personalidade um físico completo...um físico completo que levasse ao bacharelado de física....

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• CIÊNCIA PERSONALIDADE Um físico completo que levasse ao bacharelado de Física. "Portanto, todos os físicos tinham de ser autodidatas': lembrou Gross em palestra dada em 1984, depois publi- cada na Revista Brasileira de Ensino de Física (junho de 2000). Ele começou a trabalhar em pesquisa no Brasil em 1934, no Instituto Nacional de Tecno- logia, no Rio. Lá, voltou-se para o es- tudo dos dielétricos sólidos submeti- dos a campos elétricos, tanto do ponto de vista teórico como experimental, assunto em que se tornou um dos mais respeitados especialistas no mundo. Depois da Segunda Grande Guer- ra, Gross passou a viajar para o exte- Morto aos 96 anos, Bernhard Gross unia teoria e prática com raro brilho Q uando se ouve falar sobre as qualidades profissionais do fí- sico Bernhard Gross é difícil saber em que área ele atuava melhor: na parte teórica, experimental ou no ensino? A dificuldade em classificar esse alemão naturalizado brasileiro é tão comum entre amigos e discípulos quanto a admiração que ele causou nos 69 anos vividos no Brasil. Gross, um físico completo, morreu no dia 1 0 de fevereiro, em São Carlos (SP), aos 96 anos. Bernhard Gross chegou ao Brasil em 1933, aos 28 anos, vindo da Escola de Engenharia de Stuttgart, na Alemanha, onde nas- ceu. Mas ele havia visitado o país uma vez, aos 9 anos, com sua mãe. Ao desem- barcar no Rio de Janeiro, o físico trazia na bagagem pelo menos um trabalho importante sobre raios cósmicos (partículas ele- mentares energéticas que chegam à Terra), feito na Europa. Posteriormente, es- se estudo levou seu nome: a "transformação de Gross" relacionava o fluxo vertical das partículas com o fluxo hemisférico, detectado por câmaras de ionização. Ao chegar ao Rio, Gross incorporou-se rapidamen- te ao meio científico, con- centrado na Escola Politéc- nica. Na época, não existia no Brasil a profissão de físi- co, nem curso especializado rio r para fazer pesquisas e participar de conferências. Entre 1957 e 58, tor- nou-se representante brasileiro na Agência Internacional de Energia Atômica, em Viena, e permaneceu como seu diretor de Departamento de Informação Científica até 1967. Foi um dos primeiros a medir a queda de radioatividade no Hemisfério Sul cau- sada por testes de bombas de hidro- gênio no Hemisfério Norte. Também desenvolveu um aparelho, chamado dosímetro de Compton, para detectar raios gama, empregado pelos norte- americanos em testes nucleares. Gross participou ativamente de organizações que viriam a ser funda- mentais para o desenvolvimento da ciência no país. "Álvaro Alberto, Joa- quim Costa Ribeiro e Gross forma- vam a espinha dorsal nos primeiros anos do Conselho Nacional de Desen- volvimento Científico e Tecnológico (CNPq)': conta Sérgio Mas- carenhas, diretor do Insti- tuto de Estudos Avançados (IEA/USP), em São Carlos. Mascarenhas o levou para trabalhar no Instituto de Física da Universidade de São Paulo, de São Carlos, no começo dos anos 70. Gross casou-se com Gertrude, com quem teve os filhos Antônio e Rober- to. "Até 1996, ele manteve- se ativo, quando orientou sua última tese de doutora- do", diz Guilherme Leal Ferreira, outro físico muito próximo. Quando morreu, deixou cerca de 200 artigos publicados em revistas do Brasil e do exterior. O atual pró-reitor de Pesquisa da USP, Luiz Nunes, que foi aluno de Gross, conta de uma rara qualidade. "Ele incentivava e dava um va- lor notável para idéias alheias, mesmo que par- tissem de pesquisadores muito jovens e ainda sem expressão", diz. Para um cientista com seu vulto, não era pouco. Gross dando aula no IF aos 85 anos: atividade extraordinária Gross C1 o à direita) em 1959, na reunião sobre energia atômica PESQUISA FAPESP • MARÇO DE 2002 47

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Page 1: PERSONALIDADE Um físico completo...Um físico completo que levasse ao bacharelado de Física. "Portanto, todos os físicos tinham de ser autodidatas': lembrou Gross em palestra dada

• CIÊNCIA

PERSONALIDADE

Um físico completoque levasse ao bacharelado de Física."Portanto, todos os físicos tinham deser autodidatas': lembrou Gross empalestra dada em 1984, depois publi-cada na Revista Brasileira de Ensino deFísica (junho de 2000). Ele começou atrabalhar em pesquisa no Brasil em1934, no Instituto Nacional de Tecno-logia, no Rio. Lá, voltou-se para o es-tudo dos dielétricos sólidos submeti-dos a campos elétricos, tanto do pontode vista teórico como experimental,assunto em que se tornou um dos maisrespeitados especialistas no mundo.

Depois da Segunda Grande Guer-ra, Gross passou a viajar para o exte-

Morto aos 96 anos,Bernhard Gross unia teoriae prática com raro brilho

Quando se ouve falar sobre asqualidades profissionais do fí-

sico Bernhard Gross é difícil saber emque área ele atuava melhor: na parteteórica, experimental ou no ensino? Adificuldade em classificar esse alemãonaturalizado brasileiro é tão comumentre amigos e discípulos quanto aadmiração que ele causou nos 69 anosvividos no Brasil. Gross, umfísico completo, morreu nodia 10 de fevereiro, em SãoCarlos (SP), aos 96 anos.

Bernhard Gross chegouao Brasil em 1933, aos 28anos, vindo da Escola deEngenharia de Stuttgart,na Alemanha, onde nas-ceu. Mas ele havia visitadoo país uma vez, aos 9 anos,com sua mãe. Ao desem-barcar no Rio de Janeiro, ofísico trazia na bagagempelo menos um trabalhoimportante sobre raioscósmicos (partículas ele-mentares energéticas quechegam à Terra), feito naEuropa. Posteriormente, es-se estudo levou seu nome: a"transformação de Gross"relacionava o fluxo verticaldas partículas com o fluxohemisférico, detectado porcâmaras de ionização.

Ao chegar ao Rio, Grossincorporou-se rapidamen-te ao meio científico, con-centrado na Escola Politéc-nica. Na época, não existiano Brasil a profissão de físi-co, nem curso especializado

rio r para fazer pesquisas e participarde conferências. Entre 1957 e 58, tor-nou-se representante brasileiro naAgência Internacional de EnergiaAtômica, em Viena, e permaneceucomo seu diretor de Departamentode Informação Científica até 1967. Foium dos primeiros a medir a queda deradioatividade no Hemisfério Sul cau-sada por testes de bombas de hidro-gênio no Hemisfério Norte. Tambémdesenvolveu um aparelho, chamadodosímetro de Compton, para detectarraios gama, empregado pelos norte-americanos em testes nucleares.

Gross participou ativamente deorganizações que viriam a ser funda-mentais para o desenvolvimento daciência no país. "Álvaro Alberto, Joa-quim Costa Ribeiro e Gross forma-vam a espinha dorsal nos primeirosanos do Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico

(CNPq)': conta Sérgio Mas-carenhas, diretor do Insti-tuto de Estudos Avançados(IEA/USP), em São Carlos.Mascarenhas o levou paratrabalhar no Instituto deFísica da Universidade deSão Paulo, de São Carlos, nocomeço dos anos 70.

Gross casou-se comGertrude, com quem teveos filhos Antônio e Rober-to. "Até 1996, ele manteve-se ativo, quando orientousua última tese de doutora-do", diz Guilherme LealFerreira, outro físico muitopróximo. Quando morreu,deixou cerca de 200 artigospublicados em revistas doBrasil e do exterior. O atualpró-reitor de Pesquisa daUSP, Luiz Nunes, que foialuno de Gross, conta deuma rara qualidade. "Eleincentivava e dava um va-lor notável para idéiasalheias, mesmo que par-tissem de pesquisadoresmuito jovens e ainda semexpressão", diz. Para umcientista com seu vulto, nãoera pouco. •

Gross dando aula no IF aos 85 anos: atividade extraordinária

Gross C1o à direita) em 1959, na reunião sobre energia atômica

PESQUISA FAPESP • MARÇO DE 2002 • 47