pesquisa em ação
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PPRROOAAPPEE--PPeessqquuiissaa
VVoolluummee 22
ISBN 978- 85-98716-08-4
PPeessqquuiissaa eemm aaççããoo Programa de Apoio à Pesquisa e Extensão—PROAPE
Shirley de Souza Gomes Carreira Marcelo Mariano Mazzi (Organizadores)
PPeessqquuiissaa eemm aaççããoo
PPRROOAAPPEE--PPeessqquuiissaa
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SShhiirrlleeyy ddee SSoouuzzaa GGoommeess CCaarrrreeiirraa
MMaarrcceelloo MMaarriiaannoo MMaazzzzii (Organizadores)
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PPRROOAAPPEE--PPeessqquuiissaa
VVoolluummee 22
1ª. edição
Belford Roxo
2014
Copyright © 2014 Shirley de Souza Gomes Carreira, Marcelo Mariano Mazzi (Organizadores).
Editor: UNIABEU- Centro Universitário
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Shirley de Souza Gomes Carreira
Revisor: Célio dos Santos Saraiva
FICHA CATALOGRÁFICA
CC314p
Carreira, Shirley de S. Gomes, Mazzi, Marcelo Mariano - Belford Roxo: UNIABEU, 2014.
Pesquisa em ação [livro eletrônico]: PROAPE-Pesquisa/
Shirley de Souza Gomes Carreira, Marcelo Mariano Mazzi (Org.)
- 1ª. ed. – Belford Roxo : UNIABEU, 2014.
v. 2
ISBN: 978- 85-98716-08-4
Está disponível online: www.uniabeu.edu.br
1. Educação superior 2. Projetos de pesquisa 3. Extensão
universitária 4. UNIABEU I. CARREIRA, Shirley de S.
Gomes, MAZZI, Marcelo Mariano II. Título
SSuummáárriioo
Apresentação
666
Estatuto histórico do texto literário: considerações transdisciplinares Anderson Figuerêdo Brandão
777
Gazeta Nacional: os escravos, os abolicionistas a princesa. Rio de Janeiro, 1887- 1888 Andréa Santos da Silva Pessanha
222111
A Engenharia da Liberdade: os africanos livres e as obras públicas no Rio de Janeiro Imperial Carlos Eduardo M. de Araújo
333333
História e historiografia no caso das pensões vitalícias dos ex-voluntários da pátria na Guerra da Tríplice Aliança (1907-1912) Fernando da Silva Rodrigues
555222
Escravos em família: Angra dos Reis, 1822
Márcia Cristina Roma de Vasconcellos
777000
Literatura e memória cultural: representação de imigrantes libaneses na literatura brasileira Shirley de Souza Gomes Carreira
888555
6
AApprreesseennttaaççããoo
Pesquisa em ação é a segunda publicação derivada de projetos de pesquisa e de
extensão vinculados ao Programa de Apoio à Pesquisa e à Extensão (PROAPE) do
UNIABEU – Centro Universitário. A obra visa a divulgar os resultados dos projetos
desenvolvidos no biênio 2010-2012.
Os seis capítulos deste volume abordam temas da área de Ciências Humanas e
Letras. O estudo de Anderson Figuerêdo Brandão discorre sobre o estatuto histórico do
texto literário. Ele busca analisar o seu objeto em uma perspectiva histórica e sociológica.
Na sequência, Andréa Santos Pessanha aborda o periódico Gazeta Nacional como objeto e fonte de estudo.
Em “A Engenharia da Liberdade: os africanos livres e as obras públicas no Rio de
Janeiro Imperial”, Carlos Eduardo de Araújo analisa a exploração dos escravos “livres” no
período do império até 1860, quando enfim tiveram a sua liberdade reconhecida pelo
Estado.
Em seguida, Fernando da Silva Rodrigues analisa a História e historiografia no
caso das pensões vitalícias dos ex-voluntários da pátria na Guerra da Tríplice Aliança.
Márcia Cristina Roma aborda o papel do escravo na família na cidade de Angra dos
Reis em 1822.
Por fim, Shirley de Souza Gomes Carreira reflete sobre a representação do
imigrante libanês na literatura brasileira, estabelecendo relações entre a literatura e a
memória étnica.
Esta publicação cumpre, assim, o seu papel, ao ofertar ao público o resultado das
pesquisas realizadas no UNIABEU- Centro Universitário.
Boa leitura!
Marcelo Mariano Mazzi
Gerente de Pós-graduação, Pesquisa, Extensão e Responsabilidade Social
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Estatuto histórico do texto literário: considerações transdisciplinares
Anderson F. Brandão ∗
INTRODUÇÃO Entre os meses de novembro de 2010 e novembro de 2012, realizamos um projeto
de pesquisa intitulado “O Estatuto Histórico do Texto Literário: considerações
transdisciplinares”, que foi financiado pelo Uniabeu (sob o PROAPE, Programa de Apoio à
Pesquisa) após seleção pela Funadesp (Fundação Nacional de Desenvolvimento do
Ensino Superior Particular).
Durante os meses que realizamos nosso trabalho, orientamos as pesquisadoras
Marineide Marins do Nascimento, aluna do Curso de Letras do Uniabeu. No segundo
semestre de 2011, realizamos a seleção de Fabiana Arrúda Corrêa, também aluna do
curso de Letras do Uniabeu, bem como Samanta Samira Nogueira Jurkiewicz, que esteve
conosco como voluntária.
Nosso objetivo caracterizou-se pela realização de uma pesquisa voltada para a
produção de subsídios (algumas considerações teóricas) que pudessem auxiliar os
futuros pesquisadores do Uniabeu provenientes das áreas de Estudos Literários com
ênfase na análise sociológica e/ou histórica da literatura (Letras).
Nosso trabalho esteve fundamentado em três instâncias de fontes teóricas. Foram
elas:
1 – As construções sobre a verdade e sobre a criação de sentidos de verdade
através da teoria arqueológica de Foucault – redimensão das propostas filosóficas de
Nietzsche.
2 – O estudo que comporta de que forma essas mesmas verdades, esses
construtos, são oriundos de fontes ideológicas nas quais os atores sociais, no âmbito da
elaboração da obra estética, são eminentemente entidades formadas pelo discursos
(personagens) e produtoras de narrativas mais ou menos conflitantes com as ideias, usos
e costumes da época de formação do texto literário.
3 – A permanência ou a transformação dos conteúdos dos discursos através do
tempo, seja por força dos padrões tradicionais de cerceamento e formação, ou mesmo
pela sobrevivência estratégica de ideias, usos ou costumes que foram alvo do
silenciamento agenciado pelas ideologias dominantes.
∗ Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ.
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Em relação aos textos literários, buscamos analisar aqueles que estariam mais
próximos de uma representação ou da vontade de representar de forma mais precisa as
realidades sociais. Por isso, escolhemos autores cujas obras aproximam-se à concepção
realista da Literatura. Observamos também um escopo que julgamos ser representativo
de momentos importantes da formação de nossa cultura e que foram identificados pelos
escritores que listamos a seguir:
1)Final do Período Monárquico e início da República, representados em textos
escolhidos da obra de Aluísio Azevedo (O cortiço).
2)A Primeira República, representados na obra de Lima Barreto (Triste fim de
Policarpo Quaresma).
3) Modernidade e tradição na Segunda República dos anos 50 em Nelson
Rodrigues –tradição em conflito na família carioca (Os sete gatinhos).
Os subsídios para uma leitura interpretativa dos textos literários propostos cooptou,
portanto, as possíveis relações de continuidade – espelhamento coincidente entre o
universo do texto literário e o contexto histórico e social escolhido –, e de descontinuidade
– espelhamento não coincidente entre o universo do texto literário e o contexto histórico
escolhido. Com esse duplo processo, foi possível criar considerações sobre elementos
que compuseram uma metodologia desenvolvida na Uniabeu que possa auxiliar os
pesquisadores oriundos da área de Estudos Literários (Letras) com ênfase na análise
sociológica e/ou histórica da literatura e de História (História Cultural; História da Vida
Privada; História das Mentalidades) no estudo de aspectos dos encontros e dos
desencontros entre textos artísticos e o contexto histórico e social de sua gênese.
Os principais subsídios teórico-metodológicos que desenvolvemos em nossa
pesquisa foram:
1 – A crítica ao método de leitura histórica e sociológica do texto literário não
consciente da natureza da linguagem como elemento de construção da realidade.
2 - Subsídios metodológicos para o estudo de textos literários sob a ótica de
estudos sociológicos e históricos. 1. A crítica ao método de leitura histórica e sociológica do texto literário não
consciente da natureza da linguagem como elemento de construção da realidade A teoria crítica que procura uma aproximação com texto literário a fim de traçar
considerações a partir de uma relação de espelhamento na qual fica estabelecido que o
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real é transposto na obra de forma mais ou menos reelaborada e estruturada como uma
representação em primeira instância está submersa num emaranhado de discursos bem
mais complexos do que o existente na dialética simples entre o real e o que é
representado na obra literária.
Partindo do pressuposto que nos levaria a pensar não serem ingênuas as
considerações formais a respeito dessa ação, argumentamos que o encobrimento da
relação entre duas instâncias discursivas estariam, dessa forma, buscando a legitimação
de construtos ideológicos como verdades naturalizadas em seus pressupostos mais
básicos. O objetivo seria convencer o leitor de que a lógica imanente a esse tipo de
consideração não seria a retirada de um confronto entre textos, discursos ou instâncias
ideológicas, mas a de uma representação proveniente do âmbito da própria realidade.
Teorias críticas que não problematizam a apreensão da realidade como uma
linguagem têm, por fundamento ideológico básico, a construção de um engenho que se
nos aparece sob a forma do real e, por esse motivo, o verdadeiro.
Avesso ao determinismo das teorias sociológicas do século XIX, Antônio Candido
procurou em Literatura e sociedade (CANDIDO, 2008) uma forma de tornar palatável o
fluxo de suas considerações embasadas na relação entre a sociedade e a literatura. Seu
texto é uma contribuição importantíssima na esteira de obras de teoria sociológica
aplicada à Literatura Brasileira, a buscar o entendimento através de cruzamentos com
estudos sociológicos, históricos e até mesmo antropológicos, procurando levar um teor de
“justa medida” às suas considerações.
No entanto, a partir de uma observação mais atenta ao seu livro, poderemos
chegar à percepção de quão hábil é o autor que não desvela uma de suas premissas e
deixa-nos ao sabor do fato de que estamos, durante considerável parte da obra, a nos
deixar levar pela “miragem construída pela suposta observação do real”, pois o que
Candido entende como sociedade só pode ser um conjunto de textos que ele agrupa sob
o nome de “sociedade”.
O conjunto de discursos que aparecem sob o nome “sociedade” não são um
recorte de fatos simplesmente observados na própria realidade e transferidos para o
papel, mas um grupo ordenado de discursos mais ou menos conflitantes e que foram
reagrupados para dar uma ideia harmônica a fim de serem usados como um parâmetro
na comparação ou na fundamentação teórica que serviu de subsídio para a análise dos
textos literários. Em última análise, o que serve de paradigma para as comparações e
inferências não é a sociedade em si mesma, mas sim textos sobre a sociedade.
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Ora, se os textos históricos e sociológicos são abertos, ou seja, se eles respondem
às perspectivas teóricas mais ou menos condizentes com o seu tempo, se eles podem ser
atualizados pelas pesquisas posteriores, as análises histórico-sociológicas devem ser
encaradas também como contingentes e não definitivas. Se uma leitura é realizada em
uma determinada época e a partir de um determinado cabedal histórico e sociológico, a
mudança de perspectiva histórica e social também acarretará em novas análises do texto
literário, agora sob os aspectos mais atualizados.
Essa é a primeira diretiva que percebemos quando problematizamos a análise
histórico-sociológica da literatura sob o prisma de que a apreensão do real – sobretudo na
análise de textos antigos – é, na verdade, a leitura de textos sobre o real daquela época.
Deve-se, com isso, levar em conta que os próprios textos históricos e sociológicos
possuem um encaminhamento ideológico que lhes é peculiar. A escolha de determinada
“leitura” sobre os acontecimentos ou sobre determinados usos e costumes urbanos
influenciará a análise final da obra literária.
Portanto, se a ideologia imanente aos textos históricos e sociológicos é inevitável,
recomenda-se ao pesquisador a leitura de obras que sejam condizentes com a sua
proposta teórico-metodológica. Por outro lado, uma leitura crítica de outros textos
históricos e sociológicos (principalmente os escritos na época de primeira edição dos
textos literários) servirá para que o pesquisador possa realizar a desnaturalização de
construtos ideológicos conflitantes entre a imagem feita na época e aquela que é
realizada na atualidade. Em ambos os casos, a escolha dos textos que servirão como
“espelho” da sociedade a ser estudada deve ser feita de forma consciente.
Nietzsche (2008) habilmente construiu sua crítica da cultura a partir da
problematização da relação supostamente simples entre o real e a linguagem. Segundo o
filósofo, acreditamos saber algo acerca das próprias coisas, quando falamos de árvores,
cores, neve e flores, mas, com isso, nada possuímos senão metáforas das coisas, que
não correspondem, em absoluto, às essencialidades originais (NIETZCHE, 2008, p.34).
É preciso, por esse motivo, que sejam retirados os véus que escondem as
metáforas entre as palavras e as coisas, a fim de que seja possível compreender os
textos históricos e sociológicos partindo de observações imanentemente ideológicas em
suas tendências a serem construtos elaborados sob a forma científica, já que essa
formatação pressupõe-lhes um conteúdo de verdade.
As observações científicas não estão destituídas da inserção de subjetividade,
como também aponta Nietzsche(2008). A objetividade que procura esvaziar o sujeito de
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sua dimensão ideológica nada mais é do que uma norma linguística usada na construção
do discurso científico, um pressuposto metodológico-discursivo, malgrado as teorias que
teimam em denunciar a sua dimensão artificial.
Haveria, portanto, um consciente encobrimento das particularidades menos
interessantes do método, a passar a ilusão de que as construções textuais que estão à
frente do leitor são oriundas mesmo da apreensão da essência das coisas e que contêm a
coisa em si e não um discurso fundamentalmente metafórico sobre a própria realidade. O
tipo de construto que embasa esse engendramento promete que o leitor encontrará um
conteúdo de verdade, ou melhor, que se deseja propor como verdade (que é, no fim das
contas, o construto ideológico que serve de instrumento ao convencimento do leitor sobre
os conteúdos que estão no texto e que possuem a aparência de realidade) a partir de
considerações feitas com base em uma relação empírica com o real.
Encobrir as relações ideológicas que circulam livremente na confrontação entre
textos mais ou menos conscientes de que a sua realização sempre será da ordem da
própria linguagem e nunca da ordem das coisas é fechar os olhos para o fato de que o
sistema da linguagem não é comum à própria existência e, com isso, ao mundo das
coisas. Como diz Foucault: “Não há sistema comum à existência e à linguagem; pela
simples razão de que é a linguagem, e apenas ela, que forma o sistema da existência”.
(FOUCAULT apud MACHADO, 2005, p.79)
Como seria então possível observar um elemento externo pertencente ao século
XIX, já perdido há muito no tempo? É nesse ponto que a verdadeira questão se coloca. A
própria construção do passado só é possível através de um discurso não isento de teor
ideológico. Os próprios textos históricos e sociológicos estão eivados de construções que
estão conscientemente pautadas em posicionamentos ou leituras voltadas para
determinados aspectos considerados importantes, em detrimento de outros.
Portanto, esse elemento não vem simplesmente puro da realidade. O que há são
discursos sobre apreensões linguísticas que têm como base sistemas do passado. É por
esse motivo que a reconstrução do passado através de textos históricos ou sociológicos é
vazia e contínua, pois é sempre feita a partir de uma linguagem que se repete e não de
uma realidade que é retratada. Se houvesse algo de sólido nas reconstruções históricas
ou sociais, essa permaneceria inalterada. A própria repetição contínua que se faz através
de reconstruções linguísticas aponta para o vazio, para a ausência de uma essência
imanente a esse tipo de discurso.
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A própria noção de regularidade das ciências embasadas nos construtos racionais
aponta para certa permanência de conceitos que dão conta dos próprios resultados a
serem escolhidos pacientemente dentre as várias possibilidades de reconstrução
linguística do real. Toda a regularidade que tanto nos impressiona na trajetória dos
personagens e nos processos existentes nas tramas coincide, no fundo, com aquelas
propriedades que nós mesmos introduzimos em nossas inferências sobre as coisas, de
sorte que, com isso, impressionamos a nós mesmos com as ilusões que engendramos.
Disso se segue, por certo, que aquela formação artística de metáforas, que, em nós, dá
início a toda sensação, já pressupõe tais formas e, portanto, realiza-se nelas; somente a
partir da firme persistência dessas formas primordiais torna-se possível esclarecer como
pôde, assim como outrora, ser novamente erigido um edifício de conceitos feito com as
próprias metáforas (NIETZSCHE, 2008, p.45).
Estamos, na verdade, diante de um olhar disciplinador, ou reorganizador como
maneira de ver ou disciplinar o texto literário, no sentido que um fenômeno teria uma
maior ou menor possibilidade de se enquadrar ou ser encaixado em um discurso exógeno
que o (re)moldaria a fim de que o produto final sirva de elemento legitimador da própria
teoria. Ou seja, desde que se cria o próprio esquema teórico há uma procura inclemente
por fundamentar esse sistema de narrativas em discursos mais ou menos relacionados à
realidade doadora de legitimação do discurso científico, como se houvesse necessidade
de, a todo tempo, revalidar a pertinência de determinados saberes ordenadores do
mundo.
Atualmente a crítica visa a estabelecer, em relação à literatura, à linguagem
primeira, uma espécie de rede objetiva, discursiva, demonstrável, justificável em cada um
de seus pontos; uma relação onde o que é primeiro, constitutivo, não é o gosto do crítico,
um gosto mais ou menos manifesto, mas um método de análise. A crítica, portanto, está
formulando o problema de seu fundamento na ordem da positividade da ciência
(MACHADO, 2008, p.156).
Essa forma de operar faz parecer que a obra “quis apresentar alguma coisa” – mas
esse “quis apresentar alguma coisa” não é nada mais ou menos do que uma “leitura” do
próprio texto literário e não um fator que lhe seja naturalmente constitutivo.
O que se questiona aqui não é a semelhança, nem mesmo a capacidade de o
crítico criar leituras coincidentes com o texto literário, mas a eternização de sua postura,
que aparece como natural, quando, na verdade, sabemos que é construída, ideológica,
artificial porque urdida para parecer natural, pois os próprios elementos do texto passam a
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ter um sentido sociológico ou histórico somente a partir de uma leitura sociológica ou
mesmo histórica.
Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica,
histórica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a
uma interpretação coerente. Na verdade, o que parece que o autor entende por uma
interpretação coerente seria a construção de um texto crítico que não se impusesse e
forçasse a ruptura da literatura e se autodenunciasse como uma construção sobre outra
construção, mas que reorganizasse os elementos do texto literário de tal forma que o
construto final fosse verossímil ou de alguma forma semelhante à obra que se deseja
estudar.
2. Subsídios metodológicos para o estudo de textos literários sob a ótica de estudos sociológicos e históricos
A nossa metodologia foi realizada através do estudo bibliográfico das fontes
literárias e teóricas expostas em nosso relatório. Cada uma delas nos forneceu subsídios
que nos ajudaram a compor os primeiros passos de nosso arcabouço fundamentado nas
relações de continuidade e de descontinuidade entre os conteúdos presentes nos textos
literários e as nossas obras históricas e/ou sociológicas.
Percebemos que cada época dá um determinado significado para os conceitos e
que não há imutabilidade no desenvolvimento de determinadas ideias se nos ativermos à
postura comparatista. Essa última nos colocou diante de questões muito bem
aproveitadas pelos nossos pesquisadores. Eles puderam confrontar o desenvolvimento de
determinados conceitos tidos como “verdadeiros” em determinada época e que,
posteriormente, não se mantiveram no mesmo patamar significativo.
A chave para o esclarecimento desse fenômeno foi a obra de Friedrich Nietzsche,
que nos ajudou a desconstruir as ideias de que determinadas verdades permanecem
inalteradas no tempo, posto que autor desvendou a relação cristalizada entre o
significante e o significado do signo linguístico para que esse pudesse ser
(re)historicizado. Essa ação realizou-se através de uma mobilidade interessante, que
apontou para as diversas possibilidades de recepção dos significados estratégicos
presentes em determinada época.
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O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropoformismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas que se tornaram desgastadas se sem força sensível, moedas que perderam seu troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como moedas. (NIETZSCHE, 2008, p.37)
Além disso, as considerações sobre as relações de poder que agenciaram e
cooptaram essas verdades não puderam ser perdidas de vista por nossa pesquisa. Por
esse motivo, nosso objetivo foi buscar uma associação entre as considerações
formuladas pela escola Nietscheana e a linha teórica que encontramos e realizamos em
torno do marxismo, principalmente no que diz respeito às questões que foram pertinentes
à ideologia.
Tentamos seguir por esse caminho porque entendemos que essas duas linhas
teóricas não são antagônicas, mas podem ser entendidas como complementares em
análises que se proponham a estudar os sentidos de verdade e de imposição dessas
mesmas verdades, que entendemos como “ideologia”.
Em nossa concepção, os poderes de silenciamento ou de agenciamento e
conformação de discursos não podem prescindir de uma análise ideológica pautada na
imposição de interesses entre determinadas classes sociais.
Além disso, a força da naturalização de construtos ideológicos foi um elemento
considerado em nossa pesquisa, visto que serviu de pavimentação os nossos estudos
sobre a continuidade e as descontinuidades no interior dos textos literários e que puderam
ser revelados quando realizamos as nossas comparações entre discursos oriundos de
diferentes origens, como os sociológicos, os históricos etc.
Finalmente, os métodos de análise estruturalistas nos emprestaram conceitos
fundamentais, como o de “longa duração” e das “mentalidades”. No entanto, a
contribuição mais importante que eles tiveram em nossa pesquisa girou em torno da
leitura de estudos que apresentavam usos, ideias e costumes históricos que
comparávamos com o que encontrávamos na leitura de nossas obras literárias. É nesse
ponto que a análise das continuidades e das descontinuidades entre os discursos nos
apontaram para caminhos que nos ofereceram algumas fontes importantes de discussão
sobre as regras e as estratégias de construção de ideários, de verdades, de construtos
ideológicos naturalizados pelos agenciadores do poder e os conflitos propostos pelos
textos literários, nem sempre coadunados ideologicamente com as temáticas dominantes.
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Os conflitos ideológicos, responsáveis pela energia potencial das forças que
movimentam as tramas, são encontrados na estrutura profunda dos textos literários e são
revelados pelas descontinuidades, importantes caminhos através dos quais o estudioso
pode traçar um perfil das tensões de poderio da época na qual a obra foi urdida. Sob as
contínuas tensões os personagens muitas vezes representam a pantomima de situações
que não aparecem explicitamente nas relações sociais, mas que o estudo comparativo
pode revelar. Ou seja, os conteúdos que a vida quotidiana procura encobrir
constantemente através de discursos homogeneizantes podem ser retomados através da
análise comparativa entre textos literários e aqueles oriundos das áreas de estudos
históricos e sociológicos. Isso é possível desde que tenhamos em mente que a
heterogeneidade entre as instâncias discursivas é capaz de apresentar um caminho
seguro através do qual podemos entender as diversas fraturas e posicionamentos
ideológicos conflitantes e presentes em determinada época e cristalizada no texto literário.
As forças representadas nos discursos, malgrado suas intenções de completude e
coerência, apresentam falhas, frestas através das quais o estudioso traça linhas,
genealogias. Essas últimas são estruturas que se movimentam através do tempo, criando
relações díspares entre significados. Tal fato ocorre porque cada época tem uma forma
de construir as diversas relações entre os vocábulos e essas formas costumam espelhar
as relações de poder e de pertencimento a determinadas classes conforme as relações
de força presentes naquele momento histórico.
Por esse motivo, é possível entender que construtos ideológicos naturalizados
como verdades são oriundos de construções histórico-ideológicas e fazem parte das
relações sociais estudadas tanto nos textos sociológicos quanto nos históricos e estão
presentes nos textos literários.
Se tais falhas são subliminares em textos não literários, quase filigranas a serem
vistas com uma poderosa lupa, alguns exemplos artísticos, como nos casos apresentados
neste projeto, revelam importantes documentos para o estudo do perfil da sociedade que
lhes serviu como fonte para formação.
Essa série de crises pode ser encontrada quando comparamos textos que são
oriundos de diferentes áreas, como os literários e os históricos. No entanto, não podemos
deixar de notar que a própria natureza do texto literário já nos apresenta uma série de
descontinuidades que são inerentes à sua especificidade.
Em alguns autores, essas rupturas são mais transparentes: a crise se revela
através da ironia resultante do convívio, em uma mesma frase, de elementos díspares.
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Dessa forma, entendemos que o deslocamento contínuo das significações pertinentes ao
signo literário é um excelente material para trabalharmos relações de poder que
normalmente ficam encobertas nos discursos.
Através dos momentos de ruptura, comuns ao texto literário, é possível estudar
hábitos, crenças e costumes impostos por segmentos possuidores de algum poder físico
ou intelectual. Instâncias de poder, responsáveis pela energia potencial dos conflitos que
movimentam as tramas, são encontradas na estrutura profunda dos textos literários e são
reveladas pelas descontinuidades, importantes caminhos através dos quais o estudioso
pode traçar um perfil das tensões de poderio da época na qual a obra foi urdida. Sob as
contínuas tensões os personagens muitas vezes representam a pantomima de situações
que não aparecem explicitamente nas relações sociais, mas que o estudo comparativo
entre textos provenientes da Literatura, da História e da Sociologia pode revelar.
As instâncias de poder imanentes nos discursos, malgrado suas intenções de
completude e coerência, apresentam falhas, frestas através das quais o estudioso traça
linhas, genealogias. Por elas é possível entender como determinadas verdades são
inseridas na sociedade e permanecem sob a forma de naturalizações nas sociedades.
Por detrás das considerações e proposições estéticas existe sempre uma série de
forças de imposição simbólica, quer agenciando ou transgredindo as relações de poder
que estão presentes em determinada época. Isso nos fez crer que a ideia de que a
estética está isenta de quaisquer conotações sociais e mesmo políticas não é procedente.
O mesmo seria pensar que as várias esferas de construções simbólicas seriam
estanques, viveriam em tomos distintos - eis aí uma relação importante entre a obra e a
realidade, que é feita em primeiro lugar pelas representações construídas que realizamos
da própria vida e, em segundo lugar, pela reconstrução realizada com esse mesmo
material, em forma de objeto artístico. A realidade é somente o fato. O que construímos a
partir do que vivemos - e isso se dá a todo tempo - é que se configura no material
indispensável para a construção do objeto artístico.
Pensar nessa primeira fonte, nesse primeiro elemento, nessa primeira camada é
importante e aí é que os estudos sociológicos e históricos são importantes, pois eles
estudam as representações que são realizadas pelo homem em sociedade. Cabe aos
estudos literários pensarem como e de que forma os elementos são reorganizados sob a
forma de construções estéticas. No mínimo, são o cruzamento entre dois tipos
diferenciados de discurso. O primeiro sendo agenciado pela relação do homem com o
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real, com a sua mais imediata relação com o mundo que o cerca, e o outro é a força do
que se reorganiza sob a forma de produto estético.
Em ambas, a relação dialética (conflituosa) aparece, sendo o que muda é a
tipologia dos discursos envolvidos nos embates entre teses, antítese que se transformam
em sínteses inseridas nesse contínuo confronto.
Essa relação conflituosa não exclui as construções que são realizadas sob a forma
da arqueologia das estruturas de sentidos das palavras, as forças cognitivas voltadas
para a percepção do que é verdade, dos construtos e que possuem a força de se
imporem como verdades.
O que se impõe como verdade não está destituído de uma vontade de poder sobre
os outros discursos, posto que esses se realizam não sob a forma de uma simplificada
luta de classes, mas de uma contínua internalização dos sentimentos de pertencimento
ou despertencimento aos discursos no sujeito que - a todo tempo - os constrói e
desconstrói, legitima e afasta.
Conclusão
Nosso trabalho de pesquisa procurou inserir discussões sobre a metodologia
comparativa através da ação de cotejar textos que são de natureza diversa, conforme
apresentamos no decorrer deste capítulo.
É preciso compreender que, por detrás dos constantes conflitos que há quando
confrontamos os mesmos construtos ideológicos sob perspectivas diversas, há interesses
de superposição de valores entre classes sociais. Esses valores são naturalizados
através de discursos coercitivos, nos quais geralmente são apresentados como valores
éticos e morais vigentes em determinada época e que estão presentes tanto nos textos
literários, como também naqueles que usamos fundamentalmente como comparação, os
históricos e os sociológicos.
A literatura permanece em nossas pesquisas como o campo privilegiado onde
podemos encontrar tais representações conflituosas urdidas como se estivessem no
plano da própria vida – não porque o texto literário seja uma cópia mais ou menos
coerente de nosso mundo, mas porque a mesma matéria que compõe a nossa existência,
a linguagem, constitui o texto literário. Por isso, a ideia presente em muitos autores de
que o texto literário é, na verdade, um microuniverso em relação contínua com o nosso.
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Tal fato possibilita a comparação entre os elementos que formam a obra e aqueles
que estão presentes em textos sobre a sociedade que serviu de plano para o construto
literário. Em ambos, a linguagem é o elemento que potencialmente os iguala ou afasta.
Nessas representações da vida, as construções ideológicas estão presentes e
cabe ao pesquisador dar conta de que, em última análise, não há verdade discutida nas
obras literárias que não possa ser desconstruída pela ação de cotejamento entre
continuidades ou descontinuidades entre discursos provenientes dessas áreas diversas. É
através da coincidência ou da fratura discursiva que percebemos o ordenamento, as
confissões, o sentimento de pertencimento ou de exílio que formam, como agora
sugerimos, um arcabouço discursivo que o leitor compara com a sua própria existência.
Os elementos que foram sugeridos acima fizeram parte do escopo teórico que
desenvolvemos graças ao auxílio que facilitou a realização do nosso trabalho. Por esse
motivo, agradecemos ao Uniabeu que – com a concessão da bolsa PROAPE – foi de
fundamental importância para a nossa pesquisa.
O material bibliográfico a seguir em nossas referências foi recolhido no decorrer de
nosso trabalho e acreditamos que possivelmente servirá aos futuros pesquisadores em
nossa área.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Gazeta Nacional: os escravos, os abolicionistas a princesa Rio de Janeiro, 1887-1888
Andréa Santos da Silva Pessanha∗
O discurso do jornal Gazeta Nacional sobre o processo de abolição da escravatura
no Brasil foi foco de uma empreitada em que o presente texto é fruto1. Ao adotarmos o
periódico em questão como objeto e fonte de estudo, ampliamos as possibilidades de
utilização das folhas pelos historiadores. O suporte, ao mesmo tempo em que reconstrói
uma dada realidade, oferecendo uma versão, abre uma janela para a reflexão de como
uma geração específica viveu os acontecimentos, pretendia interferir nos processos em
curso e que memória dos fatos e dos agentes sociais envolvidos desejava fortalecer.
Por meio do perfil dos que publicaram na Gazeta Nacional, discutimos o
pensamento e a prática de integrantes da chamada Geração de 1870, intelectuais que no
período pensaram em transformações econômicas e sociais para o Brasil de então. O teor
dos artigos veiculados propiciou uma aproximação com as propostas desta Geração
através da análise de como os autores pretendiam alcançar o fim do cativeiro e como
apresentavam a participação dos escravos, dos abolicionistas e da princesa Isabel,
constituindo assim, paralelamente, a imagem destes agentes.
No discurso dos homens que utilizaram a imprensa como forma de disseminação
de projetos abolicionistas, o objetivo de alterar as relações sociais através da palavra,
sem convulsionar a sociedade foi a tônica. Buscavam por meio dos jornais a mudança de
comportamentos, valores e visões de mundo sobre a escravidão e suas consequências
para o Brasil. Os periódicos assumiram como missão orientar a população para que o
país seguisse o caminho da civilização e do progresso (PESSANHA, 2010).
Os autores e redatores dos periódicos defensores da abolição agiam com metas
direcionadas, tinham um fim prático e, muito embora, o 13 de Maio não tenha sido simples
decorrência destes artigos, contribuíram para desestabilizar o sistema ao,
quotidianamente, atacarem o escravismo e as relações sociais que o sustentava. Para
∗ Coordenadora do Curso de Licenciatura em História e professora de História de Brasil II (Brasil-Império) do UNIABEU. Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense. 1 O estudo foi financiado pelo Programa de Apoio à Pesquisa (PROAPE), ação da política de incentivo à pesquisa do UNIABEU.
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além do altruísmo, procuravam demonstrar que a existência do cativeiro comprometia a
construção da nação civilizada e manutenção da ordem social. Nos jornais de cunho
abolicionista, a argumentação e sensibilização a respeito dos malefícios da escravidão na
formação da nação brasileira foram constantes.
A Gazeta Nacional trazia por subtítulo Órgão Republicano. Circulou entre
dezembro de 1887 e junho de 1888 na cidade do Rio de Janeiro. Apesar do rápido
período de existência, foi lida e conhecida por lideranças do movimento republicano. A
penetração neste círculo político pode ser constatada pela referência feita pelo
contemporâneo Evaristo de Moraes (1985, p. 18) ao relembrar a trajetória do movimento
republicano no Brasil, pelos jornalistas José do Patrocínio e Rangel Pestana que no
Cidade do Rio e no Província de São Paulo, respectivamente, polemizariam ou
apoiariam as ideias difundidas pela folha. Periódicos republicanos de outras províncias,
como A Federação de Porto Alegre, citavam-na, reforçando sua circulação entre os
críticos do regime monárquico.
No número inaugural do jornal, Quintino Bocaiúva, liderança nacional do Partido
Republicano, fez saudação à folha afirmando:
Herdeira das tradições e da fé republicana de que esse órgão [ A República] foi na sua época a mais ousada expressão, a “Gazeta Nacional” que hoje enceta sua existência está destinada a exercer uma grande influência e a representar um nobilíssimo papel (03/12/1887, p.1).
Este vínculo com A República era desejado pela redação e pelos autores do
jornal. Colocavam-se com canal de expressão dos contrários ao regime monárquico e
buscavam ao longo das edições associações com os republicanos históricos que
assinaram o Manifesto Republicano de 1870 e fundaram o periódico no ano seguinte.
Aristides Lobo foi o primeiro redator-chefe da folha. Ele foi advogado, membro da
Confederação Abolicionista e signatário do Manifesto de 1870, constituindo, portanto, os
chamados republicanos históricos. A atuação de Lobo na imprensa esteve voltada para a
defesa de duas causas: república e abolição. Entre os jornais em que veiculava suas
ideias, merecem relevo O Amigo do Povo. Em 1889, esteve entre os civis que
articularam o 15 de Novembro com os militares. Assinou pelo chefe do Governo
Provisório o documento de Proclamação da República e foi Ministro do Interior ainda
neste Governo.
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Aristides Lobo foi genuíno representante da chamada Geração de 1870. Esta foi
constituída por um leque de escritores que refletiu sobre o Brasil do último quartel do
século XIX, propondo mudanças para que o país entrasse no ritmo, por ela considerado,
do progresso das nações da Europa Ocidental e dos Estados Unidos da América. Essa
mocidade frequentou as faculdades de Direito em Recife e em São Paulo, as faculdades
de Medicina no Rio de Janeiro e em Salvador, estudou na Escola Militar e na Politécnica,
fundou sociedades, clubes e pequenos jornais. Organizou atividades como comícios,
conferências, banquetes, quermesses, festas beneficentes, viagens de propaganda e
passeatas. Divulgou suas ideias através de manifestos, artigos, circulares eleitorais e
livros.
A imprensa foi o principal meio de propagação das propostas, recebendo uma
função especial para esta Geração: era um veículo considerado civilizador e educador,
pois através dela se convenceria ao maior número de pessoas das mudanças
necessárias para o Brasil entrar no rumo do progresso. A campanha pelos jornais
coadunava os espaços de orientação das ações e dos hábitos que estes homens
pretendiam desenvolver na sociedade, de formação de identidades e de construção de
memória (BARBOSA, 2010, p. 110-116; PESSANHA, 2010, p. 218-223).
A Geração de 1870 foi por excelência heterogênea em termos de origem social,
filiação intelectual e formação de alternativas políticas para o Estado. Contava com
membros da tradicional aristocracia, como Rui Barbosa, e com descendente de escravos,
como José do Patrocínio. Em termos de regime político, oscilava entre os defensores da
monarquia federativa, como Joaquim Nabuco, ou do modelo republicano, como Silva
Jardim. Ainda entre os republicanos, podemos distinguir os que entendiam a república
como concretização do ideal do self-made-man, enfatizando uma sociedade aberta aos
talentos e contrária a privilégios hereditários para ocupação do poder, como Saldanha
Marinho, ou que centravam suas atenções nos interesses das elites regionais, na
descentralização política, como Rangel Pestana (ALONSO, 2002).
A formação desta Geração ocorreu num contexto de prosperidade econômica
brasileira, que engendrou a substituição do trabalho escravo pelo livre e o surgimento de
novos atores sociais que passaram a pressionar por um maior espaço político. Os setores
médios urbanos cresciam desde meados dos Oitocentos em decorrência do aumento da
circulação de capital, da ampliação do número de instituições de crédito, da melhoria do
sistema de transporte e de comunicação. A extinção do tráfico internacional de escravos
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possibilitou maior fluxo de capitais, sendo, em parte, responsável por essas
transformações.
Por pensar e projetar o Brasil apoiado no liberalismo e as teorias raciais científicas,
pesquisadores analisaram o pensamento e a prática política da elite intelectual do século
XIX como artificial, distante da realidade brasileira, que ainda contava com o trabalho
escravo e não tinha passado pela Revolução Industrial (SCHWARZ, 1977; FRANCO,
1976). Compartilhamos com a concepção que entende o pensamento destes homens e
instituições oitocentistas como uma releitura, uma atribuição de novos sentidos aos
conceitos, a partir da realidade imediata. As ideias não eram copiadas e nem meramente
distorcidas, eram reelaboradas por essas elites, que se apoiavam na literatura
internacional para pensar o futuro do país (SCHWARCZ , 1993, p.242).
O Rio de Janeiro, da segunda metade do Oitocentos, apresentou-se como uma
cidade cosmopolita. Era sede do governo monárquico e principal centro comercial, onde
entravam ao lado dos produtos de primeira necessidade e de luxo, ideias europeias. A
intensa atividade de importação e exportação revitalizou sua proeminência política.
Temas como progresso, civilização, modernização e ordem eram constantes e
interdependentes nos discursos de engenheiros, professores, médicos, advogados e
jornalistas Geração, inspirando seus textos.
A campanha abolicionista diferenciou-se do emancipacionismo presente em
especial nos anos setenta por ter por pauta o fim do cativeiro de maneira imediata e
incondicional. Os emancipacionistas protelavam o processo de transição da mão de obra
escrava para a livre, de forma que se viabilizasse um período de aprendizagem por parte
do escravo, uma fase de transição, e consideravam necessário algum tipo de indenização
aos antigos proprietários.
Para os abolicionistas, fazia-se mister a elaboração de estratégias de condução da
campanha, que estivessem atentas às necessidades de substituição de mão de obra na
agricultura. As aspirações não mais se confundiam com os interesses vinculados à
propriedade em condições escravistas. O cativeiro era identificado com o atraso, sendo
responsável pela inibição do crescimento econômico na medida em que cerceava a
modernização agrícola, comercial e industrial. Expressavam valores que oscilavam entre
a ideia de progresso, de civilização e a preocupação em manter a ordem. O progresso de
acordo com a lógica liberal precisava abolir a escravidão e tinha os seus limites
demarcados pela ordem hierarquizada e excludente da sociedade.
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No primeiro manifesto da Confederação Abolicionista, fundada em 1883 no Rio de
Janeiro, servindo de referência para as demais instituições antiescravistas do país, as
razões para a abolição eram assim expostas: O escravagismo; a barbaria da exploração do homem pelo homem; os torpíssimos abusos das raças mais avançadas na evolução social, o cínico parasitismo exercido sobre os que vivem e morrem trabalhando, sem jamais ver o fruto de seus esforços, é tão fatal à moralidade dos povos, como prejudicial à sua agricultura, à sua indústria, ao seu comércio, e a todos os elementos da riqueza nacional (p. 40).
A atuação dos periódicos foi cautelosa e tímida em relação à causa abolicionista
enquanto foi possível aos seus diretores. Afinal, dependiam dos anunciantes, os quais
eram comumente senhores de escravos. Mesmo nos anos mais fervorosos, alguns
periódicos tinham posturas contraditórias, divulgando concomitantemente textos de cunho
antiescravistas e anúncios de fuga, compra e venda de escravos (MACHADO, 1991). A
valorização deste meio de comunicação deve ser vista com cautela, pois atingia um grupo
bastante seleto da população, em razão do alto índice de analfabetismo da população
livre. Entretanto, o processo de urbanização propiciou o aumento do número de leitores e
a leitura dos textos em voz alta facilitava a circulação oral das ideias. No final do
Oitocentos, os periódicos possuíam um público maior de ouvintes que de leitores, sendo
assim, eram mais ouvidos e vistos do que lidos (BARBOSA, 2000, p. 200).
A utilização da imprensa como forma de condução da campanha casava-se com as
práticas do paternalismo. Este e a pedagogia da violência foram mecanismos utilizados
pelos proprietários para controle dos escravos desde o Brasil-Colônia. O paternalismo foi
uma forma de manutenção da ordem social. Juntamente com o uso da força, da violência
exercida diretamente sobre o cativo – muitas vezes com o próprio aparelho repressivo do
Estado – os donos de escravos utilizavam também mecanismos de controle social que
buscavam vínculos entre os dois polos. Tais relações não implicam simplesmente em
benevolência senhorial e sim em buscar outras formas de manutenção do sistema
escravista.
O paternalismo ligou-se a um conjunto de manipulações, negociações entre
senhores e escravos. Se para os primeiros era um instrumento de controle, para os
cativos tinha o sentido de abrandar a vida na escravidão. Estabeleciam-se práticas
costumeiras, como: possibilidade de fazer pecúlio, um comércio local, manutenção de
famílias, escolha de parceiros conjugais, acesso à roça, frequência aos batuques e às
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irmandades religiosas negras, que deveriam ser respeitadas, caso contrário poderiam
ocorrer fugas, revoltas, assassinatos na comunidade escrava (MATTOS, 1998, p. 292).
As vantagens obtidas dentro do cativeiro não deveriam ser vistas pelo escravo
como conquista e sim concessão, de maneira a gerar um sentimento de gratidão (REIS,
1989). O escravo grato, que consegue espaços para negociação, mantinha a esperança
de conquista da alforria. A possibilidade desta era, a rigor, um importante mecanismo de
controle social e de diferenciação entre os escravos.
Na década de oitenta, com o aumento da pressão dos escravos pela liberdade, a
lógica paternalista de domínio senhorial foi defendida nos artigos veiculados na imprensa
que defendiam a abolição da escravatura no Brasil. O sentido de concessão e não de
conquista era a estratégia a ser utilizada. O fim do cativeiro deveria ser resultado de uma
elite e não ter os escravos como agentes.
A postura paternalista revelou-se, assim, numa proposta de transição do trabalho
compulsório para o livre que entendia a abolição enquanto uma concessão, uma dádiva
das elites brasileiras e, em especial, do grupo de abolicionistas, aos escravos. Estes eram
considerados incapazes de agirem por conta própria, precisando, assim, da tutela dos
grupos com organização política para representá-los e conquistar os seus direitos. Por
essa ótica, podem ser lidas, por exemplo, as festas beneficentes, os fundos de
emancipação, os livros de ouro e as notícias sobre alforrias.
Para estes abolicionistas, os escravos deveriam receber a benevolência dos
libertadores, quer fossem os senhores, os abolicionistas ou a política de abolição gradual
adotada pelo Estado, amenizando, assim, a pressão dos escravos pela liberdade, com
fugas, assassinatos e todas as estratégias quotidianas existentes nos anos oitenta do
século XIX para a obtenção da alforria (CHALHOUB, 1990).
A campanha na imprensa fez questão de dissociar-se de qualquer tendência mais
radical do movimento. Tais militantes preocupavam-se com a estabilidade social e o não
uso da violência, favorecendo a atração de setores proprietários para as fileiras do
abolicionismo2.
A crença no progresso e na civilização respaldou a efervescência do ideário
abolicionista no Rio de Janeiro. Tais homens acreditavam no constante aprimoramento da
natureza humana e das nações, que estariam situadas dentro de uma escala progressiva
2 A historiografia tem realizado estudo sobre uma aproximação de lideranças antiescravistas do Rio de Janeiro com a ação direta dos escravos, apoiando fugas e chegando a constituir os quilombos abolicionistas (SILVA, 2003).
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indo das mais arcaicas até as mais evoluídas, que em sua fase cabal atingiria a
civilização. A abolição era mais um elemento para satisfazer às condições necessárias
para o advento de reformas econômicas e sociais que trouxessem melhorias materiais e
culturais.
Na imprensa abolicionista da cidade do Rio de Janeiro, o paternalismo
apresentava-se numa linguagem que buscava a mediação dos conflitos entre senhores e
escravos. Por meio de um estilo sentimental, almejava-se a sensibilização da opinião
pública, uma mudança de comportamento em relação à escravidão. Era propagado que a
conciliação ligava-se à construção de vínculos de gratidão dos escravos em relação aos
senhores. Neste sentido, a estratégia deveria ser a concessão de manumissões, que
colocariam em relevo a benevolência senhorial.
Nos momentos finais da escravidão, Aristides Lobo, publicava, na Gazeta Nacional, artigos defendendo a abolição como meio de manter o equilíbrio social. Nesta
fase de fragilidade da autoridade senhorial, em especial pelo aumento das deserções em
massa do trabalho, a rotina das fazendas estava se quebrando. Os habituais meios de
controle não eram mais eficazes para a manutenção da ordem, principalmente com a
recusa do Exército em reprimir as fugas: “A escravidão já não existe, pois não havia lei
que garantisse a permanência dos escravos nas fazendas, desde que eles não
quisessem mais aí ficar. No dia em que o escravo não quiser mais trabalhar, não trabalha”
(Gazeta Nacional, 06/01/1888).
A partir desta constatação, a Gazeta Nacional enfatizava o espírito ordeiro dos
escravos3, que pretendiam sim a liberdade, porém não faziam oposição ao trabalho:
Os negros não abandonam o trabalho, e só o fazem em condições muito especiais. Queremos crer, e é o que nos asseguram pessoas fidedignas, somente a respeito de senhores tidos e havidos como bárbaros e inteiramente intratáveis (08/02/1888).
Senhores tidos e havidos como bárbaros e intratáveis eram justamente aqueles
que não utilizavam a política de benevolência para com seus escravos. Lendo de outra
forma, se os senhores fossem benevolentes os escravos não fugiriam. Nestes anos finais
da escravidão, o paternalismo tinha como ponto final a concessão da alforria.
3 Uma análise específica sobre a memória que a Gazeta Nacional buscava construir sobre os cativos e os libertos no contexto do 13 de Maio, encontramos em PESSANHA, 2011.
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Em 1887, artigos da Gazeta Nacional dedicavam-se a fuga em massa de escravos
na província de São Paulo em particular em Itu e Capivari. Enfatizavam o espírito ordeiro
das fugas, sem agredir, sem depredar:
A previsão de todos em face do inevitável epílogo da escravidão, sempre foi, que tivéssemos os episódios trágicos praticados pelos escravos em presença de qualquer ato dos senhores. Um dos fantasmas temerosos com que o escravismo assombrava os ânimos, era da insurreição com todos os seus horrores. Entretanto, vimos o surpreendente e admirável exemplo de placidez e cordura dado pelos fugitivos de Capivari e Itu ao transporem por grupos compactos as cidades e povoados do interior de São Paulo. Com justa razão, recordou o Clube Militar, em mensagem à regente, que semelhante correção de conduta seria difícil de obter em tropas arregimentadas e sujeitas às regras de disciplina. (04/02/1887).
Em outro artigo, a Gazeta Nacional volta a abordar a tranquilidade das fugas:
Contestando a preposição injusta e de todo o ponto inexata de que os escravos fogem do trabalho em busca da vida errante, cruzando as estradas em ociosa vagabundagem, tem causado surpresa e pasmo o espírito de ordem por eles manifestados (23/12/1887).
Parece que a folha pretendia reforçar um quadro de absoluta paz num contexto em
que escravos estavam abandonando fazendas em São Paulo. Dificilmente, os segmentos
proprietários tinham essa sensação de paz que realçou. O escravo fugitivo, em essência,
quebrava a ordem social escravista, representava perigo. Contudo, talvez por considerar
a liberdade como legítima, quis reforçar o aspecto de tranquilidade social ligada à
abolição e atrair simpatizantes para a causa na Corte.
De acordo com a Gazeta Nacional, caso fosse oferecido ao escravo a liberdade,
as fugas poderiam ser evitadas, pois os cativos brasileiros não tinham tendência para a
resistência violenta. O tema da fuga foi constante no mês de lançamento do jornal.
Paralelamente ao cenário de desmontagem do sistema escravista, o redator
oferecia destaque a uma prática que reforçaria os vínculos de gratidão do escravo para
com o senhor: a estratégia de concessão de alforria:
Alguns senhores, desejosos de encontrar uma solução que conciliasse os interesses de duas classes (a do senhor e a do escravo) encetaram as libertações gerais em curto prazo.
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O primeiro que se revelou compenetrado dessa verdade foi o Sr. Bento Dias Ferraz, que libertou todos os escravos de sua fazenda, aos quais, entretanto, prontificaram-se a permanecer nela trabalhando. (...) Os libertos contratam-se com ex-senhores, não perturbando assim a organização do trabalho. Talvez se fosse dado antes esse passo não se tivesse que lamentar os desfalque de tantos braços úteis. (23/12/1887).
Neste momento de crise da sociedade escravista, a pedagogia da violência deveria
ceder cada vez mais lugar ao paternalismo sob pena dos proprietários não controlarem
mais a transição para a liberdade: Entregues a seus próprios recursos, vendo dia-a-dia despovoarem-se as fazendas, arriscando a assistir a quebra total da disciplina, sem poderem contar sequer com a força pública, os fazendeiros entenderam mais conveniente abrir meio de tal precária propriedade. (23/12/1887).
A concessão da liberdade passa a ser vista como condição para a ordem, pois
gerava a gratidão, evitava o abandono das fazendas e garante a permanência dos
trabalhadores. A Gazeta Nacional enfatizava o espírito humanitário dos senhores que
concederam a alforria, ao mesmo tempo em que esta generosidade garantia o controle e
assegura a produção.
Nos anos finais do escravismo, o paternalismo era um ponto de interseção entre
escravistas e lideranças abolicionistas. A alforria, quando concedida pelo senhor,
fortalecia sua autoridade e gerava vínculos. A gratidão seria estendida à liderança
abolicionista, ao Estado, aquele que o liberto identificasse como agente da abolição.
A Gazeta Nacional preocupava-se com o movimento dentro da ordem, mas
oferecia relevo à resistência dos escravos, principalmente nas fazendas de São Paulo.
Alertava aos segmentos proprietários do perigo da perda de controle do trânsito do
trabalho escravo para o livre. Assim, mesmo agindo dentro da ordem, sem perturbar, sem
depredar ou ter qualquer atividade de vingança, o escravo aparecia como figura central na
folha. A insistência no paternalismo era uma tentativa de inibir a já dada luta pacífica dos
cativos. Após o 13 de Maio, esta atitude foi tomada pela Gazeta Nacional como
argumento substancial para esmaecer a figura de redentora da princesa Isabel4. O jornal
4 PEREIRA (2011) analisou questões políticas e religiosas envolvendo o abolicionismo da princesa Isabel em suas tensões com os contrários à proposta de um Terceiro Reinado. Sobre o tema ver também DAIBERT JÚNIOR, 2004.
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procurou construir a memória da abolição valorizando a participação dos cativos no
processo de extinção da escravidão.
A associação entre abolição da escravatura e princesa regente incomodava os
republicanos do Rio de Janeiro. Em função disto, travaram polêmica com José do
Patrocínio por conta de suas ligações com a regente após a assinatura da Lei Áurea5.
Com o sugestivo título de artigo “Continuamos a ser abolicionistas”, a Gazeta Nacional publicava:
Aderindo finalmente à abolição imediata e incondicional da escravidão, a regente fê-lo pela força ineludível das circunstâncias imperiosas que se impunham no momento (...). Se por isso pode ser aplaudida, aplauso que ninguém lhe recusa, não é, todavia, razão para reconhecimentos ou gratidão de ninguém, e muito menos para os republicanos quebrem as armas e voltem as costas ao seu ideal – o estabelecimento da República Federal (05/06/1888).
A Gazeta Nacional procurava enfraquecer algumas associações feitas pelos
monarquistas: abolição como resultado da ação da princesa Isabel; abolição e indignação
dos fazendeiros, tendo por resultado o crescimento dos simpatizantes da república. O
jornal veiculava um discurso que reduzia a importância da monarquia no fim oficial do
cativeiro.
A utilização da imprensa como canal de divulgação das ideias abolicionistas foi
fundamental para a operacionalização de ações paternalistas no movimento. A procura de
uma ação dentro da ordem encontrou nos periódicos agentes viabilizadores para Geração
de 1870. Se o objetivo era a adoção de medidas não violentas, o ideal era a adoção da
palavra como arma, alterando assim, comportamentos, valores no que tange à abolição.
Próximo à Lei Áurea, a Gazeta Nacional objetivava construir a imagem que a
princesa Isabel não sacrificou o trono. A regente só teria reagido a um fato: a abolição
feita pelos escravos e pelos abolicionistas. Para a folha, a vitória da república, neste
contexto, era uma questão de tempo, pois difundia que o espírito da liberdade, naquele
contexto, atravessava toda a vida do país.
5 O jornalista abolicionista José do Patrocínio rompeu com lideranças republicanas do Rio de Janeiro em função de seu apoio ao processo de mitificação da princesa Isabel como a redentora (MACHADO, 2010; FERACIN, 2006), representando um projeto de construção da memória da abolição distinto do desejado pela Gazeta Nacional. A folha e Patrocínio chegaram a estabelecer polêmicas.
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A engenharia da liberdade: os africanos livres e as obras públicas no Rio de Janeiro Imperial
Carlos Eduardo M. de Araújo1
Introdução
Em 1831, o poder legislativo brasileiro promulgou a lei proibindo o tráfico atlântico
de escravos africanos. A repressão ao crime fora prejudicada pela pouca – ou nenhuma –
assimilação por parte da sociedade em geral, e das autoridades públicas em particular, da
importância de se reprimir este “infame comércio” (RODRIGUES, 2000). As limitadas
iniciativas de repressão do poder público provocaram o nascimento de uma nova
categoria jurídica no país, os africanos livres.
Legalmente, nenhum africano livre era cativo, nem criminoso sentenciado. Na
prática, tudo era conduzido de outro modo. A dubiedade do status jurídico desses
africanos facilitava a exploração de sua mão de obra. Durante o período de construção da
Casa de Correção da Corte, por exemplo, a presença dos africanos livres foi fundamental
(ARAÚJO, 2009). Sem eles, dificilmente o Estado conseguiria erguer o primeiro complexo
prisional do Brasil. Entretanto, não foi fácil o controle desses trabalhadores. Ao mesmo
tempo em que o status jurídico desses africanos facilitava sua exploração, também
permitia que esses agentes utilizassem a lei a seu favor. Protestos, fugas e até um
manifesto foram produzidos por esses homens e mulheres no canteiro de obras da prisão
erguida na Corte. A proximidade deles com as outras categorias de trabalhadores
(escravos, libertos, militares e homens pobres) ajudou a ladinizar aqueles africanos.
Aprenderam a língua, a cultura local e o funcionamento do complexo e intrincado mundo
da escravidão. Usaram as brechas do sistema e da lei que os controlava para agir. Ainda
assim, durante mais de 30 anos, o Estado utilizou a força dos africanos livres para
construir o Império, literalmente (MAMIGONIAN, 2005).
Todos os empreendimentos públicos contavam, em maior ou menor escala, com o
trabalho dos africanos livres. Podemos citar, além da Casa de Correção da Corte, a
Fábrica de Pólvora Estrela do Rio de Janeiro; a Fábrica de Ferro São João de Ipanema
1Doutor em História Social pela Unicamp. Professor Adjunto do Centro Universitário UNIABEU.
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em São Paulo; o Arsenal de Marinha da Corte, entre outras (SOUSA, 1999); (MOREIRA,
2005). A presença desses homens e mulheres alterou as relações de trabalho e controle
nos espaços onde conviviam escravos, sentenciados, homens livres pobres e militares.
Para conseguirmos traçar minimamente um quadro do período, devemos antes entender
melhor como surgiu essa nova categoria de mão de obra negra no Império.
Uma nova categoria de trabalhadores no Império
A lei de 07 de Novembro de 1831 assim determinava:
Artigo 1 º - Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres. (...)
Artigo 2 º - Os importadores de escravos no Brasil incorrerão na pena corporal do artigo 179 do Código Criminal, imposta aos que reduzem à escravidão pessoas livres, e na multa de 200 mil réis por cabeça de cada um dos escravos importados, além de pagarem as despesas da reexportação para qualquer parte da África; reexportação que o Governo fará efetiva com a maior possível brevidade, contatando com as autoridades africanas para lhes darem um asilo. Os infratores responderão cada um por si, e por todos (CLB, 1875. pp.182 – 183).2
Esta lei, que declarava livres todos os escravos “vindos de fora”, ficou conhecida
como “lei para inglês ver”. A categoria de africano livre fora criada na tentativa de
encontrar uma terceira via entre a extinção total da escravidão no Brasil e o confronto
direto com a política inglesa de acabar com a comercialização de africanos através do
tráfico atlântico. Essa política teve início na década de 1810, quando o Brasil ainda fazia
parte do império português.
As dificuldades encontradas pelas autoridades brasileiras no cumprimento da lei
que determinava o fim do tráfico africano estão expressas nos diversos debates
parlamentares e nos relatórios ministeriais produzidos ao longo da década de 1830. Como
exemplo, citamos um trecho do relatório do ministro da Justiça Gustavo Adolfo de Aguilar
Pantoja.
2 Grifo nosso. O Artigo 179 do Código Criminal de 1830 determinava que: “reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse da sua liberdade, pena de prisão de 3 a 9 anos e de multa correspondente à terça parte do tempo; nunca, porém o tempo de prisão será menor que o cativeiro injusto e mais uma terça parte”. CLB. Atos do Poder Legislativo – Código Criminal do Império do Brasil. Lei de 16/12/ 1830. pp. 142 – 206.
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A Lei de 07 de Novembro de 1831 como todas aquelas que não assentam nos costumes, nos usos e interesses e que não respeitam os prejuízos dos Povos, caiu em completa nulidade. A sua publicação teve por fim pôr barreiras ao trafico de escravos africanos, mas tal objeto não se conseguiu, nem mesmo o Governo tem esperanças de que ela o consiga. (PANTOJA, 1837. p.27)
A questão da proibição do tráfico negreiro era antiga, anterior, inclusive, à
independência brasileira. As autoridades coloniais procuraram ganhar tempo assinando
acordos para descumpri-los em seguida. O primeiro tratado sobre o destino dos africanos
traficados ilegalmente surgiu em 1815, decorrente da Convenção Adicional às Resoluções
do Congresso de Viena. Um acordo imposto pela Inglaterra a Portugal limitava o tráfico de
escravos para o Brasil ao sul do Equador. Somente em 1818, as autoridades portuguesas
estabeleceram as punições aos traficantes condenados. Dentre elas, destacamos o
confisco de bens e o degredo. Os traficados ilegalmente deveriam ser apreendidos e
entregues aos juízes da Ouvidoria da Comarca. O tratado ainda estabelecia que os
africanos deveriam trabalhar 14 anos para a Coroa ou para particulares (FLORENCE,
2002).
Após a Independência brasileira, um importante debate sobre como e por que
abolir o tráfico de africanos e a própria escravidão foi travado pelos deputados durante as
sessões que definiriam a primeira Constituição do Império. Os debates foram encerrados
logo que D. Pedro I fechou a Câmara Legislativa e outorgou a Constituição de 1824.
Durante o Primeiro Reinado, o tema da proibição do tráfico africano ou mesmo da
extinção da escravidão no Brasil aparecera ocasionalmente, sem se avançar muito na
questão. No início da Regência, a discussão tomou novo fôlego, e sob a pressão inglesa,
o Parlamento brasileiro, então dividido entre moderados, exaltados e restauradores,
decidiu promulgar a Lei de 1831, mais para dar satisfações aos britânicos e menos por
convicção de causa.
Podemos atestar na fala do ministro da Justiça Aureliano Coutinho quando este foi
ao Parlamento defender seu projeto de entregar nas mãos dos ingleses o julgamento dos
traficantes de escravos apreendidos na costa brasileira.
(...) desgraçadamente seus esforços se iludiram, porque a impunidade dos contrabandistas aparecia escandalosamente não sabendo se atribuiria a
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bonhomia dos juízes ao prejuízo de que a mor parte da nossa população estava imbuída de que a extinção da escravatura no Brasil era um mal (...)3
Entre 1831 e 1850, diversos carregamentos de peças foram apreendidos na costa
brasileira. Às elites políticas de então interessava a manutenção da ordem estabelecida. A
libertação efetiva e a permanência no império de um número cada vez maior de africanos
poderiam fomentar revoltas entre os ainda cativos. Essa preocupação está expressa em diversos
documentos produzidos pelas autoridades envolvidas na questão. No relatório do ministério da
Justiça de 1834, Manuel Alves Branco faz uma análise interessante a respeito:
(...) a urgência de reexportação cresce, não só porque de dia em dia torna-se mais difícil a fiscalização de contratos particulares, como porque o meio de distribuição não satisfaz o grande fim de livrar o país de uma população sempre perigosa e agora tanto mais quanto é certo que estes africanos distribuídos se tornam insuportáveis depois de ladinos, com a opinião de livres entre os mais escravos. (BRANCO, 1835 p. 8).
Era “insuportável” para as autoridades a circulação dos africanos livres pelas ruas. Ao se
tornarem “ladinos”, aprendendo a falar português e assimilando os costumes brasileiros, logo
entendiam que eram diferentes dos escravos e, como tais, não poderiam sofrer o jugo do
cativeiro.
A partir de outubro de 1834, todos os africanos apreendidos na costa do sudeste foram
destinados às obras da Casa de Correção da Corte, enquanto aguardavam o julgamento realizado
pelas Comissões Mistas anglo-brasileiras. Essas comissões julgavam se o navio negreiro
apreendido era boa pressa.4 Em caso afirmativo, o comandante, o proprietário da embarcação e
os marinheiros eram condenados de acordo com o artigo 2 º da Lei de 1831. Um problema
atrapalhava a intenção de Alves Branco de se livrar logo dos africanos livres. Enquanto as
autoridades inglesas aceleravam os processos de apresamento, os oficiais brasileiros “se negam
a isso a pretexto de falta de meios”. Enquanto não se construía uma solução a contento, Alves
Branco decidiu que, para evitar o “desamparo” desses “infelizes”, utilizaria os recursos destinados
aos prêmios dados aos apresadores como recompensa para o sustento dos africanos livres sob
tutela do Governo (BRANCO, 1835 p. 9).
A distribuição dos africanos livres pelas obras públicas e a particulares evitava um gasto
excessivo com o sustento dessas pessoas em depósitos e ainda possibilitaria ao Estado arrecadar
com a exploração de sua mão-de-obra. O administrador das obras da Casa de Correção pôde
3 Annaes do Parlamento Brazileiro. Câmara dos Senhores Deputados, ano de 1834, Tomo 2. pág. 287, Sessão de 24 de Setembro de 1834. Pág. 288 4 Eram consideradas “boas pressas” as embarcações que fossem identificadas pelas autoridades como navios negreiros. Algumas características eram observadas tais como tipo de embarcação, instrumentos de tortura, ferros, correntes, ausência de lastro e a tripulação. Muitos navios brasileiros usavam bandeiras de outras nacionalidades, como a portuguesa, para escaparem da fiscalização britânica na costa brasileira.
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suprir a carência inicial de operários livres de correntes para tocar a construção. Ao chegarem no
canteiro de obras, esses africanos foram distribuídos entre os diversos ofícios. Os que aprendiam
rápido o serviço eram transformados em aprendizes de pedreiro, carpinteiro, ferreiro, entre outros.
Os que não mostravam aptidão suficiente eram empregados como serventes de obra, na
lavanderia e na cozinha da prisão – muito embora a preferência para os serviços culinários, a
princípio, fosse a mão de obra feminina.
As sucessivas tentativas de reexportação malogradas e a ausência de regras mais
específicas para a utilização de sua mão de obra acabaram por empurrar esses trabalhadores
para a escravidão pura e simples. Assim como no sistema escravista, no sistema prisional as
fugas também eram constantes. Embora não fossem sentenciados, os africanos livres viviam sob
o regime disciplinar da prisão e também utilizavam a evasão para escaparem dos pesados
serviços. A Casa de Correção na década de 1840 não estava totalmente cercada. As obras ainda
não haviam terminado e o deslocamento dos africanos livres no interior da instituição era grande.
As seduções de cativos para as fugas faziam parte da rotina da escravidão urbana. Muitas
vezes os ciganos eram responsabilizados por essa sedução. A intensa circulação desses últimos
entre os núcleos urbanos e interioranos possibilitava o estabelecimento de redes de contato que
levava os escravos das cidades direto às propriedades do interior ou mesmo aos quilombos.
(SOARES, 1998; KARASCH, 2000). Entretanto, com os africanos livres o processo era um pouco
distinto.
O manifesto dos presos sentenciados e africanos livres da Casa de Correção, 1841
As tentativas de controlar os africanos livres detidos nas obras da Casa de
Correção foram intensas. Ao longo do tempo, a contradição jurídica ficou clara para estes
homens e mulheres. Nem escravos e nem detentos. As trocas existentes no canteiro de
obras entre escravos que tiveram seus serviços alugados por seus senhores ao Estado,
escravos sentenciados, livres e libertos sentenciados e os guardas responsáveis pela
segurança, enfim, todos que compunham aquela microssociedade ajudaram os africanos
livres a traçar um plano de luta, senão eficiente, pelo menos que implicasse numa
mudança – mesmo que temporária – no tratamento conferido pelas autoridades
carcerárias.
Temos um dos únicos registros produzidos por presos sentenciados e africanos
livres no interior de uma instituição prisional. Trata-se da Representação dos presos
existentes nos trabalhos da Casa de Correção e dos pretos africanos que trabalham nas
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obras públicas da mesma Casa, pedindo a intervenção do Imperador para melhorar-lhes a
insuportável situação em que viviam.5 Nela, os africanos livres denunciavam ao recém-coroado monarca as mazelas sofridas no
cárcere (SOARES, 2001. pp. 391 – 404). Reclamavam da comida, das roupas fornecidas, dos
desmandos do administrador das obras e dos castigos sofridos:
(...) antigamente os africanos tinham a circunferência da Chácara para passear em domingos e dias santos, hoje em dias santos vivem juntamente com os pretos da prisão do Castelo metidos em um curral, domingos e dias santos e dias de trabalho mal que largam o trabalho. Já os feitores estão atrás deles para os meter no Curral (...).
Os pretos da prisão do Castelo a que se referiram os africanos livres em seu
manifesto são os escravos detidos na prisão do Calabouço que até 1838 se localizava
no morro do Castelo. Com o início das obras da Casa de Correção, essa prisão foi
transferida para a chácara do Catumbi. Criado em 1767 e estabelecido inicialmente no
Forte de Santiago, o Calabouço teve como função iniciar o processo de controle do
Estado sobre os escravos urbanos. Se nas fazendas os castigos eram aplicados pelos
senhores, nas cidades essa função passou a ser das autoridades públicas.
Com a independência política, o novo império do Brasil manteve a mesma
estrutura de exploração do trabalho compulsório. Os escravos urbanos continuaram
sendo castigados no Calabouço a mando de seus senhores. Seria um castigo particular
executado pelo poder público. O Estado continuava a usar a mão de obra desses
escravos nos empreendimentos públicos. Além do pesado trabalho ao lado de presos
sentenciados, os africanos livres ainda enfrentavam as chibatadas no pelourinho
instalado no interior do Calabouço. Em média eram 50 chibatadas. Esta punição era
aplicada aos escravos, nunca aos livres e libertos. Por que os africanos livres também
estavam submetidos aos mesmos castigos? O manifesto traz nas entrelinhas a
pergunta: afinal, somos livres ou somos cativos?
Além de reclamarem dos currais em que eram postos junto com os pretos da
prisão do Castelo, os africanos livres não escapavam do relho, mesmo sendo “livres”. A
ênfase no protesto dos africanos já indica claramente que eles se consideravam
5 Biblioteca Nacional (doravante BN). Manuscritos, II – 34, 25, 11. “Representação dos presos existentes nos trabalhos da Casa de Correção e dos pretos africanos que trabalham nas obras públicas da mesma Casa, pedindo a intervenção de S. M. I. para melhorar-lhes a insuportável situação em que viviam”. Em 02/03/1841. Todos os grifos ao longo da fonte são nossos.
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diferentes dos escravos e, como tais, exigiam tratamento diferenciado. O responsável
direto por todos os trabalhadores das obras era o administrador. Em 1841, Thomé
Joaquim Torres ocupava esse posto. Eram contra ele as maiores queixas:
apega-se o administrador em dizer que saem a rua e embebedam-se e fazer outras patifarias iguais, vão às chácaras vizinhas e roubam frutas, porém tal não há Imperial Senhor, é um modo de poder melhor [praticar] a sua barbárie(...).
É sabido que a aguardente era a bebida preferida de nove entre dez escravos
na cidade do Rio de Janeiro. E que, muitas vezes, o vício decorria da desnutrição
imposta não só aos escravos, como também à população pobre em geral (KARASCH,
2000).
Aspectos culturais e/ou religiosos poderiam ser levantados para justificar a
preferência dos africanos pela cachaça, porém, não pretendemos, pelo menos por ora,
seguir este caminho. Vamos nos ater a questão da dieta alimentar a que estavam
submetidos os africanos livres na Casa de Correção. Seguindo a estrutura do documento
reivindicatório escrito pelos africanos, o problema da bebida estava diretamente ligado ao
roubo de frutas nas chácaras vizinhas. A chácara do Catumbi localizava-se na saída da
cidade e, até a década de 1850, aquela região era cercada por pântanos e possuía um
braço para o mar que servia de cais para o desembarque de materiais e alimentos vindos
da região do Recôncavo da Guanabara. Na atual região central do Rio de Janeiro
estavam localizadas diversas propriedades rurais com produção voltada para
subsistência. Pomares, hortas, granjas e criação de suínos eram as atividades
desenvolvidas naquela região.
Sem muros para cercar o terreno e sem correntes nos pés, os africanos livres e
demais funcionários do complexo prisional em construção certamente disputavam as
frutas com os pássaros. Embora não tenhamos encontrado nenhum registro de tal
ocorrência, é provável que alguém tenha reclamado informalmente com o administrador
das obras sobre as constantes visitas aos pomares empreendidas pelos diversos
trabalhadores da Casa de Correção.
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Além de reclamarem das patifarias ditas pelo administrador para justificar a
proibição de saírem à rua, os africanos livres ainda se detiveram um pouco mais na
alimentação a eles dispensada:
(...) [em] respeito à comida também é uma desgraça, pois nem ao menos [passam o] cheiro do toucinho no caldeirão destes desgraçados quando cometem alguma leve falta sofrem os mais abomináveis castigos do mundo, no cortador do chicote, vão para o libambo, aí dão 2, 3 meses, e depois que acabam de sofrer estes castigos, ainda com uma corrente até decidir o administrador, e durante o tempo que se acham sofrendo estes abomináveis castigos, ficam suspensos do vintém que a Nação lhes manda doar, para comprarem seu fumo (...).
Quando o administrador queria castigar os africanos livres e os demais
sentenciados, decerto racionava a comida. O toucinho, além de dar um sabor ao
alimento, era uma importante fonte de proteína e gordura aos homens que
desempenhavam pesadas atividades. Cansados de serem tratados como presos, os
africanos livres ainda reivindicam uma economia moral nos castigos aplicados.
Segundo E. P. Thompson:
É possível detectar em quase toda a ação popular do século XVIII uma noção legitimadora. Por noção de legitimação, entendo que os homens e as mulheres da multidão estavam imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais; e de que, em geral, tinham o apoio do consenso mais amplo da comunidade. (THOMPSON, 1998. p. 152).
Embora os africanos livres fossem um grupo social em formação, alguns direitos
garantidos por lei foram defendidos pelos manifestantes no documento dirigido ao
Imperador. Esses direitos marcavam os limites tanto dos africanos considerados livres,
quanto das autoridades. Acreditamos que o conceito formulado por E. P. Thompson se
aplica perfeitamente a esse caso.
Ao mencionarem o termo “leve falta” em seu manifesto, os africanos livres
demonstraram que dividiam as suas possíveis faltas em “leves” e “pesadas”. Neste caso,
o administrador das obras Thomé Joaquim Torres estava excedendo os limites do castigo
tolerável, “incontestável”. A dúbia condição desses africanos, entre a liberdade e a
escravidão, os fazia operar dentro de limites mais próximos do cativeiro do que da
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liberdade. Sendo assim, a prática do castigo era reconhecida por eles desde que fosse
justa e corretiva.
A assimilação desses valores comprova que, ao tornarem-se ladinos, os africanos
livres depositados na Casa de Correção passaram a operar dentro dos parâmetros do
cativeiro e, a partir dele, buscar brechas para exercer sua liberdade representada no
documento pela possibilidade de passearem pela “circunferência da chácara nos
domingos e dias santos” (LARA, 1988).
Ao considerarem suas possíveis “faltas” durante o trabalho nas obras como “leves”,
o chicote e o libambo6 representavam “castigos abomináveis” (ARAÚJO, 2004).
Entretanto, se os manifestantes se considerassem praticantes de faltas graves ou
“pesadas”, o tronco e as correntes seriam aceitos como castigos justos e corretivos.
Outro fator interessante, que perpassa este trecho é quanto ao pecúlio. Enquanto
estavam tutelados ao serviço do Estado nas obras da Casa de Correção, os africanos
livres recebiam uma quantia diária pelo trabalho. A féria era estipulada pelo tipo de
serviço desempenhado. Os que tinham ofício definido recebiam 20 rs. (vinte réis). Os
serventes, que executavam serviços não qualificados, recebiam 10 rs. (dez réis). Quando
sofriam qualquer castigo, o pagamento era suspenso. Como podiam ficar até três meses
nos libambos, os africanos reclamavam que sem pagamento ficavam impossibilitados de
comprar o seu fumo. Nota-se que o dinheiro nas mãos desses africanos poderia comprar
qualquer coisa, inclusive aguardente. Mas como refutavam o argumento da embriaguez,
citaram apenas o fumo.
Além de “abominável”, o libambo tirava do castigado a chance de ter acesso ao seu
“vintém”. Algo que diferenciava os africanos livres dos escravos do Calabouço e ao
ganho. Detidos ou a serviço do Estado, estes escravos não viam a cor do “vintém”. Os
valores eram negociados diretamente com seus senhores, que, em última instância, eram
responsáveis pelo seu sustento. Já os africanos livres tinham a Nação como senhor.
A dubiedade do status jurídico dos africanos livres residia também na possibilidade
de receberem pecúlio (MAMIGONIAN, 2005). Nem sempre os africanos livres a serviço de
instituições públicas recebiam pagamento pelos serviços prestados. Durante as obras da
Casa de Correção, os africanos livres figuraram nos documentos contábeis.
6 Os libambos eram ajuntamento de sentenciados (escravos ou não) que circulavam pelas ruas da Corte transportando água em barris das fontes para as repartições públicas. Trabalho pesado e que durava todo o dia, fizesse chuva ou sol. Além disso, era uma tarefa vexatória, pois nela só trabalhavam os escravos reconhecidos socialmente como insubordinados, praticantes de capoeira ou fugitivos contumazes.
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Havia a possibilidade de, apesar de estarem presentes no movimento financeiro
das obras, os africanos livres não receberem o seu “vintém”. O manifesto ajuda a
comprovar que o administrador das obras seguia à risca o pagamento dos africanos
livres. Todavia, este pagamento era utilizado como uma das formas de coerção ao
trabalho e à obediência, e não uma recompensa pelos serviços prestados.
Com a ascensão de D. Pedro II ao trono no ano anterior, esses africanos logo o
identificaram como seu Senhor, e a ele reportaram as suas reivindicações. O trecho do
manifesto destacado acima ilustra as contradições em que estavam imersos os africanos
livres, entre o cativeiro e a liberdade.
O rosário de lamentações contra o administrador Thomé Joaquim Torres era
extenso. As africanas livres também tinham a sua reclamação:
(...) as pretas africanas (...) imploram a V. M. I., como Senhor que é, as mande mudar para o Arsenal de Marinha, pois ali reina outra humanidade do que não na Casa de Correção estas desgraçadas vivem de noite e de dia, domingos e dias santos e dias de serviços trancadas a chave. Hora Imperial Senhor, dar-se barbarismo semelhante, de certo que o administrador não trata seus escravos com tanta barbaridade como trata aos africanos, no dia 16 de [ILEGÍVEL] do ano passado, foi uma preta africana castigada rigorosamente e basta dizer que o castigo foi de tal maneira, que a roupa da [vítima] ficou com um [crivo], dos [vergalhões], assim mesmo naquele mísero estado [foi] metida no libambo, perdeu o seu vintém [e do] libambo não saiu senão no dia 27 de [ILEGÍVEL] dia este que o administrador pegou-lhe (...) e lhe passou pela lembrança (...) pois mandou tirar os ferros (...).7
A presença de mulheres na Casa de Correção se mostrou problemática desde o
início das obras. As africanas reclamaram que eram mantidas “trancadas à chave”. É
provável que esta atitude dos administradores fosse uma tentativa de conter os
possíveis intercursos sexuais entre africanas e demais trabalhadores. Aquele espaço,
até mesmo pelas pesadas atividades ali desenvolvidas, era masculino. As poucas
mulheres que ali circulavam poderiam servir como um elemento de disputa entre as
centenas de homens que trabalhavam nas obras.
Outra possibilidade é quanto à articulação de fugas. As africanas cuidavam da
cozinha e das roupas, o que necessariamente as obrigava a ter contato com todas as
7 BN. Manuscritos, II – 34, 25, 11. “Representação dos presos existentes nos trabalhos da Casa de Correção e dos pretos africanos...”. Grifos nossos.
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categorias de trabalhadores ali estabelecidas: sentenciados, livres, militares, escravos,
africanos livres e feitores. Com isso, estavam presentes em todos os lugares,
conhecendo a rotina dos guardas e as fragilidades da segurança. Atento a isso, o
administrador as mantinha trancadas no período em que não estavam desempenhando
suas funções.
Como estavam sujeitas ao mesmo tipo de controle exercido sobre os homens, as
africanas recebiam o mesmo castigo. E, se os libambos eram pesados para os
homens, para as mulheres eles se transformavam em algo muito pior. Vale destacar
também que, na década de 1820, o Arsenal de Marinha da Ilha das Cobras era tido
como o pior local para o cumprimento da sentença de trabalhos forçados. A dura rotina
marítima incluía ainda o arrasamento da pedreira para a construção de um dique, além
da visão funesta da presiganga, navio-prisão para onde eram enviados os
sentenciados por crimes políticos (FONSECA, 2003).
Algumas atitudes tomadas pelos denunciantes ao longo da sua permanência nas
obras transformavam a Casa de Correção num espaço de conflito latente. Essas
atitudes foram citadas inclusive pelos próprios africanos livres em seu manifesto. A
principal delas é a recusa em aceitar os castigos impostos pelo administrador, seja no
pelourinho ou nos libambos. Podemos citar também a embriaguez e o furto nas
chácaras vizinhas, embora os manifestantes negassem veementemente.
Os africanos que ajudaram a redigir este documento sabiam que eles não eram
escravos e nem condenados da Justiça para serem mantidos em celas e ver tolhida a
sua liberdade de circulação. Mesmo não tendo nenhuma determinação legal que os
protegesse dos desmandos do administrador das obras da Casa de Correção ou de
arrematantes particulares, todos sabiam que os castigos impingidos aos negros tinham
um limite tolerável. E este limite havia sido ultrapassado pelo administrador Thomé
Joaquim Torres.
O manifesto dos sentenciados e africanos livres foi escrito em dois de março de
1841. No dia cinco do mesmo mês, já saíra uma nota no jornal Diário do Rio de Janeiro
de que “corr[ia]” o boato de que o administrador das obras da Casa de Correção,
Thomé Joaquim Torres, seria substituído pelo Major Júlio Frederico Koeler (SOARES,
2001. p. 404).
44
Pela intensa troca de ofícios entre as diversas autoridades envolvidas na
construção da Casa de Correção, o mês de março de 1841 foi um dos mais agitados
desta primeira fase de construção da prisão.
No dia 15 de março, o ministro da Justiça, Antonio Paulino Limpo de Abreu,
dissolveu a Comissão Inspetora das Obras e demitiu o administrador Thomé Joaquim
Torres. Sentenciados e africanos livres saíram vitoriosos da disputa. O boato publicado no
Diário do Rio de Janeiro foi confirmado. Assumiu o posto o Major Koeler, comandante do
Corpo de Permanentes, responsáveis pela guarda da Correção. Ainda neste conturbado
mês de março de 1841, ocorreu a troca do Gabinete Ministerial. No dia 23, caiu o
gabinete liberal e os conservadores ascendem ao poder. Assume a pasta da Justiça
Paulino José Soares de Sousa.
As mudanças políticas trazem de volta à administração da Casa de Correção
Thomé Joaquim Torres. Ele ficou pouco mais de um mês fora das obras da prisão.
Sentenciados e africanos livres, que se manifestaram contrários a sua gestão, devem ter
comemorado a sua demissão. Mas, como na política tudo muda em questão de dias, ou
mesmo horas, não contavam que a mudança de Gabinete, e ministros, alteraria os postos
administrativos da Casa de Correção. Não só a Comissão Inspetora era a mesma do
gabinete liberal, como também o administrador das obras.
No documento encaminhado ao Imperador não consta o nome de nenhum dos
manifestantes e por isso não temos como checar se algum deles foi transferido das obras
para outro empreendimento público, ou mesmo entregue a arrematantes particulares
como forma de retaliação. A disciplina e a subordinação continuaram presentes na
chácara do Catumbi.
Mesmo que Thomé Joaquim Torres tenha saído vitorioso no final da guerra contra
sentenciados e africanos livres, alguma mudança para melhor deve ter ocorrido no
tratamento dos trabalhadores. Uma vez que a suspeição fora despertada contra a sua
gestão, o administrador não poderia deixar brecha para ser demitido novamente.
Acreditamos que, no final das contas, se presos sentenciados e africanos livres não
venceram a guerra, pelo menos ganharam uma importante batalha. O que consideramos
ser muito frente a um inimigo poderoso: o Estado, personificado ali por Thomé Joaquim
Torres e pela Comissão Inspetora.
Em maio de 1841, estavam empregados na Casa de Correção 46 pedreiros, 58
canteiros, 24 carpinteiros, 11 cavoqueiros, 2 ferreiros, 8 feitores, 5 carreiros, 2 guardas, 1
enfermeiro, 1 chaveiro, 1 porteiro, 135 africanos livres, 62 presos sentenciados, 29 presos
45
correcionais e 143 presos do Calabouço. No total eram 528 homens e mulheres sob as
ordens diretas do administrador das obras. Para comandar tantas pessoas, a disciplina e
a subordinação eram, sem dúvida, fundamentais.
Teria chegado ao fim em 1841 a saga dos sentenciados e africanos livres na Casa
de Correção? Com certeza não. Ainda faltava muito a ser construído. Nenhum outro
manifesto contra os maus tratos foi produzido pelos presos da Casa de Correção da Corte
na década de 1840. Porém, outras denúncias vieram de fora das cercanias da chácara do
Catumbi.
Em outubro de 1845, o ministro da Justiça, Antonio Paulino Limpo de Abreu, enviou
um ofício ao administrador das obras da Correção relatando que a Comissão Mista Brasil
e Inglaterra8 havia publicado um artigo num periódico londrino denunciando os maus
tratos sofridos pelos africanos livres na Casa de Correção. E as denúncias eram
coincidentemente muito parecidas com as relatadas pelos africanos em 1841 (BETHELL,
2002).
Resta ainda referir-nos aqueles Africanos livres, cuja condição apresenta a mais terrível prova da crueldade e má fé do Governo Brasileiro. Nós colhemos esta informação de uma fonte que não será sem dúvida suspeita. Na Casa de Correção nesta Cidade, uma parte desses africanos é forçada aos trabalhos os mais vis e laboriosos da prisão. A porção que se lhes dá de alimento e roupa está consideravelmente abaixo do que tem um escravo, e é até inferior em qualidade. Para sua habitação destina-se-lhes um pequeno quarto baixo, no pátio deste estabelecimento à noite esses pobres desgraçados são colocados, ou antes, entulhados. Seus sofrimentos e privações podem ser facilmente [conjecturados]. Ninguém se informa do estado desses seres infelizes, que vivem assim ocupados até que mostre ou a sua incapacidade para o trabalho, lhes altere a sorte.9
Talvez a “fonte” tenha sido um africano livre que tenha passado pelo complexo
prisional e, após o manifesto, tenha sido arrematado por algum particular. Ou mesmo, os
Comissários Britânicos tenham tido acesso ao documento produzido na prisão. O que
8 Esta comissão era composta por um juiz e um comissário de arbitragem de cada nação, um secretário ou oficial de registro nomeado pelo governo brasileiro. Cabia a Comissão Mista decidir se um navio trazido perante ela era ou não um navio negreiro comerciando ilicitamente africanos além de fiscalizar o cumprimento de tratados assinados entre os dois países em relação à proibição do tráfico de escravos pelo Atlântico e julgar os navios apressados. 9 Os Comissários Britânicos dirigiram o ofício contendo estas informações “ao Conde de Aberdeen, Principal Secretário de Estado de S. M. Britânica” em 22/12/ 1843. Arquivo Nacional (doravante A N.) Série Justiça. IIIJ7 – 139. Casa de Correção. Aviso do Ministro ao Inspetor das obras da Casa. (1834 – 1840). Fls. 166. Em 23/10/1845.
46
importa é que as condições em que estavam submetidos os africanos na Casa de
Correção haviam chegado a Londres e ao conhecimento do poderoso Conde Aberdeen.
Os trabalhos impostos aos africanos na prisão foram considerados “vis” e
“laboriosos”. A alimentação era ruim e a roupa usada era considerada de qualidade
inferior às usadas pelos escravos. Os africanos livres estavam abandonados à própria
sorte.
No ofício dirigido ao administrador Thomé Joaquim Torres, o ministro Limpo de
Abreu disse que estava “persuadido de que não foram exatas as informações em que por
ventura se fundou o ofício dos Comissários Juízes Britânicos ao Conde de Aberdeen”.
Contudo, pediu que alguns pontos fossem respondidos pelo administrador, tais como: os
serviços desempenhados pelos africanos, a porção e a qualidade dos alimentos e roupas
distribuídos, os “ofícios mecânicos” ensinados e a “situação e espaço dos alojamentos
que habitavam”. Assim, o ministro acreditava que teria respostas suficientes para
encaminhar à Comissão Mista.10
Preocupado em não repetir o mesmo calvário que foi a sua demissão em março
daquele ano, Torres escreveu um longo ofício respondendo a mais essa denúncia contra
a sua atuação à frente das obras, no qual fez questão de repetir todas as denúncias feitas
pelos Comissários Britânicos, respondendo uma a uma. Começou a sua defesa partindo
para o confronto:
Custa acreditar que homens escolhidos para o desempenho de funções que requerem imparcialidade e estudo deixem com tanta facilidade iludir-se pelas primeiras impressões dos objetos, de que tem de ocupar-se, e assim induzam o Governo, a quem escrevem a erros que não desejariam. Principiam os Comissários Britânicos por dizerem que colheram informações de uma fonte, que não será sem dúvida suspeita. No seguimento desta exposição mostrarei que as informações não parecem bebidas em fonte muito pura.11
Torres atacou a fonte das informações utilizadas pelos Comissários Britânicos,
fazendo com que esses fossem iludidos e produzissem um relatório com muita
parcialidade. Não tivemos acesso à defesa feita pelo administrador por ocasião do
manifesto dos africanos de 1841, mas certamente ele seguiria o mesmo caminho:
10 A N. Série Justiça. IIIJ7 – 139. Casa de Correção. Aviso do Ministro ao Inspetor das obras da Casa. (1834 – 1840). Fls. 166. Em 23/10/1845. 11 A N. Série Justiça. IJ7 – 10. Casa de Correção Ofícios com Anexos. (1834 – 1848). Em 28/10/1845.
47
desqualificar o(s) informante(s). Mas a essa altura, só desqualificar a versão de maus
tratos aos africanos livres não seria suficiente.
O clima belicoso entre os impérios Brasileiro e o Britânico sobre a questão do
tráfico repercutiu no interior da Casa de Correção. Qualquer atitude contra a integridade
dos africanos livres poderia ser usada contra os esforços empreendidos pelas autoridades
imperiais em resolver o imbróglio diplomático.
Todos os Africanos que existem, e tem existido neste Estabelecimento, tem ofícios mecânicos (com exceção dos que se empregam no serviço da horta, carreiros e cozinha) principiam o trabalho às 6 horas da manhã, deixam-no às 8 até 8 e meia para almoçarem; do meio dia às 2 horas para jantarem e às 6 da tarde para cearem, rezarem a doutrina Cristã e deitarem-se, não sendo ocupados em mais serviço algum; estas horas variam segundo a Estação do Ano.12
Segundo o administrador, os africanos livres dedicavam nove horas e meia de seu
tempo ao serviço das obras, sempre em ofícios mecânicos, o que corresponderia a dizer
que não desempenhavam nenhum serviço insalubre ou perigoso. Os que se dedicavam
aos serviços gerais, como os carreiros (carregadores, servente de pedreiros), e todos os
demais que estavam executando tarefas ligadas à agricultura e à cozinha também não
desempenhariam nenhum trabalho vil.
Quanto à alimentação, tão duramente criticada pelos manifestantes em 1841,
Torres afirmou ser “uma abundante ração” de qualidade que em “nada deixa a desejar” e
que poderia ser comprovada por qualquer um que quisesse conferir, pois a “ração” era
“distribuída com toda a publicidade”, assim como os armazéns “da arrecadação dos
gêneros [estavam] e sempre estiveram patentes nesta Casa para qualquer [um] examinar
e julgar da sua qualidade”. E, ainda, os africanos livres e demais presos da Correção
tinham a sua disposição “verduras da horta e frutas da chácara para o jantar”. É
interessante notar que pouco mais de quatro anos depois do manifesto, Torres respondia
à contestação dos comissários britânicos aos maus tratos sofridos no interior da prisão
nas mesmas bases da resposta ao documento produzido pelos africanos. Seria esse um
indicativo de que o administrador tivesse considerado a fonte dos estrangeiros o próprio
manifesto de 1841?
No ano de 1845 havia 83 africanos livres trabalhando nas obras da Casa de
Correção, dos quais 21 eram pedreiros, 12 carpinteiros, 17 canteiros, 16 cavoqueiros, 10
12 A N. Série Justiça. IJ7 – 10. Casa de Correção. Ofícios com Anexos (1834 – 1848). Em 28/10/1845.
48
ferreiros, 5 carreiros e 2 cozinheiros. Além de todos aqueles que estavam sendo utilizados
no serviço da obra, existiam ainda oito que estavam ocupados com o serviço da chácara
e horta e juntamente com aqueles outros detentos perfaziam o total de 91 africanos livres
que estavam sob a responsabilidade do administrador das obras da Correção (TORRES,
1846. p. 32 e 33).
Sem dúvida, após os incidentes registrados em 1841 e em 1845, algumas medidas
foram tomadas pelo administrador na tentativa de melhorar as condições de vida dos
africanos livres dentro da Correção. A principal delas foi reduzir o número de africanos na
prisão e entregar as africanas a arrematantes particulares, evitando assim as possíveis
“perturbações da moralidade” que tais mulheres circulando pela chácara poderiam
provocar.
Conclusão Entre 1831 e 1850, entraram no Brasil muitos africanos ilegalmente. Uma parte
considerável dos navios não fora detida pelas autoridades, muitas vezes por
incompetência e outras tantas por conivência. Segundo Jaime Rodrigues, “Os incidentes
entre brasileiros e ingleses [ocorridos a partir de 1845] teriam contribuído para um
‘pronunciado sentimento antibritânico nos centros urbanos do país”, e, de modo geral, as
atitudes das “populações regionais” teriam contribuído para o sucesso de "desembarques
clandestinos” (RODRIGUES, 2000. p. 174). Durante um longo período a população
participou, mesmo que indiretamente, do “infame comércio”.
Em 28 de dezembro de 1853, um decreto determinou que os africanos apreendidos
no tráfico ilegal, após trabalharem 14 anos para particulares, deveriam ser emancipados.
No entanto, para terem direito à liberdade, os africanos deveriam requerê-la à justiça.
Este decreto determinava apenas a emancipação dos africanos que haviam servido a
particulares. Por outro lado, aqueles africanos livres que serviam em instituições públicas
estavam de fora das condições legais exigidas pelo decreto porque, após ficarem velhos,
os africanos poderiam ser devolvidos pelos arrematantes, acarretando mais despesas ao
erário público.
Assim, os africanos que permaneceram servindo às instituições públicas teriam a
sua força de trabalho utilizada pelo poder público até a exaustão. O que, em certa
medida, também acarretava uma economia, pois o Estado teria sempre mão de obra
disponível para realizar todas as obras de que precisava.
49
Os procedimentos de “arrematação” e aluguel estabelecidos pelo Estado para o
acesso à mão de obra dos africanos livres por particulares enquadravam esses africanos
em limites conhecidos pelos senhores de escravos, facilitando assim o pretendido
controle social desses agentes. Cabe ressaltar que nos diversos decretos e avisos não
consta nenhuma penalidade em casos de maus tratos impingidos aos africanos pelos
arrematantes particulares. A partir dos anos 1850, diversas petições chegaram à justiça
com os africanos pleiteando a sua liberdade, uma vez que o decreto de 1853 limitava o
tempo em que estes deveriam ser mantidos tutelados pelo Estado.
A categoria “africanos livres” existiu em todos os países e colônias onde ocorreu a
repressão ao tráfico de escravos e a captura de navios negreiros. Porém, a sua maior
incidência se deu nas regiões onde foram estabelecidos os tribunais e comissões mistas
que se encarregaram de julgar os traficantes e, dentre eles, destacamos Brasil, Serra
Leoa, Cuba, Bahamas e Jamaica (MAMIGONIAN, 2005).
A saga desses trabalhadores no Império brasileiro se estendeu até a década de
1860, quando enfim tiveram a sua liberdade reconhecida pelo Estado. Durante mais de
três décadas, milhares de homens e mulheres negros estiveram à mercê da exploração e
do cativeiro estatal mesmo sendo legalmente livres. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de. Cárceres Imperiais: a Casa de Correção do Rio
de Janeiro. Seus detentos e o sistema prisional no Império, 1830-1861. Tese de
Doutorado em História Social. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 2009.
_____. O Duplo Cativeiro. Escravidão Urbana e Sistema Prisional no Rio de Janeiro.
1790 – 1808. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em
História Social /UFRJ, 2004.
BETHELL, Leslie. A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a Questão do Comércio de Escravos. 1807 – 1869. Coleção Biblioteca Básica Brasileira. Brasília: Senado Federal, 2002. FLORENCE, Afonso B. Entre o cativeiro e a Emancipação: A liberdade dos africanos livres no Brasil (1818 – 1864). Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBa, 2002.
50
FONSECA, Paloma Siqueira. A presiganga real (1808 – 1831): punições da Marinha, exclusão e distinção social. Dissertação em História. Brasília: UNB, 2003. KARASCH, A vida dos escravos no Rio de Janeiro. 1808 – 1850. São Paulo: Cia das Letras, 2000. LARA, Silvia H. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750 – 1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. MAMIGONIAN, Beatriz G. “Revisitando a “transição para o trabalho livre”: a experiência dos africanos livres”. In: FLORENTINO, Manolo (org).Tráfico, cativeiro e liberdade, Rio de Janeiro, século XVII – XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. pp. 389 – 417. MOREIRA, Allinie Silvestre. Liberdade Tutelada: os africanos livres e as relações de trabalho na Fábrica de Pólvora da Estrela, Serra da Estrela / RJ (c. 1831 – c. 1870). Dissertação de Mestrado. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas / Unicamp, 2005. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil, 1800 – 1850. Campinas, SP: Editora Unicamp, CECULT, 2000. SOARES, Carlos Eugenio L. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Campinas, SP: Unicamp, 2001. ____. Zungú: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: APERJ, 1998. SOUSA, Jorge Luis Prata de. Africano Livre ficando livre: trabalho, cotidiano e luta. Tese de Doutorado em História Social. São Paulo, 1999. THOMPSON, E.P. “A Economia Moral da Multidão Inglesa no Século XVIII”. In: Costumes em Comum: Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo, Cia das Letras, 1998. FONTES DOCUMENTAIS BIBLIOTECA NACIONAL. Manuscritos, II – 34, 25, 11. “Representação dos presos existentes nos trabalhos da Casa de Correção e dos pretos africanos que trabalham nas obras públicas da mesma Casa, pedindo a intervenção de S. M. I. para melhorar-lhes a insuportável situação em que viviam”. Em 02/03/1841.
51
BRANCO, Manuel Alves. Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça de 1834, apresentado a Assembleia Geral Legislativa em maio de 1835. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1835. CLB. Atos do Poder Legislativo. Lei de 07 de Novembro de 1831. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1875. pp. 182 – 183. PANTOJA, Gustavo Adolfo de Aguilar. Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça de 1836, apresentado a Assembleia Geral Legislativa em maio de 1837. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1837. TORRES, José Joaquim Fernandes. Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça de 1845, apresentado a Assembleia Geral Legislativa em maio de 1846. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1846.
52
História e historiografia no caso das pensões vitalícias dos ex-voluntários da pátria na Guerra da Tríplice Aliança (1907-1912)
Fernando da Silva Rodrigues 1
Introdução
O presente artigo tem por finalidade revelar os resultados da pesquisa de iniciação
científica financiada pelo PROAPE, que foi desenvolvida durante o ano de 2011 e o ano
de 2012, no UNIABEU Centro Universitário, pelo qual procuramos analisar historicamente
uma parcela da totalidade dos documentos de uma coleção de processos jurídicos sobre
pedido de pensão vitalícia dos ex-voluntários da Pátria que lutaram na Guerra do
Paraguai, também conhecida como Guerra da Tríplice Aliança, que se encontram
depositados no Arquivo Histórico do Exército (AHEx).
Foram analisados desde o dia 12 de abril de 2011 os processos que estão guardados
no AHEX. Os bolsistas de Iniciação Científica Daiana da Silva Gomes Felix e David
Coutinho colheram dados que foram cadastrados e posteriormente foram analisados
quantitativa e qualitativamente. Concomitantemente tivemos a publicação de um artigo
completo com dados iniciais da pesquisa, no Simpósio Nacional de História, em 2011, e a
publicação de um capítulo no livro História Social das Fronteiras, lançado em 2013.
Ocorrida a mais de cento e quarenta anos, a Guerra do Paraguai envolveu quatro
países do Cone Sul, opondo, de um lado o Paraguai, e, de outro, a Argentina, o Brasil e o
Uruguai. Embora tenha sido o maior conflito dessa parte do continente, e tendo se
estendido por mais de cinco anos, muitas de suas facetas ainda permanecem
praticamente inexploradas, por exemplo, a abordagem da participação dos diversos
grupos étnicos e sociais na campanha, em especial, como esses indivíduos aparecem
nas memórias de escritores daquela guerra, da mesma forma que nos diversos
documentos, como fotografias, revistas, jornais e pinturas. Outro exemplo do que ainda
pode ser estudado é a abordagem do impacto da guerra na sociedade e na economia
1 Doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Severino Sombra, Pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra, e bolsista da FAPERJ.
53
brasileira, e a própria análise do contexto político da implantação das pensões para
veteranos de guerra, especificamente no caso desta pesquisa, as pensões vitalícias dos
ex-Voluntários da Pátria, implantadas no ano de 1907, momento marcado pela gestão
modernizadora do General Hermes da Fonseca, Ministro de Estado da Guerra (15 de
novembro de 1906 a 06 de agosto de 1908; 06 de novembro de 1908 a 27 de maio de
1909), responsável pela aplicação das significativas mudanças renovadoras da
Instituição2, tais como: a Lei de Reorganização do Exército, de 19083; a reorganização do
Estado-Maior do Exército (EME)4, mais compatível com a preparação para a guerra; a
criação de Grandes Unidades permanentes5− no início chamadas de Brigadas
Estratégicas, posteriormente, substituídas pelas Divisões de Infantaria e Cavalaria −; a Lei
do Serviço Militar Obrigatório, de 19086; a elaboração dos regulamentos de emprego das
Armas destinados à instrução da tropa e dos quadros; a aquisição de armamento e o
reaparelhamento das fábricas.
2 RODRIGUES, Fernando. Indesejáveis: Instituição, pensamento político e formação profissional dos Oficiais do Exército brasileiro (1905-1946). Jundiaí: Paco Editorial, 2010, p. 80. 3 Arquivo Histórico do Exército (AHEx). Coleção de Leis do Brasil. Lei Nº. 1860, de 04 de janeiro de 1908. O título IX desta Lei trata da reorganização do Exército – do Art. 105 ao Art. 139. O Art. 105 regulava que o Exército seria organizado sobre as seguintes bases: 1) das forças de 1ª linha ou Exército ativo e sua reserva; 2) das forças de 2ª linha e sua reserva. Art. 108 regulava que além do Comando-Chefe, que é exercido pelo presidente ou seu delegado, no caso de guerra, o Exército teria também o comando hierárquico, que seria exercido pelos oficiais à testa das grandes e pequenas unidades. Art. 109 regulava que o Ministério da Guerra seria o órgão imediato do comando superior, servindo órgãos mediatos, isto é, dependentes daquele: a) o Estado-Maior; b) as Inspeções. O ministro, como auxiliar do Chefe de Estado, participava das funções de comando, ficando a sua função, em época normal, adstrita a subscrever os atos do Presidente da República e a presidir o Exército, de acordo com o Art. 49 da Constituição Federal (Art. 110). 4 O EME foi criado pela Lei Nº. 403, de 24 de outubro de 1896, publicada na Ordem do Dia da Repartição do Ajudante-General do Exército Nº. 778, de 31 de outubro de 1896, cuja função era preparar a Instituição para a defesa da Pátria, para isso, era especialmente encarregado do estudo e aplicação de todas as questões relativas à organização, direção e execução das operações militares, ficando os comandos das forças e as direções dos diversos serviços militares sob sua ação, no que concerne à instrução e disciplina da tropa. No entanto, somente em janeiro de 1899, mais de dois anos depois de sua criação, o EME tornou-se realidade, com a extinção da Repartição do Ajudante-General do Exército, pelo Decreto Nº. 3.189, de 06 de janeiro de 1899, que aprovou seu primeiro Regulamento publicado no Diário Oficial, de 09 de janeiro de 1899. As causas dessa demora podem ser encontradas nos esforços concentrados que tiveram que ser feitos para debelar a Revolta de Canudos. Pelas normas desse Regulamento esteve o EME subordinado até 1909, quando passou a vigorar outro regulamento. A Lei Nº. 1.860, de 04 de janeiro de 1908, que regulou o alistamento e sorteio militar, e reorganizou o Exército em seus artigos 111 a 115 estabeleceu novas bases para a reorganização do EME e extinguiu de vez o Corpo de Estado-Maior, abrindo o quadro aos oficiais de todas as Armas. Essas modificações se corporificaram no Regulamento aprovado pelo Decreto Nº. 7.389, de 29 de abril de 1909. ESTEVES, Diniz. Documentos Históricos do Estado-Maior do Exército. Brasília: EME, 1996, p. 23. 5 AHEx. Coleção de Leis do Brasil. Decreto Nº. 7.054, de 06 de agosto de 1908, cria cinco Brigadas Estratégicas e três Brigadas de Cavalaria. 6 AHEx. Coleção de Leis do Brasil. Lei Nº. 1860, de 04 de janeiro de 1908, que regula o alistamento e o sorteio militar, e reorganiza o Exército. O Art. 1º dispunha que todo cidadão brasileiro, desde a idade de 21 á de 44 anos completos, é obrigado ao serviço militar, na forma do Art. 86 da Constituição da República e de acordo com as prescrições desta lei. No entanto, só a 10 de dezembro de 1916 se realizou pela primeira vez no País o sorteio militar em todas as regiões militares.
54
Todas essas providências foram tomadas no governo do Presidente Affonso Augusto
Moreira Pena (15 de novembro de 1906 a 14 de junho de 1909) que, pela situação de
prosperidade econômica do país depois do período de saneamento do Presidente Manuel
Ferraz de Campos Sales (1898 – 1902), pôde criar as condições para reformas estruturais
de profundidade.
Em relação à pesquisa publicada neste artigo, pretendemos mostrar alguns
resultados iniciais da análise dos processos de pedido de pensão vitalícia dos ex-
Voluntários da Pátria da Guerra do Paraguai, pleiteada pelos veteranos, pelas viúvas dos
ex-combatentes e por outros parentes, no período de 1907 a 1912.
Os limites temporais deste trabalho foram determinados pelo início dos processos
jurídicos de direito aos pensionistas que foi legitimado pela implantação do Decreto nº
1.687, de 13 de agosto de 1907. E o limite final escolhido, ano de 1912, foi determinado
pela dinâmica dos trabalhos em função do tempo, deu-se de maneira que pudéssemos
analisar um conjunto de cinco anos de atividades processuais, tratando-se, nesse caso,
de uma análise parcial da totalidade de documentos existentes no Arquivo Histórico do
Exército, que se estendem até o ano de 1984.
A documentação da Guerra do Paraguai do Arquivo Histórico do Exército é
proveniente da Secretaria do Gabinete do extinto Ministério da Guerra, depositada nesse
Arquivo entre as décadas de 1930 e 1960. É uma documentação autêntica, composta por
Ordens do Dia (impressas) relativas aos diversos Comandos durante a Campanha −
correspondência entre as autoridades aliadas (brasileiras, argentinas e uruguaias) em
códices manuscritos e pedidos de pensão vitalícia de ex-Voluntários da Pátria.
Esse acervo faz referência importante aos aspectos econômicos e sociais que podem
ser revelados numa leitura atenta e na análise sistemática das informações sobre pedido
de pensão, recrutamento, armamento, treinamento, transporte e cuidados médicos, não
só dos comandantes e Oficiais, como também de milhares de combatentes anônimos que
refletem um pouco da diversidade étnica, cultural, social e econômica da população
brasileira no século XIX. Já os assuntos tratados pela correspondência (manuscritos)
entre os diversos comandantes brasileiros e estrangeiros tratam desde a administração
militar − movimentações de tropas, requisições de material −, até o transporte de
prisioneiros paraguaios para o Brasil.
Estamos tratando a abordagem das fontes tanto em nível quantitativo (História Serial),
como em nível qualitativo, por meio de uma análise intratextual e intertextual. Suas
origens históricas são diversas e, para alcançar o objetivo pretendido, estão sendo
55
usados documentos privados e oficiais, nesse caso, sendo a base principal da
documentação utilizada nesta pesquisa.
A abordagem qualitativa, realizada por meio de análise intra e intertextual, tem sido
utilizada para investigar as fontes bibliográficas, os argumentos jurídicos nos pedidos de
pensão, os acervos pessoais, as correspondências oficiais, e os relatórios emitidos pelos
diversos órgãos do Ministério da Guerra e pelo próprio Ministério, cujos textos estão
sendo observados enquanto discurso de época, compreendido e questionado quanto à
formulação dos atores políticos, ao papel da elite militar e à construção do Estado e da
Nação. Ainda no tocante à nossa análise qualitativa, estabelecemos um estudo sobre a
coleção de leis do Brasil, dos anos de 1864 e, principalmente, de 1865, visando ao
entendimento da dinâmica do recrutamento, vantagens e compreensão do que seria esse
corpo, criado para engrossar as fileiras do Exército que atuava na Guerra do Paraguai,
denominado: “Voluntários da Pátria.”
Para uma abordagem quantitativa, estamos realizando uma análise serial dos
processos individuais de pedido de soldo vitalício dos ex-Voluntários da Pátria −
retornados da Guerra do Paraguai, principal instrumento para obter o benefício do Estado
−, construindo uma tabela tipificando os recrutados na sociedade brasileira. Existe no
acervo do Arquivo Histórico do Exército uma quantidade ainda não avaliada de processos,
que não foram utilizados em pesquisas acadêmicas, datados de 1907 a 1984. Nos
processos verificados por amostragem, constatamos a possibilidade de identificar dados
pessoais do ex-Voluntário da Pátria, como nome, naturalidade, posto ou graduação,
organização militar onde serviu durante a guerra, cor da pele, origem social e regional,
entendimento jurídico, resultados marcados pelo contexto das reformas modernizadoras
do Ministro e, posteriormente, Presidente, Hermes da Fonseca.
O debate historiográfico da Guerra do Paraguai passou por mudanças profundas
desde o desencadeamento do conflito, sofrendo influência específica de cada tempo
histórico sobre os pensamentos dos autores, o que facilitará nossa compreensão de como
foram possíveis as diversas variações de narrativas.
Desde o início da guerra (1864) até os anos 1970, foi produzida a chamada
“historiografia tradicional”, nessa corrente encontram-se duas linhas fundamentais de
análise da guerra. A primeira dá ênfase àqueles que lutaram na campanha do Paraguai,
nesse viés da corrente tradicional são exaltados os líderes do Exército brasileiro, com a
intenção de construir “heróis” nacionais que honrosamente lutaram em nome da Pátria. Já
uma segunda vertente, dentro da própria corrente tradicional, destaca e explica as causas
56
da guerra a partir das ambições expansionistas de Francisco Solano López. Traçam uma
figura “bárbara” que os Aliados precisavam combater em prol da civilização.
De 1960 até o final da década de 1980, a Guerra do Paraguai é interpretada
especialmente, mas não somente, pelos “revisionistas”. Essa corrente historiográfica está
mais preocupada com a luta ideológica que permeia o mundo contemporâneo. Produzida
essencialmente no período de Guerra Fria, essa historiografia refletiu as lutas entre
capitalismo e socialismo, entre direita e esquerda, colocando sobre a Inglaterra a única e
intransferível culpa pelo conflito. Além dessa característica, a corrente revisionista
destaca-se por apresentar pontos positivos sobre o Paraguai, indo claramente de
encontro à historiografia tradicional. O revisionismo trata Solano López, o líder paraguaio,
como uma “vítima” da ambição britânica. Esse tipo de visão exclui, de certa forma, os
latino-americanos enquanto sujeitos históricos; trabalha com a ideia de pura manipulação
inglesa e capitalista, visando a impedir a larga ascensão, econômica e militar, de um país
com tendências socialistas e igualitárias. Temendo também que este viesse a se tornar
um exemplo para os países vizinhos.
Do período de 1980 em diante, os estudos sobre o conflito foram e vêm sendo
revitalizados com maior preocupação em termos de parcialidade. A Nova História Política
procura compreender a guerra como um fator de interesse de todos os envolvidos, sem
apontar culpados ou inocentes. Os trabalhos realizados por esses novos profissionais
buscam destacar que as razões para o conflito não teriam sido apenas parte de uma
intervenção externa ou da ação incontrolável e expansionista de um homem. Esses
autores consideram como causas da guerra as ações, os interesses e as contradições de
todos os países envolvidos, desde a divergência de sua colonização (espanhóis e
portugueses), até a busca pela formação de uma identidade e afirmação do poder político
na região do Prata.
1. O Corpo de Voluntários da Pátria: da organização para a Guerra do Paraguai ao recrutamento.
Quanto ao recrutamento, podemos distinguir diversos tipos utilizados por ocasião da guerra.
Os dois modelos que se definiam pela disputa de poder que se iniciara ainda na Regência eram o
Exército de Linha, ou tropa regular, Instituição pública a cargo do Ministério da Guerra; e a Guarda
Nacional7, ou tropa não regular, Instituição privada, vinculada diretamente ao Ministério da
7 Instituição criada pela Lei S/Nº de 18 de agosto de 1831, a Guarda Nacional foi uma construção política engenhosa que ligava os “homens da sociedade”, parcela cidadã da população que teria muito a perder,
57
Justiça. O terceiro modelo surgiu da necessidade de aumentar o efetivo para o conflito contra o
Paraguai, o Corpo de Voluntários da Pátria.
Em 7 de janeiro de 1865, o Imperador decretou a Lei nº. 3.3718, que criava
extraordinariamente o Corpo de Voluntários da Pátria, composto de todos os cidadãos
maiores de dezoito e menores de cinquenta anos, que, voluntariamente, quisessem se
alistar, sob as condições e vantagens9 que a lei permitia.
Quinze outros artigos regularam a Lei de Voluntários da Pátria, em que eram
oferecidas vantagens e benefícios, tais como: a baixa do serviço depois de declarada a
paz; concessão de passagem para onde solicitassem; concessão de regalias, direitos e
privilégios das praças do Exército para serem reconhecidos Cadetes ou Particulares, e
pudessem ser promovidos a Oficiais, quando se distinguissem em combate; direito de
desistirem da baixa, depois de feita a paz; de continuarem servindo por mais três anos,
recebendo além das outras vantagens, trezentos mil réis, sendo cem mil réis no ato, e o
restante ao fim de três anos; e a concessão de uma pensão ou meio-soldo às famílias,
cujos chefes viessem a falecer em consequência de ferimentos sofridos em combate.
Nossas análises circulam também em torno do decreto nº. 1687, de 13 de agosto de
190710, que concede aos sobreviventes veteranos da Guerra do Paraguai a garantia do
soldo vitalício, correspondente ao posto em que se encontravam à época de sua
dispensa.
Por conta da necessidade do Estado, o Império decretou, ainda, em 4 de agosto de
1865, a equiparação dos Corpos de Voluntários da Guarda Nacional aos Corpos de
Voluntários da Pátria, que, pelo Decreto nº. 3505, determinava:
Artigo Único. Os Corpos da Guarda Nacional, que com a sua
organização atual, com os seus oficiais e praças
voluntariamente se prestarem para o serviço de guerra, serão
caso aquele emaranhado de interesses conflitantes chamado Império do Brasil, viesse a soçobrar. Entretanto, observando-a estritamente como força militar, era uma tropa que não tinha instalações fixas e regulares, que não recebia vencimento, que custeava seus próprios uniformes, mal armada e precariamente instruídas. Assim, jamais poderia ser levada muito a sério, a não ser nas declarações ufanistas dos Ministros da Justiça. OLIVEIRA NETO, Amaro Soares de. O Exército brasileiro e a Guarda Nacional: as tensões e contradições do modelo de defesa terrestre (1850-1873). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: ECEME, 2005, p. 24. 8 AHEx. Coleção de Leis do Brasil. Decreto n. 3371, de 7 de janeiro de 1865. 9 AHEx. Coleção de Leis do Brasil. Decreto n. 3371, de 7 de janeiro de 1865, Artigo 2º. Os voluntários, que não forem Guardas Nacionais, terão, além do soldo que percebem os voluntários do Exército, mais 300 réis diários e a gratificação de 300$000 quando derem baixa, e um prazo de terras de 22.500 braças quadradas nas colônias militares ou agrícolas. 10 AHEx. Ordens do dia. Decreto N. 1687, de 13 de agosto de 1907.
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equiparados aos Corpos de Voluntários da Pátria e gozarão de
todas as vantagens que a estes são concedidas11.
A legislação implantada incentivou a participação de muitos indivíduos que atenderam ao
chamado do Estado. Vários soldados incorporaram no Exército para defender a pátria, mas,
principalmente, para obter melhor condição econômica. O passar dos anos revelou não ser mais
possível continuar à espera dos voluntários, que se tornavam cada vez mais escassos, levando o
Império a reagir com o recrutamento forçado, modelo mais adequado à época.
Com relação à organização das unidades militares para a guerra, destacamos, nesta
pesquisa, os Corpos de Voluntários da Pátria, organizados em tropas de Cavalaria e Infantaria. A
obra do General Paulo de Queiroz Duarte12, apesar do ufanismo, talvez seja, ainda, a melhor
fonte bibliográfica para compreender e resgatar a estrutura organizacional desse grupo na
Campanha do Paraguai.
Geograficamente, o Rio Grande do Sul foi o responsável pela mobilização de quase toda a
Cavalaria, que teve na Guarda Nacional o seu espaço de recrutamento. Da Corte e das províncias
do norte e nordeste foram convocadas, principalmente, as tropas de Infantaria.
Para Duarte, 75% dos Batalhões do Exército de Linha eram formados por Corpos de
Voluntários da Pátria13.
Na mobilização inicial, nas vinte províncias que constituíam o Império do Brasil, destacamos
a seguinte organização do efetivo que combateu na Guerra:
1) Província da Bahia: organizou quatorze Corpos de Voluntários da Pátria, com a seguinte
numeração – 3º, 10º, 14º, 15º, 23º, 24º, 29º, 40º, 41º, 43º, 46º, 53º, 54º, 57º, além das quatro
Companhias isoladas de Zuavos14 e uma Companhia de Couraças.
Alguns desses Corpos foram dissolvidos na 1ª fase da Campanha pelos Generais Osório e
Visconde de Porto Alegre. No início do Comando do Marquês de Caxias só existiam oito Corpos,
que a partir de 20 de dezembro de 1866 foram renumerados. O 3º, 10º, 15º, 57º passaram a ser,
respectivamente, 25º, 41º, 45º, 54º. Durante a 2ª fase da Campanha, três desses oito Corpos
foram dissolvidos: o 25º (ex-15º), o 46º, e o 57º (ex-54º), que atuaram em toda a Guerra.
2) Província de Pernambuco: organizou nove Corpos de Voluntários da Pátria, com a
seguinte numeração − 11º, 14º, 21º, 22º, 30º, 44º, 51º, 52º, 56º, e uma companhia de Zuavos.
11 AHEx. Coleção de Leis do Brasil. Decreto n. 3505, de 4 de agosto de 1865, p. 329. 12 DUARTE, Paulo de Queiroz (1981). Os voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai. Volume 1. Rio de Janeiro: Bibliex. 13 Ibid, p. 206. 14 Nome de uma tribo Kabila da que se tiravam os infantes dos antigos boys da Argélia, soldados dos regimentos especiais de infantaria de um corpo do Exército francês, na África, criado em 1831, primeiramente recrutados entre os nativos. No Brasil foram chamadas de Zuavos baianos, as companhias organizadas entre negros do Nordeste que tomaram parte na Guerra do Paraguai, nos Corpos de Voluntários da Pátria. ALBUQUERQUE, Caetano M. de F. e. Diccionaário Téchnico Militar de Terra. Lisboa: Typographia do Annuario Commercial, 1911.
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Na 1ª fase da Campanha foram dissolvidas cinco das unidades de Pernambuco. Quando
assumiu o Comando da tropa, o Marquês de Caxias encontrou quatro delas: a 11ª, a 21ª, a 30ª e
a 51ª (ex-Corpo Policial da Província).
Na reformulação da numeração, em dezembro de 1866, duas mudaram o número: a 11ª
passou a ser 42ª, e a 21ª passou a ser 52ª. As duas restantes, a 30ª e a 51ª, conservaram a
numeração original.
Em dezembro de 1868, o 42º (antigo 11º) foi dissolvido, ficando apenas três Corpos que
participaram de toda a Campanha do Paraguai: o 30º, o 51º e o 53º (ex-21º).
Ao final da guerra, o Conde d’Eu determinou a reorganização do 42º (ex-11º), o primeiro
Corpo de Voluntários da Pátria mobilizado na Província nordestina.
3) Província do Rio Grande do Sul: a região forneceu quase todas as unidades de
Cavalaria e organizou cinco Corpos de Voluntários da Pátria, com a seguinte numeração − 9º, 33º,
35º, 48º, 49º. A mobilização da Cavalaria contou com quarenta unidades que conservaram a
designação dos Corpos Provisórios de Cavalaria da Guarda Nacional.
Dos cinco Corpos de Voluntários, dois eram Batalhões de Infantaria Montados da Guarda
Nacional, com a originária designação de 3º, o de São Borja, e o 4º, de Uruguaiana, que
passaram a ser, respectivamente, o 48º e o 49º Corpo de Voluntários da Pátria.
Ao assumir o comando da tropa, Caxias só encontrou dois deles: o 9º e o 49º. Na
renumeração de dezembro de 1868, as duas unidades foram dissolvidas.
4) Corte do Rio de Janeiro: organizou sete Corpos de Voluntários, com a seguinte
numeração: 1º, 2º, 4º, 9º, 31º, 32º, e 38º. Desses Corpos, três foram recrutados nas várias
províncias (9º, 32º e o 38º), e os quatro restantes, com o pessoal do Rio de Janeiro (1º, 2º, 4º, e o
31º). O 31º representou o Corpo Policial da Corte.
Na 1ª fase da Campanha, o 9º Corpo de Voluntários foi dissolvido pelo General Osório. Na
renumeração de dezembro de 1866, o 1º, o 2º e o 4º passaram a ser 23º, 24º e 27º. Os outros três
continuaram com a numeração original.
No comando de Caxias foram dissolvidos o 24º (ex-2º), o 32º e o 38º, permanecendo o 23º,
o 27º e o 31º, que participaram de toda a guerra.
5) Província do Rio de Janeiro: organizou quatro Corpos de Voluntários da Pátria, que
receberam a seguinte numeração: 5º, 6º. 8º e 12º. Em dezembro de 1866, receberam nova
numeração: 28º, 33º, 37º e 44º, respectivamente. Em março de 1868, por falta de efetivo, o 37º
(ex-8º) foi dissolvido. O 44º (ex-12º) era formado pelo Corpo de Polícia da província. Nos conflitos
de dezembro de 1868, os três restantes foram dissolvidos. Ao final da Guerra, o 44º foi
reorganizado e retornou ao Brasil.
6) Província de Minas Gerais: organizou três Corpos de Voluntários, com a seguinte
numeração: 17º, 18º e 27º. O 17º, organizado em Ouro Preto, integrou a Brigada Mineira e
participou até o final da Guerra. O 18º também foi organizado em Ouro Preto, e teve sua
60
numeração mudada com a reforma de dezembro de 1866, quando passou a ser o 49º Corpo de
Voluntário, sendo dissolvido em 1868, por falta de efetivo.
7) Província do Maranhão: organizou três Corpos de Voluntários, com a seguinte numeração:
22º, 36º e 37º. O 22º fez seu recrutamento entre elementos da Polícia Militar da província. No
comando de Caxias, só estava em atividade o 36º, que conservou sua numeração original até ser
dissolvido, em 23 de dezembro de 1868, sendo reorganizado pelo Conde d’Eu, quando era o
comandante do Exército Imperial em operações no Paraguai.
8) Província de São Paulo: organizou três Corpos de Voluntários, com a seguinte numeração:
7º, 42º e 45º. Os dois últimos Corpos foram dissolvidos na 1ª fase da Campanha. Ao assumir o
comando do Exército, Caxias encontrou na ativa apenas o 7º, que recebeu nova numeração em
dezembro de 1866, passou a ser designado de 35º Corpo de Voluntários e participou até o final da
guerra.
9) Província do Pará: organizou dois Corpos de Voluntários, com a seguinte numeração: 13º
e o 34º. O primeiro foi dissolvido no início da Campanha, o 34º participou durante quatro anos dos
combates e foi dissolvido por Caxias, em dezembro de 1868.
10) Província do Piauí: organizou um Corpo de Voluntários, o 39º, e contribui para o
recrutamento de mais dois Corpos: o 19º Corpo de Voluntários, formado pela Companhia de
Polícia Militar do Piauí, do Ceará e de Sergipe; e o 55º, formado por elementos do Piauí e do Rio
Grande do Norte. Quando assumiu o comando do Exército, o Marquês de Caxias encontrou,
ainda, o 19º na ativa, que, na renumeração de dezembro de 1866, passou a ser o 50º Corpo de
Voluntários, lutando em toda a guerra.
11) Província do Ceará: organizou um Corpo de Voluntários, o 26º, e contribui para o
recrutamento do 19º Corpo de Voluntários, junto com elementos de Sergipe e do Piauí.
Em dezembro de 1868, o Marquês de Caxias dissolveu o 26º, que foi reorganizado pelo
Conde d’Eu, em 8 de março de 1870.
12) Província da Paraíba do Norte: organizou dois Corpos de Voluntários, com a seguinte
numeração: 21º e o 47º. Em dezembro de 1866, Caxias só encontrou na ativa o 47º, que, na
renumeração de dezembro, manteve o número original. A unidade foi dissolvida em 23 de
dezembro de 1868.
13) Província de Alagoas: organizou o 20º Corpo de Voluntários, formado em parte com
elementos do Corpo Policial da província. Em 20 de dezembro de 1866, com a reforma da
numeração, a unidade passou a ser designada 52º. Permaneceu na ativa até março de 1868,
quando foi dissolvida.
14) Província do Rio Grande do Norte: organizou o 28º Corpo de Voluntários e forneceu
elementos para constituir o 55º, junto com o Piauí. Com a renumeração de dezembro de 1866, o
28º já não existia, pois, foi dissolvido em janeiro de 1866 pelo General Osório.
15) Província do Mato Grosso: organizou o 50º Corpo de Voluntários, empregado com
61
unidades da Guarda Nacional na defesa da província.
16) Província de Goiás: organizou o 16º Corpo de Voluntários que seguiu para o Mato Grosso
e foi incorporado à Coluna Expedicionária, que operou militarmente no sul da província. Em junho
de 1866, a unidade foi incorporada ao 20º Batalhão de Linha.
17) Província do Paraná e Santa Catarina: juntas organizaram o 25º Corpo de Voluntários, que
foi dissolvido pelo General Osório.
18) Corpo de Voluntários Estrangeiros: o 16º Corpo de Voluntários, unidade conhecida como
Batalhão Garibaldino, foi constituído por mercenários estrangeiros, italianos na sua maioria. Na
reformulação de 1866, a unidade recebeu a seguinte numeração, 48º Corpo de Voluntários,
dissolvido em outubro de 1867.
ORGANIZAÇÃO DOS CORPOS DE VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA
Província Numeração Renumeração Unidades Dissolvidas Antiga Nova
Bahia 3º, 10º, 14º, 15º, 23º, 24º, 29º, 40º, 41º, 43º, 46º, 53º, 54º, 57º.
3º 10º 15º 57º
25º 41º 45º 54º
25º (ex-15º) 46º 54º (ex-57º)
Pernambuco 11º, 14º, 21º, 22º, 30º, 44º, 51º, 52º, 56º.
11º 21º
42º 52º
14º, 22º, 44º, 52º, 56º.
Rio Grande do Sul 9º, 33º, 35º, 48º, 49º.
Todas
Corte do Rio de Janeiro
1º, 2º, 4º, 9º, 31º. 32º, e 38º.
1º 2º 4º
23º 24º 27º
9º, 24º (ex-2º), 32º, e 38º.
Rio de Janeiro 5º, 6º, 8º e 12º. 5º 6º 8º
12º
28º 33º 37º 44º
28º, 33º, 37º, 44º.
Minas Gerais 17º, 18º e 27º. 18º 49º 49º Maranhão 22º, 36º e 37º. Todas
ORGANIZAÇÃO DOS CORPOS DE VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA
Província Numeração Renumeração Unidades Dissolvidas
São Paulo 7º, 42º e 45º. 7º 35º 42º e 45º. Pará 13º e 34º. Todas Piauí 39º, 19º (PI, CE e
SE), e 55º (PI, e RN)
19º 50º 39º e 55º.
Ceará 26º 26º Paraíba do Norte 21º e 47º Todas Alagoas 20º 20º 52º 52º (ex-20º)
62
Rio Grande do Norte 28º 28º Mato Grosso 50º Goiás 16º Paraná e Santa Catarina
25º 25º
Estrangeiros 16º 16º 48º 48º (ex-16º)
2. Pensão Vitalícia dos Voluntários da Pátria: coleta e análise de dados dos processos jurídicos.
Nesta parte do artigo, apresentamos os resultados da pesquisa quantitativa e da
análise dos dados coletados dos processos de pedido de pensão de soldo vitalício dos
ex-voluntários da Pátria, que combateram na Guerra do Paraguai, concedida por meio do
Decreto nº. 1687, de 13 de agosto de 190715.
Estão sendo analisados, desde o dia 12 de abril de 2011, os processos que estão no
Arquivo Histórico do Exército. Atualmente, estamos recolhendo dados e os cadastrando
numa planilha para que, posteriormente, seja procedida a análise quantitativa e
qualitativa.
Condições das caixas analisadas:
Ano Quantidade de caixas
Procedimento
1907 02 02 analisadas
1908 39 02 analisadas
1909 19 02 analisadas
1910 09 02 analisadas
1911 06 02 analisadas
1912 10 02 em análise
2.1. A dinâmica com o Corpus Documental.
Com relação à dinâmica da pesquisa, procuramos extrair e tabelar os dados considerados
importantes para construir os fatos históricos e definir a melhor forma de analisar os documentos.
Para que os interessados pudessem receber o soldo vitalício, assegurado pela lei, era
indispensável que se mostrassem habilitados com as respectivas patentes, baixas ou documentos
15 AHEx. Ordem do Dia N. 46. Decreto N. 1687, de 13 de agosto de 1907. Art. 1º. É Concedido vitaliciamente aos officiaes e praças de pret sobreviventes dos corpos de voluntários da pátria e da guarda nacional, que serviram no exercito e na armada, por occasião da guerra do Paraguay, o soldo regulado pela tabella actualmente vigente, correspondente aos postos e á situação em que se achavam ao tempo em que foram dispensados do serviço militar. § 2º. Os officiaes e praças que já estiverem no goso de pensão terão de optar entre Ella e o soldo que a presente lei lhes concede.
63
equivalentes, assim como ter os atos expedidos pelas repartições dependentes do Ministério da
Guerra, da Marinha e da Justiça, por certidão autêntica, ou de quaisquer outras repartições
públicas da União ou dos Estados16.
A petição17, documento gerado para habilitar o interessado ao soldo vitalício, era constituída
de: nome, idade, naturalidade, lugar de residência, época em que serviram na campanha, quando
foram dispensados e o que mais interessasse para a investigação do direito.
Às petições eram anexados os seguintes documentos 18:
I – Documento que provasse haver o habilitado servido como voluntário no Exército ou na
Armada, por ocasião da guerra do Paraguai. .
Nesse caso, eram documentos hábeis para a comprovação exigida: a patente do posto do
habilitado, no Exército ou na Armada, por ocasião do conflito; sua baixa do serviço; sua fé de
ofício; seu título de Voluntário da Pátria; diploma de medalha de campanha; ou quaisquer atos
expedidos pelo Ministério da Guerra, da Marinha ou da Justiça, dos quais resultasse a prova de
que o habilitando efetivamente tomou parte como voluntário na campanha. Deviam ser
apresentados os documentos originais, ou por meio de certidões autênticas.
II – Prova de que é o próprio e idêntico voluntário a quem se referem os documentos
apresentados.
III – Certidão passada pelo Tesouro Federal ou pelas delegacias fiscais nos Estados, provando
que o habilitando não percebia nenhuma pensão dos cofres públicos.
IV – No caso de perceber alguma pensão, a declaração expressa de que optava pelo soldo
vitalício.
A prova de identidade do voluntário seria dada por meio de atestado escrito de três pessoas,
cujas idoneidades fossem garantidas, na capital, pelo diretor geral de Contabilidade da Guerra e,
nos estados, pelas seguintes autoridades: comandante do distrito militar, comandante de
guarnição, delegado fiscal do Tesouro Federal ou coletor federal do lugar mais próximo à
residência do proponente.
Na prática, observamos que, em caso de falecimento do combatente, a entrada no processo
é feita pelo parente mais próximo, geralmente esposa ou filha. Em caso de não haver parentes
vivos ou próximos, cabe ao procurador, se o voluntário requisitou um ainda em vida, receber o
título de pensão.
Na parte inicial, pretendemos mapear as regiões que mais cederam voluntários, para tanto,
exploramos em nossa análise sua naturalidade e seu local de residência. Em outro momento,
buscamos, também, a possibilidade de se definir, em termos quantitativos, a origem étnica dos
voluntários, para estabelecer um diálogo com parte da historiografia da Guerra que desconhece
16 AHEx. Ordem do Dia N. 46. Decreto N. 1687, de 13 de agosto de 1907. Art. 2º. 17 Pedido escrito dirigido a uma autoridade ou a um Tribunal. 18 AHEx. Ordem do Dia N. 68. Decreto N. 768, de 11 de dezembro de 1907, Art. 4º, § 1º.
64
ou conhece muito pouco a História dos Voluntários da Pátria, principalmente, qual era a
procedência social, ou se eram livres ou escravos. Definimos, também, o estado civil do ex-
voluntário, no momento da entrada do processo, quando estes constam no documento.
Dentre as dificuldades práticas encontradas estão: o estado dos processos que,
embora passem por limpezas e manutenções, estão bastante deteriorados pelo tempo. A
maior parte dos processos são manuscritos, tendo em certas situações as letras muito
claras, ou mesmo apagadas, dificultando ainda mais a leitura que, por si só, já não é
simples, devido à forma de escrita com letras quase ilegíveis e uma ortografia muito
diferente da atual. Outro ponto que deve ser destacado é a perda de folhas dos
processos, impossibilitando, assim, uma análise completa do documento.
O aspecto quantitativo influenciou na redução temporal da pesquisa. Para o ano de
1907, temos duas caixas de processos. Já em 1908, existem cerca de trinta e nove
caixas. Todos os processos de 1907, vistos até agora, possuem marcações numéricas,
feitas no período de entrada, como referência para a contagem, muito embora em nossa
pesquisa estabeleçamos nossa própria forma de computar, conforme os processos vão
sendo analisados.
O ano de 1908 possui trinta e nove caixas, considerando esse número elevado, ficou
acordado que trabalharíamos inicialmente apenas com duas delas para todos os anos de
nossa pesquisa, ampliando, posteriormente, o número de caixas analisadas para os
referidos anos. Em termos comparativos, os processos de 1907 foram os mais difíceis em
relação ao conjunto que segue até 1912. Além disso, os processos mais recentes
apresentam melhor qualidade e, também, são menores, ou seja, contêm menor número
de folhas e são mais objetivos.
Neste primeiro momento da pesquisa é possível e, bastante provável, que
consigamos cumprir o objetivo traçado em termos quantitativos: verificar pelo menos duas
caixas de cada ano, a partir de 1907 até 1912, quando poderemos observar as mudanças
e permanências nos processos com o passar do tempo. Num segundo momento, além de
prosseguir com as caixas, visando à maior fundamentação em nossa análise final,
buscaremos melhor embasamento teórico-metodológico para entender o contexto
histórico do período que recortamos para a análise dos processos. Tentaremos
compreender a situação do Estado republicano de 1907 a 1912, as discussões travadas à
época, a fim de pautarmos nossa análise dos processos com um plano de fundo histórico.
65
2.2. Análise do Corpus Documental
Com relação à habilitação das pensões observadas nos Relatórios do Ministério da
Guerra, dos anos de 1908 a 1912, podemos tabelar os seguintes dados:
VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA HABILITADOS AO GOZO DO SOLDO VITALÍCIO PELO
RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA GUERRA
POSTO OU GRADUAÇÃO
ANO DE 1908
ANO DE 1909
ANO DE 1910
ANO DE 1911
ANO DE 1912
Coronel
02 XXX XXX XXX XXX
Tenente-
Coronel
08 02 XXX XXX XXX
Major 13 06 02 02 XXX
Capitão 75 63 09 17 07
Tenente 105 85 27 27 11
Alferes 139 137 54 37 29
TOTAL DE OFICIAIS
342 293 92 83 47
Sargento-
Ajudante
09 07 02 06 02
Sargento
Quartel-Mestre
07 08 01 07 04
1º Sargento 41 61 31 57 23
2º Sargento 34 85 69 48 51
Furriel 15 62 19 24 18
Cabo 48 113 69 101 104
Anspeçada 16 41 34 35 34
Soldado 106 265 192 253 334
Mestre de
Música
02 01 XXX XXX XXX
Músico de 1ª
Classe
02 05 04 XXX XXX
Músico de 2ª
Classe
03 04 03 XXX XXX
Músico de 3ª
Classe
03 05 02 XXX XXX
66
VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA HABILITADOS AO GOZO DO SOLDO VITALÍCIO PELO RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA GUERRA
POSTO OU GRADUAÇÃO
ANO DE 1908
ANO DE 1909
ANO DE 1910
ANO DE 1911
ANO DE 1912
Clarim 01 01 XXX XXX XXX
TOTAL DE PRAÇAS
287 658 426 531 570
TOTAL 629 951 518 614 617
Com relação aos dados observados na tabela, constatamos que a totalidade de
pedidos habilitados em cada ano não sofreu alterações quantitativas muito diferenciadas,
mantendo certo padrão, com exceção de 1909, que se destacou dos demais. Analisando
os Relatórios do Ministério da Guerra, percebemos que o número de habilitações era
proporcional à abertura de crédito da União para pagar o benefício.
Constatamos que, com o passar dos anos, os pedidos habilitados dos ex-Voluntários
da Pátria que ocuparam cargos de Oficiais foi decaindo, o que parece demonstrar que o
nível de conhecimento jurídico dos fatos foi proporcional à condição socioeconômica dos
veteranos que obtiveram a pensão no período inicial de implantação da lei.
Os pedidos habilitados de Praças iniciaram com uma quantificação abaixo dos
resultados observados dos Oficiais no primeiro momento, dobrando no ano seguinte, para
manter certa estabilidade posteriormente.
Serão estabelecidos aqui alguns apontamentos sobre o levantamento de dados
referentes ao ano de 1907. Especificamente, as duas caixas juntas contêm cerca de 50
processos, 37 numa delas e 13 na outra. Os níveis de informação sobre o voluntário são
bastante irregulares, em alguns processos existem informações que não existem em
outros. Visando a um futuro mapeamento das regiões, da cor, ou mesmo sobre os
aspectos jurídicos, seguem alguns dados levantados após a conclusão da análise dessa
caixa: dos cinquenta processos que foram analisados, pelo menos quarenta tiveram
parecer favorável. Não foram incluídos os sem recibo, mesmo os incompletos pela
perda/falta de algumas folhas, ou por desgaste temporal. Os processos com documento
comprobatório assinado foram deferidos, pois, embora falte parte(s) de seu andamento, o
início e o fim permitem estabelecer uma conclusão sobre aqueles que foram dignos de
receber o título em nível de pensão. Alguns deles possuem o parecer positivo da
Comissão de Habilitação do Soldo Vitalício, porém, não sendo encontrado seu recibo em
anexo, ainda assim são enquadrados junto aos deferidos.
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Entendemos por processos completos os que tinham a seguinte constituição: ano
de entrada; data do recebimento do título; e parecer da Comissão, nesse caso, é apenas
a penúltima etapa, sendo a última a própria aquisição do soldo, comprovada mediante
recibo. Optamos por verificar os processos nos quais não constavam recibos no Arquivo
Histórico, os relatórios do Ministro da Guerra, que contêm o nome de todos os voluntários
agraciados com as vantagens da lei.
No ano de 1908, somando-se as duas caixas, foram analisados 91 processos.
Naquele momento, percebeu-se uma melhora quanto à sua qualidade e uma diminuição
significativa em seu tamanho. Nesse ano, e tendo por base as caixas analisadas, os
processos se tornaram mais concisos, sendo resolvidos em menor tempo e com maior
quantidade de deferimentos. Por volta de 80 dos 91 processos tiveram pareceres
positivos da Comissão de Habilitação do Soldo Vitalício. Os indeferidos, em sua maioria,
foram por falta documentos exigidos pela lei nº 1687, de 13 de agosto de 1907.
Em 1909, encontramos o maior índice de voluntários considerados aptos à
percepção do soldo vitalício, coincidindo, assim, de forma parcial, pois não analisamos,
ainda, todas as caixas daquele ano com nossas observações no tocante aos Relatórios
do Ministério da Guerra. Em termos quantitativos, por volta de 100 processos foram
analisados, mas, apenas 7 foram indeferidos. As razões do despacho desfavorável se
apresentam de forma coesa e repetida, ou seja, os veteranos, por sua vez, não
apresentaram os documentos exigidos pelas instruções do decreto.
Em 1910, percebemos, também, um alto índice de deferimento, muito embora, em
1909, o índice tenha sido maior. Somando o que foi analisado nas duas caixas temos 96
processos, dos quais 12 tiveram parecer negativo da Comissão, ou seja, foram
indeferidos. De 1907 até o ano de 1910, os níveis de informação nos processos
oscilaram, ainda que algumas delas fossem quase sempre recorrentes, bem como:
naturalidade, residência, idade, tempo de serviço e posto. Entretanto, ao nos
concentrarmos nas análises sobre os anos de 1911 e 1912, começamos a nos deparar
com certas dificuldades, tanto quanto à incompletude dos processos − algo que passou a
ser demasiado recorrente −, como também à organização do acervo.
Para tanto, chegamos a 1911, e nesse momento da pesquisa esbarramos nos
problemas citados anteriormente, sendo o principal deles a questão organizativa do
acervo histórico. Ao serem analisadas 2 caixas daquele ano, uma delas continha, em sua
maior parte, processos referentes a 1907, algo que, embora percebido quase de imediato,
demandou tempo e observação que poderiam ser aplicados em outra parte da pesquisa.
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É comum, ao se permear as fontes, nos desviarmos, em maior ou menor grau, do curso
da análise, de acordo com a necessidade da pesquisa, de acordo com o que o material
está limitado a oferecer e com as condições organizativas dos mesmos.
A documentação referente ao ano de 1912 continua em análise e junto à pesquisa
em processo contínuo de desenvolvimento da produção.
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Escravos em família: Angra dos Reis, 1822-1871
Marcia Cristina Roma de Vasconcellos19
Este texto apresenta os resultados da pesquisa intitulada “Parentesco em Angra
dos Reis: um estudo sobre as famílias escravas nas freguesias da Ilha Grande e de
Mambucaba, 1822 -1871”, selecionada pela Fundação Nacional de Desenvolvimento do
Ensino Superior Particular (FUNADESP) e amparada pelo Programa de Apoio à Pesquisa
e Extensão (PROAPE), da UNIABEU-Centro Universitário. Durante os dois anos de
realização dos estudos, contamos com o auxílio dos bolsistas David Nascimento e Flávio
Damasceno, estudantes do curso de História.
Antes de analisarmos as famílias escravas estabelecidas nas freguesias de
Mambucaba e de Ilha Grande, é necessário um “passeio” pela história do município de
Angra dos Reis, localizado no litoral sul-fluminense.
Angra dos Reis20 foi um dos primeiros núcleos conhecidos da Costa Sul de São
Sebastião do Rio de Janeiro. Constituído por uma estreita porção de terra, cercado pela
Serra do Mar e a Baía da Ilha Grande, foi primeiramente visitado pelos colonizadores
portugueses, em seis de janeiro, ou data próxima, de 1502. (MENDES, 1995, p. 7).
Poucos anos depois, os lusitanos encontraram aldeias indígenas tupinambás que
povoavam a Baía da Ilha Grande, dificultando a ocupação do território. (CAPAZ, 1996, p.
28) Em torno de 1556, os filhos do capitão-mor de São Vicente chegaram à região e,
posteriormente, a Ilha Grande recebeu seus primeiros moradores europeus21. Este
processo foi semelhante ao ocorrido em Parati e Ubatuba, pois “teve como primeiros
habitantes brancos, pessoas vindas das vilas vicentinas, provavelmente trazidas pelos
agraciados por sesmarias” (SOUZA, 1994, p. 30).
Em 1560, a localidade, no continente, foi elevada à condição de povoado,
ocupando hoje o território conhecido como Vila Velha, em frente à Ilha da Gipóia. Em
1593, foi elevada à paróquia sob a invocação dos Santos Reis Magos, estendendo-se da
19 Doutora em História Econômica pela USP. Professora do curso de História da UNIABEU e das FIC´S (FEUC). 20 Até meados do século XVII, o nome que constava nos documentos oficiais era Nossa Senhora da Conceição, posteriormente Vila da Ilha Grande. A partir de 1835, com a elevação à cidade, recebeu o nome de Angra dos Reis (cf. CAPAZ, 1996, p. 21). 21 O ano de 1559 é apontado como o da chegada dos primeiros moradores à Ilha Grande (cf. LIMA, 1972, p. 89).
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margem esquerda do Rio Itaguaí à Ponta do Cairu, compreendendo, além do atual
município de Angra, o maior em extensão, também os de Mangaratiba e de Parati (LIMA,
1972, p. 89).
Em fins do século XVI, as atividades desenvolvidas eram a lavoura da cana-de-
açúcar, de alimentos e a pesca da baleia, praticada na foz do rio Mambucaba
(MACHADO, s.d., p. 20).
Em 1607, a povoação tornou-se vila. Por volta de 1624, seus moradores
deslocaram-se da Vila Velha para o atual sítio, em frente à Ilha Grande22. Na ocasião foi
iniciada a construção da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, pronta em 1750.
Em 1667, com a fundação da paróquia de Nossa Senhora dos Remédios de Parati, Angra
passou a ter como limites o rio Itaguaí e o rio Mambucaba (LIMA, 1972, p. 153).
Durante o século XVII, o porto angrense apresentou um modesto crescimento e um
pequeno comércio era realizado com o interior, “serra acima”. Instalou-se, na segunda
metade da centúria, um estaleiro para a construção de fragatas para a navegação e
policiamento marítimo. O intenso contato com a Baía da Ilha Grande estimulou a pesca,
atividade da qual os moradores retiravam parte de seus alimentos. (VASCONCELLOS,
2002)
Na virada para o século XVIII, a descoberta de ouro na região das Minas Gerais
modificou o ritmo de toda a colônia, principalmente nas áreas que diretamente serviram-
lhe de acesso (SOUZA, 1994, p. 32), como Parati e o resto do litoral sul. Isto foi possível
em função do “Caminho Velho” do Rio de Janeiro ou dos Guaianazes23.
Pelo “Caminho Velho”, ia-se do Rio de Janeiro, por mar, até Parati. De Parati
seguia-se por terra até Taubaté, “onde era vencida a Serra do Facão” (SOUZA, 1994, p.
33), considerada de grande aspereza e hostil. De Taubaté, chegava-se a
Pindamonhangaba, Guaratinguetá, até as roças de Garcia Rodrigues e, finalmente, ao
Rio das Velhas. Segundo Antonil (1982, p. 184), o trajeto era concluído em 30 dias.
22 O fato recebeu duas versões. A primeira considerou que o deslocamento ocorreu após o assassinato do vigário por um morador. O Prelado do Rio de Janeiro suspendeu a nomeação de outro pároco, enquanto existissem, na vila, descendentes do assassino. Por isso os moradores decidiram ocupar outro local. Já a segunda versão defende que, antes do episódio, o novo sítio já vinha sendo ocupado, em função das vantagens que apresentava, como água em abundância, em contraposição aos mangues e lagoas, que incomodavam os moradores da Vila Velha (Cf. CAPAZ, 1996, p. 78). 23 Embora o caminho tenha recebido grande contingente humano, ele já era frequentado por paulistas e paratienses que realizavam um pequeno comércio de produtos agrícolas (Cf. GURGEL & AMARAL, 1973, p. 41).
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O movimento dinamizou Parati. “A vila tinha crescido, cultivou-se mais a terra,
aumentou o movimento do porto, do comércio, do transporte de mercadorias e escravos”
(SOUZA, 1994, p. 37). A agitação que se abateu sobre a comunidade paratiense também
beneficiou a vila de Angra, para onde foram os “descaminhos” do ouro. (CAPAZ, 1996)
Em virtude do constante risco de contrabando, principalmente realizado no
percurso marítimo do “Caminho Velho”, da aspereza e da longa duração da viagem, o
governo metropolitano incentivou a abertura de outro percurso que fosse somente
terrestre entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais (SOUZA, 1994, p. 33). Foi então
construído o “Caminho Novo” ou de Garcia Rodrigues Paes (SOUZA, 1994, p. 33-34).
Nos seis anos seguintes, Garcia Rodrigues Paes se dedicou à melhoria da estrada,
enquanto Bernardo Soares de Proença realizou reparos, garantindo a diminuição do
tempo de viagem (SOUZA, 1994, p. 34).
O trajeto reduziu o trânsito existente no porto de Parati e, indiretamente, no de
Angra. Na segunda metade do século XVIII, os paratienses começaram a sentir a queda
dos negócios, como a venda de alimentos e a hospedagem aos que iam e aos que
vinham de Minas. A abertura do “Caminho Novo” desviou grande parte do movimento
comercial de Parati, porém, segundo Souza (1994, p. 38), a vila continuou articulada à
efervescência mineira, através do vale do Paraíba. Ainda segundo a autora, “embora de
importância secundária, o porto de Parati estava inserido na florescente economia da
região” (SOUZA, 1994, p. 38). Diante da redução do fluxo pelo “Caminho Velho”, foram
abertas passagens paralelas, ligando as Gerais aos portos do litoral, que serviram para o
contrabando do ouro. Este tornou-se prática tão habitual na região que foi criado um
“sistema” de “apoio” aos contrabandistas, voltado para a comercialização de alimentos.
(CAPAZ, 1996, p. 99)
Na segunda metade do século XVIII, a lavoura canavieira se espalhou do
Recôncavo da Guanabara para as planícies de Campos e Cabo Frio. Houve a
transferência da sede do vice-reinado para o Rio de Janeiro, o desenvolvimento do porto
carioca e o estímulo dado pela metrópole visando o aumento da produção agrícola
colonial, incluindo, além do açúcar, fumo, anil, café etc. (SOUZA, 1994, p. 38).
73
No final do século, o movimento portuário dinamizou-se, antigas atividades se
ampliaram e novas surgiram24. O cultivo de anil disseminou-se, principalmente entre as
grandes propriedades25. Expandiram-se a lavoura de alimentos e a atividade pesqueira.
No entanto, a produção com maior revitalização foi a aguardente, absorvendo a produção
da cana-de-açúcar de Angra e de Parati.
Em fins do século XVIII, com a expansão cafeeira26, o polo dinâmico deslocou-se
de Parati para Angra. Isso se deu em virtude não só das vantagens do porto localizado na
vila de Angra, mais profundo e livre de assoreamento; mas também pela existência de
pequenos embarcadouros naturais, como Jurumirim, Bracuí, Ariró, Frade e Mambucaba,
fixados na Baía da Ilha Grande, próximos às produtoras de café “serra acima” (CAPAZ,
1996, p. 100-101).
Foram recuperados caminhos antigos e novos foram abertos:
Pelo vale do Ariró, além da “estrada de barro”, à margem da qual surgiu, na primeira metade do século XIX, Santo Antônio do Capivari (hoje Lídice), no caminho em direção a São João Marcos, passavam as estradas do Caramujo (em direção a Bananal), e a “estrada João de Oliveira”, que desembocava na foz do Jurumirim. Pelo vale do Bracuí, outro caminho subia a serra em direção a Bananal. E pelo vale do Mambucaba atravessava a Serra da Bocaina em direção a Areias (MACHADO, s.d., p. 26).
Em Angra chegavam tropas de São João Marcos, de Resende, de Piraí, de São
Paulo e de Minas Gerais (cf. LAMEGO, 1964, p. 241). O porto, neste contexto, tornou-se
de grande importância. (LAMEGO, 1964, p. 241) Além desse, surgiram outros, como os
de Jurumirim, Ariró, Ribeira, Mambucaba, Bracuí e Frade (LAMEGO, 1964, p. 242).
Entretanto, antes do oitocentos, o fluxo portuário já era intenso. Segundo notícias
de 1791, no Rio de Janeiro chegaram 69 (13,9%) embarcações provenientes de Angra
24 Em 1764, com a fundação da paróquia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba, a paróquia de Angra diminuiu de extensão (cf. LIMA, 1972, p. 153). 25 Sua importância foi tanta que uma das praias do atual centro de Angra recebeu seu nome, a Praia do Anil. O cultivo perdeu importância em princípios do século XIX (cf. MACHADO, s.d., p. 25). 26 A expansão do café iniciou-se na cidade do Rio de Janeiro. Posteriormente, o cultivo foi para Resende e São João Marcos, sendo que, entre 1830 e 1860, a região ocidental do vale do Paraíba foi detentora da produção cafeeira, incluindo, além de Resende, também Barra Mansa, Piraí, Vassouras, São João Marcos, Passa Três e Santa Ana (cf. MARCONDES, 1995, p. 252).
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dos Reis, com carregamentos de cachaça, mel, açúcar e feijão; enquanto que de Parati
foram 86 (17,4%) barcos, contendo toucinho, cachaça e tabaco. De ambas as localidades
chegaram 155 (31,3%) embarcações, de um total de 495 que alcançaram o porto carioca
(FRAGOSO, 1992, p. 87).
Entre os anos de 1827 e 1888, das 6.538 saídas de sumacas, lanchas e vapores
do litoral sul-fluminense, grande parte chegou ao Rio de Janeiro com carregamento de
café, correspondendo a 5.320 (69,6%) embarcações. A aguardente foi transportada por
772 (10,1%) e 634 (8,3%) naus trouxeram fumo. (VASCONCELLOS, 2006, p. 43-44)
O café provinha de plantações locais, vistas por viajantes que passaram pela
região. Segundo Pohl (1976, p. 69), que esteve no Brasil entre 1817 e 1821, os cafezais
faziam parte da paisagem, além da cana-de-açúcar, bananeiras e laranjeiras. Já o
viajante Kidder (1980) observou, em 1839, após a elevação da vila à categoria de cidade
(CAPAZ, 1996, p. 175), plantações de café e de cana-de-açúcar nas terras da freguesia
da Ilha Grande. (KIDDER, 1980, p. 183).
Dados extraídos do Almanak Laemmert indicaram a existência de fazendeiros e
lavradores de café, somando, por exemplo, 114, em 1862. Em 1854, 10 eram definidos
como fazendeiros de café e aguardente e 79 se dedicavam ao cultivo de café e
mantimentos. Segundo o Almanak de 1854, o café provinha de Angra, mas também da
“serra acima”: “navegam por este município cinco vapores e vários barcos que carregam
café da província de São Paulo e deste município, sendo o do município acima de
250.000 arrobas”27.
Enfim, em parte do século XIX, a população do litoral e, em particular, da região em
estudo, estava voltada para o cultivo de café e de alimentos. O movimento de seus
portos, por sua vez, estimulou a economia, por meio da venda de excedentes aos homens
que subiam e desciam a serra.
Não obstante, o movimento portuário variou ao longo dos oitocentos. Houve uma
tendência ascendente até 1859, quando, em média, 39,3 embarcações saíam, por mês,
do litoral em direção ao porto carioca e, em seguida, um decréscimo, pois, entre 1880 e
1888, 9,7 barcos deixaram os portos do dito litoral. (VASCONCELLOS, 2006, p. 43-44)
27 A informação foi retirada do Almanak Laemmert do ano de 1854, p. 23.
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A redução numérica de embarcações promoveu a diminuição do fluxo de homens
pelos caminhos abertos em direção ao interior, desestruturando o sistema que vinha junto
à cabotagem. Sobre a cabotagem realizada entre os portos brasileiros, sabemos que:
o comércio através da navegação de cabotagem propiciou, ainda, o aumento da oferta de empregos assalariados. Mestres de embarcações, marinheiros, caixeiros de negociantes circulavam constantemente na rota do comércio. Parte da população livre encontrou maiores oportunidades de ganhar o seu sustento no manejo dos pontos de pernoite que se formaram no percurso das tropas. Forneciam alimentação, lugar para dormir, foragem para os animais (MARTINHO & GORENSTEIN, 1993, p. 167).
A diminuição do movimento portuário esteve associada à construção da Estrada de
Ferro D. Pedro II que, em 1864, chegou a Barra do Piraí, em 1871, a Barra Mansa e, em
1877, a Queluz (EL-KAREH, 1982).
A produção cafeeira que até então era escoada pelos portos do litoral sul-
fluminense passou a ser transportada por via férrea, oferecendo aos seus usuários, mais
rapidez e segurança.
Vinculado à queda do escoamento do café, a partir de 1870, “em Angra dos Reis,
os casarões assobradados que tinham depósitos de café na parte térrea foram sendo
abandonados e começaram a ruir” (CAPAZ, 1996, p. 202). Destino semelhante tiveram as
estradas que conduziam as produções até o litoral, como as de Ariró, de Mambucaba e de
Parati (CAPAZ, 1996, p. 203).
Na mesma ocasião houve o término do tráfico internacional de escravos, em 1850.
Com isso, grosso modo, ocorreu o encarecimento da mão-de-obra escrava, dificultando
os pequenos escravistas em obter trabalhadores, levando muitos, inclusive, a vender seus
trabalhadores28.
Na década de 1880 havia em Angra um pequeno cultivo de cana-de-açúcar e o
café, ainda plantado em Mambucaba e Ilha Grande, rendia ao município apenas 40.000
quilos, com preços de quatro mil réis (4$000) para cada 10 quilos (LIMA, 1872, p. 127). A
aguardente continuava a ser fabricada. Por exemplo, em Mambucaba, no ano de 1889,
28 Segundo Castro, a segunda metade do século XIX caracterizou-se no Brasil “pelo recrudescimento do número de brancos empobrecidos, nas diversas situações rurais, locais e regionais” (CASTRO, 1995, p. 104).
76
existiam quatro engenhos, produzindo em torno de 600 pipas anuais (LIMA, 1972, p. 175);
na Ilha Grande havia seis engenhos, com fabricação de 700 pipas anuais (LIMA, 1972, p.
183)
Portanto, os laços familiares estudados foram formados em meio a um contexto de
expansão das atividades econômicas em Angra, durante a primeira metade do século XIX
e, posteriormente, num momento de diminuição do movimento portuário. A seguir
veremos como a economia atingiu a demografia livre e escrava. Antes, algumas
considerações sobre as freguesias de Mambucaba e de Ilha Grande, duas das cinco
existentes no município. As demais eram Nossa Senhora da Conceição de Angra dos
Reis, atual centro da cidade; Nossa Senhora da Conceição da Ribeira; e Nossa Senhora
da Santíssima Trindade de Jacuecanga. (LIMA, 1972, p. 203).
Com mais de 193,53 quilômetros quadrados, a freguesia de Nossa Senhora de
Santana da Ilha Grande, teve no cultivo do café uma de suas principais atividades. No
ano de 1889, sua população estava em torno de 7.800 moradores (LIMA, 1972, p. 182).
A freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba, criada em 180829, fazia
fronteira com Parati e incluía Itaorna e Ilha de Sandre. Nela havia importante porto por
onde era escoada a produção cafeeira local e do vale do Paraíba. Sua superfície de 220
quilômetros quadrados abrigava 3.800 habitantes, em 1889 (LIMA, 1972, p. 174).
Por meio do uso dos relatórios de presidentes de província do Rio de Janeiro de
1841, de 1851 e de 1858, com dados para os anos de 1840, de 1850 e de 1856,
respectivamente, e do Censo Nacional de 1872, encontramos algumas informações sobre
a população angrense.
No ano de 1840 foram contabilizados 12.050 (53,3%) livres e 10.552 (46,7%)
escravos. Em 1850, encontramos, respectivamente, 14.736 (58,4%) e 10.480 (41,6%). No
ano de 1856, 16.606 (63,2%) e 9.659 (36,8%) e, em 1872, 17.289 (79,2%) e 4.544
(20,8%).
Houve um predomínio de livres sobre os escravos em todos os anos analisados,
ocorrendo, inclusive, um aumento. Esta tendência foi observada antes mesmo de 1840.
29 Na verdade, a freguesia foi criada em 1803. Entretanto, por dificuldades encontradas para sobreviver na localidade, o vigário a abandonou em 1804. Em 1808, a freguesia foi reinstalada (cf. LIMA, 1972, p. 172-173). Todos os dados relativos às freguesias foram levantados por Lima (1972) que, no século XIX, era político e agricultor.
77
Segundo Marcondes (1995), o litoral sul-fluminense conheceu uma elevação do número
de habitantes livres desde 1780 (MARCONDES, 1995, p. 259).
Já os escravos diminuíram ao longo do tempo. Quais seriam os motivos? A
redução de cativos esteve vinculada às alforrias, às mortes, às fugas e às vendas de
escravos para as áreas de ponta na economia imperial.
Quanto à distribuição sexual dos escravos, no ano de 1840 havia 130 homens para
cem mulheres, enquanto que, em 1872, foram contados 98 homens. Tal diminuição
esteve associada à redução de africanos na população escrava: em 1856, 62,6% eram
crioulos, contra 37,4% de africanos. Em 1872, encontramos, respectivamente, 82,9% e
17,1%.
A respeito da faixa etária dos cativos, no ano de 1856 28,7% tinham entre 0 a 14
anos, 43,7% possuíam de 15 a 40 anos e 27,6%, 41 anos ou mais. Já em 1872,
localizamos, respectivamente, 28,4%, 41,5% e 30,1%.
Portanto, os escravos de Angra dos Reis, entre 1840 ou 1856 e 1872, diminuíram
em percentuais, houve uma tendência ao equilíbrio entre os sexos, os crioulos tornaram-
se mais frequentes e houve um predomínio de escravos em idade produtiva, embora sua
participação tenha diminuído entre 1856 e 1872.
E as famílias formadas em Mambucaba e Ilha Grande? Haveria variações quanto à
formação dos laços parentais entre as duas freguesias? Esta pergunta foi o “motor” do
projeto de pesquisa. Desejávamos verificar as características das propriedades das duas
localidades e, posteriormente, avaliar os laços de compadrio e de apadrinhamento entre
escravos.
Visando responder às questões formuladas, recorremos aos registros paroquiais de
batismo e de casamento de escravos localizados no Convento do Carmo e na Igreja de
Jacuecanga, em Angra dos Reis, e aos inventários post-mortem de escravistas,
encontrados no Museu da Justiça do Rio de Janeiro e no Arquivo Nacional.
Por meio da análise de 26 inventários da Ilha Grande e de Mambucaba,
observamos um predomínio das chamadas “grandes propriedades” (11 ou mais
escravos), com 42,3%; 38,5% eram escravarias com 1 a 5 escravos; e 19,2%, médias
propriedades (6-10 cativos).
78
Quanto às atividades realizadas na Ilha Grande, observamos que em 32,3% dos
inventários existiam referência ao café; 26,2% à agricultura; 21,5% ao comércio; 20,0% à
pesca. Em Mambucaba, 31,8% de inventários citaram a presença de cafezais; 31,8% de
agricultura; 22,8% de atividade pesqueira; e 13,6% de inventariados eram comerciantes.
Ou seja, os inventários não mostraram variações quanto à economia, mas, por
meio do Almanak Laemmert, soubemos que em Mambucaba existiam armazéns que
guardavam o café do vale do Paraíba e o produzido na localidade. A região contava com
a atividade de escoamento da produção via o embarcadouro de Mambucaba, ao contrário
do que fora verificado para a Ilha Grande.
Em seguida, veremos os laços de compadrio e de apadrinhamento criados nas
duas freguesias, entre 1822 e 1871.
Ritual responsável pela purificação do pecado original, o sacramento do batismo
oferecia ao pagão a passagem ao cristianismo, sendo-lhe conferido um nome cristão ou
de um santo, tornando-o apto a participar das cerimônias da Igreja, além de adquirir
igualdade, humanidade e liberdade (GUDEMAN & SCHWARTZ, 1988).
Constituíram-se determinadas regras na hora da escolha dos “pais espirituais”,
forma como eram compreendidos os padrinhos e madrinhas: não poderiam ser os pais
carnais, deveriam ser batizados e conhecedores da doutrina católica (GUDEMAN &
SCHWARTZ, 1988, p. 39).
A eles caberia a formação moral dos afilhados, entendidos como “substitutos
eventuais do pai e da mãe, são parcialmente responsáveis pela educação espiritual
daquele ou daquela que levaram à pia batismal” (LEBRUN, 1998, p. 89).
Para o estudo partimos do pressuposto que os escravos eram sujeitos históricos
capazes de, nas brechas do sistema, fazer valer seus interesses. As relações senhor e
escravo eram permeadas de vantagens para os primeiros, pois eram detentores das
instituições, do poder e das normas do sistema, mas tinham consciência que estavam
lidando com seres humanos. Os escravos, por sua vez, tinham anseios e interesses,
como a formação de uma família, a obtenção de uma roça de cultivo, a alforria e sabiam
que eram importantes para seus proprietários. Logo, a escravidão não teria perdurado por
300 anos somente à base da violência física, mas de conquistas obtidas pelos cativos, ou
concessões conferidas pelos senhores. As palavras “negociação” e “conflito” estavam
presentes no dia a dia de homens e mulheres submetidos ao cativeiro. (REIS e SILVA,
2009; VASCONCELLOS, 2006). No caso dos batismos, acreditamos que foram os pais e
79
as mães solteiras os responsáveis pela escolha de compadres e comadres, embora tenha
havido algumas situações em que os senhores possam ter interferido.
Nos 285 batismos de crianças legítimas30 da Ilha Grande, 62,1% receberam
padrinhos escravos, 33,0% livres e 4,9% forros. Nos 247 registros de legítimos de
Mambucaba foram, respectivamente, 47,8%, 44,9% e 7,3%.
Entre as madrinhas de legítimos da Ilha Grande, os percentuais foram de: 62,9%
de escravas, 26,7% de livres e 10,4% de forras. Quanto a Mambucaba, os dados foram,
respectivamente, 56,2%, 39,7% e 4,1%.
O que podemos verificar é que tanto os pais que viviam na Ilha Grande quanto os
de Mambucaba tinham preferência por adotar laços de compadrio, considerado
parentesco fictício, com outros escravos. Acreditamos que os casais já tinham contato
com os futuros compadres, fazendo do ritual do batismo o momento para fortalecer
vínculos de amizade com conhecidos. Estes conhecidos eram indivíduos que portavam a
mesma experiência, o cativeiro. Em segundo, destacou-se o apadrinhamento com livres,
resultado, talvez, de escravarias com número reduzido de cativos, facilitando o contato
com o “mundo” dos livres.
No caso dos ilegítimos31, as preferências eram diferentes. Na Ilha Grande, 52,1%
de padrinhos eram livres, 42,3% eram escravos e 5,6 %, forros. Em Mambucaba, 48,8%,
46,3% e 4,9%, respectivamente, livres, escravos e forros.
Mães solteiras aos olhos da Igreja optaram por compadres em condição jurídica
superior. Entretanto, isso não significa que eles gozassem de uma situação econômica
favorável. O que parece claro é a busca por reforçar alianças e contatos com homens que
ao menos poderiam servir como tutores em ações na justiça. A tendência também pode
representar o interesse das mães em obter ajudas para si e seus filhos em momentos
delicados, como a venda ou a separação de pais e filhos.
Quando da escolha de madrinhas, repetiu-se uma tendência semelhante ao que
fora visto entre legítimos. Entre os batismos da Ilha Grande 57,7% eram escravas; 35,7%
livres; e 6,6 %, forras. Nos registros de Mambucaba, os percentuais foram de 57,7%;
39,2; e 3,1%. Ou seja, mães solteiras, quando se tratava de escolher madrinhas,
selecionavam escravas, mulheres conhecedoras da realidade do cativeiro e possíveis
“substitutas” em caso de ausência das mães carnais.
30 Crianças que nasceram como fruto de uniões legalizadas pela Igreja. 31 Filhos de mães solteiras, segundo a Igreja.
80
Portanto, nas freguesias da Ilha Grande e de Mambucaba existiam plantadores de
café, de cana e de alimentos, assim como comerciantes e pescadores. Em Mambucaba
havia um constante movimento portuário, escoando, além da produção local, o café
proveniente do vale do Paraíba. Nestas localidades, ao longo do XIX, houve uma redução
da população escrava, aumento de crioulos e uma tendência ao equilíbrio sexual entre os
escravos. Nesse contexto, os casais que viviam em Mambucaba e Ilha Grande adotaram
compadrio, preferencialmente, com outros escravos. Já as mães solteiras tenderam a
convidar, majoritariamente, livres para o compadrio e escravas, na qualidade de
madrinhas. Isto é, o ritual do batismo serviu como momento para a adoção e reforço de
laços de amizade que envolviam escravos e, em segundo, livres. Estes passavam, a partir
de então, a integrar as famílias dos escravos, instituição essencial para a sobrevivência
de homens e mulheres em cativeiro.
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85
Literatura e memória cultural: representação de imigrantes libaneses na literatura brasileira
Shirley de Souza Gomes Carreira 1
INTRODUÇÃO
Ao longo dos séculos, a migração tem sido interpretada como uma condição
natural da experiência humana e a relação dos imigrantes com os países de adoção tem
sido alvo de pesquisas científicas em áreas como a Sociologia, a Antropologia e, mais
recentemente, a Literatura.
A princípio, os imigrantes constituem um grupo de trabalhadores estrangeiros que
interpretam sua condição de vida e a sua relação com o meio como algo provisório.
Segundo Hall (2003, p.28), a par dos variados motivos que geram a migração, dentre eles
a pobreza, a falta de oportunidades e o subdesenvolvimento, cada disseminação carrega
consigo a promessa de um retorno redentor. No entanto, à medida que a possibilidade de
retorno ao país de origem torna-se mais remota, a relação puramente instrumental com a
vida econômica do período imigratório inicial é extrapolada, estabelecendo-se um vínculo
com os países receptores.
Antes vista como uma possibilidade, a ideia do retorno acaba por ser substituída por uma relação quase mítica com a terra natal; pois, intimamente, o imigrante acaba por entender que, muito embora se possa voltar ao lugar de origem, não se pode voltar ao tempo da partida, nem ao indivíduo que se era no momento da partida (SAYAD, 1998, p.17).
O processo migratório contínuo gera, amplia e multiplica a experiência da
transculturação, uma complexa teia de relações sociais que reflete a tensão gerada a
partir da vivência, pelos migrantes, de identidades múltiplas e fluidas fundamentadas ao
mesmo tempo nas sociedades de origem e nas "adotivas".
O termo “transculturação” opõe-se ao conceito anglo-saxônico de “aculturação”,
uma vez que este pressupõe total aderência a uma nova cultura, fruto de um
1 Doutora em Literatura Comparada pela UFRJ. Pós-doutora em Literaturas de Língua Inglesa. Coordenadora do Programa de Apoio à Pesquisa do UNIABEU.
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desenraizamento absoluto, enquanto que aquele aponta para o surgimento de uma
identidade híbrida fundamentada na interpenetração de culturas.
As ondas migratórias no Brasil foram seguidas de um comportamento xenofóbico,
que se refletiu na literatura e foi responsável pela construção de estereótipos, verificáveis,
por exemplo, em obras da literatura naturalista brasileira.
Os rótulos que acompanharam os imigrantes de diversas nacionalidades, como,
por exemplo, “turco”, no caso dos imigrantes de origem árabe, ou “galego”, no caso dos
portugueses, funcionavam como umbrella terms, cuja finalidade era agregar os indivíduos
oriundos de outros países sob a ótica da exclusão.
Na realidade, esses termos lançavam sobre os estrangeiros um estigma
generalizante. Os imigrantes portugueses, por exemplo, eram vistos como pessoas
intelectualmente pouco qualificadas, a quem cabia apenas o comércio varejista,
primordialmente de secos e molhados, como atividade de subsistência. No caso dos sírio-
libaneses, embora sendo reconhecidamente herdeiros de uma vasta herança cultural, a
sua ocupação principal em terras brasileiras, o ofício de mascate, rendeu-lhes a fama de
negociantes sovinas, obcecados pelo lucro.
A literatura brasileira contemporânea, no entanto, lança um olhar diferenciado
sobre a imigração, possibilitando uma releitura do processo de inserção do imigrante na
sociedade. Obras de autores como Milton Hatoum, Samuel Rawet e Raduan Nassar,
entre outros, permitem uma reflexão sobre os conflitos da condição de estrangeiro por
uma via que tanto escapa à visão estereotipada do imigrante quanto foge à mera
tematização dessa condição. Essas obras focalizam as vivências íntimas do imigrante
evocadas pela memória; se não a memória pessoal dos autores, descendentes de
imigrantes em sua maioria, a memória reconstruída a partir de relatos, fragmentos da
memória alheia, coletados e transformados em ficção.
Nesse panorama, Amrik, de Ana Miranda, surge de forma atípica. A partir de uma
extensa pesquisa histórica e de um diversificado inventário textual, a autora, que se
dedica à nova ficção histórica latino-americana, reinterpreta criticamente a imigração
libanesa no Brasil na ótica de uma narradora que experimenta uma dupla exclusão: a
situação de imigrante e a condição de mulher em uma sociedade regida pelo patriarcado.
Este ensaio visa à análise da representação da identidade cultural do imigrante em
Amrik, de Ana Miranda, a fim de demonstrar como a autora entrelaça a memória ficcional
da personagem, que é o alicerce da narrativa, a registros da imigração libanesa no Brasil.
87
1. UM RELATO DE VIAGEM ÀS AVESSAS
Em O ofício do escritor, Ricardo Piglia afirma que o narrador é um viajante (1994,
p.73). Ao fazê-lo, ele caracteriza a narrativa como tributária de experiências que supõem
o ultrapassar fronteiras, sejam fronteiras espaciais, sejam fronteiras impostas pela ordem
vigente.
As narrativas de viagem propriamente ditas reproduzem, em sua maioria, um
padrão textual em que as deambulações por lugares distantes se confundem à vivência
reflexiva desenvolvida no contato com o Outro, cuja imagem é condicionada pela ótica
eurocêntrica.
Em Amrik, Ana Miranda constrói uma narrativa de viagem às avessas, posto que a
ótica do relato localiza-se nas margens. A narradora é uma mulher, imigrante libanesa,
que rememora a sua saga pessoal, desde a infância no Líbano, passando por uma
frustrada experiência na América do Norte, até a sua chegada ao Brasil, onde, finalmente,
se estabelece. O romance é escrito de modo a assemelhar-se a textos literários, escritos
por imigrantes, denominados “Mahjar”.
Ao contrário do que ocorre nos relatos de viagem tradicionais, o tempo não é
registrado, mas faz-se sentir nas transformações que a personagem sofre, de menina a
mulher, ao longo do romance.
1.1 Uma breve viagem no tempo: a emigração libanesa para o Brasil
Desde o início da colonização portuguesa, o Brasil tem sido o destino de inúmeros
imigrantes de diversas origens. A corrente migratória de sírios e libaneses para o Brasil
começou no fim do século XIX, muito embora haja registros da existência de “turcos-
árabes”, rótulo genérico que aqui receberam, bem antes dessa época.
A denominação deveu-se ao fato de que eles viajavam com documentos emitidos
pela Turquia. Todos os imigrantes do Oriente Médio foram denominados “turcos” até
1892, quando os sírios passaram a ser listados separadamente.
Por essa época, os libaneses eram incluídos nessa lista, porque faziam parte da
Grande Síria, que hoje compreende os estados da Síria e do Líbano. O rótulo eliminava
distinções entre os grupos que agregava. Conforme Oswaldo Truzzi nos faz recordar:
88
Embora a região territorialmente pertença ao chamado mundo árabe moderno, e seus habitantes efetivamente sejam falantes da língua árabe, os sírios e libaneses identificam-se, sobretudo, com a religião professada e com a região ou aldeia de origem, elementos fundadores de suas identidades, muito mais que com um estado-nação, inexistente para eles na época. (TRUZZI, 2005, p. 2)
Assim, a ideia de uma identidade ou cultura árabe unitária, que ignore as
características particulares advindas de situações geográficas e históricas específicas,
nunca foi totalmente aceita.
Considerando-se as bases identitárias mencionadas por Truzzi, a questão religiosa
constitui dado relevante, uma vez que a divisão mais ampla entre cristãos (católicos,
ortodoxos orientais e protestantes) e muçulmanos (sunitas, xiitas e drusos) acabou por
revelar uma tendência ao sectarismo, graças à intervenção ardilosa das potências
imperialistas europeias, em sua disputa pela influência política na região.
O outro elemento constitutivo da identidade diz respeito ao espaço físico, à região
ou aldeia de origem. Segundo Truzzi (2005, p. 2), o localismo das comunidades, em
grande parte dificultado pelo relevo, favoreceu as diferenças e as divisões, transformando
a aldeia no locus de perpetuação dos valores do grupo.
Roberto Khatlab (2007) afirma que foram três as ondas migratórias sírio-libanesas
para o Brasil: de 1880 a 1900, 1900 a 1950 e de 1975 em diante.
Os integrantes da primeira onda migratória tinham em mente fazer fortuna para
poder retornar à terra natal, caracterizando uma imigração de ordem econômica. Sua
atividade principal no país era o comércio e logo ficaram conhecidos como “mascates”.
A experiência bem-sucedida de alguns pioneiros fez com que a emigração se
tornasse uma verdadeira febre, estimulada cada vez mais pela crença de que alguns anos
nas Américas seriam suficientes para garantir a aquisição de terras e a prosperidade dos
membros da família que ficaram. O modelo de existência para esses primeiros imigrantes
ainda era o da terra natal, para onde ambicionavam retornar.
É difícil precisar o contingente de imigrantes nessa fase, pois não existem
estatísticas sobre a distribuição de libaneses no Brasil do início do século 20. No entanto,
conforme Truzzi (2005, p.15) registra, “nos primeiros anos de 1900, havia três centros de
atração principais no Brasil para essa etnia: a Amazônia, São Paulo e Rio de Janeiro”.
Diferentemente de europeus e asiáticos, os árabes não se fixaram de maneira
concentrada em um único lugar, mas se espalharam de Norte a Sul do Brasil, com alguma
predominância no Norte.
89
Os pioneiros da emigração árabe, conforme registra Khatlab (1990, p. 36),
destacaram-se por terem entre eles uma elite política e cultural, pois “a emigração tinha
por objetivo procurar uma vida melhor, em liberdade, e depois voltar e viver melhor em
seu país de origem”. Eram, portanto, emigrações provisórias.
Mesmo os intelectuais libaneses chegavam ao Brasil praticamente sem nada,
tendo de reiniciar a vida a partir do zero, atuando no comércio ambulante, e tiveram um
papel econômico e histórico, pois, a par do estabelecimento de muitos nos grandes
centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, eles também se embrenhavam pelo interior,
chegando aonde nem o correio chegava, levando notícias das grandes cidades.
Os mascates tiraram proveito do surto de prosperidade da borracha que atraía
grandes levas de brasileiros para a região do Amazonas. Com o tempo, a decadência da
borracha determinou a transferência de muitos libaneses para São Paulo e para o Rio
Janeiro, contribuindo para a eclosão de grandes artérias comerciais.
A segunda fase de migração foi marcada pelas consequências das duas grandes
guerras mundiais, quando o Líbano atravessou uma mais das sombrias páginas da sua
história e conheceu a fome, as doenças contagiosas, as disputas político-religiosas e o
bloqueio marítimo. Nessa época, os emigrados tiveram um papel importante na vida de
seus familiares, a quem enviavam ajuda.
O fluxo migratório sírio-libanês atingiu seu auge entre 1920 e 1930. Esse período
assinala a mudança de objetivo dos que aqui chegaram.
Decepcionados com o rumo que seu país tomou após o fim da dominação política
e econômica, os imigrantes optam por fixar residência no Brasil, iniciando uma “imigração
de assentamento”.
Diferentemente da primeira onda migratória, quando o imigrante não considerava
definitiva sua vinda para o Brasil e o retorno ainda permanecia no pensamento da maioria,
o libanês da segunda onda migratória não via a si mesmo como parte de um grupo de
expatriados, mas como membro de uma coletividade de emigrados que desejavam ter um
lugar que pudessem considerar como seu em terras brasileiras.
A fixação dos imigrantes nas metrópoles e os casamentos mistos fizeram com que
eles passassem à fase da imigração de assentamento, deixando de pensar no retorno.
A terceira e última onda migratória, que teve lugar após a guerra civil libanesa,
deveu-se à falta de perspectivas para os jovens que viviam em regiões rurais. Mais
recentemente, a partir de 1995, começou uma evasão, em grande parte, de cidadãos
libaneses qualificados, devido à recessão econômica e ao desemprego.
90
1.2 A viagem ficcional
A narrativa de Amrik é cíclica; começa e termina no Jardim da Luz, quando o tio da
narradora, Amina, transmite-lhe o pedido de casamento do mascate Abrahão. As
lembranças de Amina surgem fragmentadas e são transcritas em 154 textos breves, à
guisa de capítulos, agrupados em onze partes.
Ao ouvir a proposta, Amina confronta aquilo que seu tio, Naim, julga ser “felicidade”
com o que realmente a espera:
[...]viver numa casa imensa, de avental contar ovos, bater manteiga, ralar abóbora, picar amêndoas, a natureza nos dedos, regar uma horta no quintal, alface hortelã tomilho, ter sexo na noite abençoado, açúcar cristal na língua hmm Nas coisas mais simples está o sentido da vida Amina (...)” (MIRANDA, 1997, p.11)
A visão do tio contrasta com a imagem que se forma na mente de Amina: a
sujeição física aos desejos do mascate, ter de viver em uma casa cheia de gente e sem
privacidade, cozinhar para quinze pessoas, viver para ganhar dinheiro e sonhar com o
retorno ao Líbano, representando, a cada noite, uma mulher diferente para o
encantamento do marido.
O confronto de aspirações resulta na reformulação de um ditado popular que
sintetiza o desejo da narradora: “Mais vale um pássaro na mão que dois voando, não,
mais vale um pássaro voando, de que vale um pássaro que não voa?” (MIRANDA, 1997,
p.12)
Assim, a autora instaura no romance o embate da personagem com a estrutura
patriarcal árabe. Pela via da memória, Amina resgata a imagem da avó Farida, símbolo da
transgressão. A avó que lhe ensinara a dançar às escondidas, que lhe transmitira as
tradições ancestrais: as danças, a culinária, as lendas, o repositório da memória coletiva
de seu povo passado de geração a geração.
No universo ficcional, Amina é alvo da rejeição paterna. Seu pai, Jamil,
inconformado por ter sido abandonado pela mulher, transfere para todo o gênero feminino
o ódio que a traição lhe causou.
Bêbados falavam mal de suas mulheres, das mulheres de todos, papai voltava para casa bêbado e abria o estojo da faca, maldizia mamãe Maimuna comedora de tios-felpudos mulher quando fala mente quando promete não cumpre quando cumpre volta atrás quando nela confiam trai
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quando não trai fere revela facilmente sua parte íntima a qualquer um lança olhares a todos semeia discórdia um homem não pode partir para a aldeia vizinha nem por um dia se voltar antes vai encontrar a mulher na relva com um negro Ó mulheres em multidão não conseguis suportar pacientemente a ausência do objeto peludo nem por um dia? (MIRANDA, 1997, p.16)
A concepção paterna da mulher como um ser ardiloso, desprovido de caráter, faz
com que seja ela a escolhida para acompanhar o tio cego, quando este é ameaçado de
morte por causa de suas convicções políticas e é obrigado a deixar o Líbano.
Por causa dos turcos e dos muçulmanos que queriam matar tio Naim porque escrevia contra eles tivemos de partir de nossa aldeia, tio Naim encheu um baú com seus livros, umas joias de ouro para trocar por comida ou roupa, uma manta de pelo de carneiro e nada mais, pediu a papai que mandasse um dos filhos acompanhar, papai olhou os filhos, todos de olhos arregalados, num silêncio fundo, um dois três quatro talvez todos os filhos homens quisessem cinco ir mais papai escolheu o filho que menos lhe servia, seis a única filha mulher, para que servia uma filha mulher? Os filhos iam casar e quando vovó Farida morresse as esposas iam cuidar da cozinha e fazer mais crianças para o trabalho na agricultura, ele me achava vaidosa, dissimulada, meu rosto lembrava o da minha mãe e isso fazia papai sofrer ainda mais (...)(MIRANDA, 1977, p. 22)
Personagem criada a partir dos relatos de familiares de Emir Sader, marido da
autora, sobre um velho tio cego, para quem os sobrinhos se revezavam na leitura, tio
Naim não faz da sobrinha sua serva, mas torna-se o seu mentor, educando-a “para o
mundo”. Assim, Amina aprende a ler, a escrever, bem como aprende palavras em outros
idiomas: francês, inglês, grego e aramaico, porque “mulher saber língua estrangeira é
abrir uma janela na muralha” (MIRANDA, 1997, p.27).
Quando Amina deixa para trás a sua casa, a avó lhe dá os seus pequenos
tesouros: o tamborzinho de mão, os címbalos e o pandeiro, herança que selaria o seu
destino. A casa, na verdade, nunca lhe parecera realmente sua, posto que, mesmo entre
a sua gente, a sua família era tratada de modo diferente, como estrangeira. Amina muitas
vezes se pergunta se a razão era o fato de que sua avó um dia fora dançarina, uma
gháziya, segundo o glossário que a autora disponibiliza ao final do romance. Esse
sentimento de inadequação persegue a narradora vida afora.
Amina e Naim têm por objetivo ir para a América, a tão sonhada Amrik, mas são
retidos em Beirute, onde ficam à espera de passaportes turcos e de lugar no navio.
O fluxo da memória é construído em blocos de um parágrafo/capítulo, com
pontuação escassa e mistura de idiomas. As palavras em árabe se misturam às do
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português, a interjeições e onomatopéias, descrevendo lugares e pessoas a partir de
impressões de caráter sinestésico.
O dado histórico é incorporado à ficção no relato da passagem obrigatória dos
libaneses por Beirute, na imagem da multidão amontoada no porto, “gente miserável
seminua tiritava de frio, esmolava, molhados da chuva da madrugada”, “arrastados todos
pelos sonhos de riqueza ou de liberdade” (MIRANDA, 1997, p.28).
Conforme aponta Oswaldo Truzzi (2005, p.12), a oportunidade de ganhar dinheiro
exerceu um impacto profundo no equilíbrio das aldeias libanesas, a tal ponto que as
famílias que não enviassem seus filhos temporariamente às Américas perdiam status e
prestígio em relação às outras.
Amina e Naim partem movidos pela busca da liberdade. O Líbano que Amina deixa
para trás é marcado pela dureza do patriarcado: [...]ia queimar talismãs para o navio chegar logo e me levar para Amrik, guiava tio Naim nas ruas, recebia cartas de papai, da aldeia, cartas que me faziam chorar, cruéis, se eu era suave ele brigava se eu era fria ele cuspia se eu dizia elogio ele ignorava de noite na cozinha ele falava mal de mim com a Abduhader, falava mal de mamãe com os outros bêbados de noite e falava mal das mulheres todas elas. (MIRANDA, 1997, p. 26)
A viagem é o início da desconstrução do sonho. Ao invés do “navio moderno, veloz
e iluminado” pelo qual ansiavam, deparam-se com
[...]um ferro velho sujo enferrujado com carne humana amontoada arrre irrra terceira classe dormiam no relento água racionada salobra nojenta arghhh para qualquer coisa era preciso dinheirinho, beliches duros imundos insetos sugavam o sangue de noite ratos mordiam comiam nossos sapatos mofo calor umidade sal vomitava vomitava arre o camarote era para quatro mas oito ocupavam os quatro lugares eu dormia na mesma enxerga com tio Naim e não podiam levantar os dois ao mesmo tempo que alguém estava sempre pronto para ocupar o nosso lugar arre. (MIRANDA, 1997, p. 28)
A viagem é embalada pelas histórias contadas por Naim ou pela leitura que Amina
faz dos livros do tio, que, embora leve no baú livros ingleses e franceses, quer que a
sobrinha leia apenas aqueles em árabe, para não perder o amor pela própria terra. Para
ele, “a literatura árabe lembra sempre a existência de outros mundos além deste que
podemos ver e tocar mas não compreender” (MIRANDA, 1997, p.30), mundos como o
universo ficcional, em que a realidade é continuamente transformada e recriada.
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[...] literatura das montanhas e dos desertos sem nunca criar fronteiras entre o real e o irreal como o mundo fora uma miragem [...] uma literatura que pode ser feita e usada por pessoas que não sabem ler nem escrever, mas se ouvem entendem e podem recontar que são histórias e mais histórias e assim foi uma grande parte dela, os livros antigos eram muitas vezes apenas a memória do recitador, outras vezes eram escritos em letras de ouro ou nas paredes, mas fosse como fosse, nunca rompeu com a tradição e nunca romperá ainda que sejam os poetas chamados de imitadores [...] se a literatura árabe é a alma árabe, todavia, não é o mundo árabe o que as pessoas pensam, pensam que o mundo árabe são as Mil e uma noites hahaha (MIRANDA, 1997, p.31)
Nas últimas linhas da citação, a autora deixa entrever uma crítica à imagem
eurocêntrica do Oriente: um mundo exótico, misterioso, que se distancia da realidade dos
conflitos políticos e religiosos vivenciados pelos povos de origem árabe.
Na parte 2, intitulada “Amrik”, a narrativa se reporta à estada de Amina na América
do Norte. Os libaneses que saiam do Líbano pensavam estar se dirigindo à América do
Norte, mas poucos conseguiam entrar no país. Muitos eram rejeitados, outros enganados,
e acabavam por desembarcar no Brasil, no porto de Santos. Na América, tio e sobrinha
são separados. Ela fica para trabalhar como dançarina em uma Feira de Negócios e o tio,
“cachorro morto”, é despachado para a outra América.
Com os olhos cheios com os atrativos da América, Amina se esquece de tudo, do
tio, da terra natal, forma uma banda e persegue o seu sonho de liberdade: “eu pensava
que ia ficar rica verdadeiramente rich era a terra das liberdades das oportunidades ia me
vestir como a rainha de Sabá ia me cobrir de jóias perfumes chapéus com plumas de
veludo...” (MIRANDA, 1997, p.36)
O sonho, no entanto, se dissolve rapidamente:
[...] muito trabalho a meio dólar por dia, jornada de dez horas mas trabalhavam dezesseis, haviam marcado a minha pele com uma etiqueta na alfândega e me deram um banho, mudaram meu nome no papel, acabou a feira e me soltaram na rua. (MIRANDA, 1997, p.36)
Sem dinheiro ou roupas de frio, Amina vai dormir na rua, nos dormitórios e cortiços
de imigrantes, onde crianças e velhos “morriam como moscas envenenadas”. O choque
entre culturas é perceptível nas lembranças de Amina.
[...] as casas eram de madeira, as galinhas ciscavam na rua, os carros para lá e para cá numa velocidade estupenda e as pessoas não se
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matavam por religião mas se matavam por dinheiro, os americanos comiam aveia de manhã feito cavalos, eram de uma religião diferente da nossa mas eu não condenava a religião deles, rudes e falavam alto, havia desempregados, policiais estúpidos arrogantes patrões ladrões greves de empregados reuniões de operários, trabalhadores de minas viviam feito escravos, havia dedos esmagados nas máquinas das fábricas comida em lata solidão falta de falar a língua falta da comida da vovó Farida falta de amigos falta de um corpo falta de amor. (MIRANDA, 1997, p. 37)
As cartas de Naim para a sobrinha acenam com a possibilidade de vinda para o
Brasil. Na descrição que ele faz da cidade de São Paulo é possível detectar a pesquisa da
autora no intuito de fornecer informações sobre a cidade na época em que se passa a
história:
[...] havia na cidade de São Paulo cento e quarenta e seis lojas de fazendas e ferragens, sessenta armazéns de gêneros de fora, cento e oitenta e cinco tavernas, todos pagavam direitos à municipalidade [...] Vem Amina minha flor de luz [...] vem para São Paulo. (MIRANDA, 1997, p.39)
Amina vê a vinda para o Brasil como uma derrota, pois “o Brasil era um lugar de
abismos e depósito de imigrantes cachorros mortos que não conseguiam entrar na outra
América” (MIRANDA, 1997, p. 45) e resiste o quanto pode à idéia de deixar a América do
Norte, o seu “eldorado”.
Porém, a solidão é um flagelo diário, que faz com que um mero cumprimento, ou
mesmo umas palavras trocadas, desperte em Amina uma fome descontrolada de amor e
carinho, que é narrada de forma cômica:
[...] à luz da vela escrevi cartas para tio Naim, para vovó Farida para os meus irmãos, para desconhecidos, uma carta para um homem de cabelo vermelho que eu vira atravessar a rua, uma carta ao Mark Twain uma carta a um remador que me dissera Good morning na fonte Bethesda no terraço de onde saiam remadores em barcos compridos, voltei à fonte uma dezena de dias e nunca mais vi o remador mas deixei para ele uma carta de amor [...] a carta marcava um encontro e no dia marcado esperei esperei brbrbrbrbrbr gelada mas ninguém apareceu, veio um policial de ronda, quem sabe porque fazia muito frio o remador não veio, caía neve suave o policial me fez umas perguntas, quase me apaixonei por ele (MIRANDA, 1997, p.41).
A solidão acaba por vencê-la, forçando-a vir para o Brasil. Os capítulos que se
seguem fornecem dados da história dos imigrantes libaneses no Brasil, bem como da
cidade de São Paulo, como, por exemplo, o desvio do rio para fazer a Rua 25 de março, a
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vida dos imigrantes libaneses, que girava em torno do Tamanduateí, na parte nova da
cidade, sem nenhum progresso, e as dificuldades de aceitação na nova terra:
No começo, disse tio Naim, vinham os italianos e os alemães à porta ver despejar de mais árabes, riam de nossos modos, contavam histórias engraçadas sobre nós e não tinham medo [...] mas o mascates foram prosperando e de miseráveis ambulantes descalços que vendiam cigarros em bandejas dependuradas no pescoço ou quibe frito em tabuleirinhos passaram a mascates de santos de madeira e escapulários depois a mascates de tecidos botões linhas arre, assim os mascates se tornaram perigosos sujos traiçoeiros ambiciosos usurários [...] mas não somos o que eles pensam, libaneses são limpos, cultos, temos a Université dos jesuítas e a Universidade Americana, sabemos falar inglês grego francês, sabemos ler escrever, inventamos álgebra astronomia matemática, os algarismos arábicos o alfabeto, disse tio Naim, trouxemos para ocidentais a laranjeira o limoeiro o arroz, ensinamos ocidentais a melhor cultivar a alfarrobeira e a oliveira, a criar cavalos, a plantar uvas, figos e imensas maças, a regar, pintar as unhas, fazer hortas de verduras e talhões de legumes, mais de seiscentas palavras à língua dos lusis. (MIRANDA, 1997, p. 52)
O capítulo intitulado “Ilhas de Elisã” contém palavras começadas com “al” que
foram incorporadas ao português, evocando de forma concreta no discurso a herança
cultural árabe e reivindicando um espaço social, pois “os árabes são como avós dos
brasileiros” (p.53).
A ascensão social dos sírio-libaneses despertou não apenas a inveja de outros
grupos de imigrantes, mas também dos brasileiros, o que contribuiu bastante para a
criação e manutenção de estereótipos negativos.
Ana Miranda incorpora outros dados sociológicos à narrativa, como, por exemplo, a
importância da aldeia natal:
[...] chegavam as pessoas todas de uma mesma aldeia, gente do cultivo que vinha para a agricultura, mas acabava mascate, ganhava mais dinheirinho, trabalhava para ninguém, problema dos libaneses que pensavam na aldeia, disse tio Naim, não pensavam no país, se falavam pátria diziam aldeia, sua terra sua aldeia queria dizer sua aldeia sua alma [...] (MIRANDA, 1997, p.55)
Essa mesma aldeia passava ao imaginário do imigrante de primeira geração como
um “paraíso perdido” a ser novamente alcançado, fazendo-o esquecer os reais motivos
pelos quais teve de deixar sua terra.
A parte 4, “Mezze”, retrata a vida na casa de Naim. Os textos constituem um
inventário da culinária, dos costumes libaneses, ao mesmo tempo em que se configuram
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parte da narrativa. A tendência dos imigrantes a se agruparem com seus conterrâneos é
devidamente representada no romance:
Tio Naim estudou na Université dos jesuítas Saint Joseph, escrevia para o ALK-Ahram e agora pediam para escrever sobre imigrantes, dinheiro, política, república, ele gostava de república porque trazia prosperidade, os escritos de tio Naim eram discutidos por libaneses nos mezzes as domingos, senhores de muitos espíritos contrários e dados a leis da imaginação, mais levados por seus sonhos do que pela realidade, cada qual vendo mais a distância que a proximidade, misturando árabe com português [...] (MIRANDA, 1997 , p.62).
O início do processo de intercâmbio cultural é descrito no romance, bem como o
desenvolvimento de uma interlíngua e a desconstrução paulatina do sonho do retorno à
terra natal:
[...] um dia vão perceber que a vida passou, ficaram aqui fazendo fortuna e não voltaram nem ficaram ricos, só alguns, Entendam logo isso e façam os cemitérios clubes igrejas mâdrassas que nos dos outros não nos aceitam [...] (MIRANDA, 1997, p. 64)
Chafic e Abrahão são representações de duas fases distintas da imigração
libanesa. O primeiro representa o imigrante de primeira geração, viajando de cidade em
cidade, mascateando. O segundo aponta para uma segunda geração, para uma rede de
conterrâneos a dar suporte uns aos outros. Os homens dessa nova leva encontraram os
primeiros aqui fixados, muitos deles atacadistas, podendo assim lhes fornecer mercadoria
e ensinar a língua e os conhecimentos básicos para o exercício das transações
comerciais:
Abraão abriu a canastra mostrou como vendia renda, bordado, retrós sabonete meia dentifrício coisas pequenas pesam pouco, vendem fácil, preço bom, crédito, lágrimas no olhos, Logo aprendes a língua e se sabes umas poucas palavras podes trabalhar por tua conta, sais de manhã cedo mesmo que chova levas pão farinha pudim de palmito bocajuva vais de casa em casa nos bairros da Sé Santa Ifigênia, havia um mapa da capital da província de São Paulo, Abraão tinha lista de fregueses. (MIRANDA, 1997, p.176)
As narrativas da imigração libanesa no Brasil destacam o papel dos homens, uma
vez que a princípio era uma imigração econômica. Quando esta se transforma em
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imigração de assentamento as mulheres libanesas entram em cena, dada a necessidade
de transformar algo provisório em definitivo, estabelecendo núcleos familiares.
Ana Miranda constrói, no romance, uma narrativa de focalização feminina,
permitindo a reinterpretação da história da imigração pelo olhar de Amina, que situa o
papel social da mulher imigrante:
[...] duas imigrantes passam com cestas de compras rumo ao Mercado, nesta cidade a mulher que faz compra no Mercado é imigrante, arifa ou operária, as imigrantes nunca passeiam, moças feitas de trabalho, vidas diluídas, fumaças de chaminé fufu feitas de perdas e adeuses, moram nas partes escuras da cidade, nas casas olhadas, entre os ratos e morcegos, entre os caixotes vazios e as sacas nos depósitos, nos armazéns, detrás dos balcões, nas margens dos rios um capim de fuligem e fumaça feito os navios belas coisas mesmo sujas e pretas, elas sempre querem passar para o outro lado da cidade, mas são apenas umas mostardinhas ardidas ou umas cadelasdascadelas, corpo de faschefango galho e barro ou casa a Ana ou vira putana ou casa a Beatriz ou vira meretriz haialaia tutti senza denaro, mijar na cova e lamber o dedo hmmmm elas olham para mim e estiro a língua, elas ficam tão vermelhas que parecem as telhas e apressam o passinho de garridice nos sapatos barulho de ferraduras. (MIRANDA, 1997, p. 186)
Amina contraria a imagem das mulheres imigrantes que descreve, pois é avessa ao
trabalho doméstico, preocupando-se, apenas, com a dança.
O enfoque na dança faz com que seja o olhar de Amina a mostrar a construção de
uma imagem estereotipada da mulher oriental como sedutora, sensual e exótica:
[...] eu sabia o que diziam mal de mim, dançar era mandar homem nas casas de putas eles em cima delas mas a cabeça em mim, que tudo era para gastarem em mim seus dinheirinhos e eu ficando rica e eles pobres [...] (MIRANDA, 1997, p. 69)
Nesse aspecto, é paradoxal o diálogo com textos ocidentais, e com visões
eurocêntricas da mulher oriental, como, por exemplo, a Aziza, de Flaubert e a Mahatab,
de Francis Bacon.
A autora, ao fim do romance, fornece uma lista bastante detalhada de suas fontes
de pesquisa, que vão de relatos de viagens e registros da imigração a livros de culinária,
bem como um glossário de termos em árabe e nomes de personagens ficcionais ou
históricos citados no livro, desvelando ante o leitor a materialidade da obra.
Estudos sobre a imigração têm comprovado que a música e a culinária são marcas
de resistência de imigrantes de primeira geração à aculturação absoluta, ou assimilação,
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operando como expressões privilegiadas de uma vida entre dois mundos. No entanto, no
romance, o espaço da cozinha, “o lugar do mundo onde uma mulher pode sentir a si, sem
precisar dos machos árabes” (p. 130), com seus odores e sabores, é evocado como um
dos locais onde a mulher árabe não experimenta a subalternidade. A arte da dança tem
papel equivalente, pois é por meio dela que a mulher pode atrair um homem, fazendo-o
“andar mil passos num vale ou atravessar um deserto sem camelo” (MIRANDA, 1997, p.
20 ).
Obviamente, a recorrência aos alimentos de origem árabe, no texto, tem também a
função de apontar para o processo de integração social, uma vez que a culinária árabe foi
incorporada aos hábitos dos brasileiros.
Jeffrey Lesser (1999, p. 22) chama a atenção para o fato de que no processo de
integração dos imigrantes no Brasil, a assimilação, na qual a cultura pré-migratória da
pessoa desaparece por completo, foi rara, dando lugar às trocas culturais.
O romance também registra a questão do casamento entre brasileiros e libaneses:
Uns homens daqui mandavam buscar mulheres nas suas aldeias no Líbano, mulheres da sua mesma religião maronita e de virgindade virgindade sempre virgindade, alguns mascates logo que ganhavam um dinheiro voltavam a suas aldeias para escolher uma mulher, traziam a mulher para o Brasil ou deixavam a mulher lá e voltavam sozinhos, outros casavam com uma brasileira e voltavam com ela para sua aldeia no Líbano, uma mascate casou com uma brasileira e levou a brasileira para Beirute, lá estava outra mulher e a brasileira não aceitou a bigamia, o marido deixou a brasileira na rua, ela ficou perdida nas ruas e ia virar mendiga ou prostituta de turcos, na sala de tio Naim eles discutiram o destino da perdida [...] decidiram trazer de volta a brasileira ai que sacrifício pagar passagem assim para brasileiro tanto libanês precisava trazer mãe ou pai ou irmão, não ia custar tão caro, Mais caro é ter boa reputação[...] (MIRANDA, 1997, p. 67)
O tipo de situação descrita no romance se reporta a uma fase da imigração em que
os casamentos mistos ainda não eram comuns. Segundo Oswaldo Truzzi (2005, p. 33) o
padrão de buscar a noiva na terra de origem era muito comum entre os pioneiros.
A parte 5, intitulada “Casa de Amina”, relata a tentativa de independência da
narradora, de preenchimento de um vazio interior que ela não consegue diagnosticar. Ela
vai morar em um sobrado da Rua 25 de março, em meio ao burburinho de pessoas, os
odores estranhos da cozinha dos lusis, as lágrimas sufocadas da portuguesa, o
agarramento do português com a empregada negra, na escada, o frio intenso no inverno
e o calor absurdo no verão. Os poucos objetos que leva com ela apontam para uma
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característica da personalidade de Amina: a facilidade com que se encanta, e desencanta,
com as coisas.
Assim é que se apaixona por Chafic, um mascate que vê pela janela, a tomar
banho nu, no rio. Por Tenura, a empregada de Naim, fica sabendo que ele é mascate de
fogos de artifício e que quando não está no Mercado, vai de aldeia em aldeia no Mato
Grosso. A dançarina acostumada a brincar com a atração dos homens rende-se a uma
única visão daquele corpo masculino. E, mais uma vez, os odores e sabores da culinária
árabe surgem para metaforicamente expressar a ebulição em Amina;
[...] nunca mais na minha vida o veria, nunca no exterior de mim apenas o veria no escuro de minhas pálpebras , nu encostando sua língua na boca da mulher, fora ele um castigo mandado pelo Deus dos maronitas para eu pagar minhas maldades todas que fiz contra os homens, Chafic moeu meu coração, marinou temperou com pimenta intercalou num espeto com pedaços de lágrimas de cebola assou na brasa grelhou e não comeu [...] (MIRANDA, 1997, p. 88)
Da parte 7 em diante, o diálogo com a história cede lugar à história pessoal de
Amina, que é contratada para dançar no casamento do mascate Abrahão. Por
recomendação do pai da noiva, não deveria dançar a dança do al nahal, o que acaba por
fazer, deixando os homens presentes hipnotizados, o velho fellah revoltado, um
casamento desfeito e uma noiva suicida.
O romance termina no mesmo ponto em que começa, com tio Naim perguntando a
Amina se ela aceita casar-se com o mascate, que retornara rico da América do Norte e
que nunca a esquecera.
CONCLUSÃO
A par dos matizes proporcionados pela criatividade de Ana Miranda, o romance
revela a cuidadosa pesquisa histórica e textual empreendida na sua elaboração. Ao
incorporar os referentes históricos à sua obra, ela engendra uma tessitura que se reporta
em detalhes à história da imigração libanesa no Brasil sem, no entanto, perder o estatuto
de ficção.
A representação da identidade cultural do imigrante em Amrik revela-se diferente
se comparada, por exemplo, a de autores como Milton Hatoum. Enquanto este cria
personagens que, embora imigrantes, estão totalmente integrados ao país de adoção,
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constituindo identidades híbridas, Ana Miranda detém-se nos primórdios da imigração e
no choque entre culturas.
Em várias entrevistas dadas à época do lançamento de Amrik, Ana Miranda
afirmou que Amina não é real, que foi inspirada em suas fantasias de criança, em suas
leituras sobre Sheerazade, Simbad, califas e odaliscas, bem como na interpretação que
autores como Borges, Flaubert e Rimbaud tiveram do Oriente. Paradoxalmente, a
personagem por ela criada tem como local de fala a concepção eurocêntrica do Oriente
que combate.
Ao dialogar com a historiografia, a literatura assume ser capaz de contar histórias
que historiografia não sabe nem pode contar. Amrik é uma narrativa de olhares, pois,
conforme nos explicou Said (2001:16-17), “o Oriente é uma idéia quem tem uma história e
uma tradição de pensamento, imagística e vocabulário que lhe deram realidade e
presença no e para o Ocidente”.
Assim como Naim, que via o mundo através dos olhos dos que o cercavam, o leitor
se debruça sobre a narrativa de Amrik certo de que essa é mais uma dentre as múltiplas
interpretações do Oriente, uma vez que o romance foi escrito a partir de um olhar
ocidental e contemporâneo.
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