perdão- uma vivência de liberdade
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PERDÃO Uma vivência de liberdade
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Sílvia Regina Luz Avian Monografia para o curso de formação da
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica – SBPA
VI Turma - 2007
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SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS................................................................................. 02
RESUMO.................................................................................................. 04
INTRODUÇÃO........................................................................................... 05
SINOPSE DO ROMANCE CRIME E CASTIGO................................................. 18
CONCEITUAÇÃO TEÓRICA....................................................................... 23
DIALOGANDO COM A TEORIA.................................................................. 39
CONCLUSÃO........................................................................................... 60
ENCONTRO AMOROSO COM DOSTOIÉVSKI............................................. 66
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 69
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR.......................................................... 71
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao dr. Carlos Amadeu Byington por sua generosa contribuição,
emprestando-me textos e fitas que me ajudaram numa leitura muito particular de sua
teoria.
Agradeço à minha orientadora, Raquel Montellano, por toda sua
compreensão, paciência e dedicação durante a elaboração deste trabalho. Em
encontros riquíssimos, pôde me auxiliar na “tradução” do meu pensar em palavras
escritas. Seu carinho, clareza, força, conhecimento e, principalmente, delicadeza
tornaram o processo da monografia um grande aprendizado.
Agradeço aos amigos queridos, que tanto me apoiaram, cederam,
presentearam e emprestaram-me livros preciosos. Ouviram, questionaram e
contribuíram para esta jornada. Destaco os queridos Iraci, Áurea, Eduardo, Selma,
Lea e Silmara, entre tantos outros.
Agradeço em especial aos meus queridos amigos Fúlvia, Neyde e Victor pela
leitura mais atenta, por suas considerações e ponderações a respeito do tema e da
teoria adotada. Pelo cuidado, amizade, e por estarem sempre presentes em minha
vida.
Agradeço aos meus pais. À minha mãe, pela arte dificílima do humor que
tanto me ajuda nos momentos mais complicados, e a meu pai, por sua sensibilidade,
ponderação e por sua gentileza ao ler meu trabalho, questionando meu “psicologuês”
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e, claro, meu português, assim como por sua cobrança em relação à necessidade de
eu exercitar mais a minha escrita. Muito me ajudam o modo delicado como me
instigam na arte de viver e suas visões sobre a vida.
Aos meus irmãos e sobrinhos, por me darem chance de sempre me rever nas
nossas relações; pelo amor, carinho e o despertar de curiosidades frente à vida.
Agradeço aos professores e supervisores da Sociedade Brasileira de
Psicologia Analítica – SBPA, pelo tempo precioso de minha formação. Deram-me
aporte teórico para poder ousar mais e, principalmente, introduziram-me na arte de
ouvir com a alma.
Agradeço à Miriam, ao Marcos, Jussara, Louremi e Osmar, que me deram um
suporte sem o qual nada teria sido possível. Estavam sempre alertas e preparados
para realizar todos os meus pedidos em relação ao curso. Sempre simpáticos e
solidários.
A todos, meu eterno carinho.
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RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo propor um questionamento sobre o
perdão. O que é, como se dá, quem perdoa e quem é perdoado. Para tal
questionamento, foi necessário um referencial teórico para entender a dinâmica
pecado-perdão em nossa cultura. Escolhi a teoria de Carl Gustav Jung e a teoria
intitulada Psicologia Simbólica Junguiana desenvolvida por Carlos Amadeu Botelho
Byington. O livro Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, foi utilizado com o intuito
de ilustração, com foco no personagem central do romance, Raskolnikov, e em
como, através de uma vivência criminosa, ele conseguiu entender seu processo,
perdoando-se perante a vida. O bem e o mal existem em todos os seres humanos. A
tentativa de afastar o mal para longe de nós nos faz menos inteiros e desconhecidos
de nós mesmos. Trazer o mal para perto, como fez Dostoiévski, nos traz a vivência
de pertencimento ao mundo, como co-responsáveis por tudo o que acontece ao nosso
redor e conosco. O caminho de individuação não é uma via linear nem
preestabelecida, e cada pessoa trilhará o seu.
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INTRODUÇÃO
“Man was born for the sake choice” says an old Hebrew proverb. But how
are we to manage a proper choice between good and evil if we do not have a
reliable standard of what good and evil are? It is possible that it is the effort
toward discernment and choice, not the success, that matters in terms of
psychological and moral development. Perhaps the fundamental problems of
life can never be fully solved. Indeed if ever they should appear to be so, it is
a sure sign that something has been lost. The meaning and purpose of a
problem seems to lie not in its solution but in our working at it incessantly1.
(JUNG, Quadrant, XXXVI:I Winter 2006, p. 40).
Falar sobre o perdão não é tarefa fácil: corre-se o risco de abordar o assunto
nas esferas religiosa ou teórica. Falar e escrever sobre esse tema é um desejo antigo,
um pensar e refletir constante em minha vida pessoal e em minha prática clínica.
Atualmente, na nossa sociedade, fala-se, escreve-se e lê-se muito pouco sobre o
perdão. Meu empenho, neste trabalho, é tentar entender e fazer uma reflexão a
respeito da dinâmica pecado-perdão como uma forma de responsabilidade no
processo de individuação.
Há algum tempo, percebi que o perdão anda meio “fora de moda”. No dia-a-
dia, fala-se muito pouco sobre ele, assim como de outros aspectos da vida interior
psíquica. Com as questões do cotidiano chamando-nos atenção, sobra-nos pouco
tempo para refletir sobre o que nos acontece.
1 “O homem nasceu para esta santa escolha”, diz um velho provérbio judeu. Mas como podemos administrar
uma escolha adequada entre o bem e o mal se não temos um padrão definido do que bem e mal sejam? É
possível que seja um esforço voltado ao discernimento e escolha, não o sucesso, que importa em termos
psicológicos e de desenvolvimento moral. Talvez o problema fundamental da vida possa nunca ser totalmente
resolvido. De fato, se eles pudessem mostrar-se como são, isto com certeza seria um sinal de que algo se perdeu.
O significado e o propósito de um problema parecem recair não em soluções, mas em nosso trabalho sobre eles
incessantemente.
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A rotina acelerada que nos é imposta faz com que ignoremos as dores que
sentimos. Não há tempo para explorar emoções, amadurecer reflexões, dialogar com
o outro ou com nós mesmos. Questiono-me aonde tamanha aceleração nos levará.
Com tantas atividades diárias, com tantas informações, não há espaço para chorar,
refletir, entender a própria dinâmica.
A questão do perdão, assim, é passada às “autoridades competentes”. Haverá
um advogado a interceder por mim perante o juiz que determinará a sentença de
perdão para um delito meu? “São dez salários mínimos para este deslize.” “São
alguns anos de cadeia para aquele outro.” “Pena máxima para esse delito, sem
possibilidade alguma de perdão.” E se acontecer algo que doa profundamente na
alma, algo que não seja mensurável objetivamente? Para algumas pessoas, não
haverá problema também, pois um confessor (padre, rabino etc.) absolverá as culpas
e Deus fará sua justiça. Haverá ainda a possibilidade de se deixar a redenção desse
pecado para uma vida além da morte, seja num inferno eterno, ou até, segundo
algumas filosofias, numa outra vida encarnada em outro corpo.
Mas será que, nas formas citadas acima, realmente haverá a libertação da dor
profunda causada por outrem? Ou ficará sempre a dor latente, e sempre que houver
uma oportunidade, ela reaparecerá com toda a sua força e brilho lembrando o
ocorrido, sangrando a alma através de sua ferida não curada? E aí, o que faremos?
Procurar novamente alguém que interceda em nosso favor, ou esperar que o outro
sofra da mesma dor que sofremos, numa vingança que apenas abranda a dor e não a
cura? Dor esta que nos deixa por meses, anos, décadas prisioneiros de nós mesmos,
de uma cegueira inconsciente de nossas vivências, de nossas psiques; prisioneiros da
não reflexão dos complementares eu-outro, vítima-agressor, pecado-perdão.
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No mundo moderno, vemos a história se configurar deixando de lado parte
significativa da natureza humana. Não se pode falar sobre dor, velhice, sofrimentos,
frustrações, transgressões. Todas essas questões estão fora do vocabulário vigente. O
que vemos é uma quantidade enorme de medicamentos entrando não só para auxiliar
no tratamento de doentes, como também para evitar que pessoas entrem em contato
com o seu mundo interno.
O sofrimento é decorrência da condição humana. Sem ele, não há vida
saudável. Tendemos a afastar tudo o que é ruim ao nosso redor; sufocamos ou
postergamos uma vivência de dor.
Nosso trabalho de analista é, muitas vezes, confundido. As pessoas, em geral,
acham que, vindo ao nosso consultório, encontrarão projetos prontos para as suas
vidas. Acreditam que conhecemos as saídas para seus problemas e, principalmente,
que tiraremos da vida delas todo e qualquer problema que tenham. O sintoma tem de
ser eliminado a qualquer custo, e o preço que pagamos por não olhar para os
símbolos envolvidos nas questões que nos aparecem diariamente é muito alto.
Às vezes, é difícil para nós, analistas e analisandos, sermos “pacientes” no
processo de descobertas que o trabalho analítico pode trazer.
Imaginar que o mal está nos morros cariocas, na corrupção dos políticos, na
periferia paulistana é muito fácil e até mesmo assunto de bate-papos entre amigos.
Ao nos vermos maus, com pensamentos horríveis que não nos diferem em nada dos
criminosos das esferas citadas acima, isso é inadmissível. Quem? Eu?
Na nossa história moderna, há uma tentativa de deixar todos esteticamente
iguais. Compramos a idéia dos áureos tempos “hollywoodianos” em que todos
sorriam, eram felizes, tinham suas casas arrumadas, todos bem alimentados e
educados. No filme A vida em preto-e-branco” (Pleasantville, EUA, 1998, direção
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de Gary Ross), é mostrada exatamente essa imagem plastificada vendida pela
televisão, em que um adolescente com os sofrimentos de sua vida sonha em viver
num mundo perfeito. Ele apenas não imaginava que as emoções estavam deslocadas
na vida dessas pessoas e, por isso, o colorido não existia.
A hoje tão falada expressão “politicamente correto” pode estar escondendo
uma transgressão grave numa persona de pessoa adaptada, coerente com o
pensamento vigente.
Muitas vezes, encontro pessoas que, ao serem questionadas sobre um amigo,
parente ou paciente, respondem: “Ah, fulano está bem, casou, tem dois filhos”. Essa
imagem familiar perfeita para nosso padrão atual parece também levar as pessoas à
normalidade e à sanidade – pois, quando não nos encaixamos nesse padrão, somos
vistos como transgressores das normas.
Para algumas pessoas, a idéia de que o caminho de individuação é linear e
bonito, uma vez que o Self sabe o que é melhor para nós, é algo que soa acalentador.
Porém, o caminho de individuação, por ser único, irá transitar pelo caminho possível
– que nem sempre é bonito ou saudável, como no caso de Raskólnikov, o
personagem central de Crime e castigo, de Dostoiévski, cujo processo de
individuação passou pela transgressão, devido à sua história conturbada.
A psicopatia existe em todos nós. Ela causa mal, questiona regras, leva às
reflexões pessoais e nos expõe como co-autores dos problemas mundiais. As guerras
no Oriente Médio, a fome no continente africano, as sete maravilhas do mundo, o
humor, o choro, tudo nos pertence de forma individual ou coletiva.Por outro lado,
normatizar a pluralidade humana deixa o mundo menos criativo. A necessidade de se
ver o bom longe do mau; afastar o sofrimento enaltecendo a alegria; engrandecer a
juventude, tirando de circulação a velhice; abolir a transgressão do processo natural
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de vida; tudo isso castra o ser humano, debilita-o, deixa-o cindido e extremamente
empobrecido.
Certo dia, ouvi a seguinte citação de um repórter, que vem ilustrar exatamente
o que escrevo: “Feliz daquele que pode assumir que um dia acorda como Pitanguy2, e
outro como Hosmany3.” A referência ao Dr. Jekyll e a Mr. Hyde, de O médico e o
monstro, é clara. O bem e o mal existem dentro de cada um de nós e basta
oportunidade para que apareçam.
Minha intenção é mostrar que o processo de individuação pode passar
também pela transgressão e como a aceitação e a compreensão dessa transgressão
pode levar ao perdão e, portanto, à libertação.
Escolhi o romance Crime e castigo para ilustrar meu trabalho, mostrando
como Raskólnikov, com sua transgressão criminosa, consegue encontrar sua anima, a
fé e, ao perdoar-se, torna-se um homem livre. O personagem principal da história é
um sofredor, um homem preso a seus complexos; sua problemática é compartilhada,
em níveis diferentes, pela sua família. Um homem atormentado que comete um
crime bárbaro e, ao compreender seu processo individual, encontra a paz do perdão.
Dostoiévski, ao trazer o mal para dentro do ser humano, mostra o sombrio.
Humaniza Raskólnikov, revelando a polaridade existente entre o bem e o mal. Ao
nos depararmos com o personagem, ele é o criminoso de quem nos apiedamos; é, ao
mesmo tempo, caridoso e monstro cruel que assassinou duas senhoras indefesas. É
nessa polarização que poderá existir a possibilidade do diálogo interno no processo
de elaboração simbólica.
2 Dr. Ivo Pitanguy, cirurgião plástico, reconhecido mundialmente por sua prática clínica e capacidade médica.
Mantém no Rio de Janeiro um setor de cirurgia plástica para pacientes carentes. Ocupa, ainda, a cadeira número
22 da Academia Brasileira de Letras. 3 Dr. Hosmany Ramos, cirurgião plástico, foi assistente do dr. Ivo Pitanguy. Em 1981, foi preso, condenado por
homicídio, roubo e tráfico de drogas.
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Ao se colocar como sujeito e vítima de seu processo, Raskólnikov coloca na
dinâmica bem-mal a integração da polaridade criada na sua personalidade. Ao
integrar o mal, entender sua personalidade, saber o motivo de ter cometido o crime,
pôde dar abertura à compreensão maior de seu estar no mundo, podendo-se perdoar
do ato cometido.
Na minha vida profissional e pessoal, deparei-me inúmeras vezes com
traições, pecados, vinganças. E o perdão para os ditos pecados? Ele aparece nos
moldes social e religiosamente conhecidos que citei anteriormente: “Perdôo, mas....
que a justiça dos homens e a divina sejam feitas”.
Há uma linha tênue que divide a vítima do pecador, mas... quem é a vítima?
Quem é o pecador? Cito a crônica de Jorge Luis Borges intitulada “Lenda”, que diz:
Abel e Caim encontram-se depois da morte de Abel.
Caminhavam pelo deserto e reconheceram-se de longe, porque os dois eram
muito altos. Os irmãos sentaram-se na terra, acenderam o fogo e comeram.
Guardavam silêncio, à maneira das pessoas cansadas quando declina o dia.
No céu assomava uma estrela que ainda não tinha recebido seu nome. À luz
das chamas, Caim percebeu na testa de Abel a marca da pedra e deixou cair
o pão que estava prestes a levar à boca e pediu que lhe fosse perdoado seu
crime.
– Tu me matastes ou eu te matei? – Abel respondeu. – Já não me lembro;
aqui estamos juntos como antes.
– Agora sei que me perdoastes de verdade – disse Caim, porque esquecer é
perdoar. – Procurarei também esquecer.
– É assim mesmo – Abel falou devagar – Enquanto dura o remorso, dura a
culpa. (BORGES, 2001, p. 74)
Para falar sobre o perdão, vi a necessidade de procurar o que se entende por
pecado, ofensa, culpa, traição etc. e, assim, poder caminhar melhor pela dinâmica
pecado-perdão.
O que é, realmente, o pecado? Pode ser cultural? Pode ter uma dimensão
temporal? O pecado é sempre claro? Pecado e traição são a mesma coisa? Pecado,
ofensa, traição e culpa estão juntos? A que vêm e por que vêm?
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Ao procurar no dicionário Larousse cultural, obtive esta definição de
pecado: “É uma transgressão de preceito religioso, culpa e maldade” (LAROUSSE,
1999, p. 698).
Para que se entenda o que vem a ser pecado, é necessário saber qual o
conjunto de regras vigentes, o que é certo e o que é errado para uma cultura ou um
credo religioso. Ao longo da história da humanidade, o conceito de pecado se
transforma. A humanidade evolui, e os conceitos se adaptam a novas regras. Uma
transgressão cometida há décadas, séculos ou milênios pode muito bem não ser tida
como um delito; já outras foram e ainda podem ser vistas como crimes ou pecados.
Há uma diferença entre pecado e ofensa. Mais freqüentemente, usa-se a
palavra pecado para questões da esfera religiosa, mas ofensa também é um termo
usado no âmbito religioso, como nos mostra a oração do Pai Nosso, que diz:
“Perdoai as nossas ofensas”.
Pecado também é sinônimo para delitos de todos os tipos, como traições,
erros civis etc. Muitas vezes ouvimos: “Este foi o seu pecado”. Como acredito que a
palavra pecado seja mais abrangente para este trabalho, a empregarei para todas as
injúrias em relação à alma.
Também no Larousse cultural, a definição de ofensa seria: “a) palavra, ação
que fere alguém na sua dignidade; b) injúria, difamação, ultraje, agravo; c)
transgressão, violação de regras, falta, pecado; d) menosprezo, desconsideração”.
No mesmo dicionário, encontra-se o verbete culpa:
É a violação ou inobservância de uma regra de conduta que produz lesão do
direito alheio, falta voluntária de diligência ou negligência, ato de
imprudência ou imperícia sem propósito de lesar, mas que causou a outrem
ofensa ou dano de seus direitos, delito, responsabilidade e causa de um mal.
(LAROUSSE, 1999, p. 282)
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Para a palavra traição, encontrei a seguinte definição: “Ato ou efeito de trair,
ser infiel, deslealdade”.
Procurando em outras fontes, deparei-me com a definição de traição no livro
Amar trair. Lá diz:
traio vem do latim trado, que é composto de trans e do (dor), que significa
passo de uma mão a outro, ato de entregar nas mãos de alguém (para guarda,
proteção, castigo). Na forma reflexiva, se tradere, significa abandonar-se a
alguém, dedicar-se a uma atividade. (CAROTENUTO, 1997, p. 20).
Traição, então, seria o ato de entregar-se ou abandonar-se a alguém.
Surgiu-me, então, a questão: se trair, segundo a definição acima, significa
entregar-se ao outro, abandonar-se ao outro, o pecado seria então cometido por dois,
na dialética eu-outro? Parece que sim, pois eu me abandono ao outro, entrego algo
que irá me trair; o ato da entrega de algo meu, ou de mim mesmo, irá me trair.
Jung, no livro Psicologia e alquimia. diz:
Sabemos sem dúvida que sem o pecado não há arrependimento e sem
arrependimento não há graça redentora; sabemos também que sem peccatum
originale o ato de redenção do mundo jamais teria ocorrido. (JUNG, 1994,
par. 36)
E Jung continua, no mesmo parágrafo: “[...] acaso representa o poder do mal
uma vontade especial de Deus?” Entendo, portanto, que o pecado faz parte do
desenvolvimento humano; ele é importante para a reflexão no processo individual.
E o perdão?
Seguindo a definição, ainda, do mesmo dicionário da língua portuguesa: “1)
perdão é a remissão de uma falta ou ofensa, desculpa, indulto. 2) Fórmula de polidez
empregada quando se perturba alguém: (peço) perdão” (LAROUSSE, 1999, p. 706).
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Segundo o Código Penal, artigo 107, incisos V e IX, o perdão refere-se à
desobrigação da dívida por ato espontâneo do credor ou da desobrigação jurídica do
cumprimento da pena. No direito penal pátrio, a figura do perdão se manifesta de
duas formas distintas: trata-se do perdão do ofendido e do perdão judicial; instâncias
bastante diversas, embora ambas resultem na extinção da punibilidade do agente.
O perdão do ofendido é movido por uma ação penal privada, desde que não
haja dolo contra a sociedade ou dolo contra uma pessoa, com ou sem danos morais e
físicos graves. Tal perdão só extingue a punibilidade do agente nos crimes de ação
penal privada, ou seja, uma vez iniciada a ação penal privada, pode o ofendido
perdoar o ofensor, o que extingue o direito de punir do Estado. Nesse caso, o perdão
só produz efeitos se houver a aceitação por parte do ofensor, o qual poderá recusar o
perdão. Uma vez aceito o perdão, estando extinta a punibilidade, não pode o
ofendido voltar atrás.
O que é interessante nesse perdão do ofendido é que ele se torna uma via de
mão dupla, pois tanto o ofendido precisa perdoar como o ofensor necessita aceitar o
perdão. Caso contrário, haverá uma ação pública maior que decidirá a pena, pois o
perdão judicial não precisa de aceitação do réu para surtir efeito. Em direito penal, o
perdão da parte ofendida não anula a inculpação ou incriminação da pessoa que
ofendeu, apenas livra-a da sansão penal.
De acordo com a Bíblia Sagrada, o perdão é classificado de duas maneiras:
o perdão humano e o perdão divino.
No Novo Testamento, o perdão humano, em todas as suas formas, está
vinculado de alguma maneira ao perdão divino ou no que aprendemos dos
ensinamentos divinos:
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A hora da oração é a hora de perdoarmos aos nossos inimigos; perdoar aos
que nos pedem perdão é um ato sem limites; perdão é uma obrigação do
cristão; perdão é um mandamento; não seremos perdoados se não
perdoarmos. Os dois pilares do cristão são dar e perdoar (BÍBLIA, 1995).
Ainda no Novo Testamento, há várias passagens que nos falam sobre o
perdão. Destacarei a seguir algumas delas.
O perdão de Deus está condicionado à confissão. Foi Deus quem instituiu o
perdão, e Jesus Cristo é nosso exemplo em perdoar, conforme Lucas 23:34, que fala
dos últimos momentos de Cristo – desde sua prisão até a crucificação –, quando
Jesus diz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
O homem é fruto de Sua imensa graça, e o perdão divino é baseado na mais
perfeita justiça. Conforme Lucas (11:34-36): “A lâmpada do corpo é o olho. Se, pois,
o teu olho está são, teu corpo inteiro estará na luz. Mas se teu olho está doente, teu
corpo inteiro estará nas trevas. Se, pois, a luz que há em ti é trevas, que trevas!”
Temos também outra passagem importante, sobre a dinâmica pecado-
pecador, que aparece em João 1:9, quando cita a respeito da mulher adúltera. Jesus
foi para o Monte das Oliveiras e, ao clarear o dia, começou seus ensinamentos
inclinando-se e escrevendo com as pontas dos dedos no chão, como sempre fazia. Os
escribas e os fariseus apareceram então com uma mulher que fora surpreendida em
adultério e a colocaram no meio do grupo. “Mestre, disseram-lhe eles, esta mulher
foi surpreendida em flagrante delito de adultério. Na Lei, Moisés nos prescreveu
apedrejar tais mulheres. E tu, que dizes a este respeito?” Jesus continuou seu
ensinamento aos discípulos, até ser interrompido novamente para que desse a
resposta. Foi quando disse: “Aquele dentre vós que nunca pecou atire-lhe a primeira
pedra”. E inclinou-se, voltando à sua aula. Após ouvirem a frase de Cristo, os
escribas e fariseus se retiraram. Jesus se reergueu e indagou: “Mulher, onde estão
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eles? Ninguém te condenou?”. E ela respondeu: “Ninguém, senhor”. E Jesus lhe
disse: “Eu também não te condeno. Vai e doravante não peques mais”.
Nessa passagem, Jesus é a lei e dá a todos a possibilidade do livre-arbítrio.
Está nas mãos de cada um decidir o certo e o errado, pecado ou não. Ao dizer à
mulher para não mais pecar, está dizendo que ela poderá decidir o que é bom ou ruim
para si mesmo; que poderá distinguir o bem do mal para aquele fato ocorrido. Para
Ele, o pecado dá ao pecador a possibilidade de arrependimento, podendo transformar
e salvar sua alma.
Byington, em Nosologia psiquiátrica, diz: “O pecado para Jesus não é
somente uma disfunção da verdade, mas também o agente transformador, que, se
compreendido na sua deformação, nos leva à construção criativa da Consciência”
(BYINGTON, 2003b, p. 3).
Nosso ouvir está mais habituado às falas daqueles que foram machucados
ou traídos. Pouco ouvimos o lado de quem machucou e como é sua própria dor e
perdão. O que pouco se questiona é o quê de cada um existe no ato do pecado. Será
que o pecador sai impune de um pecado cometido? Ouço várias vezes, no
consultório, pessoas que não se perdoam por algo que fizeram aos outros, o que as
leva a um sofrimento enorme. Ouvir suas “confissões” a respeito do que fizeram, e o
mal que gerou nelas próprias e nos outros, parece não ter lugar no mundo fora de
espaços reservados para tais confissões.
O livro Amar trair faz referência ao pecado como não havendo outra forma
de nascer para o mundo senão pecando. O homem tem necessidade de acreditar na
existência de um paraíso, mas pensa no paraíso sem dualidade, um lugar onde só
existiria o bom e a plenitude. Esse paraíso, no entanto, só existe na mente humana.
Se houver a crença de que sempre haverá o bom por perto, e o ruim ficar fora das
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próprias relações, a vida será vivida apenas numa polaridade e não haverá o
confronto com a própria sombra e seus aspectos ruins. O bom e o ruim existem
dentro de cada um. (CAROTENUTO, 1997, p. 2, 3 e 30.)
O medo da traição nos faz mais humanos e conscientes de que existem
perigos. A pessoa que não tem medo de ser traída corre riscos. Isso reforça, portanto,
minha idéia de pensar o perdão na alteridade: o que entreguei ao outro (pensando na
forma reflexiva do verbo trair, na definição de Aldo Carotenuto descrita no início);
amplia a idéia de perdão não só ao outro, mas principalmente a mim, quando me
coloco ativamente no pecado. Como diz a música Mil perdões, de Chico Buarque de
Hollanda: “Te perdôo por te trair” (da peça de Nelson Rodrigues intitulada Perdoa-
me por me traíres).
O perdão é uma função pouco falada e não temos tempo para refletir sobre
ela. É muito trabalhoso questionar e mudar um conjunto de regras próprias para se
adequar a novas. É pedido, então, a um interlocutor, um intermediário, que interceda
por mim, me alivie da dor, enfim, que “faça o seu trabalho” para irmos em frente,
pois nosso tempo é valioso e não temos tempo a perder. Será? Quando alguém lhe
contar que viu a(o) ex-amada(o) “chorando e bebendo na mesa de um bar”, como na
música Vingança, de Lupicínio Rodrigues, será que vai ficar morrendo de prazer e
gritar: “Mas enquanto houver força em meu peito, eu não quero mais nada. Só
vingança, vingança, vingança aos santos clamar”?
É aí que se percebe que o perdão foi o convencional, hierárquico como no
patriarcal, mas não de alma, como na alteridade.
Até este ponto, coloquei a dinâmica pecador-vítima ocorrendo entre duas
instâncias separadas, que podem ser em várias combinações, como duas pessoas,
uma pessoa e a sociedade, uma pessoa ou Igreja etc. Mas como seria se a vítima e o
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pecador (pecado e perdão) fizessem parte da mesma pessoa? Como é articular a
questão do perdão quando eu sou o grande pecador que causei um mal a mim
mesmo? É difícil retirar-se toda e qualquer culpa que possa recair sobre o outro e
perceber que o grande culpado de minha dor sou eu mesmo.
No processo de individuação, seria possível voltar ao próprio eixo por meio
de funções criativas, convivendo com a dor e a miséria que a sombra carrega.
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SINOPSE DO ROMANCE CRIME E CASTIGO
Dostoiévski foi um gênio da literatura, um escritor fantástico em sua época,
e o romance Crime e castigo está entre os grandes livros da história universal. Com
sensibilidade e habilidade, construiu personagens que ultrapassam períodos
históricos, ricos em suas descrições e profundidade de alma. Foi com imensa
maestria que o autor abordou características psicológicas ainda não vistas na questão
de culpa e punição.
Dostoiévski traz o mal para dentro do ser humano, mostra o sombrio,
humaniza Raskólnikov revelando a polaridade existente entre o mal e o bem. Nessa
relativização do personagem, existe a possibilidade do diálogo interno no processo
de elaboração simbólica.
O autor russo também acreditava que as grandes questões humanas só
poderiam ser tematizadas por meio das artes. A relação do homem com o artístico,
com sua cultura e suas raízes é ponto significante. Ele também retrata o homem no
sentido da humanidade, mas poderíamos falar do ponto de vista de um homem
olhando para sua anima, e da importância da vivência erótica em contrapartida à
vivência intelectual.
Crime e castigo, escrito em 1866, foi o primeiro romance de Dostoiévski a
ser levado e traduzido para a Europa Ocidental. A história se desenvolve em São
Petersburgo, no final do século XIX, época de grande ebulição sociopolítica.
O personagem principal, Raskólnikov, é um rapaz de origem humilde que
sai de sua cidade natal para ingressar na renomada faculdade de direito em São
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Petersburgo. Ao chegar à cidade, hospeda-se numa pensão e leva uma vida rotineira
de estudante pobre. Vivia precariamente de uma quantia enviada, quando possível,
por sua mãe viúva.
Raskólnikov fazia pequenas traduções e escrevia alguns artigos para
aumentar sua renda mensal. Em um desses artigos, fala dos homens ordinários (que
irão servir à sociedade) e homens extraordinários (que ditarão os costumes e regras
da sociedade).
Após abandonar todas as suas atividades, o jovem recolhe-se em sua pensão
de quinta categoria e passa a viver miseravelmente. Quando precisa de ajuda
financeira, recorre a Alena, com quem penhora objetos de pequenos valores.
Alena vive com uma irmã, Isabel, a quem trata como escrava. Sempre que
pode, humilha as pessoas que dela necessitam, entre elas o próprio Raskólnikov, que
se sente demasiadamente humilhado a cada encontro. Ele, então, pensa numa forma
de matá-la, acreditando que com isso estaria fazendo um bem a todos, eliminando-a
da sociedade.
Ao entrar num bar para beber, o rapaz encontra um bêbado, chamado
Marmeladov, que estava sendo ridicularizado por todos que se encontravam no local.
Esse homem conta a Raskólnikov todas as mazelas de sua vida, fala do alcoolismo,
da difícil situação econômica que vive, do casamento conturbado e da filha que teve
de se prostituir para alimentar a todos. Essa conversa deixa o jovem extremamente
impressionado.
Marmeladov é casado com Ekatierina, tísica e viúva de um aristocrata com
quem teve três filhos. No primeiro casamento, Marmeladov teve uma filha, Sônia.
Ela foi empurrada para a prostituição devido à situação de profunda miséria na qual
viviam. É uma moça sem grandes atrativos físicos e muito calada.
22
A seguir, Marmeladov é atropelado por uma carruagem e sofre ferimentos
muito graves. É então levado para sua casa, e Raskólnikov é chamado para prestar
ajuda ao homem já agonizando, mas este não resiste aos ferimentos e morre. O rapaz
dá alguns poucos trocados à viúva para o velório e o enterro.
No velório de Marmeladov, Raskólnikov é apresentado a Sônia e fica muito
impressionado com aquela mulher, que gera nele certa curiosidade.
Apesar de encontrar Marmeladov e de toda a relação que se estabelece entre
eles, Raskólnikov não desiste de seu intuito de cometer o crime. Alena é brutalmente
assassinada por ele com golpes de machado. Isabel, que não se encontrava em casa,
retorna e vê a irmã assassinada no chão. A seguir, encontra seu agressor, que, sem
piedade, mata Isabel da mesma forma que fez com Alena.
Algum tempo depois, Raskólnikov encontra um antigo colega de faculdade,
Razumikin, que será seu fiel companheiro dali por diante. Ao ver o amigo em
péssimo estado, Razumikin lhe oferece um texto para tradução, pensando em dar
algum dinheiro ao amigo sem ofendê-lo. Raskólnikov, no entanto, sai da casa muito
irritado com a postura de seu amigo.
Com a chegada da mãe e da irmã de Raskólnikov a São Petersburgo,
Razumikin será um importante personagem na ponte da família com o amigo:
apaixona-se pela formosa irmã de Raskólnikov, Dunia, com quem se casa tempos
depois.
Posteriormente, Raskólnikov conhece o juiz Lujin, com quem trava
discussões filosóficas. O juiz havia lido seu artigo sobre homens ordinários e homens
extraordinários e ficara impressionado.
Esse juiz, porém, descobre que o rapaz é o autor do duplo assassinato e
chama-o para uma conversa em seu gabinete. Mas quando está para dar a ordem de
23
prisão, surge um pintor de paredes que confessa o crime contra as duas senhoras.
Raskólnikov, assim, fica temporariamente livre da prisão.
Com Sônia, no entanto, Raskólnikov consegue se abrir e conta-lhe sobre o
crime cometido. Aconselhado por ela a se entregar à polícia, é julgado e condenado a
trabalhos forçados na Sibéria. Sua pena é atenuada para dez anos, uma vez que tinha
bons antecedentes pessoais. Sônia também se muda para a Sibéria, a fim de ficar
mais perto do amado, e lá permanecerá até o final da pena.
A mãe de Raskólnikov desconhece o crime e a prisão do filho. Para poupá-
la, a filha e o genro resolvem se mudar para uma outra cidade. Sozinha, ela fica senil
e nunca mais irá revê-lo. Acaba por falecer alguns meses depois de sua prisão.
Sônia freqüentemente visita seu amor no cárcere. Durante o inverno duro da
Sibéria, Raskólnikov fica doente e é internado num hospital. Em apenas duas
ocasiões, ela teve permissão de visitá-lo no quarto e, nos outros dias, permanecia em
vigília no pátio do local.
Certo dia, ao olhar pela janela, Raskólnikov vê aquela moça velando por sua
saúde e percebe que algo havia mudado nele. Ao voltar para a prisão, percebe a falta
que Sônia lhe faz. Doente, ela fica algumas semanas sem ir visitá-lo. Esse
afastamento deixa-o temeroso de nunca mais poder vê-la. Assim que melhora, ela vai
visitá-lo num dia calmo.
De repente achou-se na presença de Sônia. Ela aproximara-se sem ruído e
sentou-se ao seu lado. O frio da manhã ainda se fazia sentir. Sônia trazia o
seu velho albornoz e o lenço verde. Ao chegar junto dele sorriu, mas,
segundo o costume, foi com timidez que lhe estendeu a mão. Às vezes até
não ousava estendê-la, como se receasse vê-la repelida. Ele parecia sempre
apertá-la com repugnância, mostrando-se agastado quando ela chegava,
algumas vezes, e não lhe dizia uma só palavra. Havia dias em que ela tremia
diante dele e se retirava aflita. Mas desta vez as suas mãos apertaram-se
prolongadamente. Raskólnikov olhou para ela, não disse uma palavra e
baixou os olhos. Estavam sós, ninguém os via. O guarda afastara-se
momentaneamente.
24
Subitamente e sem que ele mesmo soubesse como, uma força invisível
lançou-o aos pés da moça. Abraçou-lhe os joelhos chorando. No primeiro
momento ela ficou assustada e pálida. Levantou-se vivamente e a tremer
olhou para Raskólnikov. Mas bastou-lhe esse olhar para compreender tudo.
Uma felicidade imensa se via nos seus olhos radiantes; não podia já duvidar
de que ele a amava com um amor infinito, finalmente. (DOSTOIÉVSKI, 1998, p. 565.)
É durante o cativeiro que ambos irão encontrar o amor verdadeiro,
propiciando a total transformação de Raskólnikov.
25
CONCEITUAÇÃO TEÓRICA
Para falar sobre o perdão, vou me basear na teoria de Carl Gustav Jung e na
teoria de Carlos Amadeu Botelho Byington intitulada Psicologia Simbólica
Junguiana. Começo esboçando a teoria de Byington, que muito tem me ajudado na
reflexão e na compreensão do tema.
A Psicologia Simbólica Junguiana aborda quatro dinamismos psíquicos: o
matriarcal, o patriarcal, a alteridade e a totalidade, cada um com seu arquétipo
regente.
No dinamismo matriarcal, a vivência relacional do ego-outro é vivida de
forma insular. Na consciência são formadas ilhas de desejo e lógica que têm suas
próprias características, podendo, às vezes, parecer não combinarem racionalmente.
Em A psicopatologia e o processo de humanização, encontramos: “A causalidade
mágica refere-se a uma explicação causal do funcionamento da realidade dentro da
subjetividade” (BYINGTON, 2003b, p. 24). O arquétipo regente desse dinamismo é
o da sensualidade, que irá expressar os inúmeros símbolos ligados a ela, à fertilidade,
à sobrevivência, à preservação da cultura popular e à construção da identidade
pluricultural.
No dinamismo patriarcal, a relação ego-outro é vivida de forma polarizada,
hierárquica, formando sistemas lógicos operantes e vigentes na sociedade. A tensão
formada entre essa polaridade vai formar os fatores qualitativos de relação entre
objetos (bom-mau, pecador-vítima, feio-bonito, certo-errado). A tensão vivida pela
hierarquia da polaridade ego-outro formará um relacionamento dominado-dominador
26
imposto pela exigência, culpa e desafio. O arquétipo regente desse dinamismo será o
da organização, ligado à ordem, às leis, ao planejamento e à execução.
Segundo Byington:
Essas características já são suficientes para percebermos que os padrões
matriarcal e patriarcal, por causa da natureza tão diametralmente oposta da
sua inteligência, com a qual coordenam os símbolos e funções estruturantes,
estão sujeitos a imensos atritos na disputa do espaço da elaboração
simbólica. (...) É nesse campo extraordinariamente disputado pela polaridade
extrema dos padrões matriarcal e patriarcal que opera o terceiro arquétipo
regente, o Arquétipo da Alteridade (BYINGTON, 2003a, p. 132).
No dinamismo da alteridade, há a necessidade de o ego buscar no outro a
própria representação, estabelecendo, portanto, uma relação dialética entre os
opostos. Nesse dinamismo a busca não é pela igualdade, mas, sim, pela significação
dos direitos na totalidade. Os arquétipos regentes desse dinamismo são a anima (nos
homens) e o animus (nas mulheres), responsáveis pelo encontro eu-outro. Eles irão
elaborar as polaridades dos símbolos com as características da busca, da criatividade
e do relacionamento dialético. Os arquétipos da alteridade irão ampliar a consciência,
propiciando a percepção do funcionamento do todo englobando a dialética existente
entre as polaridades como subjetivo-objetivo, bem-mal, certo-errado etc.
Alteridade não busca a igualdade das partes e sim oportunidades e direitos
iguais para a interação e expressão de suas diferenças. Como escreveu Rui
Barbosa: “Nada mais injusto do que rotular de iguais seres diferentes”.
Somente a natureza tão dialética e criativa do Arquétipo da Alteridade é
capaz de buscar a interação democrática entre a polaridade matriarcal-
patriarcal junto com as demais polaridades. (BYINGTON, 2003a, p. 132).
Todo esse movimento se dá por meio do princípio da sincronicidade, função
estruturante que dá a capacidade de relacionar significativamente o mundo interno e
27
externo com suas realidades subjetivas e objetivas. E, com isso, propicia a
consciência dialética da alteridade.
Nas passagens bíblicas citadas na introdução, temos exemplos de perdão no
dinamismo da alteridade, pois a confissão é parte fundamental na reflexão eu-outro,
onde eu falho com o outro e o outro falha comigo. Com que olhos olho o mundo? Se
com olhos de vítima, o outro só poderá ser o agressor ou culpado. Se com olhos de
culpado, o outro só poderá ser a vítima. Mas se olho com olhos de co-autor, divido
com o outro o ônus de culpa, traição, pecado e poderei me perdoar pela ofensa.
Assim estarei perdoando o outro também.
O dinamismo da totalidade é o mais complexo de todos, o que não significa
que seja o mais importante – mas, sim, o de maior complexidade, uma vez que
demanda do indivíduo uma visão global do símbolo. É nesse dinamismo que teremos
a síntese das vivências dos conflitos interagindo no processo de realização do ser. Na
descrição desse dinamismo, Byington afirma:
Essa posição coroa o Processo de Elaboração Simbólica e está muito bem
expressa na mandala do Taoísmo (tai-chi), que reúne o branco e o preto
dentro de um círculo chamado A Última e Suprema Realidade. Para
aperfeiçoar com requinte oriental a união dos opostos dentro do Todo, no
meio da área preta há um ponto branco e vice-versa. As civilizações antigas
da Índia, da China, do Japão e do Tibete cultivam a posição contemplativa
por meio das práticas de meditação. A sabedoria dessa prática está em seu
exercício propiciar um período diário no qual ritualizamos o desapego da
elaboração simbólica em curso nas demais posições e entramos em contato
direto com o Todo (BYINGTON, 2003a, p. 146).
O arquétipo da totalidade será o sintetizador das dialéticas das polaridades e
funcionará na posição contemplativa, buscando uma vivência permanente do Todo;
ajudará na abstração das polaridades para poder perceber o Todo.
28
É importante percebermos a polaridade que existe entre os padrões de
alteridade e de totalidade, ainda que num plano bem diverso daquele que
ocorre entre os padrões matriarcal e patriarcal, já que, apesar de a alteridade
desapegar-se da identificação com a sensualidade matriarcal e com o poder
patriarcal, ela é profundamente engajada na tentativa de interagir
democraticamente as partes na busca da sua integração com o Todo. Já o
padrão de totalidade busca uma abertura do Ego para vivenciar o Todo em
determinado momento do desenvolvimento. (BYINGTON, 2003a, p. 133).
Dividirei a seguir a relação dialética pecado-perdão nos dinamismos
matriarcal, patriarcal, alteridade e totalidade. Byington explica os dinamismos nessa
seqüência, mas reforça que os quatro estão presentes juntos e operantes durante toda
a vida, ficando mais intensos em determinados momentos por uma ordem evolutiva
do desenvolvimento pessoal. Para que eu possa elaborar meu raciocínio da melhor
forma, enfocarei o dinamismo da alteridade depois da totalidade, uma vez que meu
foco do perdão estará mais centrado na alteridade, onde me estenderei mais.
Por ser o perdão parte da psique humana, arquetípico, não é temporal,
cultural, nem religioso.
No dinamismo matriarcal, o pecado é vivido de uma forma mais difusa. A
dor vivida é enorme e o prazer do pensar vingativo idem, dando lugar a uma
vingança sem “filtro” e imediata. Em algumas situações, a vingança parece ser mais
violenta no seu potencial energético do que o ato cometido per se. A traição maior,
nesse dinamismo, seria o pecado cometido contra o princípio do desejo; é a
interrupção abrupta da conexão entre querer-poder, implantando, no lugar, o
desespero.
O perdão, no dinamismo matriarcal, é vivido também no princípio do
desejo. O outro ficará à disposição do ego, em função do meu querer. É a vivência
condicionada ao desejo da parte dita lesada. A idéia de que a “mãe” recebe todos de
braços abertos incondicionalmente é facilmente confundida com a vivência
29
matriarcal. Para se ter o perdão nesse dinamismo, é necessário que se cumpra uma
série de exigências dentro do desejo de quem sofreu o pecado.
No dinamismo patriarcal, há o pecado dentro de um conjunto de regras
vigentes do que é certo e errado. Quando há a perda da confiança no outro, algo se
parte e quebra na relação, não havendo conserto para isso. “Perdôo, mas quero o
pecador longe de mim; compreendo até o que levou o outro a cometer o que
cometeu, mas não há mais possibilidade de entrega total.”
O perdão aqui vem de forma hierárquica e, muitas vezes, acompanhado de
prepotência e arrogância, causando humilhação ao outro. Dentro das religiões,
alguém irá interceder ante o divino, a absolvição. Mas a “trinca” da desconfiança
estará lá e poderá vazar o líquido do ódio ou vingança a qualquer momento.
No próprio Gênesis do Antigo Testamento, Deus fica tomado por uma ira
enorme quando Eva e Adão comem o fruto da árvore proibida e impõe a eles um
castigo enorme, com dores morais e físicas. Algumas religiões, ou filosofias,
colocam essa mesma forma de punição do Antigo Testamento como a única maneira
de se obter o perdão divino; a única forma de redenção é impor que o “agressor”
passe pela mesma dor que foi causada ao “agredido”.
No islamismo, vigora a Lei do Talião, que consiste na justa reciprocidade do
crime e da pena, comumente simbolizada pela expressão: “Olho por olho, dente por
dente”. Algo como: aquele que roubou terá as mãos decepadas; aquela que traiu o
marido morrerá com pedradas etc. Na filosofia espiritualista, existe a lei cármica, na
qual o que é feito como pecado numa vida é vivido na voz passiva numa vida
seguinte, na reencarnação. Ou seja: terei de ser punido com meu próprio deslize; se
causei algum mal a alguém, deverei viver a dor provocada para poder entender o
sofrimento alheio. A vivência da dor que foi provocada no outro levará ao
30
crescimento moral e espiritual. A justiça é vivida hierarquicamente, em que o outro
me impõe a condenação para a redenção.
Para a vítima, o mal está sempre fora, longe e muitas vezes aprisionado nas
figuras preconceituosas de sexo, raça, religião, opção sexual etc. Na discografia
popular brasileira, existe um repertório imenso de músicas que falam sobre
abandonos, traições, vinganças, Por exemplo, o trecho da música de Lupicínio
Rodrigues: “Eu gostei tanto, tanto quando me contaram que lhe viram chorando e
bebendo na mesa de um bar”.
Passar anos, ou décadas, na expectativa de que o “pecador” sofra da mesma
dor que se sentiu é uma prisão. Tal prisão não tem tamanho e o preço pago é muito
alto, pois é a vida que está sendo tolhida de sua plenitude.
No dinamismo da totalidade, o pecado ocorre na síntese feita na alteridade.
Seria a estagnação na dialética, não conseguindo abstrair para que se possa ter a
posição contemplativa do todo. O perdão, nesse dinamismo, se dará na possibilidade
de deixar-se às direções do todo, observar-se o curso natural da vida. Na passagem
de São Francisco de Assis, quando ele diz ao Senhor: “Qual é a minha próxima
tarefa?”, ele está entregue ao todo, está numa posição contemplativa, esperando o
curso natural da vida e a serviço dela (BOFF, 1999, p. 72-133).
No dinamismo da alteridade, o pecado cometido não está polarizado. O que
foi cometido tem como participantes ativos o eu e o outro, os dois como co-
responsáveis pelo que ocorreu, não havendo a polarização hierárquica de bem-mal,
mas, sim, a relação dialética entre os opostos. O que é de um está envolvido no
pecado cometido pelo outro. O pecado nem sempre é apenas regido pelos padrões
sociais, mas também pelos padrões pessoais; nem sempre o que é uma dor para um
será para outro. Essa reflexão leva à vivência de ódio, raiva, culpa e responsabilidade
31
para poder vir o próprio perdão e, conseqüentemente, o perdão ao outro,
independentemente do caminho feito pelo outro.
O perdão aqui entra libertando a pessoa da vivência cristalizada e polarizada
de passividade na vida, onde o outro tem sobre mim uma assimetria; ele pode tudo,
enquanto eu só recebo o mal. Por mais que possa existir um referencial externo que
me perdoe ou me condene, não será suficiente para transformar a alma; a dor
continuará latente e, com ela, continuará adormecida a sombra contida no ato,
havendo a necessidade de uma compreensão do fato (fenômeno) ocorrido.
A diferenciação do ego acontece dentro do Self por meio da polaridade eu-
outro. Tal diferenciação poderá ser constituída criativamente no campo da
consciência e de modo defensivo no campo da sombra.
O Self familiar é um dos sistemas estruturantes que irão contribuir para a
formação e transformação da identidade durante toda a vida. Por ser o Self a
totalidade psíquica, é ele quem dirige o processo de individuação que levará cada um
à sua especificidade de ser único no mundo.
Os papéis familiares estruturam o ego e a sombra de seus membros, ora
passivamente, quando crianças, ora ativamente, como pais. Quando pais, eles têm
expectativas em relação aos filhos e as dificuldades deles próprios interferirão no
desenvolvimento dos filhos. Além dos pais, a sociedade e a cultura interferirão
também naquela criança. Do outro lado teremos os filhos, que serão vistos por seus
núcleos de forma muito particular, formando a identidade pessoal de cada um.
A história pessoal que vem acoplada às histórias vividas e não vividas
(projeções, complexos familiares etc.) pela criança, e que fazem parte dela, irá
formar um indivíduo único. Esse universo de singularidade, e ao mesmo tempo de
pluralidade, é o que dá toda a grandiosidade do universo humano.
32
Ao nascer, uma criança já recebeu uma carga emocional imensa da família e
do meio no qual está inserida. Desde a expectativa sobre o sexo do bebê, a escolha
do nome ou com quem ele vai se parecer etc. Todas essas questões sempre estão
carregadas de emoções.
São contadas histórias sobre cada um de nós, de uma época à qual não
temos acesso conscientemente e que farão parte importante na nossa formação.
Contam-nos como éramos como bebês, ou melhor, como as pessoas nos viam: alguns
sorridentes, outros chorões, bravos, inteligentes, e assim seguem-se histórias alegres
e tristes de nós mesmos contadas e recontadas por nossos familiares e amigos da
família. E as histórias não contadas? As histórias a que ninguém teve acesso
conscientemente? As heranças afetivo-emocionais de nossos pais, como ficam? Por
que será que esse pai olhou a criança e achou-a chorona? Ou por que a mãe acha que
ela tem o gênio difícil como o da irmãzinha? Muitas projeções e expectativas são
colocadas sobre a criança e vão acompanhá-las num desafio que poderá durar uma
vida inteira. Como, quando e quantos de nós fomos olhados, desejados, entendidos?
Como se deram nossas relações afetivo-emocionais com as pessoas que nos
cercavam e nos cuidavam quando pequenos tem extrema importância e vai dar um
significado para a vida de cada um.
Ao se projetar no filho uma continuidade dos pais, no sentido de ele ser
exatamente o que os pais querem, em uma atitude de alimentar o próprio ego, os pais
não conseguem enxergar o filho como um legítimo outro, com suas vontades e
buscas. Com isso, os pais estão imersos numa atitude sombria (defensiva), o que
pode favorecer uma desconexão com o mundo externo, uma ferida narcísica que irá
alterar toda a percepção da criança, causando-lhe uma desvalorização da auto-
33
imagem. E, portanto, dando espaço para um narcisismo defensivo ou para condições
esquizóides.
Vejo com certa freqüência pais que não conseguem enxergar os filhos que
têm. Não estão com os filhos, mas, sim, a serviço de suas próprias histórias. Podem
ser pais extremamente cuidadosos do ponto de vista social e cultural, ou seja, levam
seus filhos às melhores escolas que podem pagar, aos melhores médicos e oferecem a
melhor alimentação. Mas não sabem quem são os filhos, quais são seus desejos e
necessidades. Na verdade, esses pais que estão a serviço de seus próprios conteúdos
psíquicos, muitas vezes, apresentam-se como pais extremados que têm dificuldade
em aceitar críticas a respeito dos filhos, sendo exibicionistas de sua prole numa
competição com outros pais. E aos filhos, feridos narcisicamente, cabe-lhes restaurar
os fracassos existenciais de seus pais.
Ao mesmo tempo que o filho é visto como um ser extraordinário, pois será o
salvador e restaurador do fracasso vivido pelos pais, ele é extremamente invejado por
esses pais, uma vez que carrega consigo a força de ser extraordinário, sendo
empurrado para o fosso do fracasso pela inveja defensiva dos pais. Para se proteger e
agüentar os ataques invejosos, a criança cria uma barreira entre ela e o mundo, uma
desconexão. Muitas vezes são pessoas extremamente arrogantes, como Raskólnikov
no romance de Dostoiévski.
A teoria de Byington fala dos aspectos defensivos e criativos dos símbolos
na elaboração simbólica. Para ele, a atividade psíquica está centrada no processo de
elaboração simbólica, o qual é sempre dado na vivência, tendo na consciência seu
lado criativo e, na sombra, seu lado defensivo. Será ele (símbolo) que formará a
identidade do ego e do outro na consciência. A essência da dimensão simbólica está
na imaginação, porque, sem ela, o símbolo ficará na concretude (literal).
34
Existem várias definições para a palavra símbolo. Etimologicamente, ela
vem do grego symbolon, do verbo symballoo, que significa reunir, conjuntar,
conectar, unir (OLIVEIRA, 2003, p. 99-107). Portanto, o símbolo funcionará como
uma ligação entre o interno e o externo (eu-outro), fará uma ligação entre o
consciente e o inconsciente a serviço do processo de individuação. Para Jung, “a
psique cria os símbolos cuja base é o arquétipo inconsciente e cuja imagem aparente
provém das idéias que o consciente adquiriu” (JUNG, 1999, par. 344).
Os símbolos são extremamente complexos e polarizados. A síntese dos
pares de opostos do símbolo na psique impulsiona à totalidade no processo de
individuação. Para Jung, a linguagem simbólica é universal e transcende a vivência
individual (JUNG, 1982, par. 70-79).
Tudo o que há na dimensão individual existe na dimensão familiar. Há os
símbolos individuais e existem os símbolos familiares. Muitas vezes, o símbolo
familiar acaba sendo vivido na esfera individual, e a pessoa carrega um fardo grande
pensando ser ela a única responsável pela elaboração de tal símbolo.
Quando surge um símbolo na psique, o Self, por meio da capacidade
arquetípica, irá dar significados a esse símbolo através da polarização eu-outro na
consciência, sempre por meio da vivência. Ao dar um significado a esse símbolo,
estamos falando de elaboração simbólica. É na compreensão dos pares de opostos
através da função transcendente que teremos o significado e desenvolvimento
psíquico.
Ao não ocorrer dessa forma, a energia do símbolo ficará fixada. Sua energia
ficará projetada no outro. Essa fixação resultará na dificuldade de polarização do
símbolo na consciência através da vivência eu-outro. Ao não ser integrado na
consciência, esse símbolo terá sua energia retida defensivamente na sombra.
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Assim, quando o símbolo fica fixado, a pessoa viverá um processo de
repetição, uma compulsão de repetição, criando uma neurose. Formam-se então
defesas e sombra dentro desse mecanismo neurótico. Quanto mais precoce for essa
fixação, maior dano fará na estruturação psíquica da pessoa.
Pode-se entender esse mecanismo de repetição como uma tentativa do Self
para que o símbolo seja liberto de seu poder defensivo sombrio e se integre à
consciência, deixando o processo livre para seguir seu rumo.
Byington fala de quatro graus de defesas comuns da sombra: a defesa
neurótica, a defesa psicopática, a defesa borderline e a defesa psicótica
(BYINGTON, 2006, p. 28).
A defesa neurótica seria quando uma pessoa sofre e não tem consciência do
que a faz sofrer, repetindo pela compulsão seu comportamento ou emoção. A carga
energética do símbolo está fixada na sombra, comprometendo a capacidade criativa.
Ao ser confrontada, a sombra torna-se consciente.
A defesa psicopática é originada na fixação, nos contextos de abandono,
abusos e falta de limites. Acontece quando a fixação da polaridade ego-outro da
sombra engloba tanto a função estruturante volitiva como a da ética, causando o
cerceamento da culpa para o confronto com a sombra na consciência. A pessoa
precisa do outro para exercer o mal numa vivência sado masoquista. Diferentemente
da defesa neurótica, quando não há intenção, a defesa psicopática caracteriza-se pela
intencionalidade da atuação da sombra. Byington alerta para a afirmação errônea de
que o sociopata não entende de ética. Ao contrário, ele entende sim, muito, de ética,
mas usa-a como instrumento para burlar leis e cometer o “crime”. Não tem superego.
Na defesa borderline, por ser um estado fronteiriço entre neurose e psicose,
a pessoa tem uma série de transtornos bizarros de personalidade, como numa
36
tentativa enorme do Self em não ter o consciente invadido pelo inconsciente e se
desintegrar na psicose. Comete deslizes, mas não tem a intenção de cometê-los.
Quando o comprometimento ético não domina a função volitiva, poderá confrontar a
sombra.
Por fim, na defesa psicótica há a inundação total da sombra na consciência.
Quando a forma é aguda, o confronto com a defesa é administrado via psicofármacos
e acolhimento, para que a pessoa possa aceitar tratamento.
O arquétipo central irá coordenar e tentar integrar todos os demais
arquétipos. Isso ocorre pela vivência individual de cada pessoa, nas suas relações
com a família, com a cultura e o social. Cada vivência terá um símbolo e se tornará
uma função estruturante do Self.
Como mecanismos de defesa, o arquétipo central dispõe de todos os
recursos que estão aquém do bem e do mal, lança tanto anjos como demônios. Seria
como dizer que o demônio existe para manter o mundo de Deus.
A culpa é uma função estruturante das mais importantes, que capacitará a
avaliação do ato criminoso para que haja a elaboração simbólica, ampliando a
consciência e dando lugar à função ética. Na elaboração da culpa, temos em primeiro
lugar a aceitação do ato cometido; seria assumir que “eu” cometi tal pecado. O ego
torna-se responsável pelos erros cometidos e esses erros recairão sobre o ego.
A função avaliadora seria a capacidade de se diferenciar o bom do mau, o
certo do errado. Já a função ética viria após o reconhecimento do erro. É a
diferenciação entre o bem e o mal, independentemente do bom e mau. A função ética
estaria na dialética dos conceitos. Esse processo se dá através da função de
centroversão, que será a possibilidade de o ego voltar aonde o símbolo ficou fixado
37
confrontando o mal na sombra. É a possibilidade de integração do significado do
pecado no processo de individuação.
Na defesa psicopática, a culpa pode estar comprometida por muitos fatores.
Sua energia poderá estar distorcida ou bloqueada, causando, portanto, distorções
também nas funções ética e avaliadora.
A função estruturante da culpa está junto com a função avaliadora e a
função ética.
Entendo que tanto a culpa como as funções ética e avaliadora estão também
na cultura. Ao se projetar um deus (Imago Dei), que por meio de seu representante
(seja um padre, um rabino etc.) irá condenar ou absolver o pecado, a pessoa não
percebe que esse deus existe internamente também, e sua absolvição só se dará em
contato com o divino, interna e externamente.
A confissão é o primeiro passo para a função ética. Raskólnikov necessita
de alguém de sua máxima confiança para falar de seu crime. Alguém que pudesse
ouvi-lo sem julgamentos ou que fosse entregá-lo à polícia num ato de deslealdade.
Jung fala da necessidade que temos de confessar. É no contato transferencial
com o analista que se dá a confissão dos pacientes. Ela é o primeiro caminho para a
elaboração simbólica e a admissão da responsabilidade numa culpa, muitas vezes
guardada por anos (JUNG, 1985, par. 21, 24, 122, 123, 124).
Ao confessar um delito, é necessário que o confessor sinta que será
compreendido pelo interlocutor. Daí a necessidade de vivência e amplitude de visão
por parte do analista. Como poder compreender o outro se não se tem abertura
pessoal para ouvir os próprios “deslizes”?
A confissão abre espaço para o diálogo entre eu-outro. Não poderemos
esquecer que existe toda uma estrutura psíquica complexa. Após a confissão, as
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defesas ficarão menos rígidas e a sombra, mais aparente; a polaridade luz-sombra se
intensificará, tornando possível o diálogo interno. Falar do pecado é mais fácil que
entender o motivo de tê-lo cometido. Com o perdão, se dá da mesma forma. O
perdão vindo de uma lei preestabelecida é mais fácil de ser aplicado do que o perdão
vindo do entendimento dinâmico, onde está inserido o pecador. Para entender e
compreender o “ato criminoso” na dinâmica pessoal, é necessário ver o crime como
um símbolo. Ao se ter esse símbolo, entendê-lo em sua totalidade, tanto o lado
criativo como o defensivo (consciente e inconsciente), teremos a dimensão de toda a
problemática envolvida.
Numa relação eu-outro, existem sempre projeções que são classificadas por
graus de consciência. Primeiro teríamos a identificação arcaica, onde há uma mistura
entre o ego-outro. É o estado de paixão, estando-se fusionado um com o outro. Todo
estado de conhecimento primário é fusionado, é um estado indiferenciado. Depois
viriam as projeções mútuas, quando já se instalam as dúvidas, estado logo após a
paixão. A vivência aqui ainda é insular, onde eu estou de um lado e o outro não se
comunica comigo exceto como depósito de projeções de mim mesmo. Depois viria a
fase de relacionamento pessoal, onde há a projeção-introjeção mais discriminada;
percebe-se a existência da inter-relação, mas a dialética ainda não se constelou. Na
última fase, tem-se a união na alteridade, que seria a vivência amorosa dentro da
dialética eu-outro. Nesse momento do processo analítico, as defesas do paciente
podem ser ativadas, podendo o paciente parar o processo, querer mudar com
freqüência seu horário, falar de amigos que lhe deram informações sobre ele mais
importantes que as que ouve no consultório e assim por diante. É a dor da carência, a
dor de se entregar e ser rejeitado, como ele mesmo faz muitas vezes consigo próprio.
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Ao retirar a projeção do mal no outro, pode-se introjetar tal energia e abrir
espaço para a reflexão sobre a autoria do crime, perguntando-se quem o cometeu.
Uma só pessoa? Duas? Como no texto de Borges citado na introdução deste trabalho,
em que não se sabe quem cometeu o crime, já que tanto Caim como Abel estavam
envolvidos ativa e passivamente no assassinato. Caim por ter sido preterido, e Abel
por ter sido ingênuo.
Quando o autor do mal é o outro, tem-se a idéia fantástica de que,
afastando-se dessa pessoa ou tentando ignorá-la, o mal ficará longe e não perturbará
mais. Mas se a compreensão do fato não se der, será apenas uma questão de
geografia, mudando-se para outro lugar. A dor do pecado continuará latente e sempre
virá à tona quando algo acontecer para lembrar que ele existe. A dor estará latente,
pronta para sangrar sempre que uma “brecha” ocorrer; como, aliás, ocorre na citada
música Vingança: “Eu gostei tanto, tanto quando me contaram que lhe encontraram
chorando e bebendo na mesa de um bar”. E, depois: “Vingança, vingança, vingança
aos santos clamar”.
Mas será que o outro que cometeu o mal é um outro externo a nós mesmos?
É nessa questão que coloco minha escolha para entender melhor a transgressão, o
pecado e o perdão, usando Raskólnikov como sujeito para tal reflexão. Em minha
opinião, o perdão só vem com a compreensão da dialética eu-outro no processo de
individuação. O que eu estava fazendo naquela hora quando o crime aconteceu? Qual
é a parte ativa de cada um no crime cometido? Como cada um pode entender o
próprio caminho no processo de individuação?
No processo analítico, ao ser aberto o campo amoroso, pode-se propiciar a
vivência de frustração e ódio do paciente. Ele poderá exercer todo o seu potencial de
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ódio e mágoas num ambiente amoroso, sem o perigo de ruptura, evitando, portanto, a
volta ao núcleo sombrio.
O bem só sobrevive com a presença do mal. Para mim, só é possível existir
o bem se existir o mal. Deus lança tanto anjos como demônios no nosso processo de
vida. Para Byington, na elaboração simbólica teríamos, de um lado, a consciência,
que seria a expressão normal no processo de individuação, enquanto a sombra seria a
expressão patológica desse processo, ambas coordenadas pelo arquétipo central. Para
o autor, quando normal, a elaboração simbólica expressará o caminho do bem.
Quando defensiva, o caminho do mal. Sendo, portanto, o bem e o mal de origem
arquetípica (BYINGTON, 2006, p. 23)
Byington, em sua teoria, fala da sombra criativa e da defensiva. Todo mal,
como também todo bem inconsciente (mal conhecido), nos adoece. Ele fala da
potencialidade existente em cada um e de como símbolos que ficaram fixados na
sombra dificultarão o processo criativo da individuação. Se somos apenas bons, onde
estará o mal? Se agimos bem, pois moramos num bairro nobre da cidade e os que
cometem o mal estão nas periferias, viveremos sem entender como se dá a vivência
holística do universo. Cada um é responsável por si mesmo e por todo o universo no
qual co-habita.
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DIALOGANDO COM A TEORIA
O processo de individuação engloba o bem e o mal na vivência interna de
cada símbolo. Sendo assim, a transgressão não pode ser vista fora desse processo.
Ela está nele e, no caso de Raskólnikov, poderá estar a serviço dele.
Em Crime e castigo, Raskólnikov vivia a tensão entre ser ele mesmo e ser
um personagem dele. Vem de uma família pobre, que havia perdido seu patriarca
muito cedo. De seu pai, traz poucas lembranças: é em sonho que o pai se apresenta
algumas vezes. O jovem foi criado para ser o homem forte e provedor da família,
composta, além dele, pela mãe viúva e uma irmã mais nova.
Raskólnikov tem a missão familiar de salvar todos da miséria. Por ser o
único homem da família, a irmã e a mãe não medem esforços para enviá-lo à
renomada faculdade de direito de São Petersburgo. É criada sobre ele a mítica de
herói. Ninguém da família consegue enxergá-lo como um homem comum, e sim
como o grande salvador. Foi criado sem ser aceito. Não era quem de fato era, e sim
quem a mãe e a irmã queriam que fosse. Sua auto-imagem ficou distorcida, criando
um narcisismo defensivo. Foi “moldado” dentro das necessidades familiares. Viveu
dentro do complexo familiar, sentindo-se, por um lado, um homem extraordinário e,
por outro, um total incapaz.
A mãe de Raskólnikov vivia como uma pessoa subjugada na sociedade,
sentia-se inferiorizada e pobre. Sua vivência de abandono e frustração criou uma
relação dificultosa com o filho. Relacionava-se com o “filho idealizado”, queria fazer
dele alguém especial e que trouxesse para todos da família um lugar de destaque que
42
tanto almejava. Sentir-se subjugada era sombrio para ela, não estava na sua
consciência. O que estava era a vontade de ver o filho formado em direito e numa
posição social privilegiada. Tal relação mãe-filho criou em seu desenvolvimento uma
ferida narcísica, que foi vivida sombriamente durante boa parte da vida do rapaz. Até
o final da vida, ela não conseguiu vê-lo como realmente era. Apenas via o filho como
um grande homem, criava histórias sobre um filho dedicado e provedor. Na tentativa
de suportar a dor por não ter o filho que idealizava, escondia-se atrás de suas
fantasias e, ao mesmo tempo, abandonava o filho “imperfeito” à própria sorte.
Raskólnikov é um ressentido. Não consegue sair do papel de vítima,
acusando a vida pelo seu infortúnio. Como vítima, mantém o ganho secundário
desincumbindo-se de sua responsabilidade frente aos fatos que lhe deixam queixoso.
Ele empurra para o outro a função de responsabilidade pela desgraça que vive. É o
outro quem o incomoda. Por ser um ressentido, não consegue perceber a dor alheia.
É desprovido de compaixão, pois sempre está voltado para si mesmo. Sua dor ocupa
todo o espaço, sendo uma dor maior e mais importante que todas as outras. Ao dar
aos pobres suas poucas economias, não o faz por compaixão, mas, sim, para manter
seu lugar miserável na sociedade, numa atitude defensiva.
Raskólnikov comete o duplo assassinato numa vivência psicopática. Mas
não o considero um psicopata e, sim, um neurótico com defesa psicopática. Ele teve
uma vivência com sua família extremamente complicada, e sua defesa narcísica
impedia seu contato com sua dor existencial, desenvolvendo uma relação de
arrogância com o mundo. Ao entrar em contato com Alena, e toda a humilhação que
ela lhe impinge, comete o crime. Se Raskólnikov não fosse um neurótico, não
haveria possibilidade de abertura, por parte dele, para falar sobre dores e vivenciar o
amor, como teve com Marmeladov e, depois, com Sônia. Não é o crime que
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desencadeia o seu delírio, mas a idéia de ultrapassar o limite do sagrado. Caso fosse
um sociopata, sua vivência de culpa e reflexão sobre o crime não aconteceria.
Ora, ao cometer um crime terrível, Raskólnikov poderia ser enquadrado
como um sociopata que friamente planeja e mata duas senhoras sem a menor chance
de defesa. Esse crime faria dele um monstro sem condições de ser reinserido na
sociedade, não podendo estar no convívio social. Minha leitura é vê-lo como um
neurótico com defesas psicopáticas, o que me dá uma chance maior para o diálogo
com a dor que sentia. Se caminharmos por essa linha de raciocínio, poderemos ter
contato com o tamanho de sua dor narcísica. Ele não era nada no mundo, vivia o
delírio de soberba, achando-se um ser extraordinário por suportar tamanha dor.
Há uma tentativa de Raskólnikov em levar uma vida normal como todos.
Num primeiro momento, freqüenta a faculdade, escreve e traduz alguns textos para
engrossar sua pequena mesada e, depois, fica noivo da filha da senhoria da pensão.
Essa fase foi sua tentativa heróica de adaptar-se à vida normal, ordinária de um
estudante de sua época.
Durante esse período, o jovem escreve um texto denso e profundo sobre
homens ordinários e homens extraordinários. Nele, Raskólnikov sustenta que homens
ordinários formariam a grande massa da população. Estes viveriam para obedecer às
regras, trabalhar e enriquecer as sociedades, mas não seriam iluminados e não teriam
o dom de mudar a história. Já os homens extraordinários seriam os expoentes da
sociedade, teriam uma visão global, sabendo e julgando o que seria bom para a
sociedade. Legislariam para o bem comum e não haveria, para esses homens,
sacrifício grande o bastante para atingir uma meta. Para os homens extraordinários, a
máxima “Os fins justificam os meios” é adequada.
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O texto retrata a soberba narcísica de Raskólnikov. Ao falar dos homens,
falava de si mesmo, de como enxergava a sociedade e do lugar que ele deveria
ocupar como homem extraordinário que acreditava ser. Achava-se um homem
extraordinário, alguém que estaria além de todos. Não era para ele, portanto, aquela
vida rotineira. Seu delírio e sua soberba tomam conta de seu pensar. A defesa
narcísica impede-o de entrar em contato com sua própria dor. Esse texto poderia ter
um aspecto “curador” para ele, levando-o às reflexões sobre sua condição ordinária,
o que, infelizmente, não aconteceu.
A distorção da realidade e o pensamento mágico de “poder” começam a
intensificar-se na defesa autista. Raskólnikov fecha-se em seu mundo e trata a todos
com uma arrogância ímpar. Abandona a faculdade e se esconde atrás da pobreza em
que passa a viver. Recolhe-se à pensão de quinta categoria e vive miseravelmente.
Esconder-se atrás da miséria era melhor que enfrentar a dor de ser ordinário. Preferia
passar por vagabundo por opção a enfrentar de frente a falta de opção para sua
mediocridade. A dor da ferida narcísica era profunda.
Se Raskólnikov tivesse feito um curso técnico em sua cidade, se tivesse
vivido como um homem comum, a sua história poderia ser bem diferente. Ao
ingressar numa faculdade renomada, compartilhar espaço com pessoas bem
posicionadas intelectualmente num momento de extrema ebulição política, as feridas
familiares se abriram e tornaram-se impossíveis de ser tratadas por ele. Além disso,
para comprar o pouco alimento de que precisava, recorria muitas vezes a Alena,
pessoa extremamente arrogante que o humilhava toda vez que dela necessitava. O
último bem por ele penhorado foi o relógio que herdara de seu pai e que, de valor
objetivo, quase nada valia.
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O campo para o crime estava formado. De um lado, um homem ressentido e
machucado profundamente em seu desenvolvimento psíquico. De outro, uma mulher
que o lembrava intensivamente de seu lugar inferior no mundo e de que ele precisava
dos “vermes” da sociedade para viver.
Ao não ser capaz de confronto com a própria sombra, e quando não há mais
possibilidade de negar o crime, Raskólnikov acionou o lado social, passando a apelar
para a figura de salvador em nome de algo social maior. É o “herói” que, na verdade,
é o escravo de uma força inconsciente devido à dissociação psíquica que vive. Ele
acreditava estar fazendo um enorme bem à sociedade, livrando todos do grande mal
chamado Alena. E, por ser um homem “extraordinário”, cabia-lhe decidir o melhor
para todos.
Ao executar o crime, Raskólnikov estaria cometendo o grande pecado. É a
sombra defensiva que está a serviço da manutenção da integridade do Self. Toda a
vivência do ego está dominada pela sombra.
Raskólnikov não sentia culpa pelo crime cometido, não se sentia um
criminoso. Acreditava que havia feito um bem a todos eliminando Alena. Ao assumir
a culpa, estaria avaliando sua ação para depois exercer a ética. Mas, não se sentindo
culpado, seu processo de individuação estava truncado.
Como chegar perto de alguém que não sente culpa pelo ato cometido?
Raskólnikov não se sentia um criminoso. E somente pela culpa do ato criminoso é
que ele poderia dialogar com sua sombra.
Numa personalidade complexa como Raskólnikov, submeter seu ego à
culpa não é fácil. Isso porque a culpa está projetada no outro (Alena). Seria como
dizer que Alena foi assassinada porque era um verme e precisava ser eliminada, para
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o bem de todos. Essa seria quase uma afirmação de que ela foi a única responsável
pela própria morte.
No processo de individuação, através da elaboração simbólica, é necessário
que haja o arrependimento dos “pecados” cometidos. Somente através do processo
de perdão é que Raskólnikov poderá ser livre no seu processo de individuação.
O arrependimento do ato cometido vem após a assunção da culpa. Através
das funções avaliadora e ética, é possível entender como um todo o tamanho de seu
ato criminoso e todas as implicações, possibilitando a vivência simbólica desse ato.
Ao ser criada a polaridade em Raskólnikov, essas funções poderão se comunicar
abrindo caminho para a reflexão através da percepção simbólica de sua existência.
Sincronicamente, Raskólnikov encontra num bar um alcoólatra
(Marmeladov), com quem conversa sobre as desgraças que ambos vivem. Este lhe
conta que teve de ver sua única filha empurrada para a prostituição a fim de
alimentar a madrasta e seus filhos, uma vez que ele não era homem suficiente para
fazê-lo. Ao olhar Marmeladov com olhos críticos, de longe, não saberemos por que
ele bebe e qual é sua dor. Que tipo de pessoa era aquela que estava se relacionando
com Raskólnikov? Alguém profundamente machucado e ferido, imerso em suas
dores e que não consegue sair delas.
Assim como Raskólnikov, Marmeladov também não conseguia tirar sua
família da miséria. Sofria por não cumprir o que era esperado de um pai de família.
Sentia-se um nada. Ele diz:
A pobreza não é um vício, evidentemente! Sei também que a embriaguez
não é uma virtude, o que é lastimável! Mas a indigência, a indigência é um
vício. Na pobreza conserva-se ainda um pouco da dignidade natural dos
nossos sentimentos; na indigência nada se conserva. O indigente nem sequer
é expulso a cacetadas da sociedade; é a vassouradas, o que é muito mais
humilhante (DOSTOIÉVSKI, 1998, p. 18).
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Marmeladov fala do tamanho que ambos têm na sociedade. Fala da
insignificância de suas existências para o mundo. Eles estão fundidos na mesma dor.
A dor que o estigma de alcoólatra traz é menor que a dor da alma e a dor de
matar aos poucos os sonhos dos que se ama, através da incapacidade de ser. É nessa
dor que estão juntos, no narcisismo defensivo. Um como alcoólatra, que vende sua
filha à prostituição; o outro, que abandona tudo para viver miseravelmente. Ambos
estão mergulhados no submundo numa tentativa de amenizar a dor existencial.
Vivem em total solidão.
Acredito ser na compreensão da própria dor que se pode dar o encontro.
Quanto maior a vivência, maior o contato com vários caminhos e histórias, maior a
possibilidade de entender, numa visão mais holística, a dor e o símbolo.
Ao expor toda a miséria de Marmeladov, seu vício na bebida e a prostituição
da filha Sônia, Dostoiévski descreve a sombra da sociedade da época – sombra que
estava em sintonia com a sombra de Raskólnikov, o qual acreditava que as pessoas
sem interesse à sociedade, dela deveriam ser retiradas. Só restando os escolhidos,
tanto ordinários como extraordinários.
Marmeladov diz que bebe porque na bebida encontra o seu sofrimento e quer
sofrer em dobro, já que quanto mais bebe, mais sente suas mazelas. Num rompante,
diz a Raskólnikov: “Rapaz, vejo você numa tristeza...”. E esse pode ser visto como o
lado criativo desse encontro. Por intermédio da bebida, que poderia ser vista como
algo destrutivo, está a sintonia dos dois homens com seus sofrimentos. É nesse
submundo que poderão se encontrar. É nesse encontro que Raskólnikov tem suas
funções avaliadora e ética provocadas pela primeira vez.
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Raskólnikov fica ligado na idéia de seguir Marmeladov. Vai com ele até sua
casa, acompanha os passos da família por algumas horas e, por fim, conhece Sônia, a
filha de Marmeladov, por quem fica fascinado, num misto de curiosidade e desprezo.
O encontro com Sônia abriu o caminho para a vida afetiva de Raskólnikov. É
o encontro com a anima, sua possibilidade de contato com o mundo feminino, mundo
da vivência do sensorial, do artístico, do religioso e do amoroso.
Ao sentir a necessidade de confissão, ele vai ao encontro de Sônia e diz a ela,
sem rodeios, que matou Alena e Isabel. Raskólnikov necessita de alguém da máxima
confiança para falar sobre seu crime. Alguém que ouviria suas questões sem julgá-lo
ou entregá-lo.
Para não ser julgado, precisaria falar com alguém que entendesse
profundamente a dor que sentia, alguém que tivesse uma dor semelhante e que
vivesse na miséria como ele. Essa confissão também só poderá se dar num campo
fértil. Não é em qualquer lugar, de qualquer modo e com qualquer pessoa. É preciso
lembrar que se trata de um ato sagrado, um ato de retorno ao próprio caminho e
conexão consigo mesmo.
Sônia não podia fazer confidências de seus sentimentos a estranhos. Desde a
infância, vivia reclusa em seu mundo de dor porque, de um lado, tinha um pai que se
embebedava e, de outro, a madrasta enlouquecida pela desgraça. O que ela ouvia
desde criança eram apenas recriminações e clamores injuriosos. Era a pessoa que
poderia ouvir Raskólnikov e entender sua dor.
Sônia ouve-o perplexa e, ao final da confissão, pergunta-lhe o motivo do
crime. A resposta é que teria sido para roubar. A jovem retruca dizendo não ser esse
o verdadeiro motivo, porque dinheiro nunca foi uma prioridade para ele, que sempre
deu aos pobres do pouco que tinha. Ao fazer a pergunta, e a afirmação acima, Sônia
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está chamando Raskólnikov para sua real confissão. Não há possibilidade de fazer
uma confissão “parcial”. Não contando o real motivo de seus atos, não há como
compreender o fato e, portanto, Raskólnikov está apenas circulando em torno da dor,
e não dialogando com ela por meio da reflexão.
Só alguém que pudesse entender a alma humana, e só alguém que sofresse de
dor similar, saberia que o motivo dele não poderia ser tão mundano. Sônia era
prostituta e teve de seguir esse caminho porque sua família passava fome. Prostituía
seu corpo, mas não sua alma. Era dotada de fé, sabia que seria salva por Deus.
Sônia mostra a Raskólnikov que ele não pode mais se enganar nem continuar
se escondendo atrás de um motivo tão vulgar para um homem extraordinário. Matar
para roubar? Isso era demasiadamente ordinário para ele. Ao dar aos pobres, o fazia
para manter-se na vida miserável, e não por compaixão, por vontade de tirar aquelas
pessoas de um sofrimento social. Dessa forma, ela cria o espaço adequado para a
confissão. Raskólnikov diz que, se tivesse matado para roubar, seria um homem
feliz. E esse realmente não tinha sido o motivo do ato cometido. Ele estava infeliz e
preso a esse crime.
Sônia era uma pessoa especial e mostra que eles eram as “chagas” da
sociedade. Ela também lembra a passagem bíblica de Lázaro, sempre coberto por
chagas e malcheiroso, o que fazia com que sempre fosse zombado por todos. Jesus
Cristo ressuscita Lázaro e cura suas feridas, dando-lhe a santidade devida. Ao falar
sobre isso, Sônia como que abria um espaço para mostrar a Raskólnikov a
importância de todos no universo e que o que faz cada um importante e único é estar
no seu processo de individuação.
Depois de cometer o crime, Raskólnikov precisa de compaixão, sofre de uma
dor imensa e sabe que não será compreendido e aceito por qualquer pessoa. Ele
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precisa de alguém que possa compreendê-lo. E apenas Sônia, que, sendo capaz de
amar e perdoar até seu detestável pai, poderá fazê-lo.
Sônia enxergava em Raskólnikov a pessoa extraordinária que ele era.
Conseguia ver, através de uma couraça arrogante, o homem desesperado por amor e
fé. Ela entendia dessas dores da alma porque havia crescido num ambiente de muita
frustração ante a impossibilidade de conseguir um lugar distinto na sociedade. Tinha
fé, acreditava que todos tinham sua missão no mundo e todos eram extraordinários
em suas histórias e vivências. Acreditava no que chamamos de processo de
individuação, onde cada um é único e extraordinário em seu processo. Assim, Sônia
recebe Raskólnikov como um homem. É a única pessoa que vê suas qualidades boas
e ruins. E o entende na sua dimensão humana, sem julgá-lo nem cobrá-lo, apenas
aceitando-o como realmente é.
Raskólnikov pede a Sônia que leia para ele a passagem bíblica que cita
Lázaro, quer saber o que tanto ela via de semelhante na vida deles. Ela lê, com voz
trêmula. Nesse momento, há o primeiro encontro dele com o divino, instância maior,
e conecta-se com o Self.
No romance, consta: “A vela quase no final iluminava mal o paupérrimo
quarto, onde um assassino e uma prostituta acabavam de ler o livro sagrado”
(DOSTOIÉVSKI, 1998, p. 351). Essa passagem me fez lembrar da música Geni, em
que Chico Buarque conta a história de uma prostituta que era rechaçada pela
sociedade local. Mas, ao aparecer alguém que iria destruir a cidade, a única salvação
da população contra tal agressão é convocar Geni para passar uma noite com o
invasor. Ela então vê sua condição na sociedade mudar: de prostituta, passa a
salvadora. E, na manhã seguinte, tudo volta a ser como antes.
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No romance de Dostoiévski, Sônia acreditava que São Lázaro havia passado
por todas as dores físicas e morais por um motivo maior. Lázaro estava a serviço do
coletivo, de uma mudança de postura, e apenas Cristo, símbolo máximo de amor para
os cristãos, poderia ver a beleza e sentir o perfume da alma daquele homem coberto
de chagas. Ela prostituía seu corpo, mas não sua alma. Era dotada de fé e crente em
Cristo. Fazia suas orações e sabia que seu sacrifício estava a serviço de algo maior na
vida. Com essa concepção, conseguia ver que Raskólnikov cometera um crime, mas
não era criminoso. Sabia que o crime estava a serviço de uma dor profunda que ele
vivia.
Raskólnikov era um homem que deixaria que lhe arrancassem as entranhas,
contanto que pudesse encontrar a fé ou um deus. Sônia abre os braços para que ele
possa se entregar a ela, mas tal movimento não é tão fácil. Será necessário um
relacionamento denso e profundo para que ele encontre o deus que tanto procurava.
Confessar um crime já é um grande passo, é um princípio de elaboração
simbólica, mas o processo é complexo. O fato de Raskólnikov ter confessado a Sônia
foi muito importante, mas não significa que ele sabia o real motivo de seus atos, a
compreensão de sua existência.
Raskólnikov confessa o crime a Sônia, sente que com ela estará seguro.
Apesar de todo carinho dedicado a ele, não a livrará dos maus-tratos que irá sofrer.
Ele não suportava ver alguém tão fiel. Como ter respeito por alguém que o ame?
Sônia vivia um misto de dedicação e dívida com ele. Ela foi a primeira pessoa
a olhá-lo na alma, mas ele também foi a primeira pessoa que lhe deu um valor grande
na sociedade. Era o rapaz “estudado” que permitia a uma prostituta ir a lugares que
Dunia (irmã de Raskólnikov) freqüentava. Ao mesmo tempo que ele lhe abre a
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possibilidade de uma nova vida, o mesmo começa a se configurar com ela. Seu lugar
já não está restrito ao submundo.
Após a confissão, Raskólnikov pede a Sônia um dos dois crucifixos que ela
possui. Um deles é de cobre e foi presente de Isabel, assassinada por ele. O outro é
feito com cipreste. Ele pede o de cipreste porque este era o crucifixo dos pobres-
diabos como ele. Raskólnikov pede a ela que reze por ele.
Num primeiro momento, Raskólnikov tem a vivência de paixão e salvação
com Sônia. Ao perceber que ela poderá salvá-lo por meio de sua crença, começa a
fazer sua conexão com o divino, introjetando para si a função divina. Sua elaboração
está diferenciando-se do outro. No caso, Sônia.
Em pessoas com estruturas narcísicas tão doloridas e complicadas como
Raskólnikov, receber o amor do outro provoca mal-estar e dor. No romance, ele não
suportava que alguém o amasse, não respeitava alguém que pudesse gostar dele,
apesar de querer ardorosamente esse amor. Não suportava depender do amor ou da
piedade do outro, o que o deixava extremamente inseguro. Ao confessar o crime a
Sônia, ele a mantém presa a ele. Ela não poderá contar a ninguém por lealdade ao ato
de confissão, ficando com a missão de salvá-lo para redimir-se.
O fato de Raskólnikov abrir ao mundo sua dor será importante para todos os
envolvidos. Ao libertar-se do papel familiar, ele libertará também a irmã para viver o
amor com Razumikin, seu colega de faculdade, e deixará o sombrio com a mãe, que,
ao não conseguir elaborar o símbolo de inferioridade, fica senil, adoece e morre sem
nunca ter visto o filho novamente.
No trabalho psicoterápico, o paciente, ao “confessar um crime” ao analista,
sente um alívio em relação à dor que carrega há tempos. Ter alguém com quem possa
contar e alguém que possa compreender seu problema provoca a sensação de não
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estar sozinho no mundo, embora saiba que o caminho da elaboração será solitário.
Ao confessar a dor, o paciente reposiciona e reorganiza os papéis das pessoas que o
circundam. Seria como formar uma nova narrativa sobre sua vida. O consultório é
um confessionário, a pessoa traz a alma para o encontro. Na confissão de
Raskólnikov, cada um ocupará seu devido lugar, cada um terá de reelaborar sua
história para seguir seu caminho.
Outro exemplo do que estou retratando encontrei no filme Caché, do diretor
Michael Haneke, que conta a história de um homem atormentado por toda a vida
devido a uma mentira cometida na infância. Ao criar uma história fantástica e cruel a
respeito de um irmão/criado, este é mandado para um orfanato, onde passa por
situações de abandono. O menino/homem não consegue se perdoar por esse crime e,
ao não entender os motivos que o levaram a fazê-lo, continua pecando cada vez mais
seriamente na tentativa de amenizar o sofrimento. No filme, os pais do garoto
“pecador” esperavam uma oportunidade para se verem livres do enfadonho processo
de criação de um menino/criado. Ao não conseguirem fazê-lo conscientemente, uma
vez que a sociedade e a religião ficariam contra eles, tal desejo fica inconsciente,
como também aconteceu com o desejo da mãe de Raskólnikov. Ao cometer o “dolo”,
o menino não tem idéia de que está a serviço da problemática familiar e carrega todo
esse fardo durante a vida sem perceber a dimensão maior do fato. Se pensássemos
numa família sem essa problemática, a mentira de um menino em relação ao outro
poderia ser tratada como birra ou ciúme de uma criança em relação à outra, e o caso
seria levado sem nenhuma importância. O que pode ser transformado num problema,
ou não, dependerá do ambiente “favorável” para que se instale.
Todos nós carregamos culpas e remorsos por algo que fizemos. Mas de que
nos adiantaria carregar uma culpa se não houver a reflexão a respeito? Pouca coisa.
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Será uma prisão em que cada um se consumirá em dor. A culpa criativa nos levará à
reflexão. Já a culpa defensiva estagnará o processo de individuação e nos fará girar
em torno de uma problemática, como acontece no filme Caché ou no romance de
Dostoiévski.
Raskólnikov decide se entregar à Justiça. Ao ser julgado, tem sua pena
reduzida por bons antecedentes pessoais. Irá cumpri-la com trabalhos forçados na
Sibéria. Ele era o criminoso de alma boa, se assim posso definir. É aqui que
compreendo que o rapaz era um neurótico com defesa psicopática. Conseguia viver
na luz sempre que não houvesse um atentado ou uma humilhação contra ele que o
jogasse nas trevas.
Ao ser condenado, Raskólnikov cumprirá a pena imposta pela lei, que o
absolverá do crime cometido após dez anos. Trata-se de um juiz intercedendo e
estabelecendo que esse tempo é suficiente para o perdão da sociedade. Mas o pecado,
no processo de individuação de Raskólnikov, não era apenas o crime contra as duas
senhoras, fato que estava apenas a serviço de sua cisão psíquica. O grande crime no
seu processo era o fato de ser alguém que não era. Ele não se perdoava, nem
perdoava a vida, por ter lhe imposto ser um homem ordinário como todos. Nesse
caso, de nada adiantaria o perdão da sociedade após os anos de cadeia, uma vez que
o perdão teria de partir dele próprio em relação à vida.
Estou aqui relatando duas situações, de pecado e perdão, em que é necessário
olhar de dois ângulos diferentes. Patriarcalmente falando, Raskólnikov teria de pagar
a dívida contraída com a sociedade pelas leis dessa mesma sociedade: dez anos de
serviços forçados. Não há a menor dúvida de que as pessoas têm de responder por
seus atos criminosos. O ego tem a responsabilidade sobre todos os atos. Caso
contrário, eu estaria fazendo uma apologia ao crime e dizendo que as regras não
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devem ser cumpridas. Houve um crime e haverá uma lei que dirá como seu autor terá
de pagar por ele, para que possa ficar livre e não cometê-lo mais, numa atitude
corretiva do desvio ético-moral.
Já na alteridade, a pessoa (no caso Raskólnikov) terá de entender seu processo
na dimensão dialética, em que será necessário compreender seu desenvolvimento na
vida e no que o crime estaria a serviço de suas dificuldades psíquicas. Na relação eu-
mundo, ele tem de entender sua função pessoal e familiar e qual é o tamanho de sua
existência para o universo. Seu processo pessoal tem uma ferida aberta na infância
que o levou a cometer o crime por pura inconsciência e inconseqüência. Ele tem de
entender como o machado foi parar em suas mãos para matar Alena, que tanto o
humilhava. O papel ativo e passivo de cada componente de sua história.
Para que se possa fazer uma ponte entre o eu e o outro, é preciso uma
intervenção externa ao ego, que poderá ser um fato excepcional, uma pessoa como
Marmeladov, uma mulher como Sônia, um analista, uma doença etc. Ou seja, algo ou
alguém que mobilize a energia interna para a mudança, para a elaboração simbólica.
Sônia tem um papel fundamental nesse momento da vida de Raskólnikov.
Será ela quem ajudará a fazer a ponte entre eu-outro (mundo), eu-outro (ele consigo
mesmo), representando sua anima a parte criativa, amorosa e erótica em sua vida.
São os arquétipos da anima, da alteridade e do coniuntio que ativam a proximidade e
a dialética do bem e do mal como tese e antítese, buscando novas sínteses, novos
significados. Ao fazer uma ponte, já há o princípio de contato entre os dois mundos
e, portanto, a abertura para a polaridade dos símbolos.
Num primeiro momento, Raskólnikov tem a vivência de paixão e salvação
com Sônia. Esse estado é vivido de forma fusionada com ela, não consegue se
diferenciar. Essa identificação arcaica leva-o à vivência misturada com ela. É como
56
se ele não soubesse, ou não percebesse, onde ele acaba para que ela comece. Nem
tudo nesse primeiro momento são flores. A defesa dele é sádica e está dissociada. Ele
não sente amor, portanto, a relação entre os dois será permeada de rejeição, sadismo
e arrogância. Raskólnikov num papel mais ativo, e Sônia num papel mais passivo.
Ao entender seu processo, suas dores e erros, Raskólnikov poderá se perdoar
do fato de ser ordinário e seguir seu rumo, sem deixar de lado o crime cometido, que
ocorreu e deve ser julgado. Seu verdadeiro crime era não ser quem deveria ser. Ou
seja, o homem extraordinário de que sua família tanto necessitava e queria ter. A
vida não lhe deu essa dádiva de gênio, foi ingrata, marcando como ferro em brasa a
alma, imprimindo no seu eu mais íntimo a marca da insignificância. Ao mesmo
tempo que é o homem ordinário, é também o homem extraordinário em sua potência
pessoal, em sua importância para Sônia, para a família e para a cultura local, em sua
grandiosidade de ser único. Portanto, saindo do papel vitimado, em que todos
conspiraram contra ele, poderá voltar ao papel ativo na condução de sua vida dentro
do “cenário” em que nasceu. Nem ele, nem a vida são culpados por sua infelicidade.
Tudo fez e faz parte do seu processo de individuação, inclusive o crime que acabou
por colocá-lo no eixo de seu processo novamente. Se fizesse essa reflexão, estaria na
alteridade. No romance, Dostoiévski deixa em aberto a possibilidade dessa reflexão.
Esse diálogo interno da percepção do outro, o contato com as frustrações e
sua essência ordinária só pôde acontecer no campo amoroso aberto por sua relação
com Sônia. Sua transformação virá no encontro do amor e da fé. Há a necessidade de
um campo propício que permita a expressão do amor e do ódio para que haja a
elaboração simbólica. Não há, portanto, possibilidade de haver elaboração simbólica
de Raskólnikov no campo do ódio, uma vez que na vivência de ódio a energia
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psíquica está no outro como o causador da sua dor, e não na vivência dialética eu-
outro.
O amor de Sônia abre a possibilidade de amor em Raskólnikov. Nessa
vivência amorosa, ele poderá entender seu caminho, suas dores e tomar novamente o
rumo de seu processo encontrando a fé. A quebra das defesas narcísicas vem pela
sombra, pelo ataque, pela destruição. As limitações são abertas e expostas de forma
regressiva e dramática com um calor energético fantástico, abrindo-o para vivências
amplas e profundas e dando a oportunidade de mudanças na vida.
Sônia e Raskólnikov estão na transferência amorosa, no coniunctio (fase
conjugal), que é a consolidação do amor e da família, conquista pessoal e amor. O
arquétipo do coniunctio está dentro do arquétipo central, o grande criador do ego.
Os dois viviam à margem da sociedade. Ela, por ser prostituta e ele, por ser
vagabundo. Ambos representavam as “chagas” de uma sociedade. Ambos eram
rechaçados. Ambos fediam como Lázaro, a quem ela tanto citava. Mas Sônia sabe
que a sociedade necessitava deles para não olhar as próprias mazelas. Era mais fácil
jogar tudo de ruim neles para não precisar olhar para o sistema. Isso, porém, não
fazia dela uma ressentida, e sim uma pessoa ciente de seu papel na sociedade.
Sônia representa o amor na sua dimensão maior. Vê o crime cometido por
Raskólnikov, aconselha-o a se entregar e cumprir a pena para seu perdão. Sabe que o
bem e o mal coabitam em todas as pessoas. Sabia que ele tinha algo que o
incomodava, que fazia com que ele cometesse atos quase sem perceber sua
dimensão. Via-o tratando mal seu grande amigo Razumikin sem nenhuma razão.
Maltratava-a, mesmo sabendo ser ela a única pessoa que poderia recebê-lo. E havia
cometido o crime contra Alena, e contra Isabel, quase num impulso. Ela tinha
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convicção de que ele teria de encontrar a fé, encontrar seu deus para seguir seu
caminho mais livremente.
Numa linguagem psicológica, Sônia via Raskólnikov não como um psicopata
perverso, mas como uma pessoa vivendo sombriamente seus conteúdos psíquicos.
Raskólnikov é julgado e condenado a trabalhos forçados na Sibéria por dez
anos. Sônia acompanha-o nessa viagem e se hospeda numa cidadezinha próxima à
prisão. Lá, consegue um emprego e fará a ponte entre Raskólnikov e a irmã,
enviando a ela notícias sempre que possível.
Quando pode, Sônia o visita. É sempre muito amável, mas geralmente ele a
recebe de forma áspera. Alguém tão fiel o deixa raivoso. Ele faz tudo para que ela
desista dele e não volte mais a visitá-lo. Numa dessas visitas, porém, Sônia lhe dá
uma Bíblia, que Raskólnikov nunca abre, mas que fica fechada sobre seu criado-
mudo, como um amuleto, como se nada de ruim pudesse acontecer, pois Sônia estava
ali com sua fé.
Após alguns anos de cativeiro, Raskólnikov fica doente e vai para um
hospital. Sônia o acompanha, indo visitá-lo quase que diariamente. De longe, fica
olhando do pátio para a janela do quarto onde ele repousava. Durante esse período,
ela só pode visitá-lo duas vezes, pois era difícil conseguir uma autorização.
Certo dia, quando Raskólnikov estava quase restabelecido, levantou-se e foi
até a janela. De lá viu Sônia no pátio, em pé, a velar e a rezar por ele, pedindo por
seu restabelecimento. Ao vê-la, seu coração estremeceu: sentiu seu corpo todo arder
e afastou-se, assustado. Percebeu então o quanto a amava. Era a primeira vivência de
amor em sua vida. Nunca havia amado ninguém daquela forma. Essa vivência de
amor tomou conta de seu ser e ele sentiu um misto de êxtase e medo, já que não
conhecia aquele sentimento.
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Depois desse dia, Sônia deixou de visitá-lo na prisão. Raskólnikov ficou
desesperado, não sabia o que havia acontecido com ela, e foi dominado pelo medo da
perda. Olhou para a Bíblia sobre o criado-mudo e quase a abriu para lê-la. Queria
clamar ajuda e descobrir o que havia ocorrido. Segundo foi informado pelos colegas,
Sônia havia adoecido. O medo de nunca mais poder vê-la tomava conta de sua
aflição, já não era só ele no mundo. Tinha Sônia, queria tê-la. O desespero da solidão
era enorme. Para ele, ter e perder era muito pior do que nunca ter tido.
A vivência amorosa deixou-o medroso. Quem ama tem medo de perder, um
medo inexplicável, uma dor profunda. Raskólnikov é pequeno frente o mundo que o
esmaga na dor. Sua arrogância, que era seu maior escudo, já não existia mais para
protegê-lo. Estava só ele e Deus naquele desespero e busca por Sônia, seu amor.
Passado algum tempo, num dia frio e calmo, Raskólnikov senta-se à beira de
um rio e vê que na outra margem existe um tipo de vida totalmente diferente do que
normalmente via na prisão. Pessoas livres que entoavam canções que ele ouvia com
deleite do lado de cá do rio. Distraído, não percebe a chegada de Sônia. Ela senta-se
ao seu lado e, como de costume, estende a mão timidamente para ele, pois várias
vezes se sentiu repelida e até passou-lhe pela cabeça que ele sentia uma certa
repugnância dela. Diz o romance:
Havia dias em que ela tremia diante dele e retirava-se aflita. Mas desta vez
as suas mãos apertaram-no prolongadamente. Raskólnikov olhou para ela,
não disse uma só palavra e baixou os olhos. Estavam sós, ninguém os via. O
guarda afastara-se momentaneamente.
Subitamente e sem que ele mesmo soubesse como, uma força invisível
lançou-o aos pés da moça. Abraçou-lhe os joelhos chorando. No primeiro
momento ela ficou assustada e pálida. Levantou-se vivamente e a tremer
olhou para Raskólnikov. Mas bastou-lhe esse olhar para compreender tudo.
Uma felicidade imensa se via nos seus olhos radiantes; não podia já duvidar
de que ele a amava com amor infinito, finalmente....
Quiseram falar, mas não puderam. Tinham lágrimas nos olhos. Estavam
ambos pálidos, mas no seu rosto brilhava já a luz de uma renovação, de um
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renascimento completo. O amor regenerava-os, o coração de um encerrava
uma fonte de vida para o coração do outro (DOSTOIÉVSKI, 1998, p. 565).
É no encontro de almas que poderá se dar o perdão de Raskólnikov. Esse
amor atravessou todas as barreiras que suas defesas haviam construído para evitar
qualquer contato. Ambos sabem que a vida não se encerra aqui, como num conto de
fadas, com um “viveram felizes para sempre”. Sabem que muito ainda terão de fazer
por suas vidas, muitos desafios acontecerão e terão de superá-los. Mas não estão
mais sozinhos. Raskólnikov está livre de sua prisão psíquica. Conseguiu entender seu
processo e perdoar a vida e a si mesmo. Encontrou sua fé, seu Deus e seu caminho,
pelos quais tanto ansiava.
Terminarei este capítulo ilustrando, com o final do livro, a vivência de
liberdade de Raskólnikov assim que ele compreende seu lugar no mundo. Percebe o
amor que sente por Sônia e a fé em algo superior que ele ainda não sabe, mas crê
existir.
Sim, que importava todo o horror do passado? Naquela primeira alegria de
volta à vida, tudo, até seu crime, até a sua condenação e a sua ida para o
degredo, tudo lhe parecia um fato exterior, estranho; parecia até duvidar que
isso tivesse acontecido. Demais, naquela noite estava incapaz de refletir
muito tempo, de fixar o pensamento num objeto qualquer, de resolver um
caso com segurança; só tinha sensações. A vida tinha substituído nele o
raciocínio.
À cabeceira da cama tinha uma Bíblia. Segurou-a maquinalmente. Aquele
livro era de Sônia; fora naquele volume que ela lhe lera outrora a passagem
da ressurreição de Lázaro.
No princípio de sua prisão, ele esperava uma perseguição religiosa por parte
dela. Julgava que ela lhe atiraria a Bíblia ao rosto. Mas, com grande surpresa
sua, nem uma só vez ela fez mudar a conversa para esse assunto, nem uma
só vez lhe oferecera o livro. Fora ele próprio que o pedira pouco antes da sua
doença e ela levou-o sem dizer nada. Até então ele não o abrira.
Também não abriu desta vez, mas um pensamento atravessou o seu espírito:
“As suas convicções podem agora ser diferentes das minhas? Poderei ter
acaso outros sentimentos, outras idéias que não sejam as dela?”
Durante esse dia, Sônia esteve também muito inquieta, mas estava tão
alegre, e aquela felicidade era uma surpresa tão grande, que quase tinha
medo. Sete anos, somente sete anos! Na embriaguez das primeiras horas,
pouco faltou para que ambos sentissem esses anos como se fossem dias.
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Raskólnikov ignorava que a nova vida não lhe seria dada de graça e que
tinha de a adquirir à força de longos e dolorosos sacrifícios.
Mas aqui começa uma segunda história, da lenta transformação de um
homem, da sua regeneração, da sua passagem gradual de um mundo para
outro travando relações com uma nova e até agora completamente
desconhecida realidade. Podia ser o motivo de uma nova narração. A que
quisemos oferecer ao leitor termina aqui. (DOSTOIÉVSKI, 1998, p. 566).
62
CONCLUSÃO
Acredito ser necessário refletir por que o mal tem ficado de fora de nossa
história atual. Fala-se muito do mal como algo externo a nós mesmos, e não parte
operante da psique humana. Ver a transgressão como algo inexistente às pessoas
ditas “do bem” deixa todos empobrecidos, não permitindo que se olhe
profundamente a dimensão psíquica.
O mal existe. E está também dentro de nós. Toda verdade não perde sua
veracidade quando olhada ao contrário. Se só temos o bem, onde estará o mal senão
na nossa sombra? Para Jung, a arte (aqui entendida como psicoterapia ou vida)
requer o homem inteiro.
Existe por acaso coisa mais fundamental que dizer: “eu sou isto”? (...) Não
se trata mais de escolher entre as ficções a que mais convém, mas uma série
de duras realidades, que juntas formam a cruz que, afinal, cada um de nós
tem de carregar, ou formam o destino que nós somos. (JUNG, 1990, par.
400).
Ao se perceber a dinâmica pessoal como um todo, contendo as polaridades
de cada símbolo, poderemos ter um indivíduo por inteiro, dotado de partes luminosas
(conscientes) e partes sombrias (inconscientes).
Para nós, analistas, é importante ver nosso paciente como um todo. Através
de seus símbolos pessoais, ter um olhar para os aspectos conscientes e inconscientes
de sua dinâmica. Da mesma forma, temos de olhar para nós mesmos. Se o analista
achar que sabe tudo, que é só “do bem”, como se diz na gíria da atualidade, talvez
não dê espaço para o mal do paciente aparecer. Como alguém poderá confessar um
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pecado horroroso se o interlocutor não compreende a dor envolvida? Ao nos
depararmos com o mal existente no outro, temos de ter um olhar para nosso mal
também. Voltando a Jung:
O trabalho analítico conduzirá mais cedo ou mais tarde ao confronto
inevitável entre o eu e o tu, e o tu e o eu, muito além de qualquer pretexto
humano; assim, pois, é provável e mesmo necessário que tanto o paciente
como o médico sintam o problema na própria pele. Ninguém mexe com fogo
ou veneno sem ser atingido em algum ponto vulnerável; assim, o verdadeiro
médico não é aquele que fica ao lado, mas sim dentro do processo (JUNG,
1994, par. 5).
Byington atenta, por meio de sua obra, para a necessidade de elaboração
simbólica sempre, desde sua aplicabilidade na educação, quando fala dos processos
de aprendizagem e nas relações importantíssimas do aluno com o professor, do aluno
com a matéria e do professor com seu trabalho. Fala da necessidade de entendermos
os processos em cada processo e os símbolos envolvidos no processo individual
atuando defensiva ou criativamente.
Para mim, algumas funções estruturantes estão em desuso na atualidade.
Funções como perdão, altruísmo e gratidão, entre outras, são pouco usadas e foi
criado um código para que elas sejam “terceirizadas”. Na era da globalização, com
uma rapidez enorme de informações, de ritmos de vida acelerados, essas funções
também foram terceirizadas, como os serviços objetivos. De que forma? O respeito
pelos outros está cada vez menor, o pensar ecológico também. “Para que vou plantar
uma árvore se não estarei aqui daqui a quarenta anos para comer seus frutos? Se o
mundo acabar em mil anos... bom, não estarei aqui.” E por aí vão as questões de
desrespeito de cada um de nós. O perdão??? Infelizmente, leio nos jornais com certa
freqüência que crimes cometidos estão sendo “perdoados” com cifras milionárias.
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Como ficam os envolvidos nesses crimes? Não sei, acredito que em algum momento
será necessário pararmos e entendermos esse processo.
O pecado está cada vez mais projetado. E, quando não está depositado no
outro, está desqualificado. Ouvimos frases do tipo: “Ih, foi mal, hein?”, e depois
segue-se em frente sem tempo para refletir e maturar a vivência. O perdão, portanto,
fica também projetado para uma outra instância, como um juiz, uma cifra bancária,
um pistoleiro etc.
Em Crime e castigo, Dostoiévski traz o mal para dentro do ser humano. Ele
mostra que o sofrimento é decorrência da condição humana e que nosso mundo tende
a sufocá-lo. É vendida uma idéia de que não existe tempo, morte e sofrimento. Todos
são jovens, belos e bem resolvidos.
Para o escritor russo, o ser humano é singular e múltiplo ao mesmo tempo.
Cada indivíduo é só ele e também todos aqueles que o constituem. A qualidade do
ser humano é ser finito, mas o pensar é infinito.
Nosso papel como analistas não é minimizar o sofrimento, porque é na dor
que existe a possibilidade de se lembrar o que é mais inerente em cada um dos
processos de individuação. Nós ajudamos o desenvolvimento pessoal na superação
das dores por meio do conhecimento do sombrio. No caso de Raskólnikov, esquecer
e não ter acesso à dor narcísica que vivia seria a morte para seu processo. Ao entrar
em contato com sua pequenez e entender todo o entorno de sua vivência, é que se
deu a possibilidade para o amor e encontro com seu divino.
Entender nossos processos, entender nossas constituições, nossos dons,
nossas relações afetivo-emocionais, deixando a raiva, a inveja, a culpa e tantas outras
emoções nos ajudarem nos nossos processos, poderá ser a chance do perdão maior.
Aquele perdão que nos oferece a nossa real dimensão no mundo e o valor das dores,
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podendo nos libertar para sermos infinitos dentro de nossas limitações. Esse perdão
poderá ainda libertar o outro, permitindo-o tomar o caminho que puder. Essa
compreensão do ser maior que somos só poderá se dar no campo do amor, uma vez
que no ódio estarão ainda projetadas no outro as dores causadas em mim.
Na minha compreensão, o perdão é o maior agente libertador que temos. É
por meio dele que nosso caminho ficará livre para as próximas pedras que, com
certeza, encontraremos em nossos caminhos.
Findo este capítulo com o conto fantástico de Clarice Lispector, extraído do
livro Felicidade clandestina.
PERDOANDO DEUS
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga
de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade
não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo
uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui
percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se
intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me
senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo,
sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou
igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se
tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco
de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se
deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia
aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para
mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido
ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito,
medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por
Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim
ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo
estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-
me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito.
Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão
encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam
mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de
cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo
desmesurado de ratos.
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Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar,
com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois
fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a
contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo.
Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de
súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De
que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser
lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue
de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o
sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra
terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um
rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor
que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no
passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era
assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada,
amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria
de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração
fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui
decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a
vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso,
contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha
vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos
eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria
a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O
visse? No rato? Naquela janela? Nas pedras do chão? Em mim é que Ele não
estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não
guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade
de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por
carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou
contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por
isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
...mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que
já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte.
Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que,
somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as
incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido
carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem
compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em
oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é
brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não
sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é.
É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que
não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise
que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito
possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também
queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando
puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem
morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa
às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me
afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o
meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do
mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo.
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Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos
para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que
aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato.
Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus
crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente.
Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha
alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse
meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo
se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que
“Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será
apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me
percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero
chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o
mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me
submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava
querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que
eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um
dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu
inventar Deus, Ele não existe. (LISPECTOR, 1998).
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ENCONTRO AMOROSO COM DOSTOIÉVSKI
Não li muitos livros de Dostoiévski, apenas Crime e castigo, Os irmãos
Karamazov e O idiota. Não tenho como fazer uma leitura do que seria a obra dele,
apenas posso acreditar no que dizem os estudiosos de sua obra, que o classificam
como um dos maiores escritores da história universal.
O tema perdão é algo que há muito tempo vem me interessando. Ao pensar
neste tema para elaborar minha monografia, achei que o livro Crime e castigo fazia
todo o sentido. Para começar o trabalho, li o romance novamente e não consegui ver
nenhuma conexão. Como eu tinha pensado em ligar as coisas???? Fiquei numa
angústia enorme.
Perguntava a todos que haviam lido o livro como eles entendiam o crime.
Cada um tinha uma visão diferente, mas todos chegavam a uma dor parecida com a
de Raskólnikov.
Resolvi então reler o livro de novo, mas desta vez menos preocupada em
como fazer o trabalho. Nessa leitura, foi-se abrindo um mundo enorme à minha
frente. Dostoiévski era mágico. Ele falava coisas incríveis, falava da dor humana
com uma propriedade de quem viveu e sofreu, de quem não passou pela vida
rapidamente e sem nexo. Ele viveu.
Para mim, o encontro com Dostoiévski foi fantástico. Para fazer este
trabalho, li a obra três vezes para não perder detalhes que me ajudassem na
confecção desta monografia. A cada leitura, novos horizontes se abriam e novas
concepções da personalidade de Raskólnikov se apresentavam. Fui me apaixonando
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cada vez mais por Dostoiévski, por suas idéias e por seu modo de ver o ser humano.
Queria trocar idéias com as pessoas. Amigos e familiares me ajudaram muitíssimo
neste projeto. Eles me ouviram pacientemente, deram palpites, me ofereceram
possibilidades de diálogos entre a teoria e a prática. Todas as pessoas passaram a ser
interlocutores de minha conversa com Dostoiévski por meio de seu personagem
Raskólnikov. Foram meses de encontros maravilhosos com a obra do escritor russo.
Fazer o trabalho foi tarefa dificílima. Como eu poderia não contar a história
de Raskólnikov? Como não colocar todo o olhar humano que Dostoiévski dava aos
seus personagens? Tarefa difícil para mim e ainda mais difícil para minha
orientadora, que tinha de lembrar-me a todo momento de que eu não poderia perder o
foco do trabalho. A delicadeza de Raquel em me mostrar que tudo era interessante,
mas que o foco era o perdão, era extremamente necessária. Sua força e sabedoria em
me levar para o foco a cada encontro foram grandiosas.
Em vários momentos, pensei que teria sido riquíssimo falar sobre a obra
dele, trazer imagens. Durante esse processo, apareceram filmes que me lembravam
sua obra. Primeiro, Match point, (de Woody Allen, 2005), em que acontece uma cena
idêntica a uma passagem do livro. Depois, foi a vez de Caché, lembrando outra
problemática familiar. Parecia que o mundo estava coberto de Dostoiévski.
Eduardo, sobrinho queridíssimo e leitor assíduo, muito me ajudou na
confecção e concepção de Raskólnikov. Com seu olhar de advogado jovem, me
mostrou como a lei pode entender a questão do pecado de forma não patriarcal de
causa e efeito. Ele me enviou artigos de lei, me mostrou que hoje há uma tendência
cada vez maior na mediação de casos, onde não existe apenas uma pessoa certa e
outra errada, mas a co-responsabilidade dos fatos.
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Tudo o que Dostoiévski escreveu existe em todos nós. Sua sapiência em
relação às dores humanas e seu conhecimento de psicologia profunda conferiram-lhe
o título de primeiro psicólogo da humanidade. Vendo um vídeo do professor Gilberto
Safra sobre o autor, reforço sua fala de que a leitura das obras de Dostoiévski deveria
ser matéria obrigatória nas faculdades de psicologia.
Acredito que ler Dostoiévski é um aprendizado para toda a vida. Ler e reler
após alguns anos fez para mim uma diferença enorme.
Foi riquíssimo entrar nesse universo. Foi maravilhoso poder compartilhar
idéias com ele. Foi fantástico poder ter lido novamente Crime e castigo nesta fase da
minha vida.
Espero que este trabalho possa suscitar interesse por esse incrível autor, que
fez de sua obra um grande processo de entendimento de sua vida. Seus personagens
foram tirados de sua própria vida, fatos foram extraídos de sua vivência e dores
foram resgatadas de suas próprias dores.
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