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1 PESQUISA QUALITATIVA ENQUANTO FERRAMENTA PARA COMPREENDER O MODO DE VIDA FAXINALENSE Alcimara Aparecida Föetsch Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR – Campus de União da Vitória/PR. [email protected] Vanessa Maria Ludka Universidade Federal do Paraná - UFPR (2012). [email protected] Resumo O presente artigo objetiva sugerir uma possibilidade metodológica para a análise das comunidades tradicionais existentes no espaço agrário do Brasil. Para tanto, propõe uma discussão a partir da pesquisa qualitativa enquanto possibilidade de se compreender o modo de vida faxinalense característico da região Sul do Brasil. O texto foi organizado de forma a sintetizar os resultados colhidos na entrevista com uma líder comunitária do Faxinal do Emboque, município de São Mateus do Sul/PR, mesclando tais informações empíricas à discussão metodológica da entrevista narrativa. Trata-se de um esforço primeiro no sentido de compreender o modo de vida local/tradicional de uma porção do espaço agrário brasileiro. Palavras-chave: Pesquisa qualitativa. Entrevista narrativa. comunidades tradicionais, modo de vida, proposta metodológica. Introdução “As orientações ou representações coletivas de um grupo não constituem um modelo perceptível e evidente em um primeiro nível de interpretação”. (WELLER, 2011, p.45). A referência acima, retirada do livro de Wivian Weller (2011), auxilia na definição das nuances analíticas do presente ensaio. Inúmeras e variadas são as ferramentas, abordagens, procedimentos e técnicas para se observar/analisar o objeto de pesquisa, cada qual, respondendo a um contexto preciso e a uma problemática posta pelo pesquisador. No contexto cultural das comunidades tradicionais brasileiras, dada toda sua complexidade espaço-temporal, tal escolha é de fundamental importância para a compreensão, neste caso, das relações comunitárias dos sujeitos com seu espaço geográfico. A presente reflexão é parte dos resultados do trabalho empírico desenvolvido na região do Contestado através dos levantamentos de campo realizados pelo grupo de pesquisa intitulado: “A(s) Geografia(s) Territoriais Paranaenses: Territórios, Redes, Políticas Públicas e Conflitos na Formação do Paraná”. Assim sendo, o presente ensaio consiste

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PESQUISA QUALITATIVA ENQUANTO FERRAMENTA PARA COMPREENDER O MODO DE VIDA FAXINALENSE

Alcimara Aparecida Föetsch Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR – Campus de União da Vitória/PR.

[email protected]

Vanessa Maria Ludka Universidade Federal do Paraná - UFPR (2012).

[email protected] Resumo O presente artigo objetiva sugerir uma possibilidade metodológica para a análise das comunidades tradicionais existentes no espaço agrário do Brasil. Para tanto, propõe uma discussão a partir da pesquisa qualitativa enquanto possibilidade de se compreender o modo de vida faxinalense característico da região Sul do Brasil. O texto foi organizado de forma a sintetizar os resultados colhidos na entrevista com uma líder comunitária do Faxinal do Emboque, município de São Mateus do Sul/PR, mesclando tais informações empíricas à discussão metodológica da entrevista narrativa. Trata-se de um esforço primeiro no sentido de compreender o modo de vida local/tradicional de uma porção do espaço agrário brasileiro. Palavras-chave: Pesquisa qualitativa. Entrevista narrativa. comunidades tradicionais, modo de vida, proposta metodológica.

Introdução

“As orientações ou representações coletivas de um grupo não constituem um modelo perceptível e evidente em um

primeiro nível de interpretação”. (WELLER, 2011, p.45).

A referência acima, retirada do livro de Wivian Weller (2011), auxilia na definição das

nuances analíticas do presente ensaio. Inúmeras e variadas são as ferramentas,

abordagens, procedimentos e técnicas para se observar/analisar o objeto de pesquisa,

cada qual, respondendo a um contexto preciso e a uma problemática posta pelo

pesquisador. No contexto cultural das comunidades tradicionais brasileiras, dada toda

sua complexidade espaço-temporal, tal escolha é de fundamental importância para a

compreensão, neste caso, das relações comunitárias dos sujeitos com seu espaço

geográfico.

A presente reflexão é parte dos resultados do trabalho empírico desenvolvido na região

do Contestado através dos levantamentos de campo realizados pelo grupo de pesquisa

intitulado: “A(s) Geografia(s) Territoriais Paranaenses: Territórios, Redes, Políticas

Públicas e Conflitos na Formação do Paraná”. Assim sendo, o presente ensaio consiste

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em uma reflexão acerca das contribuições da pesquisa qualitativa, mais precisamente da

entrevista narrativa, para um esforço primeiro de compreender o modo de vida existente

na comunidade tradicional do Faxinal do Emboque, município de São Mateus do

Sul/PR.

Para tanto, organiza-se a presente discussão a partir de pontos centrais delineados a

partir de uma entrevista narrativa realizada com uma das líderes da comunidade.

Paralelamente a estes dados empíricos, apresentam-se discussões teóricas e

argumentações pessoais acerca das percepções tanto do sujeito da entrevista quanto das

informações cedidas.

Discute-se, nesta reflexão, a complexidade da formação étnica da comunidade, marcada

por caboclos e poloneses; as relações comunitárias para a geração de renda, as quais não

repousam mais principalmente na criação suína; os conflitos internos e externos que

levam a desagregação ou a fragilização do sistema; e, por fim, a relação desta

comunidade com a Guerra do Contestado e com o monge João Maria.

O objetivo central é espacializar, partindo de uma comunidade tradicional, as reflexões

teóricas acerca das abordagens da pesquisa qualitativa, evidenciando procedimentos,

técnicas e a análise de tais fontes primárias, as quais se acredita serem de grande valor

para a pesquisa científica e imprescindíveis para a compreensão destas comunidades

tradicionais.

A mistura é tão grande, que já virou polonês

Tradicionalmente dividido em “terras de criar” e “terras de plantar”, o sistema faxinal

destaca-se pelos laços comunitários e o uso comum da terra. Parte destes se desagregou

por completo, outra parte viu sua área territorial diminuir significativamente frente às

pressões externas: latifundiários, capitalistas e poder público, entre outros.

Compreender o sistema é uma tarefa complexa visto que não há uma lógica étnico-

cultural comum, existindo faxinais caboclos, ucranianos, poloneses, alemães e até

mistos.

Dessa maneira, a entrevista narrativa é fundamental para compreender a relação espaço-

tempo, nos propósitos geográficos, existente nessas comunidades. Schütze (2010) ao

analisar a pesquisa biográfica e a entrevista narrativa, apesar do olhar voltado para a

autobiografia, apresenta três partes centrais que auxiliam metodologicamente a técnica

das entrevistas narrativas:

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1) Deixar falar: onde o informante ou entrevistado expõe inicialmente suas percepções

acerca da temática em questão;

2) Fios perdidos: quando o entrevistador procura esclarecer dúvidas e/ou complementar

comentários;

3) Fase dos por quês: quando o pesquisador realiza descrições de situações que possam

ter passado despercebido e que se repetem no discurso.

Esses aspectos mencionados foram levados em consideração na aplicação da entrevista,

neste artigo, analisada. Apesar de não se tratar de uma entrevista autobiográfica, as

passagens vividas pelo sujeito da entrevista são relevantes para a compreensão da

história da própria comunidade. Aspectos étnicos e religiosos marcaram a entrevista e

surgiram, inicialmente, partindo da entrevistada, que afirma que o faxinal do Emboque

possui uma predominância étnica de descendentes de poloneses e,

Como são polacos, todos são católicos, aqui dentro do faxinal não tem nenhum tipo de outra igreja, só fora, mas ninguém aqui de dentro participa. O padre que atende aqui vem da Vila Nepomuceno, e a nossa paróquia é da Santa Polonesa, a santa preta: Czestochowa e também a Nossa Senhora Aparecida, então nossa paróquia é conhecida como a Paróquia das Virgens Negras. A missa acontece uma vez por mês, mas todo domingo tem a celebração da palavra, e tem também a catequese. Aconteceram algumas coisas que eu não gostei muito e daí eu deixei a catequese, preferi me afastar e não brigar. [expressão de tristeza]. [...] (PRZIVITOWSKI, 2011)

O conservadorismo, marca da etnia polonesa, se torna evidente na fala acima, quando

nota-se a referência católica enquanto única religião praticada. Outra menção marcante

pode ser evidenciada pela citação da existência de conflitos internos, que também

permeiam os faxinais, como tantas outras comunidades.

Acerca da origem do faxinal do Emboque pouco se obteve na entrevista:

Pelo que ouvi falar das pessoas mais velhas, existe a mais de cem anos, não sei dizer ao certo quem foram os primeiros moradores, mas os primeiros eram os ‘brasileiros’ [maneira que os poloneses chamam os caboclos], tinha os seguintes sobrenomes: Pacheco, Espindola, e, tinha também os poloneses: Yavorski, Ianoski, Przivitowski, Cruchewski, [observar mudanças nos sobrenomes] (PRZIVITOWSKI, 2011).

Apesar do sujeito da entrevista não fornecer muitos dados acerca da origem do faxinal,

sugeriu outras pessoas da comunidade que poderão contribuir com tais informações.

Além disso, partindo desta última fala, pode-se observar a distinção feita com relação

aos caboclos, então chamados de “brasileiros” e também se pode, futuramente, observar

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a modificação em alguns sobrenomes, visto que quando alguns poloneses eram

inquiridos acerca de seus sobrenomes, estes mencionavam nomes de animais, como

Zaions (que em polonês, significa coelho).

Novamente, o conservadorismo polonês fica evidente na fala do sujeito da entrevista

quando se questiona a existência dos “brasileiros” dentro do faxinal:

Ainda existem caboclos, mas a mistura é tão grande que ele já virou polonês, como o meu sogro, que é Oliveira, mas é Vitonski Oliveira, são dois sobrenomes poloneses para um brasileiro, então já é polonês. (PRZIVITOWSKI, 2011).

Dessa maneira, fica evidente a dificuldade em caracterizar a complexidade cultural do

sistema faxinal. Neste caso, sistema desenvolvido inicialmente por caboclos brasileiros

e mais tarde assimilado por imigrantes europeus poloneses.

Essa complexidade pode ser mais bem explicada pela adoção do método documentário

de Karl Manheim, que foi adaptado para a pesquisa empírica pelo sociólogo Ralf

Bohnsack, tendo como compreensão e interpretação das passagens discursivas e

narrativas dos grupos de discussão – mais aprofundados posteriormente por este artigo.

Esta proposta, discutida e aplicada por Weller (2011) sob o prisma das práticas culturais

e orientações coletivas dos grupos paulistanos e berlinenses de rap, aponta outras

considerações importantes na aplicação das entrevistas, sobretudo metodológicas, como:

a necessidade de uma conversa inicial com os coordenadores do local da entrevista, o

conhecimento prévio da área visitada, a participação em eventos organizados pelos

integrantes da comunidade analisada, o detalhamento da forma com que se procedeu a

entrevista, a relevância de se traçar o perfil do sujeito da entrevista, a explicação da

expressão e das gírias dos entrevistados, o destaque para o modo de vida local, a

percepção dos principais elementos da práxis social, a descrição do ambiente da

entrevista e a construção da identidade a partir da condição social e das histórias

vividas.

Tais questões de ordem metodológica auxiliaram na elaboração, condução e análise da

entrevista observada no presente artigo. Tomou-se o cuidado de escolher para a primeira

entrevista na comunidade do Faxinal do Emboque, a líder comunitária, a qual, dessa

forma, estaria ciente dos propósitos da presença das pesquisadoras na comunidade. A

conversa se deu na residência da entrevistada, onde foi possível perceber o modo de

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vida local e a práxis social diária, entretanto, para se compreender a identidade e a

condição social local, serão necessárias outras entrevistas e outras metodologias.

É engraçado, porque o pessoal acha que a gente sobrevive de vender o porco

Ao se adotar a metodologia qualitativa e as entrevistas narrativas como fonte empírica

de dados deve-se concordar que este é um caminho legítimo para a pesquisa, ou seja,

que é possível construir conhecimento a partir de entrevistas faladas, que estas são

válidas e legítimas. Neste sentido, Wiles; Rosenberg e Kearns (2005) destacam que

quando os geógrafos fazem entrevistas eles geralmente esperam que o entrevistado lhes

forneça um relato de experiência uma vez que a análise dessa narrativa fornece uma

abordagem rica e sensível, se apresentando como uma ferramenta valiosa de

compreensão in loco.

No caso das comunidades tradicionais, a entrevista narrativa permite essa observação. A

presença dos animais no criadouro comum (ou coletivo) marca a paisagem dos faxinais.

As imagens abaixo retratam a área do criadouro coletivo deste faxinal do Emboque:

Imagens 01 e 02: Área do criadouro coletivo do faxinal do Emboque, município de São Mateus do Sul, estado do Paraná. Local onde os animais circulam livremente.

Fonte: as autoras, 2011.

Durante muito tempo, a criação e a comercialização do porco – inclusive durante o

tropeirismo – foi importantíssima para a manutenção do sistema, entretanto, atualmente,

num olhar mais aprofundado, percebe-se que este não representa mais a principal renda.

O modo de vida, no Faxinal do Emboque, está associado à sobrevivência coletiva e ao

uso comum do criadouro comunitário:

É uma mistura de tudo, arroz, feijão, milho, erva, fumo, como é uma comunidade pequena e a maioria é polonesa, então eles tem uma outra cultura, a maioria da planta de fumo é na base da enxada, não se usa o

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veneno. O arroz, o feijão e o milho é para uso na propriedade mesmo, quando sobra daí vende. Nas terras de plantar cada um tem o seu pedaço, cada mulher tem a sua horta em casa [...] (PRZIVITOWSKI, 2011).

As imagens seguintes retratam as áreas de plantar do faxinal do Emboque:

Imagem 03: Portão de acesso às terras de plantar no Faxinal do Emboque. Imagem 04: Vista parcial das terras de plantar do Faxinal do Emboque.

Fonte: as autoras, 2011.

As considerações acima auxiliam no entendimento desta sobrevivência coletiva no

faxinal, onde a comunidade pratica a agricultura de subsistência tradicional,

comercializando o excedente, além de destacar a questão de gênero, onde a mulher

desempenha papel importante na geração de renda. Esta horta doméstica, desenvolvida

pelas mulheres, cultiva também remédios caseiros (hortelã, babosa), os quais são

utilizados pela própria comunidade:

Existe também a Pastoral da Criança e eu sou uma das líderes da Pastoral, participam 20 mulheres e a atividade principal é ensinar como cuidar de uma criança, a alimentar e na verdade não é Pastoral da Criança, é a Pastoral da Família, faz os remédios caseiros, com as ervas plantadas em casa [...] Eu só tomo remédio para pressão alta porque ainda não descobrimos nenhum remédio natural, senão eu plantava aqui em casa mesmo (PRZIVITOWSKI, 2011).

Nesta comunidade, cinquenta e três famílias ocupam uma área de aproximadamente

sessenta e três alqueires. Cultivam sua horta doméstica e a agricultura de subsistência é

praticada fora do criadouro comum, nas terras de plantar. A presença dos animais

circundando a mata preservada também marca a paisagem faxinalense:

A maior parte da criação é para o consumo próprio, tem algumas vendas como o porco, o restante é mais para o consumo da propriedade, vendemos para parentes da cidade. Quanto aos animais, além do porco, tem a galinha, o gado, o cavalo, peru, cabritos [confinados], pato, ganso, marreco, o jacu, curucaca, que são bichos do mato (PRZIVITOWSKI, 2011).

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Assim, nesta lógica anticapitalista, o faxinal resiste, marcado pela singularidade da

relação com a terra. A criação de animais, não só do porco, a agricultura de subsistência

e também o extrativismo constituem as principais fontes de renda, as quais, nos laços

solidários de ajuda mútua em forma de puxirão caracterizam estas comunidades

tradicionais, sendo que o puxirão é compreendido como a ajuda mútua comunitária para

garantir a sobrevivência coletiva e a organização social da comunidade. Entre outras

atividades comunitárias, destacam-se também:

Arrumar as cercas, colheitas, fazem o troca dia, fazer erva, matar porco, boi meio grande, criação grande, todos ajudam quando precisa. (PRZIVITOWSKI, 2011).

Percebe-se, portanto, que a resistência camponesa faxinalense repousa nos laços sociais,

construídos historicamente por sobrevivência, mas que na modernidade assumem outra

função: garantir a posse de seu território pela tradicionalidade, o que, inevitavelmente

causa conflitos.

Tem pessoas que não veem a hora disso acabar

Enquanto alguns movimentos sociais buscam, a partir da existência coletiva, resistir aos

processos de homogeneização e desagregação, percebe-se também o movimento

contrário, o qual neste faxinal também existe:

Tem bastante pessoas de dentro do próprio faxinal que não vêem a hora disso acabar, a gente tem que matar um leão todo dia, né? (PRZIVITOWSKI, 2011).

Estes conflitos internos aumentam na medida em que outras pessoas, que não conhecem

a lógica do modo de vida faxinalense adquirem terras dentro do faxinal. Porém, nem

sempre todos os moradores da comunidade consideram interessante continuar com essa

racionalidade, preferindo cercar suas propriedades, abandonar a coletividade e criar seus

próprios animais e cultivar sua própria lavoura.

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Quanto aos conflitos externos, estes são mais problemáticos, neste faxinal, o poder

público muitas vezes, não compreendendo a organização social existente, institui

medidas que contribuem para a desagregação do sistema:

Primeiro que eles vieram aqui e foram direto lá no Paulo, porque eles pensaram que faxinal era só o Paulo que tinha, nem sabiam o que era, ai quando eles chegaram aqui a gente falou não, mas tem as leis, daí eles falaram que não sabiam que era uma coisa tão complicada assim [expressão de desaprovação] (PRZIVITOWSKI, 2011).

Trata-se de uma vistoria sanitária nos porcos crioulos criados no criadouro comunitário,

o que quase levou a uma matança de todos estes animais existentes no faxinal. Nota-se

que o poder público, sobretudo através das políticas públicas, atua nestas comunidades

nem sempre dotando de um entendimento da racionalidade social existente, o que pode

culminar em muitos conflitos internos e externos.

Na transcrição do trecho da entrevista acima, surge um ponto interessante para

discussão e que repousa no sentimento de desaprovação expressado pelo sujeito da

entrevista. São os “tons de evidência” (percebidos a partir da interpretação do texto de

BOURDIEU, Pierre. A ordem das coisas, 2008, p.81-101), que representam

acentuações nos discursos e que devem ser observados juntamente com as modificações

no tom de voz, expressões faciais e corporais dos entrevistados.

Essas expressões, normalmente são fruto de ausências de informações, medo de chocar

ou o temor em expor algumas passagens, como em:

Só que quando a gente saiu da reunião nós acabamos comprando uma caixa de foguete e a gente tava soltando, meu Deus, a briga que a gente arrumou, até hoje tem gente que não me olha na cara, aqui dentro do faxinal... (PRZIVITOWSKI, 2011).

Neste caso, a entrevistada narra uma passagem referente a estes conflitos externos e

internos no faxinal, quando numa reunião com a Vigilância Sanitária de São Mateus do

Sul decidiu-se não mais sacrificar todos os porcos da comunidade e os representantes

soltaram foguetes em comemoração. Algumas pessoas da própria comunidade não

aprovaram a iniciativa e o conflito começou. As reticências no final da frase

demonstram a dificuldade em expressar os sentimentos pela escrita e ressaltam a

dificuldade em compreender, interpretar e traduzir essas ausências juntamente com os

silêncios – também percebidos pela leitura de Bourdieu (2008).

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Onde ele passou, ali tem um olho

A região Sul do estado do Paraná e o Planalto Norte de Santa Catarina foram palco de

um conflito definidor de seus limites territoriais que ficou conhecido com a Guerra do

Contestado (1912-1916), o que se compreende como sendo um episódio complexo

alimentado por vários fatores: religiosos, culturais, econômicos, políticos e sociais

(FRAGA, 2005).

Neste faxinal, o referido conflito não teve impactos diretos – ao menos num primeiro

olhar. Entretanto, uma figura mítica, porém real, associada à Guerra, curiosamente pode

ser percebida na comunidade, trata-se do monge João Maria:

São os mais antigos que contam, né, que tem um registro e até onde ele passou ali tem um olho, não tem assim a água junto, porque tem alguns lugares que a água fica junto da cruz, ali não, tem a cruz, é conservado o lugar, mas a água fica mais para baixo, a própria comunidade conserva. (PRZIVITOWSKI, 2011).

A imagem seguinte retrata uma homenagem feita pela comunidade ao Monge João

Maria, próximo ao local onde existe um olho d’água atribuído ao santo:

Imagem 05: Homenagem ao Monge João Maria, no Faxinal do Emboque.

Fonte: as autoras, 2011.

Ainda de acordo com o sujeito da entrevista, ninguém tirou uma foto do monge, mas

mesmo assim as pessoas utilizam imagens de livros, os dez mandamentos do monge e

ainda afirma que:

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Acho que os mais antigos, muitos já morreram, meus avós contavam a história dele, mas eu não lembro, meus avós eram daqui, moravam atrás da casa da minha mãe ali, meu pai pode contar mais histórias do faxinal e do monge, muito melhor que eu, né. O seu Eduardo também pode contar isso. Ele vai ficar bem alegre se você fizer uma entrevista com ele, com certeza ele pode contar alguma coisa. (PRZIVITOWSKI, 2011).

Assim sendo, percebe-se que muitas memórias acerca da presença e pregações do

monge já se perderam na comunidade. Porém, algumas ainda existem, e, são estas, as

próximas buscas a serem traçadas.

Nesta tentativa de reconstrução, pode-se valer do método documentário como método

de interpretação dos grupos de discussão (sendo que o entendimento das opiniões do

grupo vai além de uma simples somatória de opiniões, reflete o contexto social, as

representações compartilhadas e as vivências coletivas. Trata-se de um método de

investigação no qual as discussões em grupo estão focadas na reflexão e narração de

experiências, objetivando a reconstrução dos contextos sociais, visões de mundo e

representações coletivas dos participantes), organizando um grupo para buscar

compreender as memórias da comunidade. Tal método consiste em um instrumento que

possibilita que o pesquisador compreenda o contexto social em que os entrevistados

estão inseridos, além de perceber suas visões de mundo e orientações coletivas. O que

ocorre, a partir deste, é uma alteração na postura de análise, ao invés de buscar entender

o que é a realidade social do entrevistado, a atenção está voltada para como se deu a

formação dessa realidade, possibilitando a compreensão do modus operandi e a

reconstrução das visões de mundo. (BOHNSACK; WELLER, 2010).

Neste trabalho empírico, é importante o estabelecimento de um tópico-guia, não para

limitar, e sim para otimizar a condução das entrevistas. Neste sentido, Bohnsack e

Weller (2010) apresentam três momentos principais da entrevista com os grupos de

discussão:

a) Discussão inicial: momento de estabelecer uma empatia com o entrevistado, ganhar

sua confiança. É fundamental dirigir a pergunta a todos do grupo, estimular a

participação e integração, dar liberdade para organização das falas, incentivar as

narrativas, organizar as discussões e só intervir quando for necessário;

b) Segunda sessão de perguntas: ao detectar um esgotamento nas discussões, lançar

perguntas imanentes, aprofundando a discussão e esclarecendo dúvidas;

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c) Sessão final de perguntas: lançar perguntas divergentes ou provocativas para

aprofundar as discussões.

Entretanto, vale ressaltar que a interpretação das informações coletadas, ou seja, a

análise do discurso do grupo deve ainda permitir a identificação de metáforas de foco,

ou seja, os pontos culminantes que permeiam as discussões, pois remetem aos espaços

de experiências conjuntivas permitindo compreender o contexto onde os entrevistados

se inserem. Para auxiliar nessa análise, Bohnsack e Weller (2010) apresentam um

método de interpretação dos grupos de discussão propondo cinco etapas:

1) Organização temática: consiste na elaboração do relatório geral, da identificação dos

entrevistados e da identificação temática (temas e sub-temas);

2) Interpretação formulada: consiste na descrição das discussões e dos conteúdos, na

compreensão do sentido das discussões e na decodificação do vocabulário utilizado

pelos entrevistados;

3) Interpretação refletida: consiste na reconstrução de orientação coletiva e na

organização do discurso (conteúdo da entrevista como quadro de referência);

4) Análise comparativa: consiste na comparação entre grupos para construção de um

modelo de orientação;

5) Construção de tipos e análise multidimensional: consiste na identificação de modelos

de interpretação (tipos) e análise da multidimensionalidade dos espaços de experiências.

Portanto, para compreender a história do Faxinal do Emboque e, sobretudo, as

significações da passagem do monge João Maria, o método documentário como método

de interpretação de um grupo de discussão formado por pessoas idosas da comunidade

pode auxiliar a elucidar tais passagens. Ressalta-se ainda que a interpretação

documentária permite analisar os processos sociais e interações pesquisados,

apreendendo a sequência de ações relatadas pelo grupo. Trata-se de uma metodologia

ainda a ser aplicada, cuja necessidade foi sentida na aplicação de uma entrevista

individualizada, cujos acontecimentos e fatos foram surgindo e não foram sendo

explicados suficientemente.

Conclusões – passos futuros

Estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas,

o meeiro luddita, o tecelão do obsoleto tear manual, o artesão utópico (...). Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência.

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(THOMPSON, 1987, p.13).

Ao sobrepor o primeiro obstáculo que consiste na definição do objeto de pesquisa, o

pesquisador depara-se com outro obstáculo que, por vezes, se apresenta quase tão

problemático quanto o primeiro: a definição da metodologia. Neste caso, objetivando

compreender o modo de vida da comunidade faxinalense do Emboque, a entrevista

narrativa se apresenta como uma valiosa ferramenta.

Inicialmente permitiu-se ao sujeito da pesquisa o “deixar falar” para, num segundo

momento, procurar fios perdidos e buscar ordenar os questionamentos em torno de

pontos centrais – que objetivam ordenar, não engessar a discussão. Percebeu-se por essa

entrevista, o conservadorismo polonês presente na comunidade, mas pouco se

apreendeu sobre a história do local. Como passo futuro, a organização de um grupo de

discussão pode contribuir para preencher tais lacunas.

A entrevista narrativa é, para o geógrafo, válida e legítima. Permite uma abordagem rica

e sensível in loco, ao realizá-la no faxinal, foi possível observar a paisagem marcada

pela presença de um criadouro comunitário e das terras de plantar – uma lógica

anticapitalista de resistência coletiva.

Na fala do sujeito da entrevista, os silêncios, as reticências e as ausências, além das

expressões faciais e corporais evidenciam os conflitos internos e externos, seja com o

poder público, seja com os latifundiários, seja com os próprios vizinhos. Os “tons de

evidência” são marcas que o pesquisador deve considerar e que fazem emergir a

dificuldade em expressar sentimentos pela escrita.

O faxinal do Emboque encontra-se na borda da chamada Região do Contestado, sem,

entretanto, ter sentido tão marcadamente o conflito. Porém, o observar do modo de vida,

especialmente da religiosidade, permitiu encontrar uma figura representativa deste

contexto de Guerra: o monge João Maria, presente nos cultos e orações comunitárias.

Tal descoberta ajuda a acentuar o papel de uma entrevista narrativa: oferecer os

caminhos futuros!

Dessa maneira, conclui-se que a pesquisa qualitativa e, nesta análise, a entrevista

narrativa contribuem significativamente para a compreensão do modo de vida

faxinalense, sugerindo, inclusive caminhos futuros a serem traçados para a complexa

compreensão dessas comunidades tradicionais.

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Referências

BOURDIEU, Pierre. A ordem das coisas. In: BOURDIEU, Pierre (Org.). A miséria do mundo. 3ªed. Petrópolis: Vozes, 2008. (p.81-101). CHANG, M. Y. Sistema faxinal: uma forma de organização camponesa em desagregação no centro-sul do Paraná. Londrina: IAPAR, 1988. (Boletim Técnico, 22). FRAGA, Nilson César. Contestado: A Grande Guerra Civil Brasileira. In: SCORTEGAGNA, A.; REZENDE, C. J.; TRICES, R. I. (Orgs). Paraná, Espaço e Memória – diversos olhares histórico-geográficos. Curitiba: Ed. Bagozzi, 2005, p. 228-255. PRZIVITOWSKI, Sonia Mari Chaday. Entrevista cedida a autora, na data de 21/10/2011. SCHÜTZE, Fritz. Pesquisa biográfica e entrevista narrativa. In: PFAFF, Nicolle; WELLER, Wivian. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. Vozes: Petrópolis, 2010. (p.210-222). THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. (Vol. 1-A árvore da liberdade). WELLER, Wivian. Minha voz é tudo o que eu tenho: Manifestações juvenis em Berlim e São Paulo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. WELLER, Wivian. Grupos de discussão: aportes teórico e metodológicos. In: PFAFF, Nicolle; WELLER, Wivian. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. Vozes: Petrópolis, 2010. (p.54-66). WILES, Janine I.; ROSENBERG, Mark W.; KEARNS, Robin. Narrative analysis as a strategy for understanding interview talk in geographic research. Area (2005) 37.1, (p.89-99).