perdão

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político não .tem o privi- légio do artista, que pode ser um canalha em parti- cular sem que isto dimi- nua a sua obra ou preju- dique sua apreciação pelo público. Uma única gravura do Picasso absolve toda uma vida de mau-caráter. Hoje estuda-se a obra do Marquês de Sade com a mesma isenção moral com que se estuda a obra de Santo Agostinho - que nem sempre foi santo - e ninguém quer saber se um escritor enganava o fisco ou um pintor batia na mãe, se isto ajudava sua arte. Bem, querer saber, queremos, mas só pelo prazer do fuxico. O poeta W.H. Auden escreveu (mais ou menos) que o tempo, que é intolerante com o bravo e o ino- cente e esquece numa semana uma figura bela, adora a linguagem e perdoa todos os que vivem dela, e com esta estranha disposição per doa a Kipling sua opinião e pe - doará tudo em Paul Claudel ó pelo que ele botou no papel. mas deste mau tradutor. O te de Auden só precisa de mais te para perdoar quando o pecad do artista, como o dos reacioná rios Kipling é Claudel, for o da ideolo- gia errada. Pois se não se admite no político a perversão privada do artista, a única inconveniêncik pú- blica para o artista é a incorreção política. Assim Louis Ferd~nand Celine continua esperando a re- mi são que o tempo já deu ,por exemplo, Nelson Rodrigues, r que um Jean Genet nem precisou es- perar, pois só era ladrão, homosse- xual e toxicômano. Mas ced~ ou tarde a terão. Revelações SOb~O ~ siasmo de Heidegger pelo - zísmo e o relaxamento cientj " o e Freud forçam uma releiturá das 7 Ii / 'rdão suas teses mas não as invalidam. Os pecados revelados de Woody Allen e Michael Jackson não são políticos, desafiam a tolerância porque envolvem a pedofilia, o úl- timo tabu, mas o tempo de Auden também os redimirá. No fim o tempo dá a todo artista um pron- tuário virginal - menos, claro, ao Wf'l on Simonal. o Brasil, o político que decla- ra amente roubava reclamava pa- ra i um pouco desta imunidade do artista. Sua obra justificava seus peC\1dos, quando não era uma de- corrência deles. Todo o sistema de conivências tácita que domina a política brasileira presume uma desconexão entre moral privada e moral aparente. Na cultura do clientelismo, do dá-se um jeito, o proveito substitui a ética, a ética atrapalha o proveito. A atual in- dignação nacional com a rouba- lheira vem da conclusão de que aqui não se tem nem a ética nem o proveito, rouba-se para poucos e não se faz para a maioria. Numa cleptocracia mais avançada como os Estados Unidos, os bandidos que contruíram o país, num con- luio de empresários corruptores com políticos corruptos que escan- dalizaria o Ricardo Fiúza, tiveram o cuidado de construir, junto com suas fortunas. uma ficção. A da América como a suprema conquis- ta na Terra do espírito empreende- dor do Homem, a da liberdade para lucrar como metáfora para todas as outras liberdades e exem- plo para o mundo. Não o proveito em vez da ética mas a ética do proveito, redimindo todos os cri- mes da conquista. Fizeram uma nação e ainda ganharam, como he- róis da sua própria ficção, o per- dão da história. Nada mais respei- tável nos Estados Unidos do que as fundações que hoje levam os nomes de Carnegie, Vanderbilt, Morgan, Kennedy etc. Sua obra foi um país, e sua obra os redimiu. Roubaram, sim, mas olha o que fizeram. O tempo de Auden adora a linguagem e perdoa seus craques, o tempo americano adora o suces- so e perdoa todos os seus meios. O modelo não teve tempo para funcionar no Brasil- se é verdade que ele está em Crise terminal. Tal- vez dependesse de uma certa per- sistência calvinista que não pega nos trópicos. Talvez o mesmo Deus que abençoou a sangrenta aventura da conquista americana se sentisse diminuído, tendo que só ajudar o João Alves a ganhar na loteria. O fato é que os empresá- rios e os políticos brasileiros pegos em conluio irão para a desgraça sem terem deixado qualquer obra que os redima. Pelo menos nenhu- ma que não tenha sido superfatu- rada. Mas talvez consigam o per- dão assim mesmo. Aqui o tem o também é brasileiro. v DO I GO -

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Uma crônica de Veríssimo que reconstrói o conceito de perdão

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Page 1: Perdão

político não .tem o privi-légio do artista, que podeser um canalha em parti-cular sem que isto dimi-nua a sua obra ou preju-dique sua apreciação

pelo público. Uma única gravurado Picasso absolve toda uma vidade mau-caráter. Hoje estuda-sea obra do Marquês de Sadecom a mesma isenção moralcom que se estuda a obra deSanto Agostinho - quenem sempre foi santo - eninguém quer saber se umescritor enganava o fiscoou um pintor batia namãe, se isto ajudavasua arte. Bem, querersaber, queremos,mas só pelo prazer dofuxico. O poeta W.H.Auden escreveu (mais oumenos) que o tempo, que éintolerante com o bravo e o ino-cente e esquece numa semana umafigura bela, adora a linguagem eperdoa todos os que vivem dela, ecom esta estranha disposição perdoa a Kipling sua opinião e pe -doará tudo em Paul Claudel ópelo que ele botou no papel.mas deste mau tradutor. O tede Auden só precisa de mais tepara perdoar quando o pecad doartista, como o dos reacioná riosKipling é Claudel, for o da ideolo-gia errada. Pois se não se admiteno político a perversão privada doartista, a única inconveniêncik pú-blica para o artista é a incorreçãopolítica. Assim Louis Ferd~nandCeline continua esperando a re-mi são que o tempo já deu ,porexemplo, Nelson Rodrigues, r queum Jean Genet nem precisou es-perar, pois só era ladrão, homosse-xual e toxicômano. Mas ced~ outarde a terão. Revelações SOb~O~ siasmo de Heidegger pelo -zísmo e o relaxamento cientj " oe Freud forçam uma releiturá das

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Ii

/ 'rdão

suas teses mas não as invalidam.Os pecados revelados de WoodyAllen e Michael Jackson não sãopolíticos, desafiam a tolerânciaporque envolvem a pedofilia, o úl-timo tabu, mas o tempo de Audentambém os redimirá. No fim otempo dá a todo artista um pron-tuário virginal - menos, claro, aoWf'l on Simonal.

o Brasil, o político que decla-ra amente roubava reclamava pa-ra i um pouco desta imunidade doartista. Sua obra justificava seuspeC\1dos, quando não era uma de-corrência deles. Todo o sistema deconivências tácita que domina apolítica brasileira presume umadesconexão entre moral privada emoral aparente. Na cultura doclientelismo, do dá-se um jeito, oproveito substitui a ética, a éticaatrapalha o proveito. A atual in-dignação nacional com a rouba-lheira vem da conclusão de que

aqui não se tem nem a ética nem oproveito, rouba-se para poucos enão se faz para a maioria. Numacleptocracia mais avançada comoos Estados Unidos, os bandidosque contruíram o país, num con-luio de empresários corruptorescom políticos corruptos que escan-dalizaria o Ricardo Fiúza, tiveramo cuidado de construir, junto comsuas fortunas. uma ficção. A daAmérica como a suprema conquis-ta na Terra do espírito empreende-dor do Homem, a da liberdadepara lucrar como metáfora paratodas as outras liberdades e exem-plo para o mundo. Não o proveitoem vez da ética mas a ética doproveito, redimindo todos os cri-mes da conquista. Fizeram umanação e ainda ganharam, como he-róis da sua própria ficção, o per-dão da história. Nada mais respei-tável nos Estados Unidos do queas fundações que hoje levam osnomes de Carnegie, Vanderbilt,Morgan, Kennedy etc. Sua obrafoi um país, e sua obra os redimiu.Roubaram, sim, mas olha o quefizeram. O tempo de Auden adoraa linguagem e perdoa seus craques,o tempo americano adora o suces-so e perdoa todos os seus meios.

O modelo não teve tempo parafuncionar no Brasil- se é verdadeque ele está em Crise terminal. Tal-vez dependesse de uma certa per-sistência calvinista que não peganos trópicos. Talvez o mesmoDeus que abençoou a sangrentaaventura da conquista americanase sentisse diminuído, tendo que sóajudar o João Alves a ganhar naloteria. O fato é que os empresá-rios e os políticos brasileiros pegosem conluio irão para a desgraçasem terem deixado qualquer obraque os redima. Pelo menos nenhu-ma que não tenha sido superfatu-rada. Mas talvez consigam o per-dão assim mesmo. Aqui o tem otambém é brasileiro.

vDO I GO -