os botÕes de napoleÃo, ahistÓria da … botões denapoleão, a história da química e a...

8
OS BOTÕES DE NAPOLEÃO, A HISTÓRIA DA QUÍMICA E A EDUCAÇÃO CIENTÍFICA Ricardo Roberto Plaza Teixeira Professor Doutor em Física do CEFET-SP e da PUC-SP Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira Professor livre-docente de Medicina Forense da Universidade Braz Cubas e membro feIlow da AmericanAcademy of Forensic Sciences, EUA Este artigo analisa o livro Os botões de Napoleão: as 17 moléculas que mudaram a história, escrito por Penny Le Couteur e Jay Burreson. É apresentada a importância de estudar a História da Química para compreender o desenvolvimento desta ciência e o seu papel no mundo atual. As inter-relações entre uma educação científica efetiva e o uso pedagógico da História da Ciência são expostas aqui. Palavras-chave: Química; História da Ciência; educação científica. This paper analyzes the book Napoleon's buttons: how 17 molecules changed history, written by Penny Le Couteur and Iay Burreson. lt shows the importance of studying the History 01 Chemistry to understand the development of this science and its hole in the present word .. The interrelations between an effective scientific education and the pedagogical use of the History of Science are exposed. Keywords: Chemistry; History of Science; scientific education. INTRODUÇÃO A Química é uma das ciências naturais obrigatórias. para os alunos da educação básica brasileira, mas é ensinada geralmente como uma coleção de nomes, propriedades e reações a serem decoradas. Na importante parte denominada Química Orgânica, isto se acentua muito e os alunos de ensino médio, que se preparam para alguns vestibulares, vêem-se diante da ingrata tarefa de decorar nomes, prefixos e sufixos de compostos sobre os quais nada sabem e que esquecerão aos poucos após concluir a universidade. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1996), documento que procurou direcionar a educação básica no país na última década, determinam explicitamente que a educação só pode fazer sentido se os temas a serem aprendidos forem contextualizados e se as áreas do conhecimento forem inter- relacionadas durante o processo de aprendizagem. Daí que contextualização e interdisciplinaridade são duas palavras que Sinergia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 9 -16, jan./jun. 2007 passaram a ser repetidas exaustivamente no contexto educacional. Citá-Ias é fácil, porém implementá-las demanda trabalho e conhecimento. No caso da Química, uma boa maneira de motivar sua aprendizagem de modo efetivo é buscar em sua história a ferramenta pedagógica para esclarecer o importante papel que diferentes elementos e compostos químicos tiveram ao longo do curso da humanidade. A História dá sentido aos atos do ser humano e é, sem dúvida, uma estratégia didática muito eficiente no campo da educação científica, tema, aliás, já ressaltado em artigo anterior (Teixeira & Trindade, 2002) com relação a sua importância para alunos do ensino médio. Nos últimos anos, dentre vários livros lançados no mercado editorial brasileiro tendo como tema a História da Química, destacamos três importantes: Da alquimia à química, de Ana Maria Alfonso Goldfarb (1987); Alquimistas e químicos: o passado, o presente e o futuro, de José Atílio Vanin (1994), e O 9

Upload: ngonhan

Post on 19-May-2018

222 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: OS BOTÕES DE NAPOLEÃO, AHISTÓRIA DA … botões deNapoleão, a História da Química e a educação científica Ricardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

OS BOTÕES DE NAPOLEÃO, A HISTÓRIA DA QUÍMICA E A EDUCAÇÃOCIENTÍFICA

LRicardo Roberto Plaza Teixeira

Professor Doutor em Física do CEFET-SP e da PUC-SP

Wilmes Roberto Gonçalves TeixeiraProfessor livre-docente de Medicina Forense da Universidade Braz Cubas e membro feIlow da AmericanAcademy of Forensic Sciences, EUA

Este artigo analisa o livro Os botões de Napoleão: as 17 moléculas que mudaram a história,escrito por Penny Le Couteur e Jay Burreson. É apresentada a importância de estudar aHistória da Química para compreender o desenvolvimento desta ciência e o seu papel nomundo atual. As inter-relações entre uma educação científica efetiva e o uso pedagógico daHistória da Ciência são expostas aqui.

Palavras-chave: Química; História da Ciência; educação científica.

This paper analyzes the book Napoleon's buttons: how 17 molecules changed history, writtenby Penny Le Couteur and Iay Burreson. lt shows the importance of studying the History 01Chemistry to understand the development of this science and its hole in the present word ..The interrelations between an effective scientific education and the pedagogical use of theHistory of Science are exposed.

Keywords: Chemistry; History of Science; scientific education.

INTRODUÇÃO

A Química é uma das ciências naturaisobrigatórias. para os alunos da educaçãobásica brasileira, mas é ensinada geralmentecomo uma coleção de nomes, propriedades ereações a serem decoradas. Na importanteparte denominada Química Orgânica, isto seacentua muito e os alunos de ensino médio,que se preparam para alguns vestibulares,vêem-se diante da ingrata tarefa de decorarnomes, prefixos e sufixos de compostos sobreos quais nada sabem e que esquecerão aospoucos após concluir a universidade.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais(Brasil, 1996), documento que procuroudirecionar a educação básica no país na últimadécada, determinam explicitamente que aeducação só pode fazer sentido se os temas aserem aprendidos forem contextualizados e seas áreas do conhecimento forem inter-relacionadas durante o processo deaprendizagem. Daí que contextualização einterdisciplinaridade são duas palavras que

Sinergia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 9 -16, jan./jun. 2007

passaram a ser repetidas exaustivamente nocontexto educacional. Citá-Ias é fácil, porémimplementá-las demanda trabalho econhecimento.

No caso da Química, uma boa maneirade motivar sua aprendizagem de modo efetivoé buscar em sua história a ferramentapedagógica para esclarecer o importante papelque diferentes elementos e compostosquímicos tiveram ao longo do curso dahumanidade. A História dá sentido aos atosdo ser humano e é, sem dúvida, uma estratégiadidática muito eficiente no campo da educaçãocientífica, tema, aliás, já ressaltado em artigoanterior (Teixeira & Trindade, 2002) comrelação a sua importância para alunos doensino médio.

Nos últimos anos, dentre vários livroslançados no mercado editorial brasileiro tendocomo tema a História da Química, destacamostrês importantes: Da alquimia à química, deAna Maria Alfonso Goldfarb (1987);Alquimistas e químicos: opassado, opresentee o futuro, de José Atílio Vanin (1994), e O

9

Page 2: OS BOTÕES DE NAPOLEÃO, AHISTÓRIA DA … botões deNapoleão, a História da Química e a educação científica Ricardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

Os botões de Napoleão, a História da Química e a educação científicaRicardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

sonho de Mendeleiev: a verdadeira Históriada Química, escrito por Paul Strathern (2002).Há outros livros que de alguma forma serelacionam com a química e com sua história,mas sem objetivos didáticos ou de divulgaçãodesta ciência. Destacamos A tabela periódica,de Primo Levi, conhecido autor de obrasimportantes como É isto um homem?, quetrata sobretudo da Segunda Guerra Mundiale do Holocausto. A tabela periódica é umaespécie de autobiografia de Primo Levi e tem,como mote, a sua paixão pela química: cadaum dos 21 capítulos tem como título umelemento químico, desde o primeiro, "Ovanádio", até o último, "O carbono". SegundoLevi, cada um dos elementos químicos diz acada pessoa uma coisa diferente, com aexceção do carbono, que "diz tudo a todos",pois é o elemento da vida!

OS OBJETIVOS DO LIVRO OS BOTÕESDENAPOLEÃO

Os botões de Napoleão: as 17moléculas que mudaram a história, livro quemotivou este artigo, escrito por Penny LeCouteur e Jay ~urreson e publicado em 2006pela editora Jorge Zahar, também tem comofoco a química e sua história, mas sua maiorpreocupação versa sobre os extraordináriosimpactos econômicos e transformações sociaisque a química produziu ao longo da históriada humanidade.

O título do livro levanta curiosaquestão sobre uma estranha história - nãoexatamente confirmada - referente aosmotivos da derrota do exército de Napoleãona campanha russa, após inúmeras vitórias embatalhas anteriores. Muitos autores fizeramreferência a respeito do chamado "generalinverno", que teria abatido as tropas francesas,e que, mais de um século depois, teria ajudadona derrota dos alemães na Segunda GuerraMundial. Entretanto, numa guerra, o"inverno" e as condições climáticasdesfavoráveis valem para os dois lados, e,mesmo avaliando que um deles poderia estar

mais acostumado às condições rigorosas doinverno russo, parece existir algo a mais aexplicar a derrota de Napoleão. Le Couteur eBurreson especulam em seu livro que a derrotado exército de Napoleão pode ter sido causadapor algo tão minúsculo quanto botões! Sim,pois os botões que fechavam as fardas dossoldados do exército francês (sobretudos,túnicas, calças), eram feitos de estanho, ummaterial metálico que, quando muito resfriado,se desfaz num pó cinza e não metálico; omesmo elemento químico estanho, porémdesmanchado sob outra forma estrutural, quedesta forma não se presta a fechar o vestuáriomilitar de inverno.

Esta especulação histórica nãocabalmente comprovada - aliás é a únicahistória não confirmada do livro -, é umainteressante explicação que muitos químicoscostumam citar como uma razão científicapara a derrota de Napoleão e para o aparenteparadoxal efeito do inverno rigoroso demaneira diferente para os dois lados.Obviamente, outros fatores foram importantespara o desfecho desta campanha militar, dentreos quais cabe salientar a estratégia russa dedestruir as cidades e vilarejos ao abandoná-los antes da chegada do inimigo. De qualquerforma, a derrota francesa acarretou apermanência da servidão feudal por mais umséculo na Rússia czarista. Aliás, os metais emgeral foram importantíssimos na história dahumanidade desde sua pré-história: a idade dobronze (liga de estanho e cobre) e a idade doferro foram importantes fases da evolução dahumanidade que permitiram ao ser humano ouso de ferramentas não exclusivamente feitasde pedra e madeira. O ouro e a prata, por outrolado, acabaram sendo a força motriz e dariqueza de países europeus que colonizaramas Américas.

O livro não está organizado em ordemcronológica, mas de modo a evidenciar asrelações entre estruturas químicas e episódioshistóricos. Nas suas palavras, "uma mudançatão pequena quanto a da posição de umaligação - o vínculo entre átomos numamolécula - pode levar a enormes diferenças

1

Sinergia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 9 -16, jan,/jun. 2007

Page 3: OS BOTÕES DE NAPOLEÃO, AHISTÓRIA DA … botões deNapoleão, a História da Química e a educação científica Ricardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

Os botões de Napoleão, a História da Química e a educação científicaRicardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

~.

nas propriedades de uma substância e, por suavez, influenciar o curso da história". Não é,portanto, um livro sobre a história da química,mas, sim, um livro sobre a influência destaciência na história da humanidade.

Algumas das histórias relatadas sãofascinantes. Por exemplo, no início da obra,os autores se perguntam: por que a noz-moscada era tão valorizada no século XVII,a ponto de os holandeses trocarem o domíniode Nova Amsterdã (a ilha de Manhattan daatual Nova Iorque) pela pequena ilha de Run,na Indonésia, cuja única riqueza eram seusarvoredos de noz-moscada? A surpreendenteresposta reside no fato de que se pensava quea noz-moscada protegia as pessoas da pestenegra, doença que, após matar quase um terçoda população européia no século XIV,esporadicamente atingiu regiões daquelecontinente nos séculos seguintes. A pestenegra, em verdade a doença infecto-contagiosa mais conhecida como pestebubônica, é causada por bactérias transmitidaspor picadas de pulgas de ratos. Uma"superstição" da época afirmava que pessoasque pendurassem saquinhos com noz-moscadano pescoço ficariam protegidas da peste. Osautores especulam que esta "superstição",como a vemos hoje, pode ter amparocientífico, pois o odor exalado pela noz-moscada deve-se a um composto chamadoisoeugenol, desenvolvido pelas plantas comoum pesticida natural! Esta possível explicaçãopara a eficiência dos saquinhos de noz-moscada no pescoço - como proteção contraa peste por repelir as pulgas - deve sercomplementada com um efeito estatístico decorrelação não-causal: pessoas que tivessemdinheiro para comprar a cara noz-moscada daépoca possivelmente morariam em locaismenos populosos, com melhores condiçõeshigiênicas e, desta forma, seriam menosmolestadas pelos ratos e pulgas.

Os autores também salientam aimportância do acaso em muitas dasdescobertas científicas, tema, aliás, tambémmagnificamente trabalhado por RoystonRoberts em Descobertas acidentais em

Sinergia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 9 -16, jan./jun. 2007

ciências. Mesmo na área científica, esfera naqual critérios de rigor e de qualidade sãoprimordiais, acidentes e coincidênciascostumam estar mais presentes do queimaginamos. Entretanto, a capacidade deperceber propriedades importantes a partir dosacontecimentos fortuitos ou imprevistos é umadas habilidades dos grandes cientistas e quepermitiram que eles conseguissem separar orelevante do superficial em cada campo doconhecimento, muitas vezes transformandouma experiência com resultados indesejados,imprevistos e não planejados em umadescoberta científica fundamental, como, paracitar apenas um exemplo, o eloqüente casode Alexander Fleming e a descoberta dapenicilina, que mudou o curso da humanidade!

ALGUNS TEMAS INTERESSANTESABORDADOS PELO LIVRO OSBOTÕES DE NAPOLEÃO

No primeiro capítulo de Os botões deNapoleão, o tema são as especiarias (pimenta,noz-moscada, cravo-da-índia) quetransformaram a história da humanidade noinício da era moderna. "Por Cristo e pelasespeciarias", estas foram as duas forçasmotrizes - religião e economia - dasembarcações da era dos descobrimentos,desde as tentativas de contornar a África parachegar à Índia, destacando-se os grandesnavegadores portugueses Diogo Cão,Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, até asnotáveis expedições dos descobrimentos daAmérica, pelo genovês (a serviço da coroaespanhola) Cristóvão Colombo, e do Brasil,pelo português Pedro Álvares Cabral. Umalibra de pimenta (cerca de meio quilo) custavatanto que poderia comprar a liberdade de umservo ligado ao patrimônio feudal de um nobreda época! As propriedades gastronômicas dapimenta-do-reino - sobretudo devido àmolécula piperina -, que davam um saborespecial à comida seca e conservada pelo sal(não se usava refrigeração na época),enriqueceram, no século XV, os comerciantes

Page 4: OS BOTÕES DE NAPOLEÃO, AHISTÓRIA DA … botões deNapoleão, a História da Química e a educação científica Ricardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

Os botões de Napoleão, a História da Química e a educação científicaRicardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

venezianos, que monopolizaram o comércioe as rotas das especiarias, atiçando aimaginação e a busca por rotas alternativaspara o oriente, o que motivou os grandesdescobrimentos que sucederam logo depois.Coincidentemente, ao chegar à América,Colombo encontrou um outro temperobastante picante, o chile, que nas décadasseguintes acabou por se espalhar pelo mundotodo e atualmente se incorporou à culináriade diferentes nações.

Outra importante substância químicaque pode ser relacionada diretamente à erados descobrimentos é o ácido ascórbico, maisconhecido como vitamina C. A principaldoença que acometia os marinheiros na épocaera o escorbuto, provocado pela ausência deácido ascórbico e que produzia inflamação nasgengivas, com hemorragia, fraqueza, perda dedentes, diarréia, dores musculares, afecçõesnos pulmões e no fígado, insuficiência cardíacae, no limite, após uma infecção aguda, a morte.Noventa por cento da tripulação das naus deFernão de Magalhães, que, no extremo sul daAmérica do Sul, contornou o continente epassou do Atlântico para o Pacífico, nãosobreviveram à expedição de circunavegação,sendo que grande parte das mortes deveu-seao escorbuto. Na virada do século XVI parao XVII, experiências e relatos já evidenciavamque o uso na alimentação de frutas cítricas,como limão e laranja, e verduras evitava oescorbuto, simplesmente devido à sua riquezade vitamina C. Apesar disto, o escorbuto aindapermaneceu atingindo e exterminandotripulações de navegantes por muitas décadas,devido a alguns motivos: 1- resistência namudança nos hábitos alimentares dosmarinheiros; 2- custos e despesas para cultivar,transportar e conservar essas frutas ehortaliças nas embarcações; 3- nãoreconhecimento da verdadeira explicação paraa origem do escorbuto, com a disseminaçãode "teorias" alternativas atribuindo a doençaa uma falta de carne fresca na alimentação dosmarinheiros etc. Toda essa polêmica começoua ser superada pela publicação, em 1753, do

Tratado sobre escorbuto, de Lind, queafirmava: "O marinheiro ignorante e o médicoculto sentem necessidade, igualmente, e coma mesma intensidade, de vegetais verdes e dasfrutas frescas da terra". Nas palavras deRichard Gordon, em A assustadora históriada medicina (1996), "Lind receitou suco delimão ou de lima. Ele havia encontrado oremédio específico, sem idéia de comofuncionava, para uma doença cuja causaninguém conhecia". Mesmo assim, passaram-se 42 anos até que a marinha britânicaresolvesse implementar as recomendações deLind. Somente em 1928 a vitamina C ou ácidoascórbico viria a ter sua estrutura química(C6H806) determinada pelo húngaro AlbertSzeznt-Gyõrgyi e pelo britânico NormanHaworth, por isso laureados em 1937 com oPrêmio Nobel de Medicina e de Química,respectivamente.

À glicose e à celulose, os autoresassociaram duas plantas: a cana-de-açúcar eo algodão - constituído em 90% por celulose-, que foram fundamentais respectivamentepara o estabelecimento do tráfico escravista epara a revolução industrial, dois importantesmarcos da história mundial. Quanto ao açúcar,uma outra obra recém-lançada, A história domundo em 6 copos, de Tom Standage, salientao papel do rum - destilado a partir da cana-de-açúcar - como bebida que foi fundamentalem todo o comércio triangular entre Europa,África e América e que o autor classifica comoprimeira bebida globalizada do planeta. AAmérica também só foi colonizada e suapopulação nativa dominada à força graças aodomínio da pólvora e de materiais explosivosoriundos de compostos nitrados: sem elesHernán Cortés jamais conseguiria ter sucessona batalha em que venceu com algumascentenas de soldados o exército asteca quetinha centenas de milhares de soldados - trêsordens de grandeza maiores!

Da mesma forma, Francisco Pizarrodestroçou o desenvolvido império incaico.Mais tarde, associada a novas armas, a pólvoradizimou os índios norte-americanos, em tristes

Sinergia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 9 -16, jan./jun. 2007

Page 5: OS BOTÕES DE NAPOLEÃO, AHISTÓRIA DA … botões deNapoleão, a História da Química e a educação científica Ricardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

Os botões de Napoleão, a História da Química e a educação científicaRicardo Roberto Plaza Teixeire/ Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

,

L.

episódios como o do general Custer, nos EUA.Em termos econômicos, com o mesmo

papel que anteriormente teve a seda, abrindorotas de comércio pelo mundo, o náilon e outrasfibras sintéticas modernas tiveram uma grandeinfluência no século XX e colaboraram paraelevar a importância do petróleo ao papel queele hoje desfruta mundialmente, com todas asconseqüências disto. Assim, estariam os EUAhoje no Iraque se lá não existisse petróleo? Namesma linha de raciocínio, outro material deimportância econômica fundamental foi oisopreno, o constituinte da borracha,responsável por suas propriedades elásticas.Importante historicamente, sobretudo para onosso país, já que as "bolas de borracha"possibilitaram um desenvolvimento importantena Amazônia brasileira - e por extensão de todoo país - na virada do século XIX para o séculoXX. Viabilizou, inclusive, a transformaçãorápida do pobre vilarejo de Manaus numacidade encravada no "inferno verde", onderesplandeciam - se bem que, deploravelmente,às custas da miserável exploração escravista dostrabalhadores da borracha - esplêndidasmansões, entrepostos comerciais erigidos pelamais moderna arquitetura européia, estruturasmagníficas de ferro forjado, em todo esse faustocabendo destacar a construção do imponenteteatro lírico de Manaus, onde as melhorescompanhias e cantores da Europa brilharam empleno inferno verde.

Entretanto, devido a um dos primeiroscasos de biopirataria da história (e, também,de nosso descaso pelas imensas riquezas dopaís, "adormecido em berço esplêndido"),perdemos facilmente a liderança na produçãomundial de borracha para a Ásia:

Em 1876, um inglês, Henry AlexanderWickham, deixou a Amazônia num naviofretado, levando 70 mil sementes de Heveabrasiliensis, a espécie que mais tarde se reveloua mais prolífica fonte de látex de borracha.Não se sabe por que seu navio não foiinspecionado por funcionários brasileiros -talvez porque as autoridades estavamconvenci das de que a seringueira não podiacrescer em nenhum lugar fora da baciaamazônica.A Alemanha, por diversas razões, até

,v

I

Sinergia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 9 -16, jan./jun. 2007

)

mesmo pela extensa relação de químicosnotáveis que ostenta, tomou-se um país líderna produção de produtos químicos sintéticosorgânicos e, particularmente, de corantes.Nesta área, automaticamente, os leitores sãoremetidos aos nomes de grandes empresasalemãs como a BASF, a Hoechst e a Bayer.As principais indústrias químicas alemãsreuniram-se após a Primeira Guerra Mundialna IG Farben (na tradução literal do alemão,uma "comunidade de interesse"),conglomerado que teve um triste papel deapoio a Hitler na Segunda Guerra Mundial,inclusive utilizando trabalho escravo,realizando experimentações e dispensandotratamentos desumanos aos prisioneiros (nagrande maioria civis judeus) dos campos deextermínio que compunham a grande forçade trabalho em suas fábricas. Após a guerra,nove executivos da IG Farben foramcondenados por roubo e pilhagem emterritórios ocupados.

O fenol é uma molécula aromáticasimples consistindo de um anel de benzenoligado a um grupo oxigênio-hidrogênio(OH). Foi o grande cirurgião britânico Listerquem descobriu as propriedadesantissépticas do fenol no final do século XIXe muitas amputações deixaram de ser feitasgraças ao seu uso em cirurgia, comolembram os autores de Os botões deNapoleão. Alguns outros capítulos do livro- "Remédios milagrosos", "A pílula" ,"Moléculas versus malária" - tratamespecificamente dos inúmeros compostosmedicamentosos Neles, os autoresdescrevem com detalhes as propriedades ea evolução de medicamentos como a aspirina(ácido acetilsalicílico), as sulfas, a penicilina,a cortisona e a quinina. Sobre a pílulaanticoncepcional, que alterou totalmente opapel da mulher na sociedade das últimasdécadas, os autores lembram a importânciadesempenhada por Carl Djerassi, o "pai dapílula". É importante lembrar que Djerassiescreveu (2004), com Roald Hoffmann, oroteiro da peça teatral Oxigênio e esteve noBrasil em 2006 para o lançamento da peça,

Page 6: OS BOTÕES DE NAPOLEÃO, AHISTÓRIA DA … botões deNapoleão, a História da Química e a educação científica Ricardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

Os botões de Napoleão, a História da Química e a educação científicaRicardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

que foi produzida aqui pelo grupo Arte eCiência no Palco. Ela relata a história dodescobrimento do oxigênio, envolvendo trêsimportantes cientistas - Lavoisier, Priestley eScheele - e suas esposas. A obra alinha-setambém nas atividades culturais que viabilizamuma educação científica efetiva pelo uso daHistória da Ciência como norteadorapedagógica. Realizamos produtivas atividadesdidáticas com alunos do CEFET-SP queassistiram a esta encenação teatral e discutiramem aula o papel dos cientistas no curso dosacontecimentos que têm contribuído para oavanço das ciências.

Nos capítulos "Moléculas de bruxaria"e "Morfina, nicotina e cafeína", e em outraspartes do livro, ao explicar as propriedadesde substâncias químicas naturais queprovocam alterações no estado psíquico e naconduta das pessoas, os autores discutem aforma como essas substâncias foramproduzidas e as sérias conseqüências quetiveram e ainda têm na sociedade. No caso daInquisição, há uma reflexão interessante emuito triste a respeito de afirmações demulheres (muitas vezes obtidas em confissõessob tortura) sobre efeitos de produtos que as"capacitavam a yoar", em verdade decorrentesde alucinações sob o poderoso efeito químicode certas substâncias psicotrópicas, e que, porisso, eram consideradas bruxas! De certaforma uma mulher como essa, na visão dosterríveis tribunais da época, estaria se auto-incriminando, aqui sendo possível perceberque não somente a química evoluiu, mas odireito também. Se alucinações serviram deprova condenatória de bruxas durante aInquisição (claro que a Inquisição serviu-sede outros "motivos" para exterminarinocentes), é irônico descobrir que a própriadiacetilmorfina, conhecida popularmentecomo "heroína" - denominação provenienteda tentativa de considerá-Ia um medicamentoheróico, isto é, para resolver situaçõesextremas - produzida pela Bayer e,sabidamente, a droga mais "pesada" queexiste, pretendia ser uma superaspirina e foicomercializada no início do século XX como

potente analgésico, calmante para tosse eremédio para dor de cabeça, asma, enfisemae tuberculose!

Um capítulo interessante e amenoversa sobre o azeite, descrito como um ácidooléico com 18 carbonos e monoinsaturado -um ácido graxo em estado líquido àtemperatura ambiente -, com propriedadesque explicam os motivos pelos quais pessoasque vivem na região do Mediterrâneo têm ummenor risco de doenças cardíacas, pois seuuso concorre para que no sangue prevaleçammaiores teores de lipoproteína de altadensidade (HDL ou high density lipoprotein)e menores taxas de lipoproteína de baixadensidade (LDL ou low density lipoprotein),ou seja, provocando uma maior proporçãoentre a "boa" e a "má" lipoproteína. Aslipoproteínas de alta densidade (HDL)transportam o colesterol acumulado emcélulas de volta para o fígado, eliminando-oda circulação do sangue e evitando seuacúmulo em artérias e conseqüenteentupimento, que resulta principalmente em"doença coronariana" (angina, infarto, "ataquecardíaco"), responsável por um grandenúmero de mortes naturais súbitas de adultose por altos índices de morbilidade, que afetama sociedade como um todo. Por isso sãorotuladas de lipoproteínas "boas". Na mesmalinha, os autores explicam que o sal- cloretode sódio ou NaCI- é talvez um dos compostosconhecidos há mais tempo pela humanidadee, devido à necessidade imperiosa de nossoscorpos por esta substância, foi um produtobastante apropriado para o domínio político,para a tributação e a remuneração das pessoas:o termo "salário" deriva etimologicamente dapalavra sal, que era a forma como muitostrabalhadores foram pagos durante séculos.

Finalmente, ao expor a respeito decompostos clorocarbônicos, os autoresdiscutem questões ambientais importantescomo a que se refere à importância para a.humanidade da camada de ozônio (03)existente na estratosfera, que nos protege damaior parte dos raios ultravioletas nocivos dealtas energias. A produção por décadas de

Sinergia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 9 -16, jan./jun. 2007

Page 7: OS BOTÕES DE NAPOLEÃO, AHISTÓRIA DA … botões deNapoleão, a História da Química e a educação científica Ricardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

Os botões de Napoleão, a História da Química e a educação científicaRicardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

moléculas de CFC ou clorofluorcarbonetos,para serem utilizados como fluidosrefrigerantes em geladeiras, acabou pordestruir boa parte da camada de ozônio:calcula-se que cada molécula de CFC quechega à estratosfera destrói em média cem milmoléculas de ozônio antes de ser desativada!O Protocolo de Montreal, assinado em 1987,exigiu que os países signatários reduzissemaos poucos a produção de CFC até eliminá-Iapor completo; de fato, este tratado produziuresultados efetivos e hoje os dados indicamque aos poucos o problema referente àdestruição da camada de ozônio está sendocontrolado e reduzido. Este é um exemplo deque, com vontade política, questõesambientais importantes podem ser enfrentadassem que a economia dos países envolvidos sejadrasticamente prejudicada. Hoje seguramenteo composto que mais afetará o nosso ambienteé o dióxido de carbono ou gás carbônico(CO), cuja presença crescente na atmosfera- a partir sobretudo da queima decombustíveis fósseis e de florestas - estáacentuando o chamado efeito estufa,aquecendo o planeta e desequilibrando muitosecossistemas. O desafio político colocado peloproblema do. aquecimento da Terra é maiorque no caso da destruição da camada deozônio, mas suas conseqüências ambientais,terríveis a médio e longo prazo, devem tirartodos os cidadãos conscientes do imobilismo,em qualquer parte do planeta, pois seus efeitosserão globais.

Bem a propósito deste tema, deimportância vital para o planeta Terra,sugerimos a leitura (e, se possível que seassista ao filme correspondente) do livrointitulado Uma verdade inconveniente, escritopor AI Gore (2006). É importante umareflexão sobre o final do livro, que diz respeitoa todos os brasileiros. A queimada dasflorestas, particularmente na Amazônia, alémde aumentar enormemente a concentração deCO2 na atmosfera e concorrersubstancialmente para o aquecimento global,com suas catastróficas conseqüências, e adesertificação daquela extensa região (maior

Sinergia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 9 -16, jan.jjun. 2007

que muitos países europeus juntos), destróimuitas espécies vegetais que, com certeza,devem abrigar princípios químicos ativosnaturais que representam uma incalculávelriqueza potencial para a descoberta efabricação de inúmeros fármacos de grandeimportância para a humanidade na cura dedoenças e em vários campos da Medicina!

REFERÊNCIAS

BRASIL. Parâmetros CurricularesNacionais. Brasília: Ministério da Educação,1996.

DJERASSI, c., HOFFMANN, R. Oxigênio.Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004.

LE COUTEUR, P.; BURRESON, J. Osbotões de Napoleão: as 17 moléculas quemudaram a história. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2006.

GOLDFARB, A. M. A. Da alquimia àquímica. São Paulo: Edusp, 1987.

GORDON, R. A assustadora história damedicina. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

GORE, A. Uma verdade inconveniente.Barueri: Manole, 2006

LEVI, P. Um livro extraordinário. Rio deJaneiro: Relume-Dumará, 1994.

ROBERTS, R. M. Descobertas acidentais emciências. Campinas: Papirus, 1995.

STANDAGE, T. História do mundo em 6copos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

STRATHERN, P. O sonho de Mendeleiev. Riode Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

TEIXEIRA, R. R. P. ; TRINDADE, D. F.Reflexões sobre uma experiência de inclusãoda disciplina História da Ciência no ensinomédio. In: Sinergia, 3 (2002), 33.

Page 8: OS BOTÕES DE NAPOLEÃO, AHISTÓRIA DA … botões deNapoleão, a História da Química e a educação científica Ricardo Roberto Plaza Teixeiraj Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

Os botões de Napoleão, a história da química e a educação científicaRicardo Roberto Plaza Teixeire/ Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira

VANIN, J. A. Alquimistas e químicos. SãoPaulo: Moderna, 1994.

Para contatos com os autores:

Ricardo Roberto Plaza [email protected]

Wilmes Roberto Gonçalves [email protected]

Sinergia, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 9 -16, jan./jun. 2007