paulo roberto gonçalves segundo (usp)

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A PERMEABILIDADE DA DINÂMICA DE FORÇAS: DA GRAMÁTICA AO DISCURSO Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP) Introdução A interação entre forças é considerada por Talmy (2000) como um dos cinco esquemas conceptuais universais que estruturam a linguagem. Derivada de nossa experiência com barreiras, bloqueios, forças, pressões, restrições, alavancas — e, portanto, ligada a nosso sistema cinestésico —, a Dinâmica de Forças (DF) emerge como uma categoria semântica que atravessa níveis linguísticos, assumindo importância fundamental na estruturação da linguagem, em especial, da noção de causalidade (MOURA, 2012). Nesse sentido, trata-se de uma categoria proposta a partir da noção de corporificação ou corporeamento, ou seja, da premissa de que nossa experiência é estruturada em parte pela natureza de nossos corpos e por nossa organização neurológica em interface com o ambiente físico-social e interpessoal. Assim, os conceitos a que temos acesso e a natureza da ‘realidade’ sobre a qual pensamos e conversamos estão em função de nosso corporeamento: nós só podemos falar sobre o que percebemos e concebemos, e as coisas que podemos perceber e conceber derivam dessa experiência corporeada. Desse ponto de vista, a mente humana deve carregar consigo as marcas da experiência corporeada (EVANS & GREEN, 2006: 46) 1 . Essa experiência cinestésica estrutura, então, um esquema imagético. Para Grady (2005: 44), esquemas imagéticos consistem em “representações mentais de unidades fundamentais de experiência sensorial”, ou seja, em gestalts mínimas baseadas em padrões regulares de experiências corporais específicas, que incluem visão, audição, olfato, movimento, postura, tato e sensações internas, responsáveis, dentre outras possibilidades, pelo estabelecimento de domínios-fonte (LAKOFF, 1987) ou inputs (FAUCONNIER & TURNER, 2002) para a criação metafórica. Croft & Cruse (2004) concebem a FORÇA como um esquema imagético fundamental. Ferrari (2011), baseada nesses autores, arrola, como elementos básicos constitutivos desse esquema, as experiências de EQUILÍBRIO, FORÇA CONTRÁRIA, COMPULSÃO, RESTRIÇÃO, HABILIDADE, BLOQUEIO e ATRAÇÃO. Tais esquemas podem ser metaforicamente elaborados, extrapolando a experiência de movimento e de pressão que estão na sua origem pré- conceptual para os campos intra e interpsicológico, social, inferencial e discursivo. Por essa razão, a FORÇA permeia uma série de construções linguísticas e discursivas, podendo ser depreendida não só em afixos, verbos, modalizadores, preposições, conjunções, mas também no direcionamento de padrões argumentativos e de expectativas. A categoria semântica DF configura-se, portanto, em uma forma de sistematização das relações discursivo-gramaticais elaboradas a partir desse esquema imagético, podendo ser compreendida, a partir de Talmy (2000), como uma generalização da noção de causalidade 2 e de conceitos associados, como permissão, bloqueio, etc. 1 [...] the concepts we have access to and the nature of the ‘reality’ we think and talk about are a function of our embodiment: we can only talk about what we can perceive and conceive, and the things that we can perceive and conceive derive from embodied experience. From this point of view, the human mind must bear the imprint of embodied experience. 2 Moura (2012) assume que o protótipo da Dinâmica de Forças refere-se a eventos em que se

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Page 1: Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP)

A PERMEABILIDADE DA DINÂMICA DE FORÇAS: DA GRAMÁTICA AO DISCURSO

Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP)

Introdução A interação entre forças é considerada por Talmy (2000) como um dos cinco esquemas conceptuais universais que estruturam a linguagem. Derivada de nossa experiência com barreiras, bloqueios, forças, pressões, restrições, alavancas — e, portanto, ligada a nosso sistema cinestésico —, a Dinâmica de Forças (DF) emerge como uma categoria semântica que atravessa níveis linguísticos, assumindo importância fundamental na estruturação da linguagem, em especial, da noção de causalidade (MOURA, 2012). Nesse sentido, trata-se de uma categoria proposta a partir da noção de corporificação ou corporeamento, ou seja, da premissa de que nossa experiência é estruturada em parte pela natureza de nossos corpos e por nossa organização neurológica em interface com o ambiente físico-social e interpessoal. Assim,

os conceitos a que temos acesso e a natureza da ‘realidade’ sobre a qual pensamos e conversamos estão em função de nosso corporeamento: nós só podemos falar sobre o que percebemos e concebemos, e as coisas que podemos perceber e conceber derivam dessa experiência corporeada. Desse ponto de vista, a mente humana deve carregar consigo as marcas da experiência corporeada (EVANS & GREEN, 2006: 46)1.

Essa experiência cinestésica estrutura, então, um esquema imagético. Para Grady (2005: 44), esquemas imagéticos consistem em “representações mentais de unidades fundamentais de experiência sensorial”, ou seja, em gestalts mínimas baseadas em padrões regulares de experiências corporais específicas, que incluem visão, audição, olfato, movimento, postura, tato e sensações internas, responsáveis, dentre outras possibilidades, pelo estabelecimento de domínios-fonte (LAKOFF, 1987) ou inputs (FAUCONNIER & TURNER, 2002) para a criação metafórica. Croft & Cruse (2004) concebem a FORÇA como um esquema imagético fundamental. Ferrari (2011), baseada nesses autores, arrola, como elementos básicos constitutivos desse esquema, as experiências de EQUILÍBRIO, FORÇA CONTRÁRIA, COMPULSÃO, RESTRIÇÃO, HABILIDADE, BLOQUEIO e ATRAÇÃO. Tais esquemas podem ser metaforicamente elaborados, extrapolando a experiência de movimento e de pressão que estão na sua origem pré-conceptual para os campos intra e interpsicológico, social, inferencial e discursivo. Por essa razão, a FORÇA permeia uma série de construções linguísticas e discursivas, podendo ser depreendida não só em afixos, verbos, modalizadores, preposições, conjunções, mas também no direcionamento de padrões argumentativos e de expectativas. A categoria semântica DF configura-se, portanto, em uma forma de sistematização das relações discursivo-gramaticais elaboradas a partir desse esquema imagético, podendo ser compreendida, a partir de Talmy (2000), como uma generalização da noção de causalidade2 e de conceitos associados, como permissão, bloqueio, etc.

1 [...] the concepts we have access to and the nature of the ‘reality’ we think and talk about are a function of our embodiment: we can only talk about what we can perceive and conceive, and the things that we can perceive and conceive derive from embodied experience. From this point of view, the human mind must bear the imprint of embodied experience. 2 Moura (2012) assume que o protótipo da Dinâmica de Forças refere-se a eventos em que se

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O objetivo deste trabalho é mostrar de que modo a categoria proposta por Talmy (2000), de fato, permeia os diversos níveis linguísticos, defendendo sua aplicação para a análise tanto de fenômenos gramaticais quanto discursivos no Português Brasileiro (PB), tendo em vista tratar-se de um componente ainda pouco explorado nos estudos acerca dessa língua. Dividimos o capítulo em quatro seções. Na primeira, trataremos da proposta de sistematização da categoria semântica de DF, a partir de Talmy (2000). Na segunda, analisaremos alguns recursos linguísticos com base nessa perspectiva, mostrando sua pertinência para a explicação gramatical e lexical. Na terceira, o quadro teórico será utilizado para a análise de aspectos ideológicos ligados à construção discursiva e para a descrição da estrutura textual de indignação, vigente em cartas do leitor da imprensa de bairro paulistana. Na última seção, retomaremos as discussões realizadas nas seções anteriores e teceremos considerações finais acerca da abordagem da DF no PB. 1. A Dinâmica de Forças: o modelo de Talmy Segundo Talmy (2000), a DF envolve quatro componentes fundamentais que se manifestam, explícita ou implicitamente, nas construções linguístico-discursivas pertinentes. São eles: a. as entidades de força; b. a tendência intrínseca de movimento ou repouso dessas forças; c. o seu equilíbrio; e d. a resultante de sua interação. As entidades envolvidas consistem no Antagonista (ANT) e no Agonista (AGO). O AGO consiste no participante em foco, que apresenta uma tendência ao repouso ou ao movimento/ação, representando, segundo Moura (2012), o estado natural de um objeto de conceptualização3. No modelo prototípico, essa entidade será confrontada pelo ANT, participante que possui uma tendência oposta à do AGO e cuja força determinará se este será submetido à sua tendência ou se permanecerá no estado que lhe era vigente até então. O quadro, a seguir, sintetiza as representações básicas do modelo: Quadro I. Representações básicas do esquema de Dinâmica de Forças (baseado em Talmy, 2000: 414)

Dessa interação, emergem alguns padrões relevantes, dentre os quais se destacam a causação, o bloqueio, a permissão e a concessão4. Vejamos5:

manifesta causalidade externa. Não debateremos esta questão, pois foge ao escopo deste trabalho, mas a consideramos, de fato, pertinente.

3 Ressalvamos que esse estado ‘natural’ e a tendência ao repouso ou movimento não consiste em algo objetivamente dado, mas é derivado da perspectivação conceptual (construal) assumida pela cena.

4 Trata-se apenas dos esquemas principais, que podemos denominar primitivos. Há esquemas complexos, derivados deste, aos quais convergem relações aspectuais diversas. Alguns desses

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1. A mãe fez o filho estudar.

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> +

• -

O exemplo (1) ilustra o esquema de causação. Nele, o AGO, representado pelo sintagma nominal o filho, assume uma tendência de não estudar, o que é indicado pela marca de repouso. O sintagma nominal A mãe atua como ANT mais forte que modifica o estado ‘natural’ do AGO, impondo-lhe sua tendência — ação/movimento. A resultante indica, portanto, ação e está ligada a uma cena em que o AGO acaba estudando. O verbo fazer consiste, no caso, na estrutura linguística que ativa a relação causativa, possivelmente ligada às experiências pré-conceptuais de pressão e compulsão. 2. A mãe não deixou o filho estudar.

Neste exemplo6, a tendência do AGO o filho é estudar, ao contrário do que se mostrou em (1), o que comprova o fato de que a tendência consiste em um efeito da perspectiva da construção, o que implicita possíveis julgamentos diferentes7. A mãe, ANT, impõe sua tendência de repouso ao AGO, bloqueando sua ação, o que resulta em não estudar. No caso, é a combinatória da partícula de polaridade não ao verbo deixar que ativa a concepção de bloqueio, provavelmente derivada de nossa experiência com restrições de movimento. 3. A mãe deixou o filho estudar.

Em (3), à semelhança do anterior, a tendência do AGO o filho é estudar. A mãe, ANT que tende ao repouso e cuja força é mais intensa, é capaz de bloquear o filho; entretanto, a cena é construída de modo a inserir o ANT em um contexto de desengajamento com o AGO, ou seja, em uma situação em que as entidades não se confrontam, o que caracteriza um

padrões serão examinados na seção 3.

5 Para ilustrar as categorias primitivas, partiremos de quatro exemplos fictícios. Ressaltamos que, nas seções 3 e 4, traremos sempre exemplos reais, coletados de jornais, revistas, blogs e redes sociais, para uma fundamentação pertinente do fenômeno nos distintos níveis linguísticos.

6 Ressalvamos que a ordem em que o AGO e o ANT são inseridos no esquema é arbitrária; entretanto, preferimos uma exposição icônica, tendo em vista nosso padrão de leitura da esquerda para a direita. Assim, colocamos sempre a entidade em movimento à esquerda e a entidade em oposição – repouso – à direita.

7 No primeiro caso, por exemplo, a construção favorece inferências de que se trata de um jovem que não gosta de estudar ou que seja preguiçoso, ao passo que a segunda privilegia inferências de um jovem esforçado e de uma mãe que não cumpre seu papel prototípico, que seria o de zelar pela educação do filho.

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esquema de permissão. Notemos, contudo, que o padrão implica uma relação de poder que pende ao ANT. 4. Apesar dos incentivos da mãe, o filho não estudava.

Neste exemplo, o AGO o filho tende a não estudar, e a resultante ratifica essa tendência. Trata-se de um caso em que o ANT não tem força suficiente para reverter a orientação da entidade focal, o que consiste em um padrão de concessão. No exemplo, os incentivos da mãe8 teriam o potencial de levar o filho ao estudo, porém, o estado natural de não estudar é mais forte — por razões não perfiladas no complexo oracional —, fator do qual deriva a resultante assinalada. Assim, a concessão pode ser vista como um padrão ligado a experiências com remoção de obstáculos e resistência a forças contrárias. Expostos os esquemas que denominamos primitivos, passamos, então, à análise do modo pelo qual esses padrões de força interagem com diferentes estruturas e construções linguístico-discursivas, considerando sua interface com a aspectualização e com a contrafactualidade. 2. A Dinâmica de Forças no continuum léxico-gramática Iniciamos a análise do componente da DF com uma categoria de classe fechada: a preposição. Talmy (2000), assim como Langacker (2008), concebe que o léxico e a gramática não consistem em subsistemas dicotômicos da linguagem, mas em sistemas que se constituem em um continuum categorial, posição também partilhada por algumas teorias funcionalistas, como a Sistêmico-Funcional (Halliday, 2004).

Evans e Green (2006: 502, colchetes nossos) apontam, baseados em Talmy (2000), que “o subsistema de classe fechada [gramatical] é semanticamente restrito e tem uma função estruturante, ao passo que o sistema de classe aberta [lexical] é semanticamente não restrito e tem a função de prover conteúdo conceptual”9. Para Langacker (2008), ambos os subsistemas são significativos e o que os diferencia é o grau de esquematicidade ou especificidade que os caracteriza. Nesse sentido, palavras gramaticais teriam um significado esquemático, derivado de sua relação com diversos domínios de experiência, dentre eles, esquemas imagéticos, como CONTÊINER, ESCALA, FORÇA, JORNADA, dentre outros. Vejamos os exemplos, a seguir, extraídos dos jornais brasileiros Folha de S. Paulo e Extra, em suas versões online: 5. Segundo o último balanço da OMS, do dia 6, 961 morreram de ebola na África10. 6. Total de 887 pessoas morreram por ebola na África, segundo OMS11.

8 O verbo incentivar e sua respectiva forma nominalizada incentivo consistem em instâncias de um

padrão interpsicológico (ou sociodinâmico) de causação. Tal esquema será analisado na seção 3. Nesse sentido, o que, de fato, ocorre no exemplo é uma interação complexa de elementos de força – por um lado, uma causação e, por outro, uma concessão. A explanação, contudo, visava apenas a ilustrar o último desses esquemas.

9 [...] the closed-class subsystem is semantically restricted and has a structuring function, while the open class system is semantically unrestricted and has the function of providing conceptual content.

10 http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/08/1497470-oms-declara-emergencia-internacional-para-conter-surto-de-ebola-na-africa.shtml, consultado em 11 ago. 2014.

11 http://extra.globo.com/noticias/saude-e-ciencia/total-de-887-pessoas-morreram-por-ebola-na-africa-segundo-oms-13485738.html, consultado em 11 ago. 2014.

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Neles, as preposições de e por atribuem relações de causalidade, que podem ser explicadas pela DF. Em (5), a preposição de, que remete ao esquema imagético de ORIGEM, permite conceber o ebola como um ANT forte que impulsiona o AGO 961 [pessoas], que tende a viver, à morte. É possível, portanto, haver um mapeamento metafórico entre o esquema ORIGEM-PERCURSO-DESTINO e o esquema de FORÇA, de modo que um participante com papel de ORIGEM pode ser projetado como FORÇA COMPULSÓRIA que leva a uma mudança no estado natural de outra entidade, atualizando um esquema de causação. Fenômeno semelhante ocorre em (6). Entretanto, a preposição que ativa a interação de forças é a preposição por. Em termos do esquema de JORNADA, a preposição por perfila o percurso, ou seja, o caminho que leva da ORIGEM — a vida — ao DESTINO — a morte. Trata-se de uma metáfora similar — embora não idêntica à anterior — que também permite inferir a doença como responsável pela morte das 887 pessoas, atuando, assim, como ANT da cena descrita12. Vejamos um novo caso de causação, ativado, contudo, por conjunção. O exemplo foi extraído do portal de notícias esportivas LANCE!NET: 7. 'Perdeu porque jogou mal. Não tem desculpa', resume técnico do Timão13. A conjunção causal porque atua no sentido de marcar uma relação de DF que não se processa entre dois participantes propriamente ditos — sintagmas nominais, representando regiões delimitadas no ESPAÇO (LANGACKER, 2008) —, mas entre dois eventos associados — orações correspondentes a regiões delimitadas do domínio de TEMPO — ou entre um evento e um participante, como ocorre no exemplo (6). Nele, jogar mal atua como um ANT forte que impele o AGO Timão a perder. Aparentemente, temos uma construção simples; entretanto, há um aspecto subjacente que não pode ser negligenciado: as entidades focais nominais — explícitas ou implícitas, objetivas ou subjetivas, no sentido langackeriano14 — possuem uma tendência a um estado ‘natural’, o que pode ativar julgamentos positivos ou negativos preferenciais em relação a uma dada entidade.

No caso, podemos inferir que o AGO Timão15 tende a vencer, sendo necessária uma causa externa atípica que provoque a reversão dessa tendência — no caso, jogar mal. Reboul (2004 [1998]) já afirmava, em termos argumentativos, que só se justifica uma afirmação caso se preveja resistência a ela, ou seja, se houver uma expectativa contrária. Essa expectativa consiste justamente na tendência do AGO, o que mostra como, de fato, a DF parece estruturar aspectos importantes da nossa capacidade argumentativa e da nossa projeção de realidade (LANGACKER, 2008). Ainda em termos de conjunções, vale atentar para o uso das concessivas. Observemos o exemplo, a seguir, extraído do site torcedores.com: 8. Apesar do time inteiro ter jogado mal, o goleiro foi crucificado pela derrota, por goleada, diante da Holanda, sendo responsabilizado por três dos gols que a equipe tomou16.

12 Não consiste objetivo deste artigo detalhar as projeções metafóricas envolvidas. Entretanto,

concebemos que as relações funcionem via integração conceptual (FAUCONNIER & TURNER, 2002; GRADY, 2007). Em um dos inputs, temos o esquema de JORNADA; em outro, o de FORÇA. No espaço genérico, temos as noções de ORIGEM ou PERCURSO como traços comuns ao de COMPULSÃO e FORÇA CONTRÁRIA. Assim, emerge no espaço-mescla uma relação híbrida em que a origem ou o percurso torna-se uma força antagônica que imprime uma condição diferenciada à entidade agônica, mudando seu estado e, portanto, alterando seu destino.

13 http://www.lancenet.com.br/corinthians/Corinthians-Luverdense-Copa_do_Brasil_2013-Tite_0_979102089.html,

consultado em 11 ago. 2014. 14 Explicações mais detalhadas sobre subjetividade e objetividade em Langacker (2001; 2008) serão

oferecidas na análise dos exemplos (13) e (14). 15 Devemos ressalvar que só podemos inferir que o AGO é o Timão, devido à oração projetante resume o

técnico do Timão, que nos permite associar o sujeito elíptico ao time, então, mencionado. 16 http://torcedores.com/noticias/35850-cassillas-de-idolo-a-reserva-contestado-do-real-madrid, consultado em 11

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Conforme assinalamos anteriormente, conjunções concessivas ativam um esquema homônimo, no qual o ANT, por ser mais fraco que o AGO, é incapaz de reverter a tendência ou o estado natural da entidade focal. No caso, o ANT consiste no evento de o time inteiro ter jogado mal. Tal ANT deveria, em um esquema causativo, impulsionar o AGO — torcedor, prototipicamente — a condenar o time como um todo, e não apenas o goleiro. Ao ser escopado pela conjunção apesar de, o conceptualizador instrui a leitura de que tal ANT seja fraco e que a tendência de salvaguardar o goleiro deva ser desconsiderada no contexto. Em outros termos, o AGO tenderia a crucificar esse jogador. Temos, aqui, uma construção relevante, pois, por ela, depreendemos uma potencial visão autoral de injustiça, uma vez que se ativa um implícito/tendência de que o goleiro não deveria ter sido crucificado pela derrota se o time inteiro jogara mal, construindo uma atitude agônica passível de reprovação. Cabe ressaltar também que a formulação em voz passiva promove uma ocultação desse Agonista, que é subtraído da janela de atenção (TALMY, 2000). O goleiro é, no caso, um Paciente da relação, sendo alvo da atividade de crucificar (tendência do AGO) e, portanto, parte da resultante. Temos, portanto, o seguinte esquema17:

>

> +

• -

O exemplo, a seguir, mostra, por sua vez, a aplicação da categoria de DF no que tange à interação entre formas verbais e formas adverbiais, além de apresentar um caso de complexidade aspectual: 9. A mídia vai perseverar em sua campanha. Conseguirão, finalmente, indispor Dilma com Lula?18 Conforme aponta Talmy (2000), o advérbio finalmente perfila o último estágio de uma sequência de forças complexa que prevê uma resistência inicial do AGO em relação à força contrária do ANT que, paulatinamente, subverte a capacidade de resistência daquele, levando à imposição de sua tendência. Função análoga exerce o verbo conseguir, embora este o faça com traços de modalidade dinâmica. No caso específico do exemplo, o fato de a construção estar ligada a uma função discursiva de pergunta não torna factual a reversão, mas demanda um posicionamento dos leitores acerca dessa realidade potencial. O esquema, a seguir, ilustra o exposto:

• >

> -

> +

> +

• +

• -

• -

Nesse sentido, vemos que, inicialmente, a AGO Dilma tende a não se indispor com Lula, o que é marcado pela tendência intrínseca de repouso a ela associada. Entretanto, o ANT a mídia esforça-se no sentido de exercer pressão contínua sobre o AGO. Nesta fase, a intensidade da força do ANT ainda é inferior à do AGO, mostrando que este possui a capacidade de resistir à ação contrária, o que fica representado na resultante de repouso.

ago. 2014.

17 Colocamos o SN entre colchetes por tratar-se de um participante implícito. Hipotetizamos que seja a

torcida, por corresponder à entidade prototípica a ocupar tal posição em um frame ligado ao futebol. 18 Folha de S. Paulo, Painel do Leitor, A3, 30 de janeiro de 2013.

ANT: o fato de o time inteiro ter jogado mal

AGO: [a torcida]

RES: crucificar do goleiro pela derrota

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Contudo, o exercício de força contínua, marcado na caixa esforço, assinala a potencialidade de o ANT subverter o quadro vigente, exaurindo o AGO, de forma a alterar o equilíbrio de forças, conforme podemos observar na representação medial. O estágio final consiste na culminação da pressão do ANT, que, tendo vencido a resistência do AGO, impõe sua tendência, levando-o à ação, conforme podemos verificar na resultante. Nesse sentido, o que a forma adverbial finalmente promove é o perfilamento, ou seja, a atração da atenção para este último estágio, subtraindo o foco dos dois estágios iniciais, muito embora se pressuponha que tenham ocorrido. Fato diferente ocorre com o verbo tentar. Observemos: 10. Os jovens que participam dessa modalidade de expressão poderiam usar sua capacidade de mobilização para tentar mudar o ensino no país19. Nesse caso, a forma verbal em destaque atua no sentido de invocar o esquema acima, em que o ANT se esforça para vencer a estabilidade do AGO. No caso, o ensino no país consiste no AGO, e os jovens, no ANT. Ressaltamos que, nesses usos, são os elementos aspecto-temporais que determinam o perfilamento dos estágios envolvidos e a resultante. No exemplo dado, a resultante é desconhecida; em casos de uso do verbo tentar no Pretérito Perfeito, contudo, como em Os jovens tentaram mudar o ensino do país, invoca-se, prototipicamente, um perfilamento do primeiro estágio, em que a reversão da tendência não ocorre, apesar do esforço nesse sentido. Em termos de formas verbais, a DF pode ser mobilizada para explicitar diferentes conteúdos lexicais de verbos plenos e também para a análise da modalidade. Vejamos alguns desses casos: 11. Alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ocuparam na manhã desta quarta-feira a Reitoria da instituição20 12. Professores invadem a Câmara Municipal de Goiânia21 13. Em muitos momentos, concordo que a polícia não deve agir de forma violenta para conter manifestações ou para efetuar prisões22. 14. Quero sugerir que a manchete de ontem da Folha ("Triênio de Dilma deverá ser o pior da América do Sul", "Primeira Página") seja alterada, pois induz imaginar que o crescimento do PIB do Brasil é menor que o da América do Sul23. Em (11) e (12), o contraste entre os verbos ocupar e invadir pode ser abordado por meio da Dinâmica de Forças e revela diferentes posicionamentos ideológicos institucionais dos periódicos no que se refere às ações descritas.

O verbo ocupar parece-nos neutro em termos de Dinâmica de Forças e refere-se a uma ação na qual um grupo de atores sociais adentra uma determinada região do espaço, tomando-a. Em compensação, o verbo invadir pressupõe uma resistência e, portanto, uma ação esforçada que rompe com esse obstáculo inicial, de forma que os participantes que praticam tal ação acabam rompendo com o que seria o estado natural da situação vigente. Tal aspecto é importante, na medida em que, segundo Nagel & Waldmann (2012), nossos julgamentos morais podem estar associados a uma base imagética calcada na Dinâmica de Forças. Para os autores, as culturas ocidentais fundamentam-se fortemente no chamado princípio de não interferência (PNI), que propõe que deve ser permitido aos

19 Folha de S. Paulo, Painel do Leitor, A3, 24 de janeiro de 2014. 20 http://zh.clicrbs.com.br/rs/porto-alegre/noticia/2014/05/estudantes-ocupam-reitoria-da-ufrgs-4500028.html,

consultado em 11 ago. 2014. 21 http://www.jaraguanoticia.com/professores-invadem-a-camara-municipal-de-goiania.html, consultado

em 11 ago. 2014. 22 Folha de S. Paulo, Painel do Leitor, A3, 15 de janeiro de 2014. 23 Folha de S. Paulo, Painel do Leitor, A3, 04 de janeiro de 2013.

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Agonistas manifestarem suas tendências intrínsecas. O rompimento dessa premissa favorece um julgamento moral negativo do Antagonista24. Em consequência disso, (12) favorece uma conceptualização que envolve força, violência, o que se liga à avaliação moral negativa, ao passo que (11) parece minimizar — ou até anular — essa visão, uma vez que não se rompe com o PNI. Em (13) e (14), temos, respectivamente, um uso deôntico e um uso epistêmico do verbo dever. No primeiro desses casos, deve-se notar que o ANT consiste na própria voz autoral, ou seja, no conceptualizador-enunciador, que se investe da autoridade para estabelecer uma relação de bloqueio que expressa uma necessidade de mudança da tendência vigente; no caso, a de que o AGO a polícia não aja de forma violenta no que se refere a conter manifestações ou efetuar prisões. Langacker (2008), ao tratar do Ground25, mostra que este pode ser construído objetivamente — quando se explicitam componentes da situação enunciativa, como o uso do pronome de primeira pessoa ou de um demonstrativo — ou subjetivamente — quando esses componentes estão implícitos e não se tornam objeto de conceptualização, muito embora estejam envolvidos na construção linguística. Trata-se exatamente do que ocorre no uso deôntico do verbo dever em língua portuguesa. A autoridade do falante — como coordenada eu do Ground, que atua como ANT forte, em repouso, que bloqueia, no campo da realidade potencial e desejável, a ação do AGO a polícia — encontra-se implícita, manifestando, assim, um caso de subjetividade. No uso epistêmico em (14) — Triênio de Dilma deverá ser o pior da América do Sul —, também verificamos um caso de subjetividade no que tange à instanciação dos elementos do Ground. Entretanto, trata-se de uma dinâmica diferenciada, uma vez que o participante subjetificado é o leitor. Para De Mulder (2007), os usos epistêmicos se baseiam na metáfora da JORNADA, atualizando o esquema de ORIGEM-PERCURSO-DESTINO, de forma que as conclusões consistem no DESTINO para o qual o ouvinte-conceptualizador (AGO) vai sendo levado, com maior ou menor probabilidade, considerando as compulsões causativas advindas do conjunto de evidências oferecido e as barreiras potenciais erguidas pelos contra-argumentos, que atuam como possíveis Antagonistas. No caso, um conjunto de evidências não explicitadas — dentre as quais, entretanto, se poderia inferir tratar-se de um crescimento baixo do PIB em relação à América do Sul, como aponta o missivista — consistiria em um ANT forte, capaz de impelir o AGO conceptualizador-leitor, subjetificado, em repouso, à conclusão de que o triênio Dilma seria o pior da América do Sul. O modal atua como um gerenciador (MIRANDA, 2005) que assinala o grau de força por meio da qual o conjunto de evidências é suficiente para gerar a conclusão, considerando-se possíveis obstáculos, que envolvem refutações fortes e/ou garantias frágeis (TOULMIN, 2006 [1958])26. Nesse sentido, verificamos que, em ambos os usos descritos do modal dever, há um elemento do Ground subjetificado. No deôntico, trata-se do conceptualizador-falante/escritor que atua como ANT forte para impelir ou bloquear a tendência do AGO, de

24 Em hipótese alguma, tal princípio aplica-se a toda e qualquer situação. Nos exemplos didáticos

propostos na segunda seção, a mãe romper com a tendência do filho a não estudar, fazendo-o dedicar-

se à escola, não consistiria em um evento julgado de forma negativa, uma vez que, em nossos modelos

mentais sobre educação em família, a participação materna como incentivo ao filho nos estudos é

considerada positiva. A interferência vinda de um agente totalmente externo ao âmbito familiar ou

escolar, entretanto, poderia ser vista, de fato, como uma intromissão e receber, assim, a avaliação

negativa. 25 A noção langackeriana de Ground refere-se, grosso modo, à conceptualização da situação enunciativa, o

que inclui os interlocutores e sua interação, além das coordenadas espaço-temporais relativas ao aqui-

agora. Para detalhes, consultar Langacker (2001). 26 O modelo argumentativo de Toulmin (2006 [1958]), refinado em Toulmin, Rieke & Janik (1984

[1978]), parece adequado para uma análise ligada à Dinâmica de Forças. Sinteticamente, Garantias

consistem em proposições gerais, derivadas de nossa experiência, que estabelecem raciocínios

hipotéticos que interligam os Dados (conjunto de evidências) às Conclusões.

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forma a buscar transformar a realidade desejável e potencial em factual. No epistêmico, é o conceptualizador-ouvinte/leitor que atua como AGO fraco que é impelido a um dado raciocínio conclusivo por um conjunto de evidências antagônicas, mais ou menos fortes, passíveis de bloqueios diversos, de forma que o modal se torna responsável por marcar o grau de confiabilidade dessas evidências para a validação de uma dada conclusão. Por conseguinte, as formas de modalização revelam facetas da identidade dos sujeitos, conforme nos aponta Miranda (205: 185):

[...] como agentes intencionais, os sujeitos se projetam em contraparte, constroem suas identidades através do outro [...]. A metáfora de causa como imposição de forças/suspensão de barreiras, é, pois, a configuração semântico-linguística dada a esse drama, de modo a fazê-lo simbolicamente representar-se diante do outro. Assim, para alcançar seus interlocutores e fazê-los compreender as diferentes imagens projetadas de si mesmos no fluxo das interações, os sujeitos franqueiam ou bloqueiam-lhes a passagem através dessa construção metafórica promovida pela linguagem: a modalidade. Recorta-se, dessa forma, um processo definidor de diferentes alinhamentos do sujeito (neutralidade, positividade e negatividade), de acordo com a verificabilidade ou com a validade de suas enunciações [...] (MIRANDA, 2005: 185; negrito da autora)

Por fim, antes de prosseguirmos para a análise da DF em termos discursivo-textuais, passamos para o seu exame no que se refere à dramatização intrapsicológica: 15. Neymar se emociona com festa no Camp Nou: "Me segurei para não chorar"27 O verbo segurar apresenta-se, no exemplo, como componente de uma metáfora cujo domínio-fonte é físico, envolvendo forças e objetos passíveis de mobilização, e cujo domínio-alvo é psicológico, envolvendo força de vontade e estado emocional. Nele, o AGO é apresentado pelo pronome oblíquo me, que remonta ao jogador Neymar, que, por sua vez, se constrói como um agente que tende a chorar. O ANT, eu, elíptico na construção, consiste na entidade que bloqueia a vazão emocional do próprio eu, cindido na construção. Segundo Talmy (2000), temos aqui um caso de self dividido, no qual o AGO tende a representar os desejos internos do self, ao passo que o ANT tende a constituir-se no senso de responsabilidade, de manutenção da imagem pública, internalizando as demandas sociais externas. Nesse sentido, o que ocorre é a representação de um conflito emocional interno entre o ser e o parecer. 3. A Dinâmica de forças no nível discursivo-textual: padrões negociativos e ideologia Embora Talmy (2000) anuncie a aplicação da categoria semântica de DF ao nível discursivo-textual, são ainda escassos os trabalhos voltados a essa relação. O objetivo desta seção consiste justamente em mostrar de que maneira esse diálogo pode acontecer, tomando, em primeiro lugar, a questão ideológica e, em segundo lugar, a estruturação negociativa do gênero28.

Giddens (2009) concebe ideologias como padrões de significação que legitimam assimetrias de dominação. Van Dijk (2003) as concebem como sistemas de crenças que

27 http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2013/06/03/neymar-se-emociona-com-festa-no-camp-

nou-me-segurei-para-nao-chorar.htm, consultado em 11 ago. 2014. 28 Para maiores detalhes acerca dos aspectos negociativos dos gêneros discursivos, ver Gonçalves

Segundo (2011; 2012). Para trabalhos que relacionam DF à análise discursiva, ver Hart (2014) e

Gonçalves Segundo (2014b).

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embasam práticas sociais e estão ligadas à construção sociocognitiva de distintos grupos, polarizados em termos de nós x eles.

Como padrões de significação, ideologias podem ser estudadas a partir da análise da configuração linguística do discurso de determinados atores sociais, entendidos como representativos de uma dada concepção da realidade, seja ela hegemônica ou alternativa. Nesse sentido, as categorias propostas pelo modelo de Talmy (2000) podem configurar-se em ferramentas úteis para a depreensão desses modelos representacionais.

Vejamos os exemplos, a seguir, extraídos de dois artigos de opinião com posições antagônicas acerca de uma liminar que proibia a realização de rolezinhos29 nos shoppings da capital paulista, a fim de ilustrar o procedimento de análise: 16. [...] Os shoppings são empreendimentos privados abertos ao público especificamente para compras, lazer, diversão, passeio.

A maioria deles tem cinemas e praças de alimentação. Nenhum deles tem ainda uma "praça do rolezinho", modalidade de diversão muitas vezes conturbada por jovens infratores, ferindo o legítimo direito de pais, mães e filhos a um lazer sossegado e seguro que vão buscar nesses ambientes privados e protegidos. [...]30 17. [...] O que pedem os "rolezinhos"? Sem danificar o patrimônio e sem registros de furtos, jovens da periferia querem circular por espaços que lhe são proibidos. Espaços segregados. Segregados, até agora, não pela força do direito, mas porque não há nada ali que lhes seja acessível.

O grande problema da decisão é que ela assegura um direito à segregação. Shoppings são espaços de livre circulação. Impedir a entrada de alguém em

estabelecimento comercial por motivo de discriminação ou preconceito é crime. Admitir que só algumas pessoas podem circular por lá, com policiais e oficiais de

Justiça analisando quem pode ou não entrar, oficializa a discriminação. [...]31 No excerto (16), observamos que os rolezinhos são caracterizados como modalidade de diversão conturbada frequentemente por jovens infratores, ANT forte que bloqueia o AGO pais, mães e filhos de ter lazer sossegado e seguro. Em consequência disso, os encontros entre jovens são vistos como obstáculos para que os “verdadeiros” frequentadores do shopping — aqueles que compram, divertem-se e passeiam, segundo a construção autoral — possam exercer sua tendência, ou seja, sua liberdade. Nessa perspectiva, o que os adolescentes fazem é romper com o PNI relativo a esses potenciais consumidores. A liminar atuaria, portanto, como um ANT que bloquearia a ação dos rolezeiros, o que garantiria que os jovens infratores desengajassem o AGO pais, mães e filhos, atualizando um esquema de permissão que viabilizaria o lazer supostamente sossegado e seguro deste último grupo. Em (17), por outro lado, a segregação socioeconômica atua como um ANT forte que bloqueia o AGO jovens rolezeiros de circular livremente pelos espaços do shopping e, nesse sentido, a liminar que proíbe os encontros torna-se mais um ANT bloqueador dos jovens, oficializando, na visão autoral, a discriminação. A própria discriminação é construída em

29 No final de 2013 e no início de 2014, os rolezinhos — encontros de jovens realizados, primariamente,

em shopping centers de grandes centros urbanos — tornaram-se notícia nacional e centro de calorosas

polêmicas na mídia brasileira, mobilizando especialistas de distintas áreas, que tendiam a polarizar os

eventos como manifestações orientadas ora pela diversão, ora pela contestação social. Dentre o

jornalismo impresso, a Folha de S. Paulo destacou-se por apresentar uma cobertura extensiva da

prática, abordada em editoriais, artigos de opinião, notícias, reportagens e cartas do leitor. 30 Excerto do artigo de opinião Tais como são, os 'rolezinhos' atentam contra direitos coletivos,

assinado por Mauro Rodrigues Penteado e publicado na Folha de S. Paulo, em 14 de janeiro de 2014. 31 Excerto do artigo de opinião Liminar que proíbe encontro assegura 'direito à segregação', assinado

por Pedro Abramovay e publicado na Folha de S. Paulo, em 14 de janeiro de 2014.

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termos de forças, já que se constroem paralelamente, no espaço factual, duas representações distintas. Por um lado, os rolezeiros são vistos como agentes potencialmente bloqueados pelos oficiais de justiça e policiais de sua tendência de circular pelo shopping, ao passo que os outros frequentadores teriam permissão de fazê-lo. Nesse sentido, o fato de policiais e oficiais de justiça, como ANT, agirem de modo distinto em relação a classes diferentes de AGO revelaria uma situação de preconceito. Nesse caso, a liminar rompe o PNI no que se refere aos jovens. Assim, podemos notar como a vinculação de dados atores sociais, acontecimentos, fenômenos e objetos semióticos ou materiais à posição de ANT e AGO, associados a esquemas de bloqueio, causação, permissão e concessão, podem estar diretamente relacionados às ideologias que subjazem à construção social do comportamento dos diversos grupos. Por fim, observemos como a categoria pode ser aplicada para a compreensão da sequência retórico-afetiva de indignação, descrita em Gonçalves Segundo (2014a), no âmbito de cartas do leitor que atualizam o padrão negociativo de reclamação. Vejamos um exemplo: 18. EMEF sem professores

Li no Jornal Nosso Bairro uma carta de pais sobre a falta dos problemas que nós pais e alunos estamos passando com a escola EMEF Professor Amadeu Mendes. Pois bem, tudo continua uma vergonha, nossos filhos estão sem aulas há semanas. Existe um rodízio que na semana pelo menos 2 dias ficaram à toa sem ter o que fazer, correndo os riscos de ficar para trás. Estamos em abril e ele só teve uma aula de inglês, de ciências seu caderno está em branco, sem contar que nas outras matérias é mais uma revisão do ano anterior. Ontem ouvi meu filho dizer que ele e os amiguinhos ficaram muito tristes de não ter aula sexta-feira (07/04/06) não haveria aula.

Na sala de meu filho, saíram cinco crianças para escolas particulares. É isto que eles querem, esvaziar a escola? Já que alegam que as classes estão com um nível superior ao ideal. Tirei meu filho de uma escola particular, e já estou arrependida, mesmo sem poder pagar, é melhor fazer sacrifício do que ver seu filho sem ter futuro. Nós pedimos respeito e responsabilidade, não é justo. Pagamos impostos altíssimos e nada é de graça, a escola é pública porém não quer dizer que seja sinônimo de má qualidade.

Pedimos providências urgentes. S.M.32

Em Gonçalves Segundo (2014a: 88), expusemos uma sequência de etapas que caracterizam o modelo de indignação. Reproduzimos o esquema abaixo:

1. Existe uma classe de eventos x. 2. x traz consequências negativas y. 3. Há condições e existe possibilidade de se evitar a ocorrência de x. 4. Espera-se que x não aconteça. 5. O evento P, instância de x, ocorre e acarreta, novamente, consequências y, quebrando a expectativa de não ocorrência prevista em 4. 6. Julgamentos de sanção e estima social33, especialmente ligados à injustiça, à omissão ou à incompetência, são ativados em relação à inércia no que tange ao alcance da resolução prevista em 3.

32 Carta do leitor, Jornal Nosso Bairro, São Paulo, 29 de abril a 05 de maio de 2006. O texto foi mantido

com fidelidade absoluta em relação ao original. 33 Para detalhes acerca das noções de julgamento e afetos, consultar Martin & White (2005) e Gonçalves

Segundo (2014a).

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7. y atua como gatilho de reações afetivas negativas, dentre elas, a indignação, vista como uma reação de insatisfação/infelicidade a efeitos potencialmente injustos, que sincretiza o desejo de subversão das condições de ocorrência de x. 8. A indignação pode servir de gatilho para ações ligadas ao reforço de 3, visando a reforçar as condições para o bloqueio de x e, portanto, para o desaparecimento de y.

Nosso objetivo, neste momento, é mostrar de que modo a interação entre forças permite elaborar os aspectos conceptuais subjacentes a esse modelo. Para isso, partiremos da análise da carta em questão, para, depois, tecermos generalizações34. Em primeiro lugar, temos um esquema de causação, no qual o ANT excesso de alunos impele o AGO escola a adotar um rodízio, quebrando a tendência da instituição a promover um regime normal de aulas. A resultante adoção do rodízio torna-se, então, um ANT que causa uma série de outros problemas, uma vez que leva o AGO alunos a ficar triste, com cadernos em branco e com formação deficitária. Essa dinâmica causativa corresponde às etapas 1 e 2 do modelo acima e consiste nos gatilhos iniciais para a sequência de indignação. Entretanto, a noção de indignação encontra-se ligada à possibilidade de evitarmos as ocorrências indesejadas, ou seja, sua ativação deriva da potencialidade de bloqueio dos eventos negativos. Em outros termos, enquanto num espaço mental factual se formulam relações causativas, tais quais as expostas acima, em um espaço contrafactual, emerge a situação desejada e esperada — a de que a escola (ANT forte) permita que as aulas35 (AGO em ação) ocorram normalmente, de forma a bloquear as consequências negativas da adoção do rodízio. Nesse sentido, o PNI estaria relacionado à expectativa social de que a escola viabilize condições para que os alunos frequentem as aulas e aprendam, o que corresponde às etapas 3 e 4 do modelo anterior. A quebra da expectativa e a nova ocorrência do evento negativo — correspondente à etapa 5 — serve como gatilho do processo de indignação, o que pode ser vislumbrado no seguinte excerto da missiva: Ontem ouvi meu filho dizer que ele e os amiguinhos ficaram muito tristes de não ter aula sexta-feira (07/04/06) não haveria aula. Na medida em que o PNI prevê a ocorrência normal de aulas e a sociedade espera das escolas a garantia do direito fundamental de educação, são ativados julgamentos negativos na esfera da omissão, da incompetência e/ou da injustiça — caso deste texto — para explicar a nova incidência, o que equivale à etapa 6. A resultante negativa vigente no espaço factual torna-se, portanto, um ANT forte que compele o AGO mãe ao estado emocional de indignação. Esse afeto (MARTIN & WHITE, 2005) passa a constituir-se como um motor para o desejo de subversão dessa realidade (etapa 7), manifestado pela transformação do factual em contrafactual, ou seja, pelo ato de a escola permitir que as aulas ocorram normalmente, bloqueando as consequências negativas advindas da suspensão das atividades regulares, em vez de causar um rodízio responsável pela ativação de consequência negativas. As soluções propostas (etapa 8) são, nesse sentido, a resultante de um processo no qual a indignação, como ANT, compele causativamente o AGO mãe. No caso desse texto, os comandos que realizam as soluções são bem amplos e mostram um esquema sociodinâmico de forças — Nós pedimos respeito e responsabilidade [...] Pedimos providências urgentes. Nele, a mãe torna-se um ANT que, por meio de um processo verbal

34 Nesse domínio de análise, devemos focar na dimensão retórica subjacente ao texto, responsável pela

estruturação de uma dada representação/perspectiva sobre a realidade, e não na descrição detida de

cada complexo oracional instanciado, como fizemos no subsistema gramatical. 35 Deve-se ressalvar, neste ponto, que o AGO seria, na verdade, os professores, e as aulas seriam resultado

da atuação daqueles. Do mesmo modo, a escola, como ANT, ocupa o papel de seu corpo diretivo,

representado, provavelmente, pela coordenação e pela direção. Tem-se, assim, em ambos os casos,

uma relação metonímica. Não obstante, a adoção de qualquer um dos componentes metonímicos

como participantes da DF não altera a análise realizada.

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(Halliday, 2004) ou verbo de elocução, busca conseguir que o AGO implícito governo36 aja de forma a reverter o quadro injusto vigente. Essas providências tornar-se-iam, por sua vez, responsáveis pelo bloqueio do rodízio e, portanto, pelo desengajamento do AGO aulas, que teria permissão para ocorrer normalmente, convertendo, assim, o contrafactual desejável em factual. Assim, em síntese, temos que:

a. Um evento antagônico, que poderia e deveria ser bloqueado normalmente, causa o AGO a experenciar consequências negativas.

b. O bloqueio não ocorre, devido à ação ou inação humana, derivadas de incompetência, omissão e/ou corrupção (injustiça), que permitem ou causam a instanciação do evento.

c. Os atores sociais e instituições deveriam permitir que o estado natural vigente, não negativo, fluísse, bloqueando possíveis casos de interferência (manutenção do PNI).

d. A indignação eclode em consequência desse conjunto amplo de fatores, impelindo o conceptualizador-produtor a buscar soluções, o que implica tornar-se ANT de uma relação sociodinâmica de forças que assume como AGO agentes de maior poder, potencialmente capazes de subverter, em sua agência, as condições de emergência do evento-gatilho.

e. A resultante construída discursivamente consiste no método por meio do qual a relação contrafactual desejada — que se opõe ao estado vigente — pode ser instanciada.

Considerações finais O objetivo deste capítulo foi mostrar a permeabilidade da categoria semântica de Dinâmica de Forças em diversos níveis linguísticos, de modo a mostrar que o esquema imagético de FORÇA se encontra subjacente a uma série de construções linguísticas, podendo servir como ferramenta útil não apenas na descrição gramatical, mas também na análise discursiva. Iniciamos o percurso pela abordagem gramatical, mostrando de que forma a categoria se relaciona ao uso de determinadas preposições, como de e por causativos, relacionando-o à metáfora conceptual de JORNADA. Posteriormente, vimos que grupos de conjunções causais e concessivas também podem ser analisados a partir dessa perspectiva, tendo em vista as noções de COMPULSÃO, FORÇA CONTRÁRIA e OBSTÁCULO. Voltamos, então, nossa atenção para o esquema de esforço, no qual o ANT, paulatinamente, impõe sua tendência ao AGO, inicialmente mais forte. Para isso, baseados em Talmy (2000), analisamos usos do advérbio finalmente e dos verbos conseguir e tentar. Além disso, apontamos de que forma a DF pode contribuir para a análise contrastiva de aspectos ligados à Semântica Lexical — caso dos verbos ocupar e invadir — e para a descrição do fenômeno de modalidade, usando como exemplo o verbo dever em seus usos deôntico e epistêmico. Por fim, ainda no âmbito gramatical, atentamos para o esquema de divisão do self na análise do verbo segurar. Já no âmbito discursivo, ilustramos de que forma a categoria pode ser aproveitada para a depreensão de aspectos ideológicos relativos à representação de atores sociais, por meio da análise de dois excertos de artigos de opinião que tratavam dos rolezinhos em São Paulo. Ademais, buscamos mostrar de que maneira podemos nos valer de tais noções para a descrição de esquemas textuais subjacentes à estruturação de padrões negociativos em gêneros discursivos. Assim, esperamos contribuir no sentido de fomentar outros estudos que se fundamentem na prolífica, mas ainda pouco estudada, categoria semântica de Dinâmica de Forças no Português Brasileiro.

36 Novamente, trata-se de uma das opções preferenciais, tendo em vista os frames de reclamação e de

ensino público.

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