pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua...

12
Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do relato oral e produção de narrativas em estudo sobre a profissão médica* Qualitative research in health studies: methodological reflections on the oral account and narrative technique in a study on the medical profession Lilia Blima Schraiber Departamento de Medicina Preventina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - Brasil Foi realizada pesquisa qualitativa aplicada à saúde coletiva e medicina social, baseando-se em estudo acerca das transformações históricas da autonomia profissional dos médicos na passagem da medicina liberal para a atual medicina tecnológica. A pesquisa de campo valeu-se de entrevistas abertas e gravadas para colher depoimentos pessoais sobre histórias da vida profissional de médicos formados entre 1930-1955. Caracterizados tecnicamente como "relato oral", os depoimentos foram registrados na forma de narrativas livres. Os relatos são considerados quanto à capacidade de expressarem a auto-representação dos médicos sobre seus cotidianos de trabalho, bem como registrarem a história da prática médica. Avalia-se a entrevista aberta como instrumento de produção de narrativas livres e relatos de vida. Pesquisa, métodos. Prática profissional, história. Medicina social. Introdução O presente texto traz reflexões de natureza metológica e operacional acerca da pesquisa qualitativa em saúde, tomando por base a inves- tigação realizada em um estudo sobre o médico e seu trabalho 22,23 . Motivado por questões rela- tivas à organização dos serviços de saúde quanto à inserção dos médicos em ações integradas com a saúde pública, ou relativas à interdependência das ações médicas especializadas, o referido estudo constituiu a autonomia profissional desses trabalhadores, seu objeto de investigação. A medicina foi examinada enquanto traba- lho social e os dados empíricos foram extraídos de relatos acerca do trabalho cotidiano. Esses relatos referem-se a momentos históricos de importantes transformações na autonomia dos médicos, eqüivalendo para a sociedade brasilei- ra aos últimos 50 anos. O objetivo do estudo foi o de alcançar informações sobre o trabalho médico no Brasil, não para obter a história da passagem da medicina liberal para a medicina especializada e "armada" dos dias atuais qual se denominou medicina tecnológica-, como também obter as representações dos médicos acerca desse pro- cesso e de si mesmos enquanto agentes técnicos e sujeitos históricos. Do ponto de vista da produção dos dados, o estudo primeiramente recorreu ao dado *Pesquisa subvencionada pela Financiadora de Estudos o Projetos/FINEP (Processo 4.2.88.0228.00) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processo 303696/85-MP). Trabalho baseado na Tese de Doutorado do autor - "Medicina liberal e tecnologia: as transformações históricas da autonomia profissional dos médicos em São Paulo", apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1988. Apresentado ao I Encontro Nacional de Antropologia Médica, Salvador, 3 a 6 de novembro de 1993. Saparatas/Reprints: Lilia Blima Schraiber - Av. Dr. Arnaldo, 455 - 2° andar - 01246-903 - São Paulo, SP - Brasil Edição subvencionada pela FAPESP. Processo 94/0500-0. Recebido em 13.7.1994. Aprovado em 3.1.1995.

Upload: others

Post on 23-Jan-2020

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

Pesquisa qualitativa em saúde: reflexõesmetodológicas do relato oral e produção de narrativas

em estudo sobre a profissão médica*Qualitative research in health studies: methodological reflections on the oral

account and narrative technique in a study on the medical profession

Lilia Blima Schraiber

Departamento de Medicina Preventina da Faculdade de Medicina daUniversidade de São Paulo - Brasil

Foi realizada pesquisa qualitativa aplicada à saúde coletiva e medicina social, baseando-se em estudo acerca dastransformações históricas da autonomia profissional dos médicos na passagem da medicina liberal para a atualmedicina tecnológica. A pesquisa de campo valeu-se de entrevistas abertas e gravadas para colher depoimentospessoais sobre histórias da vida profissional de médicos formados entre 1930-1955. Caracterizados tecnicamentecomo "relato oral", os depoimentos foram registrados na forma de narrativas livres. Os relatos são consideradosquanto à capacidade de expressarem a auto-representação dos médicos sobre seus cotidianos de trabalho, bemcomo registrarem a história da prática médica. Avalia-se a entrevista aberta como instrumento de produção denarrativas livres e relatos de vida.

Pesquisa, métodos. Prática profissional, história. Medicina social.

Introdução

O presente texto traz reflexões de naturezametológica e operacional acerca da pesquisaqualitativa em saúde, tomando por base a inves-tigação realizada em um estudo sobre o médicoe seu trabalho22,23. Motivado por questões rela-tivas à organização dos serviços de saúdequanto à inserção dos médicos em açõesintegradas com a saúde pública, ou relativas àin terdependência das ações médicasespecializadas, o referido estudo constituiu aautonomia profissional desses trabalhadores,seu objeto de investigação.

A medicina foi examinada enquanto traba-lho social e os dados empíricos foram extraídos

de relatos acerca do trabalho cotidiano. Essesrelatos referem-se a momentos históricos deimportantes transformações na autonomia dosmédicos, eqüivalendo para a sociedade brasilei-ra aos últimos 50 anos.

O objetivo do estudo foi o de alcançarinformações sobre o trabalho médico no Brasil,não só para obter a história da passagem damedicina liberal para a medicina especializadae "armada" dos dias atuais -à qual se denominoumedicina tecnológica-, como também obter asrepresentações dos médicos acerca desse pro-cesso e de si mesmos enquanto agentes técnicose sujeitos históricos.

Do ponto de vista da produção dos dados, oestudo primeiramente recorreu ao dado já

*Pesquisa subvencionada pela Financiadora de Estudos o Projetos/FINEP (Processo n° 4.2.88.0228.00) e Conselho Nacionalde Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processo n° 303696/85-MP). Trabalho baseado na Tese de Doutorado doautor - "Medicina liberal e tecnologia: as transformações históricas da autonomia profissional dos médicos em São Paulo",apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1988. Apresentado ao I Encontro Nacional de AntropologiaMédica, Salvador, 3 a 6 de novembro de 1993.Saparatas/Reprints: Lilia Blima Schraiber - Av. Dr. Arnaldo, 455 - 2° andar - 01246-903 - São Paulo, SP - BrasilEdição subvencionada pela FAPESP. Processo 94/0500-0.Recebido em 13.7.1994. Aprovado em 3.1.1995.

Page 2: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

registrado, valendo-se de três tipos de fontes:textos da história da medicina no Brasil, textosde debate acerca do exercício profissional pu-blicados no período histórico em pauta e, porfim, textos biográficos. Essas fontes, contudo,não foram apropriadas para evidenciar o cotidi-ano da prática profissional.

Em razão do singular desenvolvimentosocial brasileiro, no entanto, houve a possibili-dade de acesso direto a personagens partícipesdo mencionado processo histórico. Isto porque,como mostra o estudo, a transição de um aoutro modo de produzir os serviços médicos noBrasil ocupou cerca de 40 a 50 anos, possibili-tando que esta passagem fosse vivenciada porpoucas gerações de sujeitos, alguns dos quaisainda vivos por ocasião da pesquisa. Assim, ainvestigação de campo buscou entrevistá-lospara a produção de narrativas com a qualidadede testemunhos pessoais.

Todos os critérios acima traduziram-se naseleção de médicos cujo início da profissãodeu-se entre 1930 e 1955, buscando-se umresgate das "histórias da vida de trabalho", oque foi orientado por um roteiro de questõesmuito amplas e um estímulo à livre narração.Os entrevistados foram levados a refletir sobreseu dia-a-dia profissional, trabalhando a "hipó-tese" central do estudo: a formulação de que aautonomia profissional, perdendo espaço naesfera mercantil, busca centrar-se na dimensãotécnica interna ao processo de trabalho, em ummovimento que corresponde à sua transforma-ção, para preservar-se enquanto possibilidadeobjetiva na profissão.

Tratando-se de testemunho acerca de seupróprio trabalho e estimulando um pensamentosobre questões tão caras à medicina, tais como,a tecnologia, a qualidade da intervenção técni-ca, o papel social da prática médica ou o signi-ficado do desenvolvimento científico e profis-sional, esta produção de narrativas por médicosconstituiu rica experiência da perspectiva dapesquisa científica. Não se poderia, por issomesmo, deixar de refletir a esse respeito.

Assim, tomando-a como ponto de partida,mas também valendo-se de bibliografia especí-fica sobre a pesquisa qualitativa nas CiênciasHumanas, desenvolveu-se no presente textoalgumas considerações acerca dessa metodolo-gia de pesquisa e da técnica do relato oral porentrevista aberta, tal como utilizadas pelo estu-do em questão.

Técnica e Arte do Trabalho de Campo

Escolhendo Modo e Técnica para a Coleta dosDados

Como todo processo de trabalho15, a produ-ção de dados empíricos na pesquisa tambémcoloca um ardil: encontrar a melhor construçãooperatória pela qual, a partir das hipóteses cien-tíficas, evidenciam-se provas, ou seja, respostasproduzidas pelo cientista, com base em méto-dos, técnicas e instrumentos de investigação. Aprova, pois, o cientista capta do real, não só porrazões de técnica, mas por ter sido capaz de, aoeleger e exercitar técnicas em seu trabalho decampo, fazer renascer o objeto de seu estudo5.

No presente caso, tratava-se de escolher amodalidade de pesquisa capaz de percorrer adimensão técnica da prática médica, caminhan-do pelo interior desse trabalho. Mas, simulta-neamente, tratava-se de visualizar, no técnico,a dimensão social. Vale dizer, evidenciar aintervenção médica em sua estruturação técni-ca, por ser parte da vida em sociedade. Tratava-se, ainda, de captar nesse percurso as relaçõesentre o médico e sua prática, permitindo ver nabase material desse trabalho a inscrição doagente e vice-versa, estudando-se, assim, a di-mensão subjetiva das práticas e a concreta cons-tituição dos sujeitos nas ações.

Por referência à autonomia profissional, aabordagem proposta demandava evindenciá-lacomo técnica e como representação do traba-lho médico, qualificações em que a autonomiase estabelece, quanto às condições objetivasdesse trabalho, como ferramenta adequada enecessária, e, quanto ao imaginário profissio-nal, como ideal de trabalho.

Considerando que se tratava também deum estudo em que todas essas dimensões deve-riam expressar-se no movimento histórico daprática médica, dentre as possibilidades de pes-quisa qualitativa13,18,21, a escolha recaiu sobre amodalidade orientada para produzir relatos emum misto de lembranças das histórias pessoaisda vida de trabalho com reflexões mais geraissobre o trabalho médico e sobre o movimentode suas transformações.

No pólo empírico da pesquisa, a técnicaque lhe foi mais adequada é a da entrevista e,entre seus diversos tipos6,17,19, o estudo desen-volveu uma abordagem que estimulasse narra-tivas mais livres do entrevistado. Impôs-se,

Page 3: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

contudo, limites de temáticas, tentando-se, aomesmo tempo, garantir que as questões estipula-das pelo roteiro prévio fossem todas recobertas.

Com base na modalidade de relaçãoestabelecida entre o pesquisador e o entrevista-do, Queiroz19 delimita dois tipos de relatos,considerando a forma mais ou menos espontâ-nea com que o entrevistado produz sua fala,Assim, mesmo no interior das entrevistasmais abertas foram encontradas situações emque é o pesquisador que define os temas econduz sua abordagem; controla o entrevistadomais prolixo e impõe limites, definindo cortese a própria conclusão do trabalho. Há, porém,entrevistas em que o tema sugerido é, por sisó, amplo, e o entrevistado terá uma narrativatotalmente livre, conduzindo-a a seu ritmoe suficiência. Esta última constitui as históriasde vida, enquanto que a primeira forma, mesmotratando da experiência vivida, contitui, con-forme a autora, os depoimentos pessoais. Estamodalidade é a que melhor expressa a escolhatécnica da pesquisa ora examinada.

Mas basear a investigação na produção deum pensamento sobre a experiência vividasignifica centrá-la nas representações dossujeitos, o que, de um lado, constitui a opçãode se estudar uma realidade social e coletivapor meio de narrativas individuais e vividossingulares, e de outro, pretender verificarnão apenas o que esses sujeitos percebemdos diferentes modos de produzir serviçosmédicos, mas a própria existência objetiva des-ses modos. Essa metodologia introduz relativa-mente à aproximação do objeto em estudo,pois, duas ordens articuladas de questões: osocial e o coletivo por referência ao individual-singular que o apreende; e o real objetivopor referência à dimensão subjetiva que oevidencia. Essas são questões que a grandemaioria dos textos de referência para estamodalidade de investigação, termina portrabalhar1,2,3,4,9,11,12,19,20.

A este respeito observou-se, em primeirolugar, que da perspectiva de se buscar o acon-tecido através de sua representação no relatoindividual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica de expressar o coletivo, o qualpode-se recuperar nas narrativas obtidas, pormeio de uma riqueza ímpar: o coletivo explora-do pela reconstrução pessoal. Trata-se dare-produção* do fato social na experiênciapessoalmente vivida e na reflexão que a relata.

É esse processo de re-produção que validao trabalho com representações e situações sin-gulares para se examinar acontecimentoscoletivos e fatos sociais. Sendo cada relato aforma pessoal de expressar o grupo ou o social,o que cada pessoa relata, e o modo como relata,são construções que se determinam na vida emsociedade. Por um lado, sendo construções,correspondem a um modo de relatar e, por isso,a entrevista produz sempre uma interpretaçãodaquele que relata, trabalhando na própria sub-jetividade a objetividade do real. Mas, por ou-tro lado, seu conteúdo, seja relatando o presen-te ou como recordação, não é exatamente úni-co, senão a experiência pessoal no interior depossíveis históricos bem determinados, experi-ência que dependerá da forma pela qual onarrador posiciona-se socialmente e que lheproduz as concepções acerca do real das quaislançará mão em seu relato14,24.

Os médicos entrevistados falam, pois, so-bre a medicina liberal, sobre as tensões dessaprática ao crescer o modo tecnológico de pro-dução dos serviços e sobre as repercussõesdessas tensões na dimensão técnica do traba-lho, mostrando formas historicamente encon-tradas para a preservação do exercício autôno-mo. Simultaneamente, expressam concepçõesacerca do movimento de mudanças que experi-mentaram. Tudo isso, ao relatarem, porém, oque cada um individualmente viveu.

Em segundo lugar, o que se relata, mesmosendo pensamento e pensamento individual,não se reduz a uma impressão subjetiva. Éproduto de uma elaboração intelectual especí-fica, porque é produto de um pensar que étrabalho, trabalho de refletir e recordar. Porisso não é apenas sentimento, mas a reconstru-ção do vivido em nova objetivação: toda refle-xão é trabalho da memória*.

O que foi experimentado no passado emesmo o que se concebe do presente, é externadoenquanto trabalho de reflexão próprio, distan-ciando-se dos juízos do senso-comum: o relatoé um pensamento especialmente produzido. Aentrevista que o suscita deve ser vista comouma experiência particular e não como uma amais do cotidiano. A entrevista recorta o coti-diano no objeto que propõe à reflexão e ointerrompe por meio desta reflexão, ou como

* O conceito é extraído de H. Lefebvre16 e significa: orepetitivo que gera diferenças. Daí, inclusive, o modo degrafá-lo (re-produção).

Page 4: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

diz Caldeira7, a entrevista produz "... uma in-terpretação que é, em geral, uma ordenaçãooriginal de coisas velhas, de pedaços de ima-gens, experiências, opiniões, etc., que a memó-ria guardou. Esta interpretação (...) é uma visãomais global do que se pode ter no cotidiano".

No presente estudo, também se observamcotidianos e se examina a vida de homens-comuns; mais precisamente, a prática profissi-onal dos médicos-comuns, cujo registro nemsempre ocorre. Esta prática expressa o modo deproduzir os serviços médicos nas condições dodia-a-dia, em que o ato médico uniforme eúnico enquanto modo genérico de medicina, ére-produzido nas desiguais situações de traba-lho concretamente existentes na sociedade; re-produção que, na particular situação de traba-lho experimentada individualmente pelo médi-co, significa reelaboração dos pressupostos eexpectativas homogêneas dos médicos, enquan-to pensamento coletivo acerca do trabalho mé-dico ideal.

Ao mesmo tempo, o estudo buscou umarecuperação de acontecimentos passados, masque se faz no presente: o entrevistado não sótrabalha a experiência vivida no momento atual,como é levado a recuperar seu passado pelasquestões do presente, questões problematizadasdiretamente por ele, assim como pelas proble-máticas que o pesquisador lhe coloca.

Por tudo isto o relato sempre será umalembrança individual, "um ponto de vista sobrea memória coletiva"4, formas ricas na amplia-ção, na profundidade e na diferenciação comque se trabalha o coletivo. Mas também, porisso mesmo, cada momento de entrevista e cadarelato completado formam subtotalidades quese deve respeitar. A constituição de um todo apartir dos singulares, na reconstituição do acon-tecimento social, deve considerar que os depo-imentos podem se orientar em direções diferen-tes e até contraditórias. Trata-se da autonomiarelativa da parte ou do singular; autonomia que,de fato, ocorre, mas não é capaz de anular ainscrição simutânea do coletivo naquilo que érelatado. Esta inscrição poderá ser resgatadadesde que se tome o coletivo como tendo quali-dade própria por referência a seus constituintesparcelares, o que significa tanto eleger o pontode vista interpretativo pelo qual se reconstrói atotalidade em estudo, quanto admitir que cadaparte individualizada não precisa repetir tudo oque se passa no plano do coletivo para que seja

seu efetivo constituinte10,19*.Por todas essas observações, tal como se-

rão consideradas adiante, a pesquisa exigiucertos cuidados na produção e no processamentointelectual do material obtido, impondo-se aadoção de determinados princípios gerais queorientaram todo o trabalho com o empírico.

Princípios Técnicos e Cotidiano da Pesquisa

A produção das narrativas deve delimitaralguns procedimentos próprios, tais como defi-nir quem, até quando e quantos sujeitos serãoentrevitados. Além disso há que se lembrar quea técnica ora discutida produz grande volumede material coletado.

Selecionar sujeitos, no presente caso, le-vou em consideração alguns pressupostos: in-serção na produção de serviços na forma predo-minante ou exclusiva da medicina de mercadoe, pois, médicos-comuns; pertencer ao coletivode agentes de trabalho "liberal"**, exercendopráticas de intervenção clínica e cirúgica, emsuas modalidades mais gerais; e, como critérioprimeiro dado no recorte inicial do objeto deestudo, praticar a medicina em São Paulo, coma graduação profissional entre 1930-1955.

Essas características indicam qual a posi-ção que os entrevistados ocupam na medicina,delimitando quais representações e memóriagrupal inscrevem-se, portanto, nas narrativas.

Também a procura dos sujeitos foi orien-tada pelo critério de maior facilidade de con-tacto, no sentido de serem "médicos bastanteacessíveis", tendo em vista a dificuldade naobtenção de relatos em investigações dessanatureza, sobretudo considerando a categoriaprofissional em pauta. Trata-se aqui da pergun-ta que o entrevistado se coloca e coloca aopesquisador: "por que eu fui o escolhido?". As

* A bibliografia pertinente situa no exame interpretativo domaterial coletado os cuidados relativos à sua aproximação nosentido de captar o plano do coletivo. Aponta, também, possívelsuporte nesta tarefa: a complementação das narrativas comoutras formas de investigação ou com dados de outra natureza,produzidos em obsrvações diretas ou como material járegistrado.* * O termo liberal grafa-se sob aspas pelo fato de que no Brasilesse período, usualmente reconhecido como medicina liberal,não exibe as mesmas condições de outros países quanto a essamodalidade de trabalho, uma vez que a medicina do pequenoprodutor privado e isolado, em boa parte de seu tempo,conviveu com o trabalho assalariado, a medicina dos Institutosou previdênciária23.

Page 5: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

razões da escolha são mais facilmente aceitasquando referidas a situações dos extremos só-cias: elite e homem-comum do povo. Nelas, pormotivos opostos, o entrevistado reconhece aimportância de seu relato.

Para o indivíduo que é tido e se vê comorepresentante de grupo, isto é, que adquire umaidentidade de elite, a importância de seu depoi-mento é socialmente difundida e ele próprio areconhece; para aquele, no extremo oposto, cujaoportunidade da fala constitui rara situação, é ofato de ser então valorizado, que conta para suaaceitação em participar da entrevista.

É mais difícil explicitar razões quando es-tas não coincidem com nada especial, senão comseu contrário: o grande conjunto de pessoas queconstituem grupos quaisquer na sociedade e quepodem ser destacadas de seu interior para repre-sentar o seu grupo, mas não exatamente por serele indivíduo específico, senão "comum" -umqualquer dentre os do mesmo grupo.

Os médicos, em geral, não são concebidos enão se autoconcebem exatamente na categoria dehomens-comuns, mas como grupo muito especialde sujeitos sociais, cujo trabalho, além disso,funda-se na concepção do segredo profissional.Assim, se por um lado, podem entender a necessi-dade do relato ou a relevância da pesquisa, poroutro, detêm a noção de que seus procedimentos,principalmente os da dimensão técnica, não devemser do conhecimento público. Estão dispostos,pois, a falar sobre a medicina, talvez até sobre aprática de outros, preferencialmente anônimos...Porém, usualmente, a não ser entre pares (médi-cos), não falam de si ou de seus cotidianos. Alémdo que, não tendo sido eleito enquanto sujeitoespecial, torna-se ainda mais difícil explicar asrazões de sua particular participação.

A seleção dos médicos obedeceu, pois, aum princípio especial: não se realizar ao acaso,mas por meio de mecanismos reconhecíveispelos próprios entrevistados como formas deescolha confiáveis, isto é, formas conhecidas e,de certo ponto de vista, também sob controledeles próprios. Os entrevistados foram, assim,contactados mediante a indicação interpessoal,em que, a partir de médicos próximos e conhe-cidos do pesquisador, surgiram as primeirasindicações, das quais surgiram novos médicose assim por diante, o que conformou "gera-ções" de sujeitos indicados.

A menção a cada novo contacto sobre oentrevistado anterior e seu "encaminhamento"

permitiu sempre boa recepção e disponibilida-de do entrevistado para com a pesquisa, refor-çando a manutenção desse princípio. Mesmo as-sim, em 19 contactos, registraram-se 5 recusas.

De todos os médicos que aceitaram parti-cipar, a primeira "geração" de indicados (2médicos) foi objeto de pré-teste (16 horas e 30minutos de gravação) e outros 3, mesmo cons-tituindo "gerações" posteriores, foram abando-nados logo após o primeiro contato, em razãode erro involuntário na indicação. Foram obti-das 9 entrevistas. Gravadas, elas produziram,no total, 38 horas de material registrado.

Esse número de situações seguiu o critériode "exaustão" ou "saturação"3, segundo o qualo pesquisador verifica a formação de um todo ereconhece a reconstituição do objeto no con-junto do material. Porém esse não é, de formaalguma, critério obrigatório.

A eleição de critérios que balizam a técni-ca de coleta dos depoimentos depende do objetoem estudo e do específico campo empírico deinvestigação. Essa característica de critériosmóveis contrasta com outras técnicas de inves-tigação, cujas normas são fixas e bem maisindependentes por referência aos objetos parti-culares de estudo. Mas vale aqui lembrar que aadoção de critérios implica perspectivasinterpretativas do material pertinentes.

Ademais, o rigor nos critérios de seleçãodos entrevistados, como também seu número,liga-se a questões de controle sobre dados fal-sos ou comportamentos "desviantes"13,19. É asituação em que o pesquisador tenta assegurar-se de que colherá o dado pertinente e queconseguirá obter a prova que necessita frente asuas hipóteses. Mas nesta modalidade de pes-quisa, seja o dado inesperado ou os comporta-mentos pessoais inesperados ("desviantes"),também podem ser produtivamente explora-dos. Esse "controle" dá-se no momento "analí-tico", isto é, inscrevendo no exame do materialo inesperado ou destoante. De igual modo,pode ser suficiente apenas um relato de experi-ência vivida, que convenientemente estudadopode fornecer conhecimentos relevantes acer-ca da vida social.

Além da saturação, outros critérios foramformulados ao longo do desenvolvimento dainvestigação, referidos a procedimentos quenão podem ser regidos por mecanismos fixos "apriori". O melhor modo de se obter o relato ouquando encerrá-lo são problemas que se resolvem

Page 6: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

apenas no desenrolar da narrativa. Isto porquea técnica se funda na exploração de questõesque o pesquisador previamente traz, em conju-gação com a presença do dado novo, este últi-mo criado no momento da entrevista.

Mesmo que o pesquisador já domine ques-tões da história que indaga e muito emboracada participante já tenha para si uma históriaguardada, por ocasião da entrevista, como reto-mada deliberada e provocada dessa história,ela será efetivamente refeita: pelo entrevista-do, através de associações, repetições oudesqualificações de idéias cujos nexos se cons-tróem no presente da entrevista; pelo pesquisa-dor, na dinâmica do relato - pelos fatos que estetraz e em seus encadeamentos, totalmente ori-ginais, na narrativa.

Assim, o modo pelo qual o pesquisadorpode intervir produtivamente não tem normafixa e não se repete de uma a outra entrevista.Não possuindo princípios que de antemão defi-nem o momento e a direção da intervenção, aentrevista conduz sempre a uma atualização doroteiro, fundada na avaliação subjetiva daspotencialidades do diálogo.

Eis porque elementos como a simpatia ou,como já se mencionou, o conhecimento préviodos sujeitos a serem entrevistados, não configu-ram nessa técnica fator inconveniente. Muitopelo contrário, contituem norma favorável, por-que a técnica se fundamenta exatamente na au-tenticidade e veracidade discursiva do entrevis-tado, cujo depoimento o pesquisador quer com-preender -e não contestar ou, mesmo, testar.

O núcleo do procedimento técnico, nestecaso, requer, pois, do entrevistado, o compromis-so declarado com suas concepções e valores, e adisposição moral de evidenciá-los. E do pesqui-sador, requer a capacidade de estabelecer, com oentrevistado, relação pessoal e íntima, para queeste se sinta à vontade no relato4,20,21.

Assim, o "controle" sobre a investigação,que se dá mais no sentido de garantir a presençadas questões que a pesquisa coloca,freqüentemente se faz com base em critérioscriados no momento da entrevista. Eis porque odiálogo estabelecido na relação pesquisador -entrevistado deve ser adequadamente articula-do ao próprio objeto de estudo, residindo o"controle" do processo da entrevista sobretudoneste domínio intelectual do pesquisador. Porisso, também, de forma bastante flexível, quero roteiro, quer a intervenção do pesquisador,

são ferramentas importantes no processo daentrevista, mas que apenas ganham sentido nomomento concreto do relato em produção.

O roteiro, em particular, assume o papel deguia da narrativa e é utilizado para orientar opesquisador na colocação de temas estimulantesdo relato, constituindo apoio ao trabalho dareflexão ou memória auxiliar. Deve-se percorrê-lo subordinadamente à dinâmica que o próprioentrevistado dá à narrativa e respeitando aseqüência das questões que o relato produz.Algumas temáticas surgem como questões jáproblematizadas e certas informações aparecemrelatadas espontaneamente, sugerindo questõesrelevantes para o narrador e como expressãotambém da memória grupai. Outras têm que sersistematicamente estimuladas pelo pesquisador.

Entre as primeiras, no presente estudo ob-servam-se, por exemplo, a perda da autonomiamercantil e o assalariamento do médico, ourotina e a impessoalidade da prática, decor-rentes da massificação e institucionalizaçãoda medicina. Mas, a mais significativa questãofoi, sem dúvida, o Estado como grande produ-tor, interferindo diretamente na dinâmica mer-cantil, o que é trabalhado, via de regra, sob aforma de protesto contra a política pública parao setor. Como ilustração do segundo conjuntode informações, foram observadas as questõesreferentes à autonomia técnica e ligadas à inti-midade do processo de intervenção, dimensãosempre muito preservada de reflexão e, sobre-tudo, de indagações. Assim, a especializaçãoou a inovação tecnológica concreta são aspec-tos que, quando referidos, são colocados comoatributos "naturais" da medicina, parecendoquase não necessitar de "reflexão".

O relato mais espontâneo parece reservadopara aspectos tidos como "genéricos" da profis-são: os outros; o saber científico; o desenvolvi-mento tecnológico em abstrato. Ou, aspectos "ex-ternos": o governo; as instituições; a crise econô-mica do país. Reserva-se, ainda, do ponto de vistada história, para o que se crê "perdido": o ladonegativo da mudança, isto é, o que deixa de servalorizado, segundo o imaginário profissional.

Raramente, ao contrário, os entrevistadossupuseram a necessidade de contar ou de valer-se de uma fala mais densa que a mera constata-ção, para os aspectos opostos aos anteriores: ocaso profissional particular, com suas mazelase dificuldades do dia-a-dia; o relato do interiorda prática, em que se evidencia a abordagem do

Page 7: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

doente para sua assistência e a formulação dojulgamento ou decisão médica; ou, diante dodesenrolar histórico, as mudanças "positivas",como a incorporação dos equipamentos ou a"cientificidade" "aumentada" da prática ma-terialmente armada.

Alguma reflexão mais crítica, portanto,parece importar apenas para as "perdas" histó-ricas ou as adversidades, do passado ou dopresente, quase nunca articulando, em um mes-mo pensamento crítico, a totalidade dos aspec-tos e qualificações do exercício profissional.

Este último posicionamento, inclusive, osfaz mudar, no tempo, a "fronteira" do que lhespertence, o que nos é evidenciado por mudan-ças do alvo merecedor de reflexão crítica e,pois, objeto da narrativa mais espontânea, àproporção que o relato percorre diferentesmomentos da história pessoal recordada. É oque ocorre, por exemplo, quando falam de suaparticipação pessoal na construção de suas con-dições de trabalho relativamente à prática libe-ral, quando os mecanismos sociais conforma-dores da produção na modalidade consultórioprivado não são reconhecidos enquanto formasocial e estruturada de autonomia técnica emercantil, parecendo-lhes sempre algo seu:esforço pessoal, vocação individual e reta con-duta moral na profissão. Ao passo que, namedicina tecnológica, o compromisso pessoalpara com as condições de trabalho (quaisquerdelas), apontado no momento anterior, é o quedeixa de ser reconhecido, por não mais seincluir, mesmo enquanto produção de setorprivado, como algo "interno" à fronteira técni-co-profissional, repercutindo diretamente noconceito de autonomia e em seus pólos: liber-dade e responsabilidade.

Nos relatos, essa forma distinta de trata-mento das questões (do superficial ao pensa-mento crítico mais articulado), indica-nos aimportância que cada conjunto de temas adqui-re para o entrevistado. E a observação desteaspecto, expressivo quanto às concepções acercada medicina como trabalho social e quanto àauto-representação, tornou-se possível em ra-zão do temário previsto pelo roteiro. Este per-corria não só a vida de trabalho, mas a vida emfamília, no lazer e na escolarização. Ademais,percorria a vida experimentada nos vários mo-mentos decorridos desde a infância, por onde,inclusive, se iniciou a entrevista. No plano davida de trabalho, o roteiro estimulava a descri-

ção detalhada dos vários aspectos envolvendoa estruturação da prática profissional, a qual foitomada desde o seu início, mantendo-se essadescrição mais "densa" como eixo de aproxi-mação do transcurso da prática até momentosrecentes, destacando-se em especial a reflexãorelativa ao trabalho do consultório privado.

Buscando verificar, justamente, a estrutu-ração dos exercícios profissionais concretos eparticulares diante dos modos vigentes de pro-dução de serviços médicos na sociedade brasi-leira, observando, inclusive, de que forma es-sas estruturações"acompanharam" as transfor-mações históricas dessa sociedade, e, princi-palmente, tentando verificar a posição do mé-dico em sua prática, o roteiro conduzia a temascomo: a finalidade do trabalho profissional; osinstrumentos e equipamentos, além de técnicasde intervenção utilizadas; as relações de cadatrabalho com outros serviços médicos; cadaclientela e seus doentes como objeto da inter-venção; e, essencialmente, atos concretos derealização do cuidado médico, como processo,isto é, a atividade do trabalho. Para facilitar orelato acerca desse último aspecto, estimulou-se a descrição de situações marcantes no exer-cício profissional vivido, incentivando os ca-sos e os exemplos, ainda que a narrativa maislivre logo conduza a fala para essa direção.

Da mesma forma que o uso do roteiro,delimitar o tempo de duração e o momento deencerrar a entrevista foi algo estabelecido notranscorrer do trabalho de campo. De um modogeral o tempo é longo, mas não se pode fixá-lopreviamente, além do que varia para cada situ-ação. Da perspectiva do encerramento da entre-vista, o cumprimento dos itens do roteiro, comoconteúdo mínimo da reflexão prosposta, podeser um bom ponto de partida, porém, de modoalgum indica o término do trabalho de produ-ção das narrativas. Como trabalho de reflexão,sua conclusão está dada pela suficiência detratamento dos temas e quando estes se esgo-tam como forma de alimentar o diálogo, o quenovamente se pode demarcar apenas no interiorda dinâmica dos relatos.

Esse conjunto de envolvimentos do pes-quisador com o objeto que investiga confereuma qualidade muito viva ao processo, em umcaráter de permanente construção de modelooperatório da própria investigação, o que trazao pesquisador quase sempre muitas dúvidas.Desse ponto de vista alguns procedimentos

Page 8: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

complementares à entrevista podem orientarmelhor o processo, como é o caso dos semprereferidos, nessa modalidade de pesquisa, "ca-dernos de campo" em que são anotadas aspróprias percepções do pesquisador acerca dainvestigação em curso.

Não obstante, é o conhecimento do objeto deestudo e das questões que foram selecionadaspara trabalhá-lo que muito auxiliam nos juga-mentos e decisões, exigindo do pesquisador do-mínio sobre a pesquisa tal que torne seus proce-dimentos uma forma viva de exercício de subje-tividade teoricamente fundamentada, isto é, opróprio pesquisador como instrumento de inves-tigação e não apenas em mero portador de impres-sões pessoais. Além disso e nesse mesmo sentido,sem prentender que todos os procedimentosadotados tornem-se regras universais, para que oprocesso não resulte em uma ação subjetiva pes-soal, deve-se estabelecer princípios que presidama intencionalidade da ação técnica na pesquisa,ainda que a estratégia de conduzi-los dependafundamentalmente de cada relação interindividualque se consegue estabelecer.

Embora alguns princípios já tenham sidomencionados, eles podem ser assim sintetiza-dos. Um primeiro princípio tomou a entrevistacomo meio de conhecimento, conforme já seconsiderou no presente texto. Fundou-se, por-tanto, a ação do investigador no fato de que nãose tratava de uma polêmica, um embate políti-co-ideológico, nem um teste de conhecimentosou objetivações neutras de "verdade absoluta".O fundamento residiu na necessidade de en-contrar formas de apreender, com clareza, asrepresentações próprias do entrevistado e odiálogo transcorreu sempre no sentido de re-cordação dos fatos e esclarecimentos dos valo-res, incentivando o trabalho de reflexão em ambosos sentidos. A intervenção do pesquisador sepautou em falas bastante explícitas para que sepudesse questionar o entrevistado o mais aberta-mente possível, mesmo que, dada a busca deproduzir narrativas livres, tanto se a reduziu aoindispensável, quanto se lançou mão do roteiroapenas quando suas questões não eram trabalha-das espontaneamente, o que foi feito semprecom sugestão de temas em sua forma mais geral.

Não obstante, ocorreram alguns impassesde conversação. Foram situações em que, mes-mo involuntariamente, a sugestão foi formula-da de modo inadequado, o que ocorreu sejaporque, para o pesquisador, de fato eram diver-

sas as concepções e as problemáticas que valo-rizou, por referência às do entrevistado, sejaporque as questões trazidas remetiam a umvivido pessoal (do pesquisador) referido a umaépoca histórica muito diversa daquela em que oentrevistado vivenciou a maior parte de suasexperiências profissionais. O pesquisador, por-tanto, terminou por produzir algumas falas dis-tantes do entrevistado, em uma linguagem que,a este, foi, muitas vezes, estranha.

O processo da entrevista, desse ângulo,representou processo de aprendizado para o pes-quisador, no sentido de encontrar modos ade-quados de participar, até certo ponto, das mes-mas concepções e da mesma forma de pensar arealidade que o entrevistado possui, sobre opresente e sobre o passado. A entrevista, assim,não é só uma forma de entender e captar o outro,mas de se fazer entender, e tanto a história devida como a posição social e científica distintado pesquisador relativamente ao entrevistado,introduzem linguagens divergentes.

Em parte decorente do mesmo princípioanterior e em parte com base nestas últimasobservações, houve a necessidade de se fazerum "contrato" de trabalho bastante preciso,esclarecendo o mais possível o objeto e o recor-te temático escolhidos para a pesquisa; as ra-zões, os sentidos e as pretensões da pesquisa; ea forma indicativa de organizar o trabalho deinvestigação: como, quando e onde se fariam asentrevistas, bem como a duração presumível decada sessão ou do número de sessões desejável.Também o pesquisador deve colocar-se autên-tico e veraz na relação com o entrevistado.

Da perspectiva dessa organização do tra-balho de campo, as explicitações foram nosentido de que iria tratar-se de um trabalhorelativamente prolongado, com o uso de grava-dor, com sessões de gravação não muito curtase sobretudo por meio de sessões repetidas,critérios fixados com base na experiência dasprimeiras entrevistas. Essa explicitação das "re-gras do jogo" foi de grande importância, pois éfreqüente o indivíduo contactado pensar que setrata de pesquisa de curta duração ou comquestinários padronizados, e a ocorrência opos-ta, por fugir ao esperado, parece requerer expli-cações mais detalhadas.

O trabalho de campo ocupou cerca de qua-tro e meia sessões de gravação por entrevista-do, variando de três até nove para um mesmosujeito, em razão da disponibilidade e prolixi-

Page 9: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

dade de cada narrador. A duração que se conse-guiu obter em cada uma das sessões de grava-ção marcou um tempo que quase sempre sepautou no próprio cansaço do entrevistado,fruto do trabalho de reflexão e de narrar, ocu-pando mais freqüentamente uma hora de grava-ção, sendo o máximo atingido o de duas horasde gravação, em uma mesma sessão.

Repartir a narrativa por várias sessões degravação mostrou-se produtivo sob dois pon-tos de vista. Primeiro porque, para o própriotrabalho de refletir e lembrar, o intervalo de-corrido de uma a outra sessão produziuefeitos relevantes, verificado no fato de quequase sempre ao início de cada sessão, mesmoque parecesse já trabalhado determinado temana etapa anterior, o entrevistado espontanea-mente solicitava o registro de outros novosaspectos lembrados, por ter prosseguido emsua reflexão após o registro anterior. Em se-gundo lugar, esse intervalo permitiu combi-nar, ao uso do caderno de campo, o estudosistemático do segmento discursivo já grava-do. E assim foi feito, precedendo cada novasessão, o que permititu explorar com maissegurança as narrativas, à medida que se vi-nham produzindo.

O conjunto desses critérios fez com que seevitasse entrevistar mais que dois sujeitos, namesma etapa do trabalho de campo, o que,somado ao tempo gasto com localização, con-tactos e efetivação da entrevista, produziu umaduração global de 6 meses para este trabalho,parâmetro a ser considerado também na delimi-tação da quantidade de relatos a serem produzi-dos e no dimensionamento da investigaçãoempírica.

Na produção das informações, combinou-se o uso sistemático e articulado de dois instru-mentos de registro, os quais, como já dito,foram; o gravador e o caderno de campo. Esteúltimo serviu para anotar diversos tipos dedados, operação feita sempre ao final de cadasessão, identificando-a no caderno. Foram ano-tações referidas à própria experiência vivenciadana entrevista, através da efetivação de suastécnicas de abordagem e obtenção dos relatos,avaliando-as no sentido de sua eficácia, produ-tividade e impasses para a investigação. Tam-bém se registraram informações sobre o entre-vistado, seu comportamento geral na entrevistae em particular quanto aos temas e à dinâmicacom que transcorriam. Foram valiosas as ano-

tações feitas acerca do local de trabalho, quan-do as entrevistas realizaram-se no consultórioparticular (o que ocorreu em 6 dos 9 casos).

Em muitas ocasiões registraram-se infor-mações que o próprio entrevistado forneciafora da gravação, as quais não foram poucas ouirrelevantes. Pode-se mesmo dizer que umaoutra entrevista se passa nos intervalos, na"hora do cafezinho", ou ao término da sessão,após concluída a gravação. As falas nessesmomentos são descontraídas e recobrem assun-tos de todos os tipos: o entrevistado opina sobrea entrevista, sobre os médicos, sobre a medici-na, sobre sua vida e se inteira da vida do pesqui-sador, comenta a técnica, a possível participa-ção de outros colegas, e assim por diante. Sãoextremamente valiosas, pois, esssas anotações.

De outro lado, esses momentos informaisde aproximação são vitais para a própria rea-lização da investigação, uma vez que determi-nam as bases da relação interpessoal, com aformação de vínculos que ultrapassam o for-mal, criando-se laços de amizade, simpatia econfiança, pelo mútuo interesse que se estabe-lece - e há que se dar de fato - pela pessoa queali está. A transformação do narrador em objetode pesquisa morto e paralisado retira qualquerpossibilidade de serem criadas relações efeti-vamente capazes de dar conta de um trabalhode investigação dessa espécie. Além disso,essa postura não significa, para qualquer dosdois sujeitos, esforço negativo: ao contrário,expressa a cumplicidade do mútuo empenhopara se produzir o relato e para se conservar,no tempo, o depoimento e a historia4,8.

Quanto ao uso do gravador, este instrumen-to, de fato, "representa uma ampliação do poderde registro" 20, pela produtividade maior da ope-ração e pelo registro de viva voz. Permite captare reter por maior tempo um conjunto amplo deelementos de comunicação de extrema importân-cia: as pausas de reflexão e de dúvida ou aentonação da voz nas expressões de surpresa,entusiasmo, crítica, ceticismo, ou erros - elemen-tos esses que compõem com as idéias e os concei-tos a produção do sentido da fala, aprimorando acompreensão da própria narrativa.

Mas gravar implica um trabalho dispendi-oso e difícil de transcrição de todo o materialobtido. Trabalho que, se é possível fazer reali-zar-se à medida que são produzidas as narrati-vas, economizando tempo de processamento dedados, requer razoáveis parcelas de recursos

Page 10: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

financeiros, além de demandar conferência daprópria qualidade da transcrição. É, porém, etapaobrigatória, já que facilita o manuseio posteriordos registros e, por ser a fita material perecível,termina-se perdendo o registro como documentode arquivo.

O uso do gravador introduz, de outro lado,pela presença da própria máquina (o "terceiro"participante), a consciência de que o fiel retratoda narrativa e na forma exata de sua enunciação,está se tornando público, por vezes inibindo orelato ou trazendo a excessiva preocupaçãocom desempenho pessoal.

Mas a necessidade da transcrição ou apresença desse "outro" na entrevista são ape-nas pequenos problemas, pouco alterando asvantagens da gravação como forma de registro.

Após a gravação, um primeiro trabalhocom o material, o da transcrição, representa apassagem da forma oral para a linguagem escri-ta, de modo fiel ao contido na gravação. Istoexige tanto selecionar um adequado profissio-nal, quanto o acompanhamento da atividade,este último, aspecto importante, já que o pro-fissional da transcrição raramente domina olinguajar próprio de segmentos técnicos deter-minados, ou..."a língua dos médicos", assimcomo há o "sociologuês", o "economês", eoutros... Para se ter uma idéia do tipo de traba-lho que envolve, vale destacar que cada horagravada produziu , em média, 30 laudasdatilografadas, em espaço de aproveitamentomáximo da lauda, o que produziu um volumetotal de 1.142 páginas de material coletado.

Um segundo trabalho com o material, o deedição, significa definir critérios de editoria eforma de publicação, o que no presente casoseguiu critérios de "anonimato" dos informan-tes, maior concisão e continuidade nas narrati-vas e individualização dos relatos, excluindo-se, no texto final, as intervenções do pesquisa-dor e optando-se pela ordenação temporal dashistórias, iniciando-se com o depoimento domédico mais antigo na profissão e concluindo-se com o mais jovem22.

Um último trabalho realizado foi o exametotalizador e a leitura trans-individual dos re-latos. Nesse sentido, há que se mencionar oduplo caráter desse material: ao mesmo tempodado empírico para a exploração de dimensõestranscendentes ao singular, tanto quanto já re-sultado do estudo. Como resultado é produtode trabalho específico no interior da investiga-

ção de campo, trabalho em que se produz umaforma própria de objetivação dos temas seleci-onados: objetivação cientificamente fundada,diferenciando-se de outros discursos acerca doreal. Desta perspectiva as narrativas prescindi-riam deste terceiro momento de trabalho.

Mas optando-se, no presente estudo, porinterpretá-las para produzir outros mais resul-tados, as narrativas foram lidas como históriasparticulares de modelos genéricos de profissãoe que contam as várias estruturações concretasdo exercício profissional, cujos perfis indivi-duais estarão, em alguns casos mais e noutrosmenos, próximos da condição tecnológicageral do modo de produção de serviços em quese inscrevem. Da perspectiva totalizadora, en-tão, o leque de estruturações registrado foiabordado como um conjunto, sem deixarde levar em conta a singularidade de cadahistória produzida. Para tanto, é preciso, pri-meiro, dominar o todo de uma mesma história,para poder confrontá-lo com outra. Impregnar-se de cada todo, é o termo que a literaturaespecífica consagra a este proceder20. O desta-que a fragmentos, que aparece na abordagemde conjunto e, portanto, comparativa dos rela-tos singulares, pressupõe que se tenha apreen-dido o sentido próprio do fragmento na totali-dade do pensamento do qual é separado, talcomo buscou-se realizar.

Como as narrativas, além de ferramentasde aproximação das representações, foram tam-bém tomadas como instrumentos de observa-ção da prática, sem desconhecer a ocorrênciade falas mais descritivas ou mais opinativas,foi o todo do discurso conformado que se exa-minou. A leitura das narrativas se fez, portanto,não só quanto às representações, mas igual-mente através das representações, para alcan-çar os procedimentos concretos pelos quais seorganizaram e se transformaram os exercíciosprofissionais. Assim, o modo específico peloqual foram trabalhadas as idéias, as noções e asconcepções do pensamento médico supôsconsiderá-las como constituintes da prática domédico, articuladas ao exercício profissionalque dotam de significação. Podem, assim, relatá-lo, situando nele o agente técnico e sujeitohistórico; ao mesmo tempo que sendo processode significação, representam a construção depensamento acerca do trabalho e sua história. Arealização do trabalho analítico com o materialbuscou alcançar todos estes sentidos.

Page 11: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

Considerações Finais

À guisa de conclusão das presentes refle-xões, seria importante algumas observações,ressaltando o que se considera contribuições dopresente estudo acerca do trabalho médico,com base na metodologia da pesquisa qualita-tiva e na específica técnica ora examinada.

O caráter do instrumento de pesquisa mui-to amplo, sua definição sob princípios operativosmuito genéricos e a grande dose de decisõespessoais do pesquisador no curso de sua utili-zação no trabalho de campo, têm sido os aspec-tos mais polêmicos quanto à tecnicalidade des-ta forma de investigação. São eles, porém, aomesmo tempo, sua marca mais produtiva. Éexatamente esta sua natureza que permite me-lhor explorar a subjetividade como objeto deconhecimento, já que promove resgate dasdimensões sujetivas dos processos sociais querespeita o todo complexo de sua constituição.Tal capacidade nos é evidenciada por ser orelato oral a apreensão da subjetividade naforma de um pensamento externalizado, valedizer, a narrativa. Trata-se, assim, da objeti-vação de pensamentos, por meio da constru-ção de um pensar.

Por isso, credita-se à pesquisa qualitativae particularmente à produção de narrativas, acaracterística de ferramenta extremamente apro-priada para o estudo das as representações. Nopresente caso, o estudo desdobrou-se em repre-sentações acerca da realidade objetiva da práti-ca médica e em auto-representações, permitindo

explorar de duplo modo a dimensão subjetivado trabalho médico.

Da perspectiva de estudo histórico, estaforma de investigação empírica possibi l i tou,de fato, inscrever a cotidianidade na dinâmicade mudanças observadas, ao longo do períodode tempo considerado. E esta possibilidade éespecialmente importante no caso da históriada medicina, em razão dos mencionados des-vios de registro histórico, que valorizam queros feitos pessoais, quer os fatos científico-tecnológicos, enquanto a natureza própria damemória neste campo.

Já enquanto estudo da prática médica comotrabalho social, ao resgatar um modelo de tra-balho, o pensamento médico acerca desse mo-delo e a auto-representação de seus partícipes,o relato oral expôs as percepções acerca docotidiano articuladamente à reconsti tuiçãoobjetiva deste. Permitiu-se, assim, não só co-nhecer o pensamento de personagens técnicosacerca de processos sociais, mas revelar algunsaspectos éticos e lógicos de sua forma de pen-sar: a produção de narrat ivas mais livres,reconstituindo esse pensamento, fez emergir ovalorizado e o desqualificado, bem como oproblemático e o natural, para as percepçõessingulares e para seu conjunto, o pensamentomédico. Sua leitura, então, possível, nos farácompreender a cultura profissional, as imagensidealizadas acerca da prática e como se auto-concebem, na história e na sociedade, estescujas práticas técnicas os situam enquanto pri-vilegiados atores sociais.

Referências Bibliográficas

1. BALAN, J. & JELIN, E. La structure sociale dans la biographicpersonnelle. Cah. Int. Social., 69:269-89, 1980.

2. BERTAUX, D. Biography and society: the life-historyapproach in the social sciences. New York, Sage, 1981.

3. BERTAUX, D. L'approche biographique: sa validitéméthodologique, ses potencialités. Cah. Int. Sociol,69:197-225, 1980.

4. BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. SãoPaulo, T. A.Queiroz, 1983.

5. BRUYNE, P. de; HERMAN, J.; SCHOUTHEETE, M.Dinâmica da pesquisa em ciências sociais. 2a. ed. Riode Janeiro, Livraria Francisco Alves Ed. S. A., 1977.

6. BURGESS, R. G. Field research: a sourcebook and fieldmanual. London, George Allen and Unwin, 1982.

7. CALDEIRA, T. P. do R. A política dos outros: o cotidianodos moradores da periferia e o que pensam do podere dos poderosos. São Paulo, Brasiliense, 1984.

8. CALDEIRA, T. P. do R. Uma incursão pelo lado "nãorespeitável" da pesquisa de campo. Ciênc. Soc. Hoje(1): 332-54, 1981.

9. CAMARGO, A. A. Os usos da história oral e da história devida: trabalhando com elites políticas. DADOS-Rev.Ciênc. Soc, 27:5-28, 1984.

10. CAMARGO, A. A. O ator, o pesquisador e a história:impasses metodológicos na Implantação do Centro dePesquisa e Documentação de História Contemporâneado Brasil, In: Nunes, E. de O. org. A aventurasociológica: objetividade, paixão, improviso e métodona pesquisa social. Rio de Janeiro, Zanhar Ed., 1978.p.276-304.

11. CAMARGO, A. A.; HIPPOLITO, L.; ROCHA-LIMA, V. da.História de vida na América Latina. BIBI, 16:5-24,1983.

12. DURHAM, E. R. Cultura e ideologia. DADOS-Rev. Ciênc.Soc. 27:71-89, 1984.

13. FERNANDES, F. Ensaios de sociologia geral e aplicada.São Paulo. 2a. ed. Pioneira, 1971.

14. FERRAROTI, F. Les biographies comme instrumentanalytique et interprétatif. Cah. Int. Sociol , 69:227-48, 1980.

15. GIANNOTTI, J. A. Trabalho e reflexão: ensaios para umadialética da sociabilidade. São Paulo,Brasiliense, 1983.

16. LEFEBVRE, H. A re-prprodução das relações de produção.Porto Publicações Escorpião, 1973.

Page 12: Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do ... · tecido através de sua representação no relato individual, esses textos exortam a grande van-tagem da técnica

17. MICHELAT, G. Sobre a utilização da entrevista não-diretiva em sociologia. In: Thiollent, M. Críticametodológica, investigação social e enquete operária.São Paulo, Polis, 1981. p. 191-211.

18. MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento:pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo, Hucitec-Abrasco, 1992.

19. QUEIROZ, M. I. P. de. Relatos orais: do "indizível" ao"dizível". Ciêc. Cultura, 39 (3): 272-86, São Paulo, 1987.

20. QUEIROZ, M. I. P. de Variações sobre a técnica degravador no registro da informação viva. São Paulo,Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, 1983. (Textos, n°4).

21. NUNES, E. de O. org. A aventura sociológica- objetividade,paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio deJaneiro, Zanhar Ed., 1978.

22. SCHRAIBER, L. B. Medicina l iberal e tecnologia :as t r a n s f o r m a ç õ e s h i s t ó r i c a s da a u t o n o m i aprof i s s iona l dos médicos em São Paulo. SãoPaulo, Faculdade de Medicina da USP, 1988.[Tese de Doutorado da Faculdade de Medic inada USP].

23. SCHRAIBER, L. B. O médico e seu trabalho. Limites daliberdade. São Paulo, Hucitec, 1993.

24. THOMPSON, P. Des récits de vie a l'analise du changementsocial. Cah. Int. Sociol, 69:249-68, 1980.

Abstract

Qualitative research as applied to Public Health and Social Medicine is studied. The project is based upon researchinto the historical transformation of medical professional autonomy as medicine shifted from the "liberal" practice torecent "technological" medicine. Field research used unstructured recorded interviews to gather perssonal testimoniesabout the professional histories of physicians who graduated between 1930 and 1955. These testimonies aretechnically classified as "oral accounts" and were registered as free narratives. This study analysis how accounts canexpress the physicians' self-representations of their daily work and simultaneously write the history of medical practice.Further, the unstructured interview is evaluated as an instrument yielding free narratives and life accounts.

Research, methods. Professional practice, history. Social medicine.