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    Lcio Jos de S Leito Agra - Performance e Documento, ou o que chamamos por esses nomes?Rev. Bras. Estud. Presena, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 60-69, jan./abr. 2014.D i s p o n v e l e m : < h t t p : / / w w w . s e e r . u f r g s . b r / p r e s e n c a >

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    Performance e Documento,

    ou o que chamamos por esses nomes?Lcio Jos de S Leito Agra

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP, So Paulo/SP, Brasil

    RESUMO Performance e Documento, ou o que chamamos por esses nomes? Oartigo ensaia a discusso entre a questo do documento na performance e a perspectivaque desarma a lgica do colonizador na produo dessa arte em pases perifricos. Sugerea possibilidade de se pensar os desafios das instituies de apoio/arquivo da obra dearte nesse contexto e em face das perspectivas da arte contempornea, tomando como

    princpio norteador a ideia de que h uma produo de performance brasileira que escapaao entendimento forjado nos centros de prestgio internacionais que norteiam o mercadoartstico.Palavras-chave:Performance. Documento. Performatividade. Arquivo. Memria.

    ABSCTRACT Performance, Documentation, or what we call by these names? Thisessay makes an effort to discuss the question of performance art documentation, underthe point of view of the deconstruction of colonizers logic as a result of the practice of thisart in peripheral countries. The essay suggests the possibility to think about challengesput against institutions in charge to archive and support the work of art, Regards theperspectives concerning contemporary art. It takes, as a guiding principle, the idea that

    there is a production of Brazilian performance which gets out of the common understandingforged in prestigious centers of the international art market.Keywords: Performance. Document. Performativity. Archive. Memory.

    RSUM Performance, Documentation, ou quentend-on par ces termes? Larticleapporte une rflexion sur la question de la documentation dans lart de la performance,sinscrivant dans une perspective qui cherche dconstruire la logique du colonisateurdans la production de cet art dans des pays priphriques. Le texte propose denvisagerles dfis qui se posent aux institutions charges de donner support et darchiver le travailartistique dans le contexte de lart contemporain, soutenant lide quil existe une productionperformatique brsilienne qui chappe la comprhension forge dans les grands centres

    urbains qui commandent le march de l art international et prestigieux.Mots-cls:Art Action. Documentation. Performativit. Archives. Mmoire.

    ISSN 2237-2660

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    Philip Auslander, em seu famoso artigo The performativity ofperformance documentation(2006), faz uma distino, desde entomuito empregada, entre atitudes de registro da performance1quepoderiam ser documentais ou teatrais. Servindo-se do exemplo dedois artistas clssicos, Chris Burden e Yves Klein e suas respectivasperformances, Shoot (1971) e Salto no Vazio (1960), o autor observaque a primeira tem registros factuais de um evento efetivamenteacontecido, enquanto a segunda uma fotomontagem que no cor-responde a um fato real.

    A categoria documental, segundo Auslander, [...] representao modo tradicional de conceber a relao entre a arte da performancee sua documentao (Auslander, 2006, p. 1). O que sempre se supe que esta , ao mesmo tempo, um registro (para reperformancesfuturas) e uma prova de que o ato efetivamente ocorreu. No Brasil,onde temos uma excelente histria de crticas ao estatuto documentalda fotografia, nem precisamos da citao que Auslander faz de KathyODell para concluir que os dois aspectos so falveis (e no apenas areconstruo, como assinala a autora citada). Como nota bem Aus-lander, o estatuto ontolgico da ao, que precede o documento,

    onipresente na histria da Body Artdos anos 1960 e 1970.No precisou muito tempo para que a performance e seus

    estudos, derivados dos questionamentos ps-estruturalistas fi-zessem a serpente morder o prprio rabo2. A partir de certo ponto,toda a performance passou a ser tambm um reenactment. de sepensar que a prpria noo de comportamento restaurado como comumente traduzida a ideia de Schechner, originalmente pensadapara a sua concepo de performance, bastante ampla fosse tam-bm ela relida e traduzida como parte da descrio desse fenmeno

    (Schechner, 2006, p. 29; Taylor, 2012, p. 22)3

    .Convm, entretanto, lembrar que o argumento documental e

    no conscientemente parodstico ou parafrstico, como seria conve-niente falar no ps-moderno foi justamente aquele evocado porMarina Abramovic, nas suas 7 easy pieces (2005), um dos exemplosdo documental mencionados por Auslander. Mas esse argumento, nocaso dela, partia da crtica impossibilidade do registro, como se eco-asse a mxima j conhecida na traduo de poesia: somente poetas socapazes de traduzir outros poetas. Uma performer experiente como

    Abramovic que reuniria as condies de reconstruir para coraes,olhos e mentes que no viram os originais a forma pela qual as per-

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    formances de seus amigos, que abandonaram o barco, efetivamenteaconteceram. O vdeo ou as fotos seriam eminentemente falveis4.Ainda neste aspecto documental, Auslander menciona o que

    chama de sofisticada anlise, levada a cabo por Amelia Jones, cujosargumentos enfatizam a mtua dependncia entre o documento ea performance, o que evidente em artistas como Cindy Sherman,produtora de uma linhagem especfica que podemos chamar de fo-toperformance (no s no caso de retratos, mas tambm da presenado artista diante da cmera). Tal prtica pode ser vista exemplar-

    mente na obra de Francesca Woodman; ou, ainda, na Bienal recente(2012), podemos pensar nos casos de Hans Eijkelboom, Bas JanAnder, Jir Kovanda, Sigurdur Gudmundsson e Tehching Hsieh,todos documentais por vrios aspectos e, a partir principalmente doltimo, as fotografias de Sofia Borges (Prez-Oramas et al., 2012).O mesmo tambm se pensaria a propsito do trabalho de CarlosMonroy Monroys performance service No.1 Sr Kosuth, o que voc

    faria? recentemente apresentado no Pao das Artes de So Paulo5.O que Jones chama de mtua suplementaridade (apud Auslander,2006, p. 2) recai, entretanto, na foto como registro pois, como notaAuslander, esse o argumento que Jones usa para defender sua es-critura sobre eventos dos quais no foi testemunha.

    Na verdade, o acrscimo que fiz acima j conduz o problemapara a segunda categoria sugerida por Auslander, a teatral. Nela, eleinclui desde o autorretrato como Rose Slavy de Duchamp, a prpriaSherman at os filmes de Matthew Barney. Confesso que implicocom o nome teatral, no s pelo motivo etimolgico o lugar deonde se v, uma origem provvel da prpria mstica fotogrfica ,mas tambm pelo aspecto de encenao ouficcionalque normalmente

    a instncia teatral carrega consigo.Os problemas conhecidos dessa instncia conduziram os rumos

    de um teatro contemporneo no qual noes como atuao, repre-sentao, espetculo, drama e mesmo performance, no sentidoinstrumental que lhe deu o teatro, em diversas ocasies passarama ser parte fundamental do debate e da prpria produo artstica. Odilema da f ico, por outro lado, na fotografia, foi discutido durantetodo o sculo XX (o mesmo, quero crer, valendo para o cinema) coma questo do registro direto, o fotojornalismo, a montagem da cena

    fotogrfica etc. A discusso tem um brilhante comentrio no trabalho

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    de Arlindo Machado no inestimvel livroA iluso especular intro-duo fotografia(1984), lamentavelmente ausente das livrarias htantos anos. Nesse livro, Arlindo historia o processo de construoda iluso de realidade da fotografia, cujo aparato deriva da ilusode profundidade produzida pela inveno renascentista da cammeraobscura. A fotografia que busca a intensidade do acontecimento vivido sobretudo quando tem o famoso apelo humano enfrentou a con-trapartida do construtivismo fotogrfico, consciente de seu aparatoe curioso investigador das formas pelas quais a luz recorta e desenhaos objetos. No meio desse dilema, complicado pela disseminao

    da foto colorida e o desenvolvimento das tcnicas de ps-produo/manipulao digital, trafega todo o universo da discusso sobre osestatutos ontolgicos da fotografia e o do filme no sculo XX eXXI e suas implicaes semiticas e filosficas.

    Auslander acerta ao considerar que, [...] de uma outra perspec-tiva, (fora da discusso ontolgica) [...] as duas categorias parecemter muito em comum. [...] em ambos os casos as duas imagens foramapresentadas para uma cmera (2006, p. 3). O que fica bem claro a presena do aparato modificador.

    Essa presena mais sentida, diria eu agora, na medida de suaprpria ausncia. O caso que quero comentar de passagem, de ar-tistas mexicanos fascinados pela performance e que reperformaramalgumas aes dos anos 1970 a partir de fotos o nico material deque dispunham , d um outro sentido ao ao vivodessa arte, poisno s produziram seu prprio discurso sobre a performance impor-tada (nesse caso, predominantemente estadunidense), como tambmdemonstraram um sentido de vida contra a morte que o documentopode ter (Clausen, 2010)6.

    Guzman e Ortega so autores de um vdeo de 1994 intituladoRemake.Segundo os prprios artistas, citados por Barbara Clausen,[...] antes de fazer Remake, tnhamos pesquisado os dados existentessobre certos artistas que praticaram a performance nos anos 70 [...]. Asreferncias vinham de revistas americanas e europeias, ou de livros deamigos. A maior parte dos registros em vdeo, disponveis em outrospases, eram desconhecidos no Mxico (apud Clausen, 2010, p. 19)7.O propsito no teria sido a reconstruode tais aes, mas antes,como observa a autora, [...] propor uma interpretao dessas aes

    que, assim, tornavam-se suas. Tratava-se de clssicos da performancecomo Glass (1974), de Paul McCarthy (retomada nas 7 peas de Ma-

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    rina Abramovic) ou Self-portrait as a Fountain (1966-67), de BruceNaumann para citar alguns exemplos. Clausen, ainda, prolongasua especulao, sustentando que eles assumem [...] a tarefa dialticaentre a encenao do documentrio e o documentrio da encenao.Segundo ela, o vdeo seria um exemplo singular de apropriao [...]de elementos exteriores integrados sua prpria verso. Ao comentaro fato de que, ao lado de releiturasde McCarthy, Naumann e Fox,os autores ainda acrescentaram um trabalho prprio sequncia dovdeo, Clausen afirma: O xito de Remake emblemtico do cresci-mento da arte latino-americana durante os anos 90, um movimentoengajado na sensibilidade conceitual e performativa contempornea,aparentada quela dos anos 70. Tanto na prtica como na teoria,diz a autora, h uma tomada de conscincia do [...] estatuto onto-lgico da performance como construo, fundada em sua naturezacontingente. Esse debate, observa Clausen, ainda, em uma nota,envolveu Philip Auslander e Peggy Phelan e hoje visto como umadas questes centrais dos estudos da performance (Clausen, 2010,p. 19 e S). Evidentemente, diversosfios soltos poderiam ser derivadosdessa situao, mas o que interessa principalmente aqui comentar

    as consequncias da prpria subverso do conceito de documentoque se insinua nesse exemplo e como, ao mesmo tempo, ele apontapara o problema da hegemonia dos discursos emanados dosgrandescentrose as estratgias poderamos j dizer antropofgicas queosperifricos ho de engendrar em meio s potncias museolgicas.

    Ao mencionar exemplos como o de Gina Pane, que consideravao fotgrafo parte integrante de seu trabalho, Auslander tangenciao problema que ganha contornos muito mais sutis e, a meu ver,interessantes quando se trata de falar destes artistas em pases

    perifricos, distantes do fluxo de desenvolvimento infindvel dosmecanismos de registro. Da se percebe a dimenso poltica de sitescomo o ubuweb(http://www.ubuweb.com), cujo enfrentamento daspolticas de direito autoral torna possvel a apropriao das obraspor parte de artistas em situao de excluso. Em contrapartida, adevorao dos modelos importados acaba por gerar formas de criaoque pem em evidncia padres performticos presentes nestas porassim dizer civilizaes perifricas que revogam o prprio conceitode ao vivo construdo como crtica doformalismo artstico europeu.

    No seria, ento, este conceito o da performance como sendo uni-camente uma arte da presena o modo pelo qual os criadores da

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    metafsica dualista de falso/verdadeiro lograram entender o momentoem que a mesma se rompeu?No teriam sido as periferias do mundo onde mais prospera a

    arte da performance e onde a performance desde sempre existiu cominmeras outras denominaes aquelas que j de partida no se dei-xam comover pela falsa oposio entre fico e realidade? No diziamG.G. Mrquez ou Octavio Paz que, no mundo latino-americano, arealidade parece mais absurda que a prpria fico? Oswald de An-drade disse, com todas as letras, em seu Manifesto Antropofgico,

    que j tnhamos a psicanlise. Parece-me que, de contrabando, issoimplica tambm o surrealismo, j que possuamos em nossa histriaum renegado Qorpo-Santo8.

    Autores to diferentes como o performer e terico da perfor-mance polons Jan Swidzinski, com seus oitenta e tantos anos, ou achinesa Chin Tao Wu, no seu comentrio ao mercado global de arte,so todos coincidentes na percepo de que h outras perspectivas deobservao que vm desafiando o pensamento ocidental hegemnico.Renato Ortiz, Jesus Martin Barbero, Nestor Garcia Canclini, Amlio

    Pinheiro, Milton Santos, Vandana Shiva, Laymert G. dos Santos,a lista cresce exponencialmente do lado dos mexicanos, brasileiros,uruguaios, bolivianos, paquistaneses, argelinos (como Derrida) epor a vai9.

    Com isso, quero dizer tambm que o brilhantismo do textode Auslander no alcana uma dimenso experiencial que o olhardeslocado pode promover. Evocando a radical virada epistemolgicasugerida por Eduardo Viveiros de Castro com a questo do perspec-tivismo amerndio10, como seria possvel que, no interior mesmo daafluente indstria da imagem tcnica, se vislumbrasse seu carterfalacioso e a prpria noo de verdade passasse a ser, nesse mesmocontexto, mas f ilosoficamente falando, a principal derrocada cogni-tiva, juntamente com o declnio do colonialismo explcito?

    Entretanto, se ainda acompanharmos Auslander mais adiante,vemos que mesmo ensastas que ele cita, como Don Slater ou KathyODell, no esto to desatentos ao carter ficcional do documento. Oprimeiro defende a ideia de que a fotografia [...] no final das contassubstitui a realidade dos documentos, enquanto a segunda afirmaque a [...] arte da performance o equivalente virtual de suas repre-sentaes (Auslander, 2006, p. 3). Acho que, com isso, fica ntida

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    a utilidade dessa arte e do pensamento que ela produz naquelecontexto perifrico que mencionei h pouco.

    A observao seguinte de Auslander serve para meditarmos umpouco quanto quele aspecto do ficcional no teatro:

    No fim, a nica diferena significativa entre os modos do-cumentrio e teatral da documentao da performance ideolgica: a crena de que no primeiro modo o evento encenado para uma plateia imediatamente presente e suadocumentao secundria, registro suplementar de umevento que tem sua integridade anterior. Como demonstreiaqui, esta crena tem nfima relao com as circunstncias

    atuais sob as quais as performances so feitas e documenta-das (Auslander, 2006, p. 34).

    As concluses de Auslander, resumidas na frase [...] o ato de do-cumentar um evento como performance que o constitui como tal(Auslander, 2006, p. 34) passam por uma analogia da fotografia coma noo tradicional de performativo tal como originalmente propostapor Austin (1962), isto , como um discurso que faz acontecer. Nodeixa de ser curioso o raciocnio que desloca o performativo da aopropriamente dita para o registro, mas devemos atentar para o fato

    de que o autor luta para inserir o mesmo na prpria ao, o que no pouco. Eu diria que se trata de um esforo modernista como o quechamou a ateno para a forma visual e grfica do texto na poesiamoderna. A essa concluso Auslander chega depois de avaliar umaperformance de Vito Acconci (Photo Piece, 1969; com uma rpidabusca pela Internet, possvel achar as 12 fotos da performance), cujatestemunha teria sido to somente uma cmera fotogrfica.

    Conforme ele observa ainda, o virtuosismo do performer noconsiste em fazer parecer real, mas na eficcia do ato metacomuni-

    cativo (Auslander, 2006) (termo que ele traz de uma proposio deRichard Bauman) de dizer ei, olhe pra mim, eu estou aqui e querodemonstrar algo que pode ser interessante.Audciae originalidadeconstituem-se em fatores que, de passagem, podem explicar o gostopelo risco na performance (e na poesia).

    Sendo instncias to inapreensveis e sujeitas ao contexto, essas,por assim dizer, caractersticas da performance refreiam o impulsode institucionalizao pela via do documento que, em tese, est em-pobrecido do acontecimento.

    Dar nome a essa situao, tratando-a como efmera, apenasdar um nome. O que interessa saber como essa espcie de ao-

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    contra-registro se produz em instncias perifricas nas quais as ins-tituies encarregadas da guarda e preservao vivem elas mesmas aprecariedade que fator conceitual da performance.

    Far sentido falar de institucionalizao da performance porvia do documento quando se trata da precria dotao de recur-sos para isso que conhecemos historicamente no Brasil? Depois daMisso Francesa, em quantas ocasies a cultura foi a prioridade dosgovernantes por aqui (ainda queprioridade, nesse caso, signifique tosomente estratgia de ocupao para a elite colonizadora)?

    As perguntas que se faz Auslander a respeito da ausncia decarter metacomunicativo na performance de Acconci ao se fo-tografar sem testemunhas11, ele joga para a foto toda a interaoque normalmente se d em cumplicidade ao vivo com uma plateia poderiam ser pensadas, a meu ver, como j mencionei acima, numplano que venho chamando de descentradoe que corresponde ao olharperifrico no mundo atual. Um exemplo j seria aquele comentadopor Clausen (ver acima).

    Gostaria, para finalizar, de tomar algumas palavras do texto

    de Suely Rolnik, Geopoltica da cafetinagem(2006), que formulamperguntas a partir da constatao do surgimento de novas questespolticas na arte dos anos 1990, no Brasil:

    Algumas perguntas se colocam diante da emergncia destetipo de temtica no territrio da arte. O que questes comoessas vm fazer a? Por que elas tm sido cada vez mais re-correntes nas prticas artsticas? E, no Brasil, por que elas saparecem agora? E qual o interesse das instituies em in-corpor-las? Vou esboar, aqui, algumas vias de prospecopara o enfrentamento destas perguntas (Rolnik, 2006, p. 1).

    Prefiro ficar apenas com a formulao da pergunta que, paramim, soa como uma espcie de estratgia de advertncia para qualquerdebate: a quem interessa discutir o problema da documentao daperformance agora? E, anteriormente a isso, mas totalmente conju-gado: o que temos chamado de performance no Brasil?

    Com essas perguntas inspiradas por Suely Rolnik e por LilianaCoutinho, encerro sugerindo que temos que nos interrogar, no Brasilem particular, e na Amrica Latina em geral, quais so as polticasque fizeram assomar ou sucumbir o prprio ato da performance, jque sabemos que ele pode ser, na memria, tanto documental comoteatral ou ambos.

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    Notas1O termo performance vem admitindo vrios outros de acordo com os lugares de uso.Durante muito tempo, empregou-se o termo live artna Inglaterra, action nos francofnicose arte accion entre os hispnicos. Mais recentemente, o termo de maior uso performanceart para diferenciar de outros sentidos que a palavra tem no ingls. Eu pessoalmente militopara a manuteno do termo performance pois performance arte, em portugus, umasintaxe alheia ao nosso idioma.2Trata-se da tradicional imagem mitolgica da serpente que morde o prprio rabo Ourobouros ou Urobros.3 O termo restored behavior frequentemente traduzido como comportamento

    restaurado. As tradues de Schechner que circulavam no meio acadmico brasileiroeram precrias at a recente edio de Performance e Antropologia, de Richard Schechner(Ligiro, 2012). A data dessa publicao coincide com o livro citado de Diana Taylor, queesclarece a noo em espanhol: [...] performance es comportamento reiterado, re-actuado,o re-vivido (Taylor, 2012, p. 22). Para afirmar isso, a autora vale-se de uma citao deSchechner que explica que a performance is twice-behaved behavior. Isto , trata-se deum comportamento reiterado, espcie de repetio de uma ao que j foi feita e assim reconhecida. Convenha-se que essa ideia est mais prxima do que vulgarmente conhecemoscomo representarou mesmo atuare que se distancia de restaurar, que, no portugus, refere-se mais frequentemente a reformar algo antigo ou fazer esse algo retornar a uma supostacondio original. O meu entendimento pessoal que o que Schechner prope seria umaoutra forma de descrever a clssica situao cnica. Mas o que me parece interessar paraa performance propriamente dita o carter de re-encenao(reenactment) que j estariaimplcito em todo ato desse tipo.4Disponvel em: . Acesso em: 19 ago. 2013.5 Disponvel em: . Acesso em: 19 ago. 2013.6Os artistas comentados so Daniel Guzman e Luis Felipe Ortega.7Disponvel em: .

    Acesso em: 19 ago. 2013.8Da Revoluo Francesa ao Romantismo, Revoluo Bolchevista, Revoluo surrealista

    e ao brbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos (Andrade, 2011 [1928], p. 68-69).9Jan Swidzinski observa, no seu Lart et son contexte: O que caracteriza esse movimento que mais fcil encontrar um festival internacional [de performance] em lugares perifricostais como Romnia, Eslovquia (Nov Zamky) ou Coria que nos Estados Unidos. Aperformance traa uma nova carta de aes artsticas diferente daquelas de outros tempos(Swidzinsky, 2005, p. 135).10Ver Encontros, de Eduardo Viveiros de Castro(Sztutman, 2007).11A descrio da performance, citada por Auslander: Segurando uma cmara posta distantede mim e pronta para disparar, enquanto caminho por uma linha contnua em uma rua dacidade. Tento no piscar. Cada vez que pisco: uma foto. No original em ingls: Holding

    a camera, aimed away from me and ready to shoot, while walking a continuous line downa city street. Try not to blink. Each time I blink: snap a photo (Auslander, 2006, p. 4).

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    COUTINHO, Liliana. De que falamos quando falamos de performance. Marte, Lisboa,Associao dos Estudantes de Belas Artes/Universidade de Lisboa, n. 3, s.p., 2008.

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    MACHADO, Arlindo.A Iluso Especular introduo fotografia. So Paulo: Brasiliense,1984.

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    Lcio Agra professor, pesquisador e artista da performance. professor na graduao emComunicao das Artes do Corpo da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP, onde tambm lidera o Grupo de Estudos da Performance. presidente da AssociaoBrasil Performance (BrP) com sede em So Paulo. Doutor em Comunicao e Semiticapela PUC-SP, autor de vrios artigos publicados no pas e no exterior. Seu livro mais recenteMonstrutivismo reta e curva das vanguardas,pela editora Perspectiva (2010).E-mail: [email protected]

    Recebido em 04 de setembro de 2013Aceito em 18 de outubro de 2013

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