasceu o Cdigo de Teodsio,

    trata-se do mais compacto e duradouro monumento da poca da Igreja triunfante6. No

    entanto, as pessoas que assistiam aos sermes de Santo Agostinho, embora se considerassem

    bons cristos, ainda no estavam completamente livres de suas crenas anteriores. Por isso, a

    proposta dos lderes da Igreja de um monotesmo no se aplicava a todos os aspectos da vida

    quotidiana.

    Muitos dos que escutavam Santo Agostinho no negavam os poderes dos seres

    inferiores, afinal lembravam ao seu bispo que os prprios deuses tinham previsto a sada deles

    dos seus templos em orculos. Entre os sculos IV e V, uma quantidade importante dos

    crentes espalhados pelo imprio pensava do mesmo modo que a congregao de Santo

    Agostinho (354-430). Para que a sociedade como um todo aceitasse a postura intransigente

    dos lderes cristos, era necessrio que se operasse uma modificao na cultura do imprio.

    Peter Brown props que ela tenha ocorrido entre as geraes que separam a Igreja

    triunfante de Constantino e o perodo menos otimista a partir de Teodsio I, imperador entre

    379 e 394.

    Neste sentido, o cristianismo latino do incio da Idade Mdia tem menos a ver com a converso de Constantino do que com a gerao perturbada, mas imensamente criativa uma gerao de invases brbaras, guerras civis e enfraquecimento da autoridade imperial que coincidiu com os anos de maturidade de S. Agostinho. O prprio Agostinho, baptizado em 387 e eleito bispo de Hipona, na costa do Norte da frica (a moderna Anhang/Bon,

    5 Cf. Ibidem, p. 53.6 Cf. Ibidem, p. 54.

  • 7Arglia) em 395, veio a falecer em 430 com idade de 76 anos, num mundo j muito diferente daquele em que tinha crescido.7

    O legado de Constantino foi a paz e a riqueza e a possibilidade da Igreja assumir uma

    posio forte. Ao se aproximar da instituio, o prprio imperado transformou-se em um

    grande doador. As suas igrejas e baslicas eram, conforme chamou ateno o autor,

    verdadeiros sales reais, como evidentemente o nome baslica, de basileus, rei, aponta8.

    Tais construes formavam um complexo maior dotado de sala de audincia, um palcio

    episcopal, armazns de vitualhas para os pobres e um grande ptio semelhante ao da casa de

    nobre.

    Mais do que representar o poder da instituio, tais construes tambm engendraram

    outro tipo de administrao urbana. Os bispos e os membros do clero foram isentos de

    impostos e dos servios pblicos. A Igreja foi a instituio cuja expanso foi a maior no

    perodo de tenso pelo qual o imprio passava. As outras associaes tinham ficado

    paralisadas. Atravs de uma hierarquia, os membros do clero formavam um tipo de ordo.

    Constantino solicitou que os bispos servissem de juzes e questes envolvendo cristos, no

    entanto, eles tambm aturam para os casos de no cristos. Como os custos dos litgios civis

    subiram consideravelmente, o bispo transformou-se em Provedor de Justia da comunidade

    local.

    Ao mesmo tempo, o sistema de caridade dos cristos passou a servir como uma

    espcie de previdncia pblica. Tradicionalmente, o imprio havia confiado as funes

    administrativas aos membros da elite local, com o advento do cristianismo, estruturado como

    era, houve uma alterao decisiva, pois os cristos passaram a atuar efetivamente no conjunto

    da estrutura do imprio9. Diferentemente do perodo de Constantino, a partir do sculo V,

    apesar da existncia de suntuosas baslicas, o que impressionava na Igreja cristo era a

    quantidade de igrejas de dimenses menores, as quais comprovavam o seu enraizamento junto

    estrutura imperial.

    Ao demonstrar como os bispos cristos agiam diferentes em relao aos altos

    dignitrios do perodo anterior, Peter Brown citou o exemplo de Atansio (296-373). Em sua

    carreira lidou com os adversrios acusando-os de negarem a ortodoxia de Niceia, definida

    em 325. No entanto, para o autor, no se pode dizer que, poca, houvesse clareza sobre

    aquilo que se considerava ortodoxo. A atribuio de Atansio como um heri da luta contra

    7 Ibidem, p. 55.8 Cf. Ibidem, p. 56.9 Cf. Ibidem, p. 57.

  • 8os hereges uma construo posterior. No final do sculo IV, narrava-se a controvrsia

    ariana como se ela fosse um debate estudado. Tal construo encobre uma questo

    importantssima; os cristos ocidentais tinham considerado a polmica como sendo o incio

    dos problemas entre a Igreja e o Estado.

    Na realidade a questo foi uma espcie de prova de fora em que os chefes locais, os

    bispos, almejaram descobrir o limite para se aproveitarem das fraquezas do imprio,

    sobretudo, a dependncia dos imperadores dos grupos de poderosos locais. Nesse contexto,

    os homens fortes eram os membros da Igreja. No entanto, em regies, como, por exemplo, o

    Norte da Sria, na Numdia, na atual Tunsia, ocorreu um crescimento populacional

    acompanhado da formulao de novas formas de vida em aldeias. Em 270, Antnio, 250-256,

    dirigiu-se para o deserto, regressando em 310, como um famoso ermtikos, homem do

    deserto. Trata-se do eremita cristo posterior. Segundo o autor, era o campo o lugar onde as

    formas mais radicais do cristianismo ganhavam fora10.

    No Egito, o nome grego monachos, sozinhos foi atribudo aos celibatrios

    totalmente dedicados ao Esprito Santo. Ao mesmo tempo, esses movimentos abriam

    caminho para novas interpretaes religiosas como foi o caso de Manes (216-277) em uma

    aldeia ao Sul de Ctesifonte. Trata-se da primeira religio nova nascida do cristianismo. O

    maniquesmo espalhou-se por toda a rea de vida sedentria do Mediterrneo China. A sua

    difuso era feita por missionrios ascetas. Devido perseguio violenta do imprio romano,

    a religio perdeu espao no mundo ocidental, contudo, isso no ocorreu no Egito, na Sria e na

    Palestina. A grosso modo, o eleito dessa religio pertencia s classes mais favorecidas.

    Talvez, exista uma relao entre as experincias religiosas, como, por exemplo, o

    monasticismo e um sentimento entre os povos do imprio romano de que ainda havia espao

    para mudanas. Na realidade, muitos crentes do imprio, sobretudo os eruditos, tinham a

    sensao de que, apesar da converso dos imperadores, o mundo ainda no era cristo o

    bastante.

    A animada histria religiosa do sculo IV tendeu a fazer esquecer o facto de a revoluo religiosa associada ao reinado de Constantino ter ocorrido paralelamente a uma revoluo social a criao e a estabilizao de uma nova classe superior confiante em si prpria. As esplndidas manses romanas tardias, que dominavam os campos em todas as provncias do Imprio do Ocidente, so testemunhos de um mundo restaurado. Os seus ocupantes em parte possuidores de terras em parte funcionrios governamentais aceitavam a nova ordem com entusiasmo. Para eles, a converso ao cristianismo era antes do mais uma converso majestade

    10 Cf. Ibidem, p. 59.

  • 9quase divina do Imprio Romano, agora restaurado e protegido pelo Deus nico dos cristos.11

    Esse contexto produziu o labarum de Constantino, ou seja, o sinal de sua vitria na

    Ponte Mlvia e, portanto, a representao da instaurao de uma nova ordem. Mas, no final

    do sculo IV, o contexto mudou bastante. Novas guerras civis e as vitrias dos visigodos

    sobre o exrcito romano restauraram um clima de enfraquecimento e insegurana,

    principalmente, aps as vitrias germnicas que conduziram ao saque de Roma, em 410. O

    visigodo Alarico, que comandou o saque, conseguiu uma vitria inimaginvel aos olhos dos

    romanos.

    Embora tais acontecimentos no fossem definitivos, os cristos passaram a empregar a

    expresso tempora christiana, ou seja, os tempos cristos. O seu significado no estava

    relacionado tranquilidade do perodo de Constantino, pelo contrrio, era compreendido

    como um perodo de ansiedade sobreposto a uma crise poltica de autoridade, cujo resultado

    foi as sucessivas invases brbaras do sculo V12. Esse contexto catastrfico permitiu aos

    cristos aes jamais pensadas anteriormente. Peter Brown citou o exemplo de Pncio

    Merpio Paulino (355-431), ulteriormente, bispo de Nola na Campnia.

    Esse cristo declarou publicamente que a era de consenso tinha chegado ao fim,

    durante a guerra civil, no Norte da Hispnia, ele se lanou em uma vida asceta sem qualquer

    tipo de compromisso. Ao ser questionado por um amigo, Ausnio de Bourdeaux, ele se

    recusou a retomar as suas funes administrativas na Aquitnia, alegando uma sorte de

    redefinio da pietas romana. Atravs desse princpio, os romanos estabeleciam os laos de

    lealdade para com os amigos e para com a terra de origem. No entanto, a posio Paulino foi

    a de se interessar apenas para com a piedade com Cristo. Em sua mentalidade, expressava-se

    a ideia de escravos de Deus, insurrectos contra o mundo13.

    Outros nomes importantes do cristianismo da poca fizeram parte desse tipo de

    exposio. Certamente, o mais relevantes deles foi Santo Agostinho, transformado em bispo

    de Hipona em 397, e advogado por uma nova vida. Em seguida, Peter Brown inicia a sua

    anlise sobre o contedo das Confisses de Agostinho. Na obra, o bispo relatou as suas

    experincias anteriores sua converso e como tudo aquilo havia perdido o sentido no vero

    de 386, ocasio em que adotou uma vida regrada como condio para receber o batismo o

    qual recebeu das mos de Santo Ambrsio (340-397).

    11 Ibidem, p. 62.12 Cf. Ibidem, p. 64.13 Ibidem, p. 65.

  • 10

    Embora a converso significasse, em certos aspectos, uma renncia para o mundo

    devido s implicaes ascticas, Peter Brown destacou como os grandes latinos, convertidos

    ao cristianismo, tiveram uma insero de destaque junto Igreja. Na verdade, passaram de um

    estilo de vida pblica para outro, mesmo que no tivessem conscincia disso14. Contudo, nem

    todos os cristos concordavam com a viso sobre a graa divina apresentada por Santo

    Agostinho em suas Confisses. Na obra, defendia que ela atuava junto ao corao humano de

    forma lenta, moldando a dbil e instvel vontade at conseguir uma deciso firme e

    vencedora.

    Para aqueles que discordavam do bispo de Hipona, como Pelgio, um leigo da

    Britnia, a graa divina no agia dessa maneira. A sua ao gerava a natureza humana

    atravs da qual o homem seguiria a ordens de Deus. Assim, cada cristo era o prprio arteso

    de sua alma. A controvrsia mencionada ilustrou o debate sobre o arbtrio do ser humano. Os

    cristos do sculo V decidiram favoravelmente pelo entendimento de Santo Agostinho. Para

    Peter Brown isso designou a necessidade da comunidade crist de possuir heris e no o

    processo de automelhoramento. Assim, Deus criava os heris, como, por exemplo,

    Constantino cuja misso foi nutrida por vises corriqueiras.

    No mundo de Agostinho, o eleito, e o predestinado, eram tranquilizadoramente visveis. Eram os heris da f, cuja memria era agora celebrada em todas as cidades do Mediterrneo em festivas de massas, rodeada de um sentido de triunfo e prazer colectivos. Eram os mrtires, cujo amor por Deus os tinha levado a ultrapassar a todos os outros amores, incluindo o amor pela prpria vida. Eram os grandes bispos, os conversos espectaculares (como Agostinho) a quem o amor por Deus, enquanto Verdade, permitira trazer a cultura pr-crist do seu passado tempestuoso a fim de a colocar ao servio da Igreja catlica. Era este o obejctivo da graa []15

    A tese de Santo Agostinho transformou-se mais aceitvel pelo seu carter igualitrio.

    Na viso de Pelgio, era necessrio combater diviso da Igreja entre os cristos de primeira

    ordem e os de segunda, afinal insistia na capacidade dos cristos para se transformarem em

    criaturas perfeitas. Com isso, objetivava pr fim distino entre o leigo e o monge,

    formando uma comunidade de cristos ascetas. Ao contrrio Agostinho aceitou o fato de que

    a Igreja era uma instituio diferenciada, por isso, nem todos os cristos poderiam ser

    14 Cf. Ibidem, p. 66.15 Ibidem, p. 67.

  • 11

    perfeitos. Entretanto, eram iguais devido dependncia da graa de Deus, a sua doutrinada

    da eleio servia como alento para os humildes e uma advertncia para os vaidosos.

    Segundo Santo Agostinho, embora os membros fossem imperfeitos, a Igreja catlica

    era uma instituio gloriosa. Apenas o batismo poderia ser fonte de garantia contra o pecado

    original responsvel por afastar os homens de Deus. Para tanto, a Igreja deveria formar uma

    instituio universal porque era o nico repouso na Terra capaz de trazer ao homem a

    felicidade perdida.

    J em A Cidade de Deus, cujo incio ocorreu em 413, representou a oportunidade do

    bispo de responder s crticas pags por causa do saque de Roma, em 410. A porta para a

    cidade Gloriosa era a Igreja catlica.

    Captulo 6 Reverentia, rusticitas: de Cesrio de Arles a Gregrio de Tours

    Em 15 de fevereiro de 495, embora o papa Gelsio (492-496) tenha feito diversas

    advertncias, um grupo de senadores romanos realizou a celebrao anual da Lupercalia.

    Ironicamente, o grupo em questo era composto por homens pblicos e bons cristos. Em

    meio s dificuldades do ano de 494, marcado por epidemias e ms colheitas, tentava-se

    preparar um novo ano menos difcil. Apesar da arruaa ter ocorrido nas ruas de Roma, a

    cidade de maior tradio crist do Ocidente latino, a memria coletiva remontava a perodos

    bem anteriores ao advento do cristianismo. Para Peter Brown, procurava-se um mundo

    romano da poca mtica de Rmulo e Reno.

    Em 500, o cristianismo era a nica religio pblica em toda a rea do Mediterrneo.

    Mas isso no quer dizer que havia triunfado completamente em relao s prticas pr-crists.

    Segundo o autor, a situao mencionada aparece em diversas fontes laudatrias do perodo,

    que no apresenta de forma direta a situao alm das cidades romanas; afinal tal religio,

    essencialmente, continuava a ser a manifestao religiosa das cidades romanas.

    Caso se aborde perodos ulteriores, notar-se- que havia um esforo dos bispos para

    ampliar a ordem crist, se possvel, de forma imponente, em suas prprias cidades. Porm

    isso no quer dizer que os campos constitussem regies desrticas para o cristianismo.

    Houve um movimento de construo, na regio de Tours, a partir da segunda metade do

    sculo VI, igrejas patrocinadas por grandes proprietrios e, at mesmo, os servos da regio da

    Hispnia, investiram os seus poucos recursos nesse processo de construo. Entretanto, os

    campos ainda no apresentavam o mesmo padro de cristianizao, pois tal ordem ainda era

  • 12

    reconhecidamente romana cujo foco era as cidades e os seus bispos, compreendidos como o

    centro de um catolicismo de grande intensidade16.

    Mesmo que se considerassem os campos como regies mais integradas, no final do

    sculo V e no sculo VI, h de se considerar uma questo colocada naqueles tempos. Aps de

    expulsados os demnios dos templos e a idolatria, o cristianismo continuava a se deparar

    com problemas criados por um misticismo difuso junto aos grupos sociais. Com algumas

    variaes, os homens dos campos e das cidades viam o mundo natural sua volta como um

    espao cujas energias interferiam em praticamente todos os aspectos da vida. Por essa razo,

    no adiantava apresentar um Deus nico como centro do mundus ou traz-lo para mais

    prximos aos homens por meio de Jesus. Havia a necessidade de que a religio fizesse

    sentido para a populao que se via inserida no mundo natural. Assim, o cristianismo deveria

    agir sobre o mundo, demando a sua generosidade e neutralizando os seus perigos, por meio de

    ritos cujas origens estavam na Europa pr-crist.

    Apesar da maior parte dos santurios pagos estar completamente arruinada nas

    regies onde o cristianismo estivesse inserido, houve casos, como, por exemplo, da dcada de

    60 do sculo VII, em regies da Hispnia, cujos templos pagos ainda recebiam ofertas

    votivas. Por isso, as oferendas eram transferidas para as igrejas locais. Isso marca uma

    permanncia das atitudes religiosas pr-crists em vrias partes da Europa, na ocasio,

    consideras como convertidas ao cristianismo.

    Ao citar um cristo contemporneo, Peter Brown demonstrou como estava clara a

    permanncia. Eu seu questionamento, o homem apresentava o problema, pois dizia que

    mesmo que todos os dolos fossem destrudos com os seus respectivos templos, os cristos

    no poderiam tapar o Sol, ou colocar guardas s margens do Nilo para evitar que

    manifestaes pags silenciosas fossem realizadas. O mesmo se aplicava Europa, uma vez

    que cada encruzilhada, cada nascente de rio, cada rvore poderia receber ex votos.

    Aps apresentar o contexto religioso do final do sculo V e do sculo VI na Europa

    ocidental, o autor indicou como as diversas regies crists do perodo enfrentavam desafios

    diferenciados. No caso dos cristos do Oriente grego, via-se o mundo como uma triunfante

    vitria nascida com Constantino. Percebia-se o tempo presente como uma poca de grande

    entusiasmo, pois Cristo trouxera grandes modificaes. Os deuses pagos e os seus templos

    tinham desaparecido e foram substitudos pelos homens santos e mrtires cujas aes teriam

    contribudo para a nova ordem.

    16 Cf. Ibidem, p. 114.

  • 13

    Tal contexto no quer dizer que o triunfo dessa religio fosse maior na regio oriental,

    deve-se pensar que a natureza dos questionamentos religiosos era diferente entre o Ocidente e

    o Oriente. No mundo oriental, os helenos como eram chamados os intelectuais gregos

    continuavam a defender os seus deuses pagos. Em Atenas, at 529, esses homens ensinaram

    com apoio pblico. A diferena estava no fato de que os lderes cristos orientais

    preocupavam-se muito menos do que os seus colegas ocidentais com o peso do passado

    pago. Como viviam em um imprio que funcionava bem e se declarava como cristo; isso

    era suficiente para persuadi-los de que tudo estava bem.

    Para os ocidentais, havia o medo que, entre os batizados, o paganismo pudesse reviver.

    Segundo Peter Brown, o bispo de Arles, entre 502 e 542, Cesrio foi quem transmitiu

    explicitamente s geraes posteriores tal estado de esprito preocupado. Esse bispo passou a

    usar os sermes de Santo Agostinho, proferidos em Hipona um sculo antes, para convencer o

    seu auditrio de como determinadas prticas pags poderiam ser perigosas. Para o autor,

    apesar do seu estilo de pregao, Cesrio era um nobre romano-gauls, fabricado no

    contexto monstico de Lrins. Para ele, o retorno s prticas pags significaria, de fato, falta

    de educao; tratava-se de se comportar como os rustici, ou seja, os camponeses rudes,

    ignbeis incapazes de compreender e aceitar a cultura. Por tal motivo, suscetveis de

    cometerem erros.

    Acabar com as rusticitas tinha um significado muito maior do que a destruio de

    templos e dolos.

    Significava nada menos do que tentar alterar toda uma mentalidade. Cesrio e aqueles que se lhe seguiram pretendiam destronar a antiga imagem do mundo. Na prdica de um homem como Cesrio, o mundus, o universo fsico, perdia toda a sua autonomia. No tinha vida prpria para alm da que lhe era dada por vontade de Deus. O tempo cristo, por exemplo, no correspondia directamente ao ritmo orgnico da Natureza, demonstrado na sucesso das estaes; correspondia aos grandes actos de Deus, em que ele pusera o mundo de lado, a fim de tratar directamente com a Humanidade. O to festejado princpio do ano, nas Calendas de Janeiro, nada significava quando comparado com a divina humildade do nascimento de Cristo, no Natal. Os dias da semana tinham mantido, desde os tempos imperiais, os nomes dos vrios deuses, que tinham governado a Terra a partir dos seus tornos colocados nas agourentas esferas dos planetas. Tais nomes, associados aos poderes que controlavam o mundus deviam desaparecer. O ideal que os cristos contassem os dias da semana de acordo com os Dias do Senhor, como prima feira, secunda feira, (de acordo com to alto critrio, Portugal seria o nico pas completamente cristianizado na Europa!). Antes do mais, negava-se aos seres humanos a possibilidade de uma participao activa, atravs dos antigos rituais, no funcionamento do mundus. Pensar que a vontade humana podia interferir no sentido de alterar o curso das coisas

  • 14

    num mundo material onde tudo dependia da vontade de Deus, era, na opinio de Cesrio, o cmulo da estupidez. [][] Passaria ainda muito tempo (talvez at morte da Europa camponesa no sculo XIX) antes que as mentalidades denunciadas por Cesrio viessem a alterar-se significativamente. E, mais importante ainda, do ponto de vista da difuso do Cristianismo, so as sugestes, espalhadas um pouco por todas as fontes crists, do recurso a um processo de compromisso. No se estava perante meras tradies pags, mais ou menos estpidas, como Cesrio e outros bispos diziam, mas sim frente a tentativas pensadas dos cristos do sculo VI no sentido de tentarem adaptar as aptides religiosas daquele tempo aos esquemas de uma poca passada. O Cristianismo teve geralmente a iniciativa neste processo de ajustamento: as comunidades pags acabaram por aceitar os smbolos e os ritos cristos. Nos banquetes sacrificiais fazia-se o sinal da cruz.17

    Para Peter Brown, seria necessrio algo mais do que a poesia proposta por Cesrio

    para conseguir obter a cristianizao imaginativa do mundus. Certamente, o culto aos santos

    foi a ferramenta mais importante. Tal tipo de culto procurou criar costumes ligados

    reverentia catlica direcionada para os grandes santurios. Esses lugares foram

    transformados, no perodo, em grandes centros de peregrinao. A reverentia foi

    transformada na resposta adequada rusticitas, porque, caso os santos fossem venerados,

    atuariam de modo a influenciar o mundus. Assim, os santos conseguiram oferecer outro

    significado aos fenmenos e aos lugares do mundo natural, pois passaram a representar o

    sagrado procurado pelas pessoas.

    Para o autor, foi Gregrio de Tours, bispo de Tours entre 573 e 594, cujos escritos

    mais defendeu esse tipo de funo para os santos. Em termos de gerao e de formao

    intelectual, Gregrio era diferente de Cesrio. O bispo de Tours nasceu, em 538, alguns anos

    antes da morte de Cesrio, a sua funo de bispo aproximou-o ainda mais do centro nrdico

    da Francia. Contudo, antes de se tornar bispo muita coisa havia passado na Europa.

    No se pode esquecer-se da tentativa de Justiniano (483-565), que ficou no poder

    como imperador de 527 at a sua morte, de conquistar o Mediterrneo ocidental, cujo

    resultado foi a destruio da ordem social da Itlia devido ao seu fracasso. A peste de 542 a

    570 espalhou-se rapidamente pelo imprio do Oriente trazendo consequncias catastrficas.

    Mesmo na Glia de Gregrio, a mortalidade trazida, segundo o autor, pode ser comparada,

    guardada as devidas propores, mortalidade engendrada pela primeira guerra mundial. No

    final da vida do bispo de Tours, o poder e a confiana na cultura comeavam a deixar o

    Mediterrneo em direo ao Noroeste da Europa.

    17 Ibidem, pp. 118-119.

  • 15

    Gregrio de Tours, apesar de suas crticas aos reis francos, comportava-se como um

    sdito leal e deseja que a realeza fosse uma defensora do cristianismo. Mesmo a conflituosa

    situao poltica da Glia, dividida por lutas familiares pelo poder, no alterou a sua imagem

    de certa estabilidade junto aos estrangeiros. Na realidade, na regio, formara-se uma espcie

    de confederao de regies, cujas fronteiras eram defendidas por um Estado vivel18.

    Na Glia, antigas famlias romanas tinham sobrevivido desde o Reno at a Aquitnia.

    Somou-se a essa classe dominante, uma outra de origem franca e romana. Tal grupo estava

    unido pelo catolicismo. Ao longo das geraes, os bispos de Glia tinham passado por

    modificaes. No passado, sculo V, tinham sido os sustentculos morais da populao

    romana em face ao contexto conturbado desse sculo. poca de Gregrio de Tours cada

    qual representava o quadro social do novo reino franco. Apesar de fazer de modo pessoal,

    cada bispo era a representao da lei e da ordem em sua regio. Os bispos controlavam

    fortunas pessoais espalhadas pela Glia e ainda, segundo o autor, eram responsveis pela

    distribuio de esmolas por meio de um complexo sistema de ajuda piedosa.

    O sexto sculo foi o perodo em que as cidades romanas da Glia perderam a sua

    vivacidade. Passaram a representar centros cerimoniais. Os centros urbanos deixaram de ser

    espaos fechados e ordenados tal como foram no perodo romano. Agora, alargavam-se para

    os campos e estavam rodeadas por diversos santurios e, para alm deles, encontravam-se os

    palcios administrativos de uma aristocracia rural. Entretanto ainda eram dominadas por

    muralhas romanas transformadas em castelo de bispos.

    Ao se considerar a obra de Gregrio de Tours, h de se ponderar o fato que vinha de

    uma famlia de bispos cuja ao contribura para modelar a regio da Glia do Sul. A

    reverentia (devoo) era tradicional na famlia19. O seu pai trazia sempre consigo um

    medalho de relquias cujos poderes o protegia. Gregrio, ao aprender ler, conseguiu, por

    meio de um remdio curar a gota do seu pai, atravs de uma receita sobrenatural presente na

    Bblia. Embora, a priori, se comparado a Cesrio, o bispo de Tours possa ser considerado um

    rusitici, tal comparao seria equivocada. A sua receita viria ser o Livro das Sagradas

    Escrituras, no o conhecimento difundido pelos rudes.

    Com a idade de 34 anos, o bispo de Tours esperava que os cristos catlicos tivessem

    a mesma devoo pelos santos que ele tinha. Peter Brown, ao descrever aspectos da obra

    desse eclesistico, mostrou como Gregrio teve oportunidades de visualizar os piores e os

    mais vulnerveis aspectos dos magnates da Glia. Em sua Histria, escrita em um latim

    18 Cf. Ibidem, p. 120.19 Ibidem, p. 121.

  • 16

    rstico, no para se dirigir aos camponeses, mas aos senhores atuais e futuros cuja

    linguagem distanciava-se do latim e, aos poucos, compunha o francs. Peter Brown considera

    um equvoco chamar esse texto de Histria dos Francos, pois as inquietaes do bispo no

    podem ser associadas a aspectos tnicos, mas aos temas da penitncia e ao pecado.

    Ao escrever a histria do seu tempo, Gregrio de Tours visava a assegurar que os

    problemas dos pecadores abastados, francos ou romanos, seriam lembrados por muito tempo.

    Ao fazer isso, conseguiu dar pormenores das aes desses pecadores. Os santos

    desempenharam um papel fundamental na estrutura desse texto, porque foram representados

    como os guardies de uma ordem moral cujos representantes terrenos eram os bispos das

    cidades da Glia. O contexto da Histria de Gregrio de Tours o mundo urbano que clama

    por justia e paz.

    Ele passou a impresso de uma regio completamente cristianizada. As suas aluses

    ao paganismo dizem respeito s reas brbaras do Norte da Glia, e das colinas e florestas

    do Reno e do Mosela. A sua preocupao, portanto, era a facilidade com a qual surgia

    verses alternativas do Cristianismo todas as vezes em que os bispos relaxavam e diminuam

    a vigilncia. Em Vida dos Padres da Igreja, Gregrio defendia que, mesmo em regies

    longnquas, a memria dos homens santos e dos eremitas seria eternamente lembrada. Isso

    soava como uma advertncia queles que insistiam em admirar pessoas menos

    recomendveis.

    Para o autor, Gregrio de Tours recuperou em sua obra certa magia, pois a correta

    devoo aos santos conseguiria tocar em diversos pontos da vida nos campos da Glia. No

    incio da Idade Mdia, a relquia era um vestgio material, deixado por uma pessoa santa, uma

    pgnora, ou seja, uma garantia da proximidade do Paraso. Ela comprova a existncia do

    Paraso, de onde Ado foi expulso, mas que os santos estavam agora.

    Assim, o sagrado retornou aos campos da Glia, a gua, tocada por So Martinho

    voltara a ter poderes sobrenaturais. Uma rvore usada por esse santo para fazer remdios

    tambm tinha poderes.

    Captulo 7 Bispos, cidade e deserto: A Roma do Oriente

    No captulo, o autor refere-se, inicialmente, aos episdios que envolveram Pedro, o

    Ibrico, um prncipe da Gergia, eleito bispo de Maiouma, cidade porturia de Gaza, que

    enfrentou problemas com a sua congregao. Pedro era um defensor do conclio da

    Calcednia, de 451. Ele sofreu ameaas para realizar a Grande Liturgia do mesmo modo

  • 17

    que o seu antecessor. Esse ritual pblico tinha como funo garantir os favores de Deus para

    com a sua cidade. Apesar das controvrsias, havia consenso sobre o fato de que Pedro era a

    autoridade eclesistica mais importante da cidade.

    Aps a realizao da cerimnia, em agosto de 452, retirou-se para o palcio onde

    recebeu o Conselho da cidade e os representantes imperais. Os rituais pblicos realizados

    pelo bispo e pelo seu clero geravam enormes gastos para a cidade. Tal como na Glia, os

    bispos tinham por funo impor ordem cidade. No entanto, ao contrrio do caso da Glia,

    os bispos do Oriente eram conselheiros da cidade e no um poderoso local. Afinal, o sistema

    imperial criado por Diocleciano e Constantino mantinha-se em uma regio to extensa como a

    do posterior imprio Otomano. Assim, os bispos herdaram atribuies de um governo

    centralizado e foram sistematicamente introduzidos nas cidades. Acabaram por assumir

    funes que tinham, durante muito tempo, sido desempenhadas pelos conselhos urbanos.

    Ao mesmo tempo, exerciam a funo de vigias do imperador, pois deveriam dar

    informaes ao imperador sobre funcionrios corruptos ou incompetentes. Na realidade, eram

    representantes do imperador nas cidades. Para exemplificar isso, Brown sublinhou que as

    ordens do imperador eram lidas em pblico aos notveis no salo de audincias do bispo20.

    Em seguida, fixadas no prtico das igrejas. Eles desempenham funes como controlar o

    peso e a medida utilizados nos mercados, fiscalizavam o estado de conservao das muralhas,

    em momentos difceis, chegavam at mesmo a abenoar e a disparar as catapultas.

    Ao se tratar do sculo VI, o reinado de Justiniano se sobressai demasiadamente por

    causa das implicaes trazidas por suas aes de governo. No entanto, nem mesmo o seu

    governo foi capaz de impor a unidade religiosa no imprio, embora tenha tentado. Nem

    mesmo o Estado e as suas cidades importantes foram capazes de exercer a fora coercitiva

    para isso.

    Paradoxalmente, os bispos, ao administrarem as cidades, entravam em contato com

    aspectos pouco cristos. Ao transpor o espao das igrejas, as classes governamentais estavam

    muito ligadas aos smbolos de poder e prosperidade que muito pouco, ou nada, tinham a ver

    com o cristianismo. Desde o final do sculo V, houve mudanas nas elites orientais cujos

    resultados foram dramticos. Trata-se da formao de uma juventude que passou a apoiar as

    atividades de competio das cidades. Nesse contexto, cada cidade passou a ser dividia em

    dois grupos os Azuis e os Verdes, que eram incentivados a colaborar com as atividades

    de competio.

    20 Cf. Ibidem, p. 130.

  • 18

    No fundo, trata-se de grupos completamente profanos que apresentavam grande

    rivalidade, sobretudo, nas corridas de cavalo. Tinham no hipdromo um lugar para celebrar

    as vitrias. Esse espao, muito criticado pelos escritores cristos, desempenhava uma funo

    importante na mstica imperial.

    Decorria daqui um dos paradoxos da sociedade romana oriental. No Ocidente, os bispos sentiam-se cada vez mais seguros do seu domnio sobre as cidades sobreviventes, tendendo a fechar-se nestes osis de propriedade crist cuidadosamente mantida e a enfrentar os campos onde o Cristianismo parecia menos seguro, ou que, pelo menos, eram mais difceis de controlar. Na Sria e no Egipto, pelo contrrio, era como se as cidades, os centos de governo imperial, fossem enclaves de vida profana no meio de uma populao rural temente a Deus. Ao longo do Nilo, as aldeias, que em tempos tinham crescido volta de tempos pagos, encontravam agora uma nova coeso no seu clero cristo e uma nova lealdade para com os patriarcas monofisitas de Alexandria.21

    Alis, foram os membros do clero que transformaram o siraco e o copta em lnguas

    literrias importantes. Paralelamente ao mundo urbano, surgiu uma realidade crist nova e

    pujante. Apesar da separao entre o campo e a cidade no imprio oriental. Em seu

    imaginrio, a separao mais relevante era entre o deserto e o mundo. O primeiro estava

    ligado s representaes da vida angelical dos ascetas, j o segundo estava vinculado ao

    comportamento mais hesitante das pessoas mundanas. Homens e mulheres do clero ou cujas

    atribuies e obrigaes sociais os distanciavam da totalidade de Cristo.

    Se comparado ao mundo ocidental, nota-se outra diferena presente na forma de

    pensar dos orientais. Na sociedade ocidental, desde Santo Agostinho, existia a tendncia em

    associar a manifestao da graa triunfante de Deus a homens, vistos como santos, que

    venceram o mundo e, um nmero significativo dessas pessoas, conseguiu isso como bispos

    e como governantes de cidades, pois representava a lei e a ordem. Assim, santidade e cargo

    eclesistico convergiam. Porm, o mundo oriental, acreditava-se que o Esprito Santo agia

    em pessoas para que elas fossem ativas fora da sociedade, portanto, no deserto. Mas no se

    trata de um deserto impenetrvel, pragmaticamente, encontrava-se a distncias curtas. A

    questo era que apenas o deserto, compreendido como oposto vida organizada, podia

    possibilitar aos ascetas, atravs de penitncias e trabalho rduo, gozar da glria angelical do

    paraso terrestre.

    Mesmo toda a admirao de ocidentais como Gregrio de Tours aos santos no fazia

    com que eles procurassem o paraso na Terra. Os vestgios desse lugar sagrado estavam, por 21 Ibidem, p. 133.

  • 19

    exemplo, na sepultura de So Martinho, ou seja, um morto que gozava desse lugar sagrado.

    No Oriente, acreditava-se que pessoas santas e vivas poderiam aproveitar disso ainda em vida.

    Os santos anglicos no deixavam o mundo, afinal no interrompiam suas relaes com ele.

    Ao invs de fazer isso, para a imaginao dos seus contemporneos, limitavam os seus

    problemas atravs de suas oraes.

    Esses indivduos santos do deserto satisfaziam a necessidade de solidariedade e de

    direo espiritual da sociedade oriental. Como os membros do clero e, sobretudo, os bispos

    estavam envolvidos com as questes de diferenciao social do mundo, no eram capazes de

    atender aos anseios espirituais da sociedade. Para os monges orientais, no se diferenciava

    um leigo de um clrigo, pois ambos estavam ligados ao mundo. Contudo, essa situao no

    era vista como um problema para os contemporneos.

    Na verdade, o verdadeiro problema residia no fato de que a Igreja oriental no era

    nica, ou seja, havia um imprio notadamente unificado, mas que no gozava de uma igreja

    unida. At mesmo as medidas enrgicas de Justiniano para estabelecer uma igreja nica

    atravs de Constantinopla fracassaram. Para o homem da dcada de 20 do sculo VI, em

    Constantinopla, havia uma combinao de ansiedade e determinao somada conscincia de

    que se vivia em um mundo em transformao.

    A queda do imprio romano ocidental era lida de forma diferenciada pelos grupos

    religiosos. Os pagos consideram que o fim dos cultos nos templos tinha sido o responsvel,

    j os cristos monofisitas atriburam a culpa ao conclio da Calcednia. Ao mesmo tempo,

    perceberam que Constantinopla no era mais a nova Roma, com a queda da capital

    ocidental, era a nica verdadeira capital do imprio romano. Para Peter Brown chamar esse

    imprio de Bizantino um equvoco, porque nega a continuidade com o imprio romano e, ao

    mesmo tempo, despreza o sentimento dos homens do sculo VI de que faziam parte do

    imprio romano. Eles se viam a si mesmos como romanos. Usava-se ainda o latim nas leis,

    embora houvesse a preocupao de fazer tradues gregas e siracas. Assim, a lngua dos

    romanos era utilizada como a lngua sagrada do Estado romano.

    Ironicamente, para Constantinopla, Roma havia cado por no ter sido to romana.

    O autor, ao descrever a magnitude do oramento anual do imprio oriental, no incio do

    sculo VI, que era de 90 000 moedas de ouro, sublinhou que nenhum outro estado a Oeste da

    China era capaz de ter tal quantia de modo regular sua disposio.

    Aps apresentar a capacidade econmica e a forma como o imprio oriental

    compreendia a situao no Ocidente, Peter Brown passou a dar informaes sobre o

    imperador que mais marcou o sculo VI. Justiniano assim como o seu tio, que governou em

  • 20

    seu nome entre 518 e 527, era originrio do vale Vardar, perto de Skopje, atualmente uma

    cidade da Repblica da Macednia. A cidade fazia parte de uma rea perifrica do imprio

    cuja lngua era o latim, alm disso, encontrava-se a meio caminho, em linha reta, entre Roma

    e Constantinopla. Justiniano acreditava verdadeiramente que deveria unificar o imprio

    romano cristo.

    Ao contrrio de seus antecessores, Justiniano era bastante intolerante com as prticas

    tais como a utilizada por Teodsio II que havia declarado a no existncia de pagos no

    imprio. Na prtica, isso possibilitava aos homens sbios que mantivessem as suas prticas

    religiosas, desde que mantivessem certa discrio. Esses homens conseguiam, inclusive, ter

    cargos pblicos. Mas Justiniano comeou a mudar isso. Em 528, estipulou o prazo de trs

    meses para que os pagos se convertessem ao cristianismo; em 529, proibiu que os

    professores pagos de filosofia da academia de Atenas de ensinarem em pblico. Para ele,

    todo o conhecimento deveria ser cristo.

    Subjacente s suas medidas autoritrias, teve conscincia da importncia de ter em

    mos um cdigo romano atualizado, pois o Cdigo de Teodsio II no parecia ser suficiente.

    Portanto, ordenou ao advogado Triboniano que, juntamente com uma equipa de especialistas,

    produzisse um Digesto de todo o corpo legal de Roma. Aps ter lido 1428 livros de lei,

    condensou-as em 800 000 palavras.

    Ao mesmo tempo, preparou-se um novo livro de ensino para as escolas de leis de Beirute os Institutos. O Cdigo de Teodsio foi assim actualizado pelo de Justiniano: O Codex Justinianus. Este cdigo apareceu em 529, o Digesto e os Institutos em 533. O Direito romano que mais tarde foi restabelecido na Europa medieval, e que foi a base de todos os cdigos subsequentes de direito civil, bem como do direito imperial russo que se manteve em vigor at 1917, no era um legado directo de Roma, mas sim de Justiniano. Baseava-se nas obras produzidas por um grupo de juristas de Constantinopla, dirigida ao longo de cinco trabalhosos anos por um homem decidido a testar at ao limite as possibilidades do Imprio que governara.22

    A sua reforma legislativa definiu o ritmo da dcada de 30 do sculo VI. Criou-se,

    durante algum tempo, a sensao de que o imperador era capaz de fazer qualquer coisa. No

    entanto, em 13 de janeiro de 532, eclodiram confrontos nas ruas de Constantinopla. As

    faces Azul e Verde uniram-se pela primeira vez. Desejavam substituir os conselheiros do

    imperador e, se possvel, o prprio imperador. A represso foi violenta e matou 30 000

    cidados, o hipdromo foi palco de um verdadeiro massacre.22 Ibidem, pp. 138-139.

  • 21

    De uma forma hbil, o imperador usou a destruio causada para os seus fins polticos.

    Assim, a principal baslica da cidade foi substituda pala magnfica igreja de Santa Sofia,

    tratava-se de uma igreja decida Sabedoria Sagrada. A igreja foi consagrada cinco anos

    aps o motim Nik e foi transformada no smbolo da devoo do imperador e como centro do

    mundo ortodoxo.

    Na mesma poca em que a igreja estava sendo construda, verificou-se uma grande

    expanso entre 533 e 540. Cartago, a Siclia, Roma e Ravena caram nas mos do imperador

    oriental. Na realidade, Justiniano, independentemente do seu insucesso posterior, acentuou

    uma tendncia cuja reverso s ocorreu em 800. Trata-se do fato de que, no incio da idade

    mdia, os papas estavam subordinados aos imperadores orientais. At 800, todos os

    documentos papais enviados aos bispos e representantes das cidades eram datados segundo o

    ano do reinado do imperador de Constantinopla. Ele era o senhor de quem, na verdade, o

    papa dependia23.

    Sob o seu governo, uniram-se as bacias orientais e ocidentais do Mediterrneo, as suas

    moedas de ouro, os solidi imperais, eram consideradas no Ceilo como cunhadas no maior

    imprio do mundo. No interior do Mediterrneo circulavam cermicas uniformes, que

    explicitam a homogeneidade econmica e do consumo de um imprio unificado. Para Peter

    Brown, todas as conquistas desse imperador deparam-se com um inimigo poderosssimo a

    peste bubnica. No vero de 542, chegava ao Ocidente trazendo terrveis estragos, dentre os

    quais o esvaziamento de cidades costeiras. Alis, segundo o autor, a peste manteve-se

    endmica no Oriente Mdio at meados do sculo VIII. Para o autor, apenas aps o fim da

    peste que se verifica o surgimento de dois novos Estados o rejuvenescido imprio bizantino

    e o recente Califado de Bagadade.

    A partir de 542, a extenso do imperial, que tinha sido uma arma importante de

    Justiniano, transformou-se em mais uma poderosa ameaa. A partir de ento, as mais

    longnquas fronteiras passaram a competir por um quinho dos poucos recursos existentes.

    Alm disso, entre 540 e 628, a guerra contra a Prsia seria um grande problema para o

    imprio oriental.

    A Itlia e o Danbio acabaram por perder frente a uma emergncia formidvel: sob a direco de Cosris I (530-579), os Persas voltaram a manifestar o desejo de juntar a Mesopotmia costa mediterrnica. Senhor de um vasto Imprio que se estendia, atravs do planalto iraniano, at sia

    23 Cf. Ibidem, p. 140.

  • 22

    Central, o Rei dos Reis persa dispunha de uma eterna vantagem militar []24

    Nesse contexto hostil, a estrutura imperial, a partir 550, comeou apresentar falhas

    cujos resultados podem ser notados ao longo do Danbio at a regio Sul, junto ao Egeu. Na

    poca, tribos eslavas penetraram a regio montanhosa do hinterland balcnico, chegando

    Grcia e costa Dalmcia. Mesmo nessa conjuntura complicada, Justiniano continuou a

    procurar a unidade religiosa. Ele estava disposto a convencer os dissidentes monofisitas a

    aceitarem as concluses do conclio da Calcednia.

    Em meio s questes religiosas, o reinado de Justiniano ainda foi marcado pela

    questo dos Trs Captulos. O papa Viglio (537-555) foi obrigado a aceitar as

    reinterpretaes do conclio da Calcednia sustentadas por Justiniano. Por causa do papel

    fundamental exercido do Tome do papa Leo, o conclio foi visto pelo clero latino como

    sendo o seu conclio. Justiniano no estava muito preocupado em agradar os latinos, a sua

    inteno era a de ganhar os srios. Nesse quadro, Peter Brown considerou surpreendente a

    posio dos monofisitas, que estavam prximos aos pressupostos defendidos por Justiniano,

    mas, mesmo assim, no foram influenciados pela tentativa do imperador de transformar o

    conclio da Calcednia em algo irrelevante para os monofisitas.

    Justiniano, juntamente com os monofisitas, tinha grande devoo pela teologia de

    Cirilo de Alexandria, patriarca de Alexandria entre 412 e 444. No entanto, os bispos do

    conclio da Calcednia, embora louvassem Cirilo tinham considerado como ortodoxos

    certos bispos que atacavam com veemncia a teologia desse patriarca. Em parte a relao

    com os monofisitas devia-se sua esposa Teodora. Ela era uma devota monofisita

    influenciada pela obra de Severo de Antioquia (465-538). At a morte de sua esposa, o

    imperador conseguiu manter uma boa relao com a oposio religiosa, para Peter Brown, a

    morte dela em 548, marca a perda da sua capacidade de lidar com essa oposio com a mesma

    eficcia anterior.

    O contexto social, da dcada de 50 do sculo VI, foi marcado pela diminuio do

    poder dos bispos calcednios, que estavam instalados nas cidades. Na poca, j no era

    mais possvel exercer o mesmo domnio a partir das cidades como fora feito anteriormente.

    Alm disso, tais bispos eram constantemente atacados pelo deserto e por santos

    monofisitas. Simo, o Eremita, no se submeteu ao conclio e lembrou aos cristos que no

    era de um trono de um bispo onde se encontrava a santidade, mas sim nos montes.

    24 Ibidem, p. 142.

  • 23

    Como resultado da peste na Sria, verificou-se um processo, cujo resultado, em longo

    prazo, seria o de nivelar as cidades e os campos. Para os monofisitas, a perda de controle das

    cidades no significava que estivessem assumindo uma posio marginal. Partiram para os

    mosteiros de aldeias desenvolvidas. No Egito e na Sria e, mesmo em outras regies, redes

    informais tinham sido formadas baseadas nas aldeias. Entre 542 e 578, Jacob Baradeus, bispo

    monofisita de Edessa, decidiu estabelecer uma hierarquia para os monofisitas. Dessa forma,

    deixara de lutar por espao dentro a hierarquia da Igreja nica do imprio, criando a sua

    prpria em sua igreja prpria.

    A Igreja monofisita criada por Jacob no se assemelhava antiga Igreja imperial. No tinha uma estrutura celular, onde as diversas comunidades urbanas se acumulavam numa pirmide cujo topo estava em Constantinopla. Pelo contrrio, consistia num conjunto de redes regionais. As cidades e os campos eram iguais, porque se encontravam igualmente cobertos pelos compridos tentculos de uma mesma identidade religiosa. At as fronteiras do Imprio foram ignoradas; ao longo do sculo VI; os missionrios monofisitas tinham criado aquilo que j se chamou uma Comunidade de reinos cristos na periferia do Imprio. Em 551, a aristocracia armnia rejeitou o Conclio de Calcednia. Muito mais a sul, Axum e Nbia eram reinos monofisitas independentes, e os xeques rabes da fronteira sria comeava a parecer como patronos de mosteiros monofisitas. O clero monofisita viajava facilmente entre os seus correligionrios, desde Constantinopla at Mesopotmia persa. O pesado sentido colectivo de uma simples comunidade urbana ligada na celebrao da Eucaristia, com que inicimos este captulo, deu lugar a um mundo de redes justapostas, que se estendiam s cidades, s vilas e aldeias. Por todo o Mdio Oriente, calcednio e manofisita passaram a viver lado a lado, sem se misturarem. Ambos sentiam estar mais ligados aos correligionrios longnquos do que aos vizinhos herticos da mesma cidade.25

    Aps a morte de Justiniano, as prximas geraes testemunharam guerras terrveis

    com a Prsia, uma escalda da violncia entre Azuis e Verdes e pelo fortalecimento da Igreja

    monofisita. Alm disso, houve um crescimento dos textos hagiogrficos, semelhantes ao

    contemporneo Gregrio de Tours, no desejo de descrever os aspectos do sagrado. A teologia

    de Joo de feso demonstra como a santidade flura do deserto para as terras habitadas.

    25 Ibidem, p. 146.