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  • ISBN 978-85-472-1302-2

    Gonalves, Carlos RobertoDireito civil brasileiro, volume 5 : direito das coisas / Carlos Roberto Gonalves. 12. ed. So Paulo :

    Saraiva, 2017.1. Direito civil 2. Direito civil Brasil I. Ttulo.16-0948 CDU347( 81)

    ndices para catlogo sistemtico:1. Brasil : Direito civil 347(81)

    Presidente Eduardo MufarejVice-presidente Claudio Lensing

    Diretora editorial Flvia Alves BravinConselho editorial

    Presidente Carlos RagazzoGerente de aquisio Roberta Densa

    Consultor acadmico Murilo AngeliGerente de concursos Roberto Navarro

    Gerente editorial Thas de Camargo RodriguesEdio Eveline Gonalves Denardi | Vernica Pivisan Reis

    Produo editorial Ana Cristina Garcia (coord.) | Luciana Cordeiro ShirakawaClarissa Boraschi Maria (coord.) | Kelli Priscila Pinto | Marlia Cordeiro | Mnica Landi | Tatiana dos

    Santos Romo | Tiago Dela RosaDiagramao e reviso (Livro Fsico) Know-How Editorial

    Comunicao e MKT Elaine Cristina da SilvaCapa IDE arte e comunicao

    Livro digital (E-pub)Produo do e-pub Guilherme Henrique Martins Salvador

    Servios editoriais Surane Vellenich

    Data de fechamento da edio: 3-10-2016

    Dvidas?Acesse www.editorasaraiva.com.br/direito

    Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prvia autorizaoda Editora Saraiva.

    A violao dos direitos autorais crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Cdigo Penal.

    http://www.editorasaraiva.com.br/direito

  • CARLOS ROBERTO GONALVESMestre em Direito Civil pela PUCSP.

    Desembargador aposentado do Tribunal de Justia de So Paulo.Membro da Academia Brasileira de Direito Civil.

  • SUMRIOINTRODUO

    1. Direito das coisas1.1. Conceito1.2. Evoluo histrica1.3. Contedo2. Direitos reais e pessoais2.1. Caracteres distintivos2.2. Princpios fundamentais dos direitos reais3. Figuras hbridas ou intermdias3.1. Obrigaes propter rem3.2. nus reais3.3. Obrigaes com eficcia real

    Ttulo I - DA POSSECaptulo I - NOES GERAIS SOBRE A POSSE1. Introduo ao estudo da posse1.1. As dificuldades do estudo do tema1.2. Fundamento da posse. Jus possessionis e jus possidendi2. Origem histrica da posse3. Teorias sobre a posse3.1. Teoria subjetiva de Savigny3.2. Teoria objetiva de Ihering3.3. Teorias sociolgicas4. Conceito de posse5. Posse e deteno6. Posse e quase posse7. O objeto da posse e a posse dos direitos pessoais8. Natureza jurdica da posseCaptulo II - CLASSIFICAO DA POSSE1. Espcies de posse2. Posse direta e posse indireta3. Posse exclusiva, composse e posses paralelas4. Posse justa e posse injusta5. Posse de boa-f e posse de m-f6. Posse nova e posse velha7. Posse natural e posse civil ou jurdica8. Posse ad interdicta e posse ad usucapionem9. Posse pro diviso e posse pro indivisoCaptulo III - DA AQUISIO E PERDA DA POSSE1. Introduo2. Modos de aquisio da posse2.1. Modos originrios de aquisio da posse2.1.1. Apreenso da coisa2.1.2. Exerccio do direito2.1.3. Disposio da coisa ou do direito2.2. Modos derivados de aquisio da posse2.2.1. Tradio

  • 2.2.2. Sucesso na posse3. Quem pode adquirir a posse4. Perda da posse5. Recuperao de coisas mveis e ttulos ao portador6. Perda da posse para o ausenteCaptulo IV - DOS EFEITOS DA POSSE1. Tutela da posse1.1. Introduo1.2. A proteo possessria2. Aes possessrias em sentido estrito2.1. Legitimao ativa e passiva2.2. Converso de ao possessria em ao de indenizao3. Aes possessrias na tcnica do Cdigo de Processo Civil3.1. A fungibilidade dos interditos3.2. Cumulao de pedidos3.3. Carter dplice das aes possessrias3.4. Distino entre juzo possessrio e juzo petitrio. A exceo de domnio3.5. Procedimento: ao de fora nova e ao de fora velha. Ao possessria relativa a coisa mvel3.6. A exigncia de prestao de cauoCaptulo V - DA MANUTENO E DA REINTEGRAO DE POSSE1. Caractersticas e requisitos1.1. Introduo1.2. Posse1.3. Turbao1.4. Esbulho1.5. Data da turbao ou do esbulho1.6. Continuao ou perda da posse2. O procedimento2.1. A petio inicial2.2. Da liminar

    2.2.1. Concesso de liminar contra pessoa jurdica de direito pblico2.2.2. Recurso cabvel2.2.3. Execuo da deciso concessiva de liminar

    2.3. Contestao e procedimento comum3. Execuo da sentena4. Embargos do executado e de reteno por benfeitorias5. Embargos de terceiroCaptulo VI - DO INTERDITO PROIBITRIO1. Caractersticas e requisitos2. Cominao de pena pecuniriaCaptulo VII - AES AFINS AOS INTERDITOS POSSESSRIOS1. Ao de imisso na posse1.1. Caractersticas e natureza jurdica1.2. Imisso na posse e reivindicatria2. Ao de nunciao de obra nova2.1. Contedo e pressupostos2.2. Legitimidade para a ao3. Embargos de terceiro

  • 3.1. Introduo3.2. Pressupostos3.3. Parte equiparada a terceiro3.4. Legitimidade ativa e passiva. A legitimidade ativa do cnjuge3.5. Caso especial: embargos do credor com garantia real3.6. Fraude contra credores e fraude execuo3.7. ProcedimentoCaptulo VIII - OS DEMAIS EFEITOS DA POSSE1. A percepo dos frutos1.1. Introduo1.2. Noo e espcies de frutos1.3. Regras da restituio (CC, arts. 1.214 a 1.216)2. A responsabilidade pela perda ou deteriorao da coisa3. A indenizao das benfeitorias e o direito de reteno3.1. O possuidor e os melhoramentos que realizou na coisa3.2. Regras da indenizao das benfeitorias (CC, arts. 1.219 a 1.222)3.3. Direito de reteno: conceito, fundamento, natureza jurdica e modo de exerccio

    Ttulo II - DOS DIREITOS REAISCaptulo nico - DISPOSIES GERAIS1. Conceito2. Espcies3. Aquisio dos direitos reais

    Ttulo III - DA PROPRIEDADECaptulo I - DA PROPRIEDADE EM GERAL1. Conceito2. Elementos constitutivos da propriedade3. Ao reivindicatria3.1. Pressupostos e natureza jurdica3.2. Objeto da ao reivindicatria3.3. Legitimidade ativa e passiva4. Outros meios de defesa da propriedade4.1. Ao negatria4.2. Ao de dano infecto5. Caracteres da propriedade6. Evoluo do direito de propriedade. Funo social da propriedade7. Restries ao direito de propriedade8. Fundamento jurdico da propriedade9. Da descobertaCaptulo II - DA AQUISIO DA PROPRIEDADE IMVEL1. Introduo2. Modos de aquisioDA USUCAPIO3. Conceito e fundamento4. Espcies4.1. Usucapio extraordinria4.2. Usucapio ordinria4.3. Usucapio especial

    4.3.1. Usucapio especial rural

  • 4.3.2. Usucapio especial urbana4.3.2.1. Usucapio urbana individual do Estatuto da Cidade4.3.2.2. Usucapio urbana coletiva do Estatuto da Cidade4.3.2.3. Usucapio imobiliria administrativa

    4.3.3. Usucapio familiar4.4. Usucapio indgena4.5. Usucapio extrajudicial5. Pressupostos da usucapio5.1. Coisa hbil5.2. Posse5.3. Tempo5.4. Justo ttulo5.5. Boa-f6. Ao de usucapioDA AQUISIO PELO REGISTRO DO TTULO7. Do registro do ttulo8. Princpios que regem o registro de imveis8.1. Princpio da publicidade8.2. Princpio da fora probante (f pblica) ou presuno8.3. Princpio da legalidade8.4. Princpio da territorialidade8.5. Princpio da continuidade8.6. Princpio da prioridade8.7. Princpio da especialidade8.8. Princpio da instncia9. Matrcula, registro e averbao10. Livros obrigatrios11. Retificao do registroDA AQUISIO POR ACESSO12. Conceito e formas de acesso13. Acesses fsicas ou naturais13.1. Acesso pela formao de ilhas13.2. Aluvio13.3. Avulso13.4. lveo abandonado14. Acesses industriais: construes e plantaesCaptulo III - DA AQUISIO DA PROPRIEDADE MVEL1. Introduo2. Da usucapio3. Da ocupao4. Do achado do tesouro5. Da tradio6. Da especificao7. Da confuso, da comisto e da adjunoCaptulo IV - DA PERDA DA PROPRIEDADE1. Introduo2. Modos de perda2.1. Perda pela alienao

  • 2.2. Perda pela renncia2.3. Perda pelo abandono2.4. Perda pelo perecimento da coisa2.5. Perda da propriedade mediante desapropriao2.5.1. Fundamento jurdico2.5.2. Pressupostos para a desapropriao2.5.3. Objeto da desapropriao2.5.4. Processo de desapropriao2.5.5. Montante da indenizao2.5.6. RetrocessoCaptulo V - DOS DIREITOS DE VIZINHANA1. Introduo2. Do uso anormal da propriedade2.1. Espcies de atos nocivos2.2. Solues para a composio dos conflitos3. Das rvores limtrofes4. Da passagem forada5. Da passagem de cabos e tubulaes6. Das guas7. Dos limites entre prdios e do direito de tapagem8. Do direito de construir8.1. Limitaes e responsabilidades8.2. Devassamento da propriedade vizinha8.3. guas e beirais8.4. Paredes divisrias8.5. Do uso do prdio vizinhoCaptulo VI - DO CONDOMNIO GERAL1. Do condomnio voluntrio1.1. Conceito e espcies. O condomnio fechado1.2. Direitos e deveres dos condminos1.3. Extino do condomnio1.4. Administrao do condomnio2. Do condomnio necessrioCaptulo VII - DO CONDOMNIO EDILCIOCaptulo VIII - DA PROPRIEDADE RESOLVEL1. Conceito2. Natureza jurdica3. Causas de resoluo da propriedade3.1. Resoluo pelo implemento da condio ou pelo advento do termo3.2. Resoluo por causa supervenienteCaptulo IX - DA PROPRIEDADE FIDUCIRIA1. Conceito2. Modos de constituio3. Direitos e obrigaes do fiduciante4. Direitos e obrigaes do fiducirio5. Pacto comissrio6. Procedimento no caso de inadimplemento do contrato

    Ttulo IV - DA SUPERFCIE

  • 1. Conceito2. Modos de constituio3. Transferncia do direito de superfcie4. Extino do direito de superfcie

    Ttulo V - DAS SERVIDES1. Conceito2. Caractersticas das servides3. Classificao das servides4. Modos de constituio4.1. Servido constituda por ato humano4.1.1. Negcio jurdico causa mortis ou inter vivos4.1.2. Sentena proferida em ao de diviso4.1.3. Usucapio4.1.4. Destinao do proprietrio4.2. Servido constituda por fato humano5. Regulamentao das servides5.1. Obras necessrias sua conservao e uso5.2. Exerccio das servides5.3. Remoo da servido6. Aes que protegem as servides7. Extino das servides

    Ttulo VI - DO USUFRUTO1. Conceito2. Caractersticas do usufruto3. Modos de constituio4. Coisas objeto de usufruto5. Analogias com o fideicomisso, a enfiteuse e a locao6. Espcies de usufruto7. Dos direitos do usufruturio8. Modalidades peculiares de usufruto8.1. Usufruto dos ttulos de crdito8.2. Usufruto de um rebanho8.3. Usufruto de bens consumveis (quase usufruto)8.4. Usufruto de florestas e minas8.5. Usufruto sobre universalidade ou quota-parte9. Dos deveres do usufruturio9.1. Obrigaes anteriores ao usufruto9.2. Obrigaes simultneas ao usufruto9.3. Obrigaes posteriores ao usufruto10. Da extino do usufruto

    Ttulo VII - DO USO1. Conceito e caractersticas2. Objeto do uso3. Necessidades pessoais e da famlia do usurio4. Modos de extino do uso

    Ttulo VIII - DA HABITAO1. Conceito2. Regulamentao legal

  • Ttulo IX - DO DIREITO DO PROMITENTE COMPRADOR1. Conceito e caractersticas2. Evoluo da promessa de compra e venda no direito brasileiro3. A disciplina do direito do promitente comprador no Cdigo Civil de 2002

    Ttulo X - DOS DIREITOS REAIS DE GARANTIACaptulo I - DISPOSIES GERAIS1. Conceito e caractersticas2. Requisitos dos direitos reais de garantia2.1. Requisitos subjetivos2.2. Requisitos objetivos2.3. Requisitos formais3. Efeitos dos direitos reais de garantia3.1. Direito de preferncia3.2. Direito de sequela3.3. Direito de excusso3.4. Indivisibilidade4. Vencimento antecipado da dvida5. Garantia real outorgada por terceiro6. Clusula comissria7. Responsabilidade do devedor pelo remanescente da dvidaCaptulo II - DO PENHOR1. Conceito2. Caractersticas3. Objeto do penhor4. Forma5. Direitos do credor pignoratcio6. Obrigaes do credor pignoratcio7. Direitos e obrigaes do devedor pignoratcio8. Espcies de penhor8.1. Penhor rural8.1.1. Introduo8.1.2. Penhor agrcola8.1.3. Penhor pecurio8.2. Penhor industrial e mercantil8.3. Penhor de direitos e ttulos de crdito8.4. Penhor de veculos8.5. Penhor legal9. Extino do penhorCaptulo III - DA HIPOTECA1. Conceito2. Caractersticas3. Requisitos jurdicos da hipoteca3.1. Requisito objetivo. Hipoteca naval, area, de vias frreas e de recursos naturais3.2. Requisito subjetivo3.3. Requisito formal: ttulo, especializao, registro4. Espcies de hipoteca4.1. Hipoteca convencional4.2. Hipoteca legal

  • 4.3. Hipoteca judicial5. Pluralidade de hipotecas6. Efeitos da hipoteca6.1. Efeitos em relao ao devedor6.2. Efeitos em relao ao credor6.3. Efeitos em relao a terceiros7. Direito de remio8. Perempo da hipoteca9. Prefixao do valor do imvel hipotecado para fins dearrematao, adjudicao e remio10. Hipotecas constitudas no perodo suspeito da falncia11. Instituio de loteamento ou condomnio no imvel hipotecado12. Cdula hipotecria13. Execuo da dvida hipotecria14. Extino da hipotecaCaptulo IV - DA ANTICRESE1. Conceito2. Caractersticas3. Efeitos da anticrese4. Modos de extino da anticrese

    Ttulo XI - DA ENFITEUSE1. Conceito2. Objeto da enfiteuse3. Caractersticas da enfiteuse4. Extino da enfiteuse

    BIBLIOGRAFIA

  • INTRODUO

    Sumrio: 1. Direito das coisas. 1.1. Conceito. 1.2. Evoluo histrica. 1.3. Contedo. 2. Direitos reais e pessoais.2.1. Caracteres distintivos. 2.2. Princpios fundamentais dos direitos reais. 3. Figuras hbridas ou intermdias. 3.1.Obrigaes propter rem. 3.2. nus reais. 3.3. Obrigaes com eficcia real.

    1. Direito das coisas

    1.1. Conceito

    Segundo a clssica definio de CLVIS BEVILQUA, direito das coisas o complexo de

    normas reguladoras das relaes jurdicas referentes s coisas suscetveis de apropriao

    pelo homem. Tais coisas so, ordinariamente, do mundo fsico, porque sobre elas que

    possvel exercer o poder de domnio 1.

    Coisa o gnero do qual bem espcie. tudo o que existe objetivamente, com

    excluso do homem. Segundo o art. 202 do Cdigo Civil portugus, diz-se coisa tudo aquilo

    que pode ser objeto de relaes jurdicas. Coisas so bens corpreos: existem no mundo

    fsico e ho de ser tangveis pelo homem (CC alemo, 90; CC grego, art. 999).

    Bens so coisas que, por serem teis e raras, so suscetveis de apropriao e contm

    valor econmico. Somente interessam ao direito coisas suscetveis de apropriao exclusiva

    pelo homem, sobre as quais possa existir um vnculo jurdico, que o domnio. As que

    existem em abundncia no universo, como o ar atmosfrico e a gua dos oceanos, por

    exemplo, deixam de ser bens em sentido jurdico 2.

    Obtempera CLVIS que a palavra coisa, ainda que, sob certas relaes, corresponda, na

    tcnica jurdica, ao termo bem, todavia dele se distingue. H bens jurdicos, que no so

    coisas: a liberdade, a honra, a vida, por exemplo. E, embora o vocbulo coisa seja, no

    domnio do direito, tomado em sentido mais ou menos amplo, podemos afirmar que designa,

  • mais particularmente, os bens que so, ou podem ser, objeto de direitos reais. Neste sentido

    dizemos direito das coisas 3.

    Pode-se afirmar que, tomado nos seus lineamentos bsicos, o direito das coisas resume-

    se em regular o poder dos homens, no aspecto jurdico, sobre a natureza fsica, nas suas

    variadas manifestaes, mais precisamente sobre os bens e os modos de sua utilizao

    econmica 4. Para enfatizar a sua importncia basta relembrar que se trata da parte do direito

    civil que rege a propriedade, instituto de significativa influncia na estrutura da sociedade.

    A organizao jurdica da propriedade varia de pas a pas, evoluindo desde a

    Antiguidade aos tempos modernos. Por essa razo acentua LACERDA DE ALMEIDA 5 que o direito

    das coisas a expresso jurdica do estado atual da propriedade. Ora, para este resultado,

    para a feio que apresenta atualmente o direito das coisas, concorreram historicamente,

    alm das condies geogrficas e de outros fatores de ordem fsica e cosmolgica, da ndole

    peculiar do povo, suas ideias religiosas e morais, polticas, sociais e econmicas, as quais,

    e estas principalmente, ainda hoje trabalham o mundo das ideias, fazendo sentir seus

    resultados na ordem jurdica.

    Segundo LAFAYETTE 6, o conjunto das disposies que formam a organizao da

    propriedade em cada pas, reduzida a um corpo de doutrina sistemtico, recebe o nome de

    direito das coisas. Essa denominao adotada tambm nos Cdigos Civis portugus,

    alemo e austraco. A maioria da doutrina e dos Cdigos prefere, no entanto, a expresso

    direitos reais, preconizada por SAVIGNY 7. Ambas as expresses possuem, todavia, conceito e

    objetivo idnticos, tratando da mesma matria.

    1.2. Evoluo histrica

    O direito das coisas constitui o ramo do direito civil mais influenciado pelo direito

  • romano e em relao ao qual, atualmente, se encontra mais homogeneidade no direito

    comparado do mundo ocidental.

    A interferncia do Estado Moderno no direito das coisas, no entanto, pode ser percebida

    pelo surgimento de normas de direito pblico numa seara que at pouco tempo era exclusiva

    do direito privado.

    Sendo a propriedade a matriz dos direitos reais, a diversidade de concepes em torno

    do aludido instituto pode ser compreendida por meio de um escoro histrico, analisando-se

    a sua evoluo atravs dos tempos e das fases mais importantes que contriburam para a sua

    feio atual. Na histria do direito no existe um conceito nico de propriedade. Nessa

    consonncia, pode-se afirmar, sem medo de errar, que a configurao do instituto da

    propriedade recebe direta e profundamente influncia dos regimes polticos em cujos

    sistemas jurdicos concebida 8.

    Coube ao direito romano estabelecer a estrutura da propriedade. O direito civil moderno

    edificou-se, com efeito, em matria de propriedade, sobre as bases do aludido direito, que

    sofreu, todavia, importantes modificaes no sistema feudal. A concepo da propriedade

    foi marcada, inicialmente, pelo aspecto nitidamente individualista. O sistema feudal, produto

    do enfraquecimento das raas conquistadas, introduziu no regime da propriedade do direito

    romano, no entanto, profundas alteraes, consequncias naturais da necessidade de apoiar

    no solo a dominao dos senhores sobre as mseras populaes escravizadas 9.

    O que marcou a concepo da propriedade na poca medieval, segundo assinala ARRUDA

    ALVIM, foi uma constante dualidade de sujeitos. Havia aquele que podia dispor da terra e a

    cedia a outrem (fosse este quem pagasse o cnon, fosse o servo etc.), mas a disponibilidade

    real do bem cabia sempre quele que detinha o poder poltico. O direito dos outros, do

    direito deste se originava e dependia... Havia todo um sistema hereditrio para garantir que

  • o domnio permanecesse numa dada famlia de tal forma que esta no perdesse o seu poder

    no contexto do sistema poltico. E esse sistema existiu durante todo o perodo do

    feudalismo 10.

    Com a Revoluo Francesa instala-se, nos sistemas jurdicos, uma propriedade com

    caractersticas fiis tradio romana e aos princpios individualistas. A liberdade

    preconizada servia burguesia, afeioando-se aos seus interesses e proporcionando

    segurana aos novos proprietrios, pertencentes aludida classe. Considerava-se at mesmo

    legtima a possibilidade de o proprietrio abusar do seu direito de propriedade, colocando,

    destarte, a propriedade num verdadeiro altar, cujo sacerdote era o proprietrio 11.

    Gradativamente, porm, essa concepo egostica e individualista foi-se modificando,

    passando a ser enfocado com mais frequncia o aspecto da funo social da propriedade, a

    partir da Encclica do Quadragsimo Ano, na qual Pio XI sustenta a necessidade de o

    Estado reconhecer a propriedade e defend-la, porm em funo do bem comum. O sopro da

    socializao acabou impregnando o sculo XX, influenciando a concepo da propriedade e

    o direito das coisas. Restries foram impostas onipotncia do proprietrio, proclamando-

    se o predomnio do interesse pblico sobre o privado.

    Em nosso direito, o Cdigo de Minas (Dec. n. 24.642, de 10-7-1934) e a legislao

    posterior (Leis n. 2.004/53 e 3.924/61 e Dec.-Lei n. 227/67) separaram a jazida e o solo,

    permitindo a incorporao ao patrimnio da Unio de todas as jazidas at ento

    desconhecidas e estabelecendo o monoplio em favor da Unio da pesquisa e lavra das

    jazidas de petrleo e outros hidrocarbonetos fluidos e gases raros existentes no territrio

    nacional, bem como dispondo que a propriedade da superfcie no inclui a das jazidas

    arqueolgicas ou pr-histricas, nem a dos objetos nelas incorporados na forma do art. 152

    da Constituio Federal de 1969.

  • O Cdigo de guas (Dec. n. 24.643, de 10-7-1934), por sua vez, disps a respeito das

    quedas-dgua e outras fontes de energia eltrica, declarando-as coisas distintas e no

    integrantes das terras em que se encontrem (art. 145). A matria foi ampliada nas

    Constituies Federais de 1969 e 1988 (art. 176).

    A preponderncia do interesse pblico sobre o privado se manifesta em todos os setores

    do direito, influindo decisivamente na formao do perfil atual do direito de propriedade,

    que deixou de apresentar as caractersticas de direito absoluto e ilimitado para se

    transformar em um direito de finalidade social. Basta lembrar que a atual Constituio

    Federal dispe que a propriedade atender a sua funo social (art. 5, XXIII). Tambm

    determina que a ordem econmica observar a funo da propriedade, impondo freios

    atividade empresarial (art. 170, III).

    Inmeras leis, por outro lado, como as do inquilinato e a de proteo do meio ambiente,

    o Cdigo de Minerao (Dec.-Lei n. 1.985/40) e o Cdigo Florestal, por exemplo, impem

    restries ao direito de propriedade, alm das limitaes decorrentes do direito de

    vizinhana e de clusulas impostas nas liberalidades.

    Nessa linha, o Cdigo Civil de 2002 proclama que o direito de propriedade deve ser

    exercido em consonncia com as suas finalidades econmicas e sociais e de modo que

    sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna,

    as belezas naturais, o equilbrio ecolgico e o patrimnio histrico e artstico, bem como

    evitada a poluio do ar e das guas (art. 1.228, 1).

    O exerccio do direito de propriedade tem tido seu perfil modificado principalmente nas

    zonas mais densas, que so as urbanas. As modificaes nesse campo visam a tornar

    possvel a coexistncia de um sem-nmero de proprietrios em reas relativamente pouco

    extensas, e, mais, acomodar o exerccio de seus respectivos direitos ideia da funo que

  • devem exercer 12. Nessa senda, o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257, de 10-7-2001) prev e

    disciplina a usucapio coletiva, de inegvel alcance social, de reas urbanas com mais de

    duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por populao de baixa renda para sua

    moradia por cinco anos, onde no for possvel identificar os terrenos ocupados

    individualmente.

    No bastasse, o Cdigo Civil de 2002 criou uma nova espcie de desapropriao,

    determinada pelo Poder Judicirio na hiptese de o imvel reivindicado consistir em

    extensa rea, na posse ininterrupta e de boa-f, por mais de cinco anos, de considervel

    nmero de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente,

    obras e servios considerados pelo juiz de interesse social e econmico relevante (art.

    1.228, 4). Nesse caso, o juiz fixar a justa indenizao devida ao proprietrio ( 5).

    Trata-se de inovao de elevado alcance, inspirada no sentido social do direito de

    propriedade e tambm no novo conceito de posse, qualificada como posse-trabalho.

    Em poucas linhas se procurou, assim, dar uma rpida viso da feio atual do direito de

    propriedade e um panorama geral do direito das coisas na legislao brasileira.

    1.3. Contedo

    Os direitos romano, cannico e feudal impregnaram o direito das Ordenaes Filipinas,

    que firmaram, por sua vez, a presena da Idade Mdia nos tempos modernos. O Cdigo Civil

    de 1916 acolheu a tradio jurdica lusitana, sendo influenciado tambm pela doutrina

    germnica. Assim, seguindo o exemplo do Cdigo Civil alemo (BGB), o legislador

    brasileiro dedicou um livro da parte especial ao direito das coisas, enquanto na parte geral

    definiu e classificou os bens. Esse mesmo sistema foi adotado no Cdigo Civil de 2002,

    colocando-se a matria da parte especial na mesma ordem do BGB 13.

  • Cumpre salientar que o direito das coisas no est regulado apenas no Cdigo Civil,

    seno tambm em inmeras leis especiais, como as que disciplinam, por exemplo, a

    alienao fiduciria, a propriedade horizontal, os loteamentos, o penhor agrcola, pecurio e

    industrial, o financiamento para aquisio da casa prpria, alm dos Cdigos especiais j

    citados, concernentes s minas, guas, caa e pesca e florestas, e da prpria Constituio

    Federal.

    O Cdigo Civil regula o direito das coisas no Livro III de sua Parte Especial. Trata

    primeiramente da posse e, em seguida, dos direitos reais . Destes, o mais importante e mais

    completo o direito de propriedade, que constitui o ttulo bsico (III) desse Livro. Os

    demais resultam de seu desmembramento e so denominados direitos reais menores ou

    direitos reais sobre coisas alheias . So regulados nos Ttulos IV a X do aludido Livro III,

    sendo os primeiros (superfcie, servides, usufruto, uso, habitao, direito do promitente

    comprador, concesso de uso especial para fins de moradia e concesso de direito real de

    uso) chamados de direitos reais de gozo ou fruio, e os trs ltimos (penhor, hipoteca e

    anticrese), de direitos reais de garantia.

    O domnio, com efeito, como assinala LAFAYETTE 14, suscetvel de se dividir em tantos

    direitos elementares quantas so as formas por que se manifesta a atividade do homem sobre

    as coisas corpreas. E cada um dos direitos elementares do domnio constitui em si um

    direito real , como, por exemplo, o direito de usufruto, o de uso e o de servido. Tais

    direitos, desmembrados do domnio e transferidos a terceiros, denominam-se direitos reais

    na coisa alheia, ou sobre coisa alheia (jura in re aliena).

    Observa o mencionado autor, na sequncia, que, embora a posse jurdica no seja um

    direito real, seno um fato, costumam os escritores, todavia, inclu-la no direito das coisas,

    dando-lhe a precedncia na ordem das matrias, considerando que ela pe o homem em

  • contato com as coisas corpreas, gera direitos relativos a tais coisas e, pela maneira como

    funciona, usurpa as exterioridades do domnio.

    Malgrado a posse se distinga da propriedade, o possuidor encontra-se em uma situao

    de fato, aparentando ser o proprietrio. Como o legislador deseja proteger o dominus,

    protege o possuidor, por exercer poderes de fato inerentes ao domnio ou propriedade.

    O Cdigo Civil de 1916, no tocante posse, cuidava de sua classificao, aquisio,

    efeitos, perda e proteo possessria. O diploma de 2002 seguiu essa orientao, deixando,

    todavia, de se ocupar da proteo possessria, j amplamente disciplinada no Cdigo de

    Processo Civil (arts. 920 a 933). No captulo da propriedade, o novo Cdigo Civil

    disciplina os modos de sua aquisio e perda, no tocante a mveis e imveis. E, no atinente

    aos direitos reais sobre coisas alheias, j elencados, introduz, como inovao, a superfcie

    em substituio antiga enfiteuse, que um resqucio da Idade Mdia.

    O diploma de 1916 regulava no direito das coisas os direitos autorais. No entanto, como

    ensinava VICENTE RO, na lio trazida colao por WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO 15, o

    legislador foi contraditrio consigo mesmo, porquanto clssica a sistematizao do

    referido direito, no sendo possvel sair do estudo das coisas corpreas quando os direitos

    concernentes propriedade literria, cientfica e artstica, tambm denominados autorais,

    so de natureza imaterial, de fundo moral, decorrentes da prpria personalidade humana.

    O Cdigo Civil de 2002, corretamente, no disciplinou essa matria, que hoje tratada

    em lei especfica (Lei n. 9.610, de 19-2-1998), por ns comentada no volume III desta obra,

    no captulo concernente ao contrato de edio.

    2. Direitos reais e pessoais

    O direito das coisas, como visto, trata das relaes jurdicas concernentes aos bens

  • corpreos suscetveis de apropriao pelo homem. Incluem--se no seu mbito somente os

    direitos reais. Faz-se mister, portanto, estabelecer a distino entre direitos reais e pessoais,

    para delimitar e precisar o objeto do direito das coisas.

    As expresses jus in re e jus ad rem so empregadas, desde o direito cannico, para

    distinguir os direitos reais dos pessoais. O vocbulo reais deriva de res, rei, que significa

    coisa. Segundo a concepo clssica, o direito real consiste no poder jurdico, direto e

    imediato, do titular sobre a coisa, com exclusividade e contra todos. No polo passivo

    incluem-se os membros da coletividade, pois todos devem abster-se de qualquer atitude que

    possa turbar o direito do titular. No instante em que algum viola esse dever, o sujeito

    passivo, que era indeterminado, torna-se determinado.

    Nessa linha, salienta LAFAYETTE RODRIGUES PEREIRA 16 que o direito real o que afeta a

    coisa direta e imediatamente, sob todos ou sob certos respeitos (sob todos os respeitos, se

    o domnio; sob certos respeitos, se um direito real desmembrado do domnio, como a

    servido), e a segue em poder de quem quer que a detenha.

    O direito pessoal, por sua vez, consiste numa relao jurdica pela qual o sujeito ativo

    pode exigir do sujeito passivo determinada prestao. Constitui uma relao de pessoa a

    pessoa e tem, como elementos, o sujeito ativo, o sujeito passivo e a prestao. Os direitos

    reais tm, por outro lado, como elementos essenciais: o sujeito ativo, a coisa e a relao ou

    poder do sujeito sobre a coisa, chamado domnio.

    Alguns autores utilizam tambm, para distinguir os direitos reais dos direitos pessoais, a

    classificao dos direitos subjetivos em absolutos e relativos, conforme o dever jurdico a

    eles inerente. O direito relativo, diz SAN TIAGO DANTAS, quando o dever recai sobre

    determinada pessoa ou determinadas pessoas; o direito absoluto quando o dever jurdico

    recai indistintamente sobre todas as pessoas. Os direitos da personalidade e os reais so

  • desdobramentos dos direitos absolutos 17.

    A mencionada teoria clssica ou tradicional tambm denominada dualista,

    precisamente pela apontada contraposio entre os conceitos de direito pessoal e direito

    real, que so apresentados como dois conceitos completamente distintos: o de direito real

    formulado, como foi dito, considerando-se como uma relao direta e imediata entre seu

    titular (sujeito de direito) e a coisa (objeto do direito); e o daquele, por oposio,

    concebido como a relao entre uma pessoa, titular do direito (sujeito ativo) e o devedor

    (sujeito passivo) obrigado a cumprir uma prestao (objeto do direito) em benefcio do

    primeiro 18.

    Opem-se a ela, no entanto, as teses unitrias, que no aceitam o aludido dualismo e

    procuram integrar ambos os grupos de normas num s sistema. Dividem-se elas em duas

    teorias opostas: a personalista e a realista ou impersonalista. A teoria unitria personalista,

    difundida por PLANIOL e seu discpulo MICHAS em 1889, e posteriormente por DEMOGUE e

    RIPERT, mas j exposta, analisada e criticada por TEIXEIRA DE FREITAS em 1857, no seu

    conhecido Esboo, baseia-se na existncia de um sujeito passivo universal. Para essa

    corrente no existem diferenas substanciais entre os direitos reais e os pessoais, uma vez

    que os primeiros no seriam seno direitos obrigacionais, nos quais a prestao consistiria

    sempre em uma absteno que estaria a cargo de todas as pessoas. O direito das obrigaes

    , desse modo, colocado no centro de todo o direito civil, abrangendo todas as relaes

    jurdicas civis, inclusive o direito real.

    A relao jurdica, segundo a citada teoria personalista, no pode existir entre pessoa e

    coisa, mas somente entre pessoas. O direito real, como os demais direitos, pressupe sujeito

    ativo, sujeito passivo e objeto. Constitui, pois, relao jurdica estabelecida entre o sujeito

    ativo (o proprietrio, no caso do direito real de propriedade) e os sujeitos passivos, que so

  • todas as pessoas do universo, que devem abster-se de molestar o titular. Essa relao de

    natureza pessoal, como as demais obrigaes, mas de contedo negativo 19.

    Releva salientar, em contraposio aludida tese unitria, que os direitos pessoais, e em

    geral os direitos relativos, s podem ser violados pela pessoa particularmente obrigada e

    no por terceiros. Ademais, obtempera ORLANDO GOMES, com apoio em sistematizao

    elaborada por MARTY e RAYNAUD, a obrigao passiva universal fundamentalmente

    diferente da obrigao comum que liga um devedor a seu credor, pois esta um elemento do

    passivo daquele; ora, ningum pensaria em inscrever no passivo de seu patrimnio a

    obrigao de respeitar os direitos reais de outrem; na realidade, pois, a obrigao passiva

    universal no uma obrigao no sentido da palavra; uma regra de conduta 20.

    Aduz o citado autor: A obrigao de respeitar os direitos de outrem no especial dos

    direitos reais; existe para todos os direitos, mesmo os de crdito, assim como demonstra,

    notadamente, a responsabilidade do terceiro, autor ou cmplice da violao de uma

    obrigao contratual. Ademais, a aceitao da teoria personalista, em suas consequncias

    ltimas, conduziria supresso da categoria dos direitos reais, pois todos os direitos seriam

    pessoais, dado que ficariam reduzidos a vnculos obrigacionais.

    A teoria unitria realista procura unificar os direitos reais e obrigacionais a partir do

    critrio patrimnio, considerando que o direito das coisas e o direito das obrigaes fazem

    parte de uma realidade mais ampla, que seria o direito patrimonial. Segundo esse critrio, os

    denominados direitos pessoais no recaem sobre a pessoa do devedor, mas sobre o seu

    patrimnio. A tese sustentada encontraria apoio no princpio geral segundo o qual o

    patrimnio do devedor constitui a garantia comum dos credores e responde por suas

    obrigaes.

    Prope, portanto, a aludida teoria, defendida por GAUDEMET e SALEILLES e difundida por

  • RIGAUD e BONNECASE, a absoro do direito obrigacional pelo real.

    Os principais argumentos para rebater a teoria unitria realista so convincentemente

    expostos por EDMUNDO GATTI 21, que afirma, em primeiro lugar, no ser adequado, para

    pesquisar a essncia de um direito, analis-lo no momento anormal do seu incumprimento.

    Em segundo lugar, prossegue, os direitos reais somente incidem sobre coisas determinadas,

    enquanto o patrimnio, em que se assenta o direito pessoal, uma abstrao que se compe

    de coisas e de bens que no so coisas, e que est integrado no s por um ativo, seno

    tambm por um passivo. Em terceiro lugar, aduz, a mxima de que o patrimnio do devedor

    a garantia comum de seus credores no passa de uma expresso metafrica, que no deve,

    portanto, ser tomada ao p da letra, sob risco de se incorrer em graves erros, pois a palavra

    garantia no est aqui empregada em seu verdadeiro sentido tcnico-jurdico. Por ltimo,

    acrescenta, pretender despersonalizar o direito pessoal constitui um contrassenso, mais

    inadmissvel ainda cuidando-se de obrigaes de fazer ou de no fazer e, sobretudo, se se

    trata de obrigaes intuitu personae. No resta dvida de que, em maior ou menor grau, a

    pessoa do devedor no nunca indiferente para o credor.

    Na realidade, a diversidade de princpios que orientam os direitos reais e os direitos

    pessoais dificulta a sua unificao num s sistema. A doutrina denominada dualista ou

    clssica mostra-se, com efeito, mais adequada realidade, tendo sido por isso acolhida no

    direito positivo brasileiro, que consagra e sanciona a clssica distino entre direitos reais

    e pessoais, isto , direitos sobre as coisas e direitos contra as pessoas 22.

    2.1. Caracteres distintivos

    No h critrio preciso para distinguir o direito real do direito pessoal. Costumam os

    autores destacar alguns traos caractersticos dos direitos reais, com o objetivo de compar-

  • los e diferenci-los dos direitos pessoais.

    Vrios desses caracteres podem ser vislumbrados no conceito de direito real

    apresentado por GUILLERMO ALLENDE: O direito real um direito absoluto, de contedo

    patrimonial, cujas normas, substancialmente de ordem pblica, estabelecem entre uma

    pessoa (sujeito ativo) e uma coisa determinada (objeto) uma relao imediata, que prvia

    publicidade obriga a sociedade (sujeito passivo) a abster-se de praticar qualquer ato

    contrrio ao mesmo (obrigao negativa), nascendo, para a hiptese de violncia, uma ao

    real que outorga a seus titulares as vantagens inerentes ao jus persequendi e ao jus

    praeferendi 23.

    Com efeito, as normas que regulam os direitos reais so de natureza cogente, de ordem

    pblica, ao passo que as que disciplinam o direito obrigacional so, em regra, dispositivas

    ou facultativas, permitindo s partes o livre exerccio da autonomia da vontade.

    Quanto ao modo do seu exerccio, caracteriza-se o direito real pela efetivao direta,

    sem a interveno de quem quer que seja. No depende ele da colaborao de nenhum

    sujeito passivo para existir e ser exercido, enquanto o direito pessoal supe necessariamente

    a interveno de outro sujeito de direito. Nessas condies, o direito real de propriedade

    exercido direta e imediatamente pelo titular, sem a necessidade de qualquer intermedirio.

    Todavia, para que o comodatrio, por exemplo, possa utilizar a coisa locada precisa que,

    mediante o contrato de comodato, o proprietrio da coisa lha entregue, assegurando-lhe o

    direito de us-la com a obrigao de restitu-la aps o decurso de certo tempo 24.

    Outros caracteres distintivos so sublinhados por ORLANDO GOMES 25: a) o objeto do

    direito real h de ser, necessariamente, uma coisa determinada, enquanto a prestao do

    devedor, objeto da obrigao que contraiu, pode ter por objeto coisa genrica, bastando que

    seja determinvel; b) a violao de um direito real consiste sempre num fato positivo, o que

  • no se verifica sempre com o direito pessoal; c) o direito real concede ao titular um gozo

    permanente porque tende perpetuidade, ao passo que o direito pessoal eminentemente

    transitrio, pois se extingue no momento em que a obrigao correlata cumprida; d)

    somente os direitos reais podem ser adquiridos por usucapio; e) o direito real s encontra

    um sujeito passivo concreto no momento em que violado, pois, enquanto no h violao,

    dirige-se contra todos, em geral, e contra ningum, em particular, enquanto o direito pessoal

    dirige-se, desde o seu nascimento, contra uma pessoa determinada, e somente contra ela.

    Ademais, os direitos reais regem-se por determinados princpios, como se ver a seguir,

    que traam o seu perfil e norteiam a sua disciplina, enfatizando as suas caractersticas

    prprias, que os distinguem dos direitos pessoais ou obrigacionais.

    2.2. Princpios fundamentais dos direitos reais

    A disciplina dos direitos reais observa, dentre outros, os seguintes princpios:

    a) Princpio da aderncia, especializao ou inerncia. Estabelece um vnculo, uma

    relao de senhoria entre o sujeito e a coisa, no dependendo da colaborao de nenhum

    sujeito passivo para existir. O direito real gera, pois, entre a pessoa e a coisa, como foi dito,

    uma relao direta e imediata. Esta caracterstica alheia aos direitos pessoais, nos quais o

    vnculo obrigacional existente entre credor e devedor confere ao primeiro somente o direito

    de exigir a prestao prometida.

    N o direito pessoal o vnculo se refere a uma pessoa. At mesmo quando se visa a

    alcanar uma coisa que deve ser prestada pelo devedor, o que se encontra em primeiro plano

    no a coisa, mas sim o devedor. Se este transferi-la a terceiro, o credor no ter outro

    recurso seno cobrar do devedor perdas e danos. No pode reivindic-la do terceiro que a

    adquiriu, tendo de se contentar com a indenizao a ser reclamada do devedor. No direito

  • real, todavia, a pessoa deste, se existe, secundria ante a primordial importncia da res.

    com esta que o vnculo jurdico se apega, de tal sorte que o titular do direito pode perseguir

    a coisa, onde quer que ela se encontre, seja quem for o devedor 26.

    A aderncia do direito real coisa no seno a constatao do fato de que o direito

    real permanece incidindo sobre o bem, ainda que este circule de mo em mo e se transmita

    a terceiros, pois o aludido direito segue a coisa (jus persequendi), em poder de quem quer

    que ela se encontre. Em consequncia, a tutela do direito real sempre mais enrgica e

    eficaz que a do direito de crdito 27.

    Tal princpio encontrado no art. 1.228 do Cdigo Civil, que faculta ao proprietrio

    usar, gozar e dispor da coisa, e reav-la do poder de quem quer que injustamente a possua

    ou detenha, bem como nos diversos direitos reais, de acordo com a funo desempenhada

    por cada qual.

    b) Princpio do absolutismo. Os direitos reais se exercem erga omnes, ou seja, contra

    todos, que devem abster-se de molestar o titular. Surge, da, o direito de sequela ou jus

    persequendi, isto , de perseguir a coisa e de reivindic-la em poder de quem quer que

    esteja (ao real), bem como o jus praeferendi ou direito de preferncia (cf. Ttulo X, n. 3.1

    e 3.2, infra). Direito de sequela, segundo a lio de ORLANDO GOMES, o que tem o titular de

    direito real de seguir a coisa em poder de todo e qualquer detentor ou possuidor. Para

    signific-lo, em toda a sua intensidade, diz-se que o direito real adere coisa como a lepra

    ao corpo (uti lepra cuti). No importam usurpaes; acompanhar sempre a coisa. Se grava

    determinado bem, como no caso de servido, nenhuma transmisso o afetar, pois, seja qual

    for o proprietrio do prdio serviente, ter de suportar o encargo 28.

    Os obrigacionais, por no estabelecerem vnculo dessa natureza, resolvem-se em perdas

    e danos e no se exercem contra todos, mas em face de um ou de alguns sujeitos

  • determinados. Dispem de ao pessoal.

    Todos os princpios se entrelaam no sentido de reforar a rigidez do regime jurdico

    dos direitos reais. As manifestaes tpicas da oponibilidade absoluta do direito real so,

    como foi dito, a sequela e a preferncia. Por sua vez, seu carter absoluto decorre de ser um

    poder direto e imediato sobre a coisa 29.

    c) Princpio da publicidade ou da visibilidade. Os direitos reais sobre imveis s se

    adquirem com o registro, no Cartrio de Registro de Imveis, do respectivo ttulo (CC, art.

    1.227); os sobre mveis, s depois da tradio (CC, arts. 1.226 e 1.267). Sendo oponveis

    erga omnes, faz-se necessrio que todos possam conhecer os seus titulares, para no

    molest-los. O registro e a tradio atuam como meios de publicidade da titularidade dos

    direitos reais. Os pessoais ou obrigacionais seguem o princpio do consensualismo:

    aperfeioam-se com o acordo de vontades. A relatividade que os caracteriza faz com que

    dispensem a publicidade.

    Obtempera ARRUDA ALVIM que a adoo do princpio da publicidade condio de

    operabilidade do princpio do absolutismo: os direitos reais s se podem exercer contra

    todos se forem ostentados publicamente. No que diz respeito especificamente s coisas

    mveis, manifesta-se precipuamente esta publicidade por meio da posse; no que tange aos

    imveis, avulta a funo do Registro, como representativo de tal princpio e onde ele se

    realiza e encontra expresso prtica 30.

    d) Princpio da taxatividade ou numerus clausus. Os direitos reais so criados pelo

    direito positivo por meio da tcnica denominada numerus clausus. A lei os enumera de

    forma taxativa, no ensejando, assim, aplicao analgica da lei. O nmero dos direitos

    reais , pois, limitado, taxativo, sendo assim considerados somente os elencados na lei

    (numerus clausus).

  • O art. 1.225 do Cdigo Civil limita o nmero dos direitos reais, indicando, alm da

    propriedade, a superfcie, as servides, o usufruto, o uso, a habitao, o direito do

    promitente comprador do imvel, o penhor, a hipoteca e a anticrese. O referido rol, em

    comparao com o constante do art. 674 do estatuto de 1916, sofreu as seguintes alteraes:

    a) a enfiteuse foi substituda pela superfcie, dispondo o art. 2.038 do novo diploma, no

    livro das disposies finais e transitrias, que fica proibida a constituio de enfiteuses e

    subenfiteuses, subordinando-se as existentes, at sua extino, s disposies do Cdigo

    Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916, e leis posteriores; b) as rendas

    expressamente constitudas sobre imveis , pelo direito do promitente comprador do

    imvel.

    A Lei n. 11.481, de 31 de maio de 2007, buscando novas solues para a moradia no

    Pas, prev medidas voltadas regularizao fundiria de interesse social em imveis da

    Unio, acrescentando dois direitos reais ao rol do citado art. 1.225 do estatuto civil:

    XI a concesso de uso especial para fins de moradia;

    XII a concesso de direito real de uso.

    O aludido art. 1.225 do Cdigo Civil a referncia para os que proclamam a

    taxatividade do nmero dos direitos reais. Todavia, quando se afirma que no h direito real

    seno quando a lei o declara, tal no significa que s so direitos reais os apontados no

    dispositivo em apreo, mas tambm outros disciplinados de modo esparso no mesmo

    diploma e os institudos em diversas leis especiais. Assim, embora o art. 1.227 do Cdigo

    Civil de 2002, correspondente ao art. 676 do de 1916, exija o registro do ttulo como

    condio para a aquisio do direito real sobre imveis, ressalva o dispositivo em tela os

    casos expressos neste Cdigo.

    Apoiado nessa ressalva, ARNOLDO MEDEIROS DA FONSECA 31 sustenta que um desses casos o

  • direito de reteno , que deve ser includo no aludido rol por poder ser invocado pelo

    possuidor de boa-f at em face da reivindicatria do legtimo dono, nos termos do art. 516

    (CC de 1916; CC/2002: art. 1.219).

    A doutrina 32 tambm considera que o prprio Cdigo Civil criou, nos arts. 1.140 a

    1.143 (CC de 1916; CC/2002: arts. 505 a 508), um outro direito real, que o pacto de

    retrovenda, pelo qual o vendedor, no prazo mximo de trs anos, poder obter a devoluo

    do objeto vendido, de quem for o seu proprietrio na ocasio, restituindo o preo pelo qual

    vendera o bem e as despesas feitas pelo comprador.

    No se tem dvida sobre a caracterizao do aludido pacto como direito real, uma vez

    que adere coisa e pode ser exercido contra qualquer pessoa que a adquira, ainda mesmo

    que ignore a existncia do retrato. Se o Cdigo Civil no se refere a ele no citado art. 1.126

    porque ali enumera os direitos reais sobre coisa alheia, em cujo rol no quis colocar o

    direito de retrovenda, que mais um direito para a aquisio de alguma coisa do que um

    direito ao uso dela.

    Leis posteriores ao Cdigo Civil criaram outros direitos reais, como o do promitente

    comprador, quando a promessa irretratvel e irrevogvel, estando devidamente registrado

    no Registro de Imveis, com direito adjudicao compulsria (Dec.-Lei n. 58, de 10-12-

    1937, regulamentado pelo Dec. n. 3.079, de 15-9-1938, e ampliado pela Lei n. 649, de 11-4-

    1949). Como j mencionado, o direito do promitente comprador do imvel foi includo no

    elenco dos direitos reais do novo Cdigo, constando expressamente do inciso VII do aludido

    art. 1.225.

    Com a legislao concernente ao mercado de capitais, assumiu especial importncia a

    alienao fiduciria, como garantia nas vendas realizadas ao consumidor (art. 66 da Lei n.

    4.728, de 14-7-1965; Dec.-Lei n. 911, de 1-10-1969; Lei n. 9.514, de 20-11-1997; Lei n.

  • 10.931, de 2-8-2004; Lei n. 11.481/2007, art. 11; Lei n. 13.043, de 13-11-2014). O

    mencionado instituto disciplinado no Cdigo Civil de 2002 como espcie de propriedade,

    nos arts. 1.361 e s. do captulo intitulado Da Propriedade Fiduciria, aplicando-se-lhe, no

    que couber, o disposto nos arts. 1.421, 1.425, 1.426, 1.427 e 1.436, que dizem respeito

    hipoteca e ao penhor, que so direitos reais de garantia.

    Novo direito real foi institudo pelo Decreto-Lei n. 271, de 28 de fevereiro de 1967,

    denominado concesso de uso, tendo por objeto terrenos pblicos ou particulares e o espao

    areo sobre a superfcie de terrenos da mesma natureza. O aludido direito assemelha-se ao

    usufruto, pois o cessionrio tem o direito a fruir plenamente o terreno para os fins de

    concesso, e aproxima-se ainda do direito real de superfcie.

    A Lei n. 11.481, de 31 de maio de 2007, deu nova redao ao art. 7 do referido

    Decreto-Lei n. 271/67, verbis:

    Art. 7 instituda a concesso de uso de terrenos pblicos ou particulares remunerada

    ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolvel, para fins

    especficos de regularizao fundiria de interesse social, urbanizao, industrializao,

    edificao, cultivo da terra, aproveitamento sustentvel das vrzeas, preservao das

    comunidades tradicionais e seus meios de subsistncia ou outras modalidades de interesse

    social em reas urbanas.

    (...)

    5 Para efeito de aplicao do disposto no caput deste artigo, dever ser observada a

    anuncia prvia:

    I do Ministrio da Defesa e dos Comandos da Marinha, do Exrcito ou da Aeronutica,

    quando se tratar de imveis que estejam sob sua administrao; e

    II do Gabinete de Segurana Institucional da Presidncia da Repblica, observados os

  • termos do inciso III do 1 do art. 91 da Constituio Federal.

    N o s direitos pessoais no h esse sistema de delimitao legal das figuras e de

    tipificao. Existe certo nmero de contratos nominados, previstos no texto legal, podendo

    as partes criar os chamados inominados. Basta que sejam capazes e lcito o objeto. Assim,

    contrape-se tcnica do numerus clausus a do numerus apertus, para a consecuo prtica

    do princpio da autonomia da vontade.

    No ordenamento jurdico brasileiro, portanto, toda limitao ao direito de propriedade

    que no esteja prevista na lei como direito real tem natureza obrigacional, uma vez que as

    partes no podem criar direitos reais. E por uma razo muito simples, como assevera SAN

    TIAGO DANTAS: porque, sendo certo que os direitos reais prevalecem erga omnes, seria

    inadmissvel que duas, trs ou mais pessoas pudessem, pelo acordo de suas vontades, criar

    deveres jurdicos para toda a sociedade 33.

    Poucos pases contm normas imperativas adotando expressamente um ou outro sistema.

    Um deles o Cdigo Civil argentino, cujo art. 2.502 dispe: Os direitos reais s podem ser

    criados pela lei. Todo o contrato ou disposio de ltima vontade que constituir outros

    direitos reais, ou modificar os que por este Cdigo se reconhecem, s valer como

    constituio de direitos pessoais, se como tal puder valer.

    Na mesma linha preceitua o art. 1.306 do Cdigo Civil portugus de 1966: No

    permitida a constituio, com carter geral, de restries ao direito de propriedade ou de

    figuras parcelares deste direito seno nos casos previstos na lei; toda a restrio resultante

    de negcio jurdico, que no esteja nestas condies, tem natureza obrigacional.

    JOS DE OLIVEIRA ASCENSO critica o dispositivo em apreo, afirmando que a lei portuguesa

    veio consagrar o sistema do numerus clausus numa altura em que se impunha o seu

    abandono. As razes que no sculo passado tero imposto o princpio no tm hoje sentido.

  • A soluo legal afigura-se-nos um sintoma muito claro do envelhecimento das estruturas do

    Direito das Coisas, que referimos atrs 34.

    No direito brasileiro, malgrado algumas poucas opinies em contrrio, especialmente a

    de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO 35, predomina a aceitao do sistema do numerus clausus,

    manifestando-se nesse sentido, dentre outros, PONTES DE MIRANDA 36, SERPA LOPES 37, ORLANDO

    GOMES 38, SILVIO RODRIGUES 39, ARNOLDO WALD 40, ARRUDA ALVIM 41 e DARCY BESSONE 42.

    e) Princpio da tipicidade. Os direitos reais existem de acordo com os tipos legais. So

    definidos e enumerados determinados tipos pela norma, e s a estes correspondem os

    direitos reais, sendo, pois, seus modelos. Somente os direitos constitudos e configurados

    luz dos tipos rgidos (modelos) consagrados no texto positivo que podero ser tidos como

    reais. Estes tipos so previstos pela lei de forma taxativa 43. Nos direitos obrigacionais, ao

    contrrio, admitem-se, ao lado dos contratos tpicos, os atpicos, em nmero ilimitado.

    Em renomada monografia sobre o tema, preleciona JOS DE OLIVEIRA ASCENSO: Se h um

    numerus clausus, tambm h, necessariamente, uma tipologia de direitos reais. O numerus

    clausus implica sempre a existncia de um catlogo, de uma delimitao de direitos reais

    existentes. Quer dizer, o numerus clausus significa que nem todas as figuras que cabem no

    conceito de direito real so admitidas, mas to somente as que forem previstas como tal.

    Pressupe, pois, a especificao de uma pluralidade de figuras que realizam o

    preenchimento incompleto dum conceito, o que nos d a prpria definio de tipologia. O

    conceito de direito real tem uma extenso maior do que a resultante da soma dos direitos

    reais existentes 44.

    Aduz o mencionado autor que a referncia ao numerus clausus desemboca na categoria

    moderna da tipicidade. Mas daqui no podemos inferir que tudo que respeita tipicidade

    dos direitos reais se esgota com a referncia ao princpio do numerus clausus. Na verdade,

  • enquanto este se limita a estabelecer que s se admite um nmero normativamente

    determinado de direitos reais, aquela conduz a investigao para campos muito mais

    vastos.

    f) Princpio da perpetuidade. A propriedade um direito perptuo, pois no se perde

    pelo no uso, mas somente pelos meios e formas legais: desapropriao, usucapio,

    renncia, abandono etc. J os direitos obrigacionais, pela sua natureza, so eminentemente

    transitrios: cumprida a obrigao, extinguem-se. No exigido o seu cumprimento dentro de

    certo lapso de tempo, prescrevem.

    Em realidade, a caracterstica da perpetuidade dos direitos reais no absoluta, embora

    tenham mais estabilidade do que os direitos obrigacionais, pois tambm se extinguem em

    determinadas circunstncias, como mencionado. Tambm desmembram-se do direito-matriz,

    que a propriedade, e, uma vez extintos, o poder que se encontrava em mos do titular de

    tais direitos retorna, ou seja, consolida-se em mos do proprietrio. Por outro lado, os

    direitos obrigacionais so ontolgica e eminentemente transitrios. Sua vocao de se

    extinguirem: nascem para isto. Os contratos, efetivamente, so celebrados para serem

    cumpridos, e normalmente tm prazo predeterminado 45. Podem, inclusive, apresentar um

    carter instantneo, uma vez que possvel suceder que o momento da obteno do benefcio

    pelo credor coincida com o da extino de seu direito 46.

    g) Princpio da exclusividade. No pode haver dois direitos reais, de igual contedo,

    sobre a mesma coisa. Duas pessoas no ocupam o mesmo espao jurdico, deferido com

    exclusividade a algum, que o sujeito do direito real. Assim, no possvel instalar-se

    direito real onde outro j exista. No condomnio, cada consorte tem direito a pores ideais,

    distintas e exclusivas.

    certo que, nos direitos reais sobre coisas alheias, h dois sujeitos: o dono e o titular do

  • direito real. Mas, em razo do desmembramento da propriedade, cada um deles exerce,

    direta e imediatamente, sobre a coisa, direitos distintos, vale dizer, sem a intermediao do

    outro. No caso do usufruto, por exemplo, o usufruturio tem direito aos frutos, enquanto o nu-

    proprietrio conserva o direito substncia da coisa. Os direitos pessoais, todavia, admitem

    amplamente a unidade ou a pluralidade de seus sujeitos, tanto ativos como passivos 47.

    h) Princpio do desmembramento. Conquanto os direitos reais sobre coisas alheias

    tenham normalmente mais estabilidade do que os obrigacionais, so tambm transitrios,

    pois, como exposto, desmembram-se do direito-matriz, que a propriedade. Quando se

    extinguem, como no caso de morte do usufruturio, por exemplo, o poder que existia em mo

    de seus titulares retorna s mos do proprietrio, em virtude do princpio da consolidao.

    Este, embora seja o inverso daquele, o complementa e com ele convive.

    Malgrado o direito de propriedade possa desmembrar-se em todos os outros tipos de

    direitos reais, beneficiando terceiros que passam a exerc-los sobre coisa alheia, a

    tendncia natural a ulterior reunificao desses direitos no direito de propriedade matriz,

    ocorrendo ento o fenmeno da consolidao, voltando o proprietrio a ter o domnio pleno

    da res.

    3. Figuras hbridas ou intermdias

    Entre o direito de propriedade, que o direito real por excelncia, e o crdito de uma

    quantia certa, que o direito pessoal mais caracterstico, h uma grande variedade de figuras

    que, medida em que se distanciam dos extremos, tendem a confundir-se. A lei diz, por

    exemplo, que, se dois prdios so vizinhos, um dos proprietrios tem obrigao de

    concorrer para a construo do muro comum. Trata-se de direito real ou de uma obrigao?

    Para esses casos, anota SAN TIAGO DANTAS, a doutrina medieval engendrou a figura das

  • obrigaes propter rem , obrigaes em consequncia da coisa. Elas so ambulatrias,

    acompanham a coisa nas mos de qualquer novo titular, de tal maneira que, se se vende um

    prdio, transfere-se para o adquirente a obrigao de entrar com sua metade das despesas do

    muro comum, assim como para ele tambm so transferidas todas as obrigaes que esto

    compreendidas na vizinhana. Outra doutrina, entretanto, combatendo este conceito,

    imaginou uma classe de direitos reais, que chamou de direitos reais inominados , alegando

    que em todos aqueles casos esto observados os caractersticos da realidade 48.

    Conclui o aludido autor que, direitos inominados ou obrigaes propter rem so,

    rigorosamente, a mesma coisa, no se devendo perder tempo com essas discusses, pois o

    que se deve dizer que, nos limites da categoria dos direitos reais e dos direitos pessoais,

    h certas figuras que podem, indiferentemente, ser conceituadas como direitos reais ou

    obrigaes.

    A doutrina menciona, com efeito, a existncia de algumas figuras hbridas ou

    intermdias, que se situam entre o direito pessoal e o direito real. Constituem elas,

    aparentemente, um misto de obrigao e de direito real e provocam alguma perplexidade nos

    juristas, que chegam a dar-lhes, impropriamente, o nome de obrigao real. Outros preferem

    a expresso obrigao mista. Os jurisconsultos romanos as denominavam, com mais

    propriedade, obligationes ob rem ou propter rem . Os nus reais, uma das figuras hbridas,

    tm mais afinidade com os direitos reais de garantia 49.

    3.1. Obrigaes propter rem

    Obrigao propter rem a que recai sobre uma pessoa, por fora de determinado direito

    real. S existe em razo da situao jurdica do obrigado, de titular do domnio ou de

    detentor de determinada coisa. o que ocorre, por exemplo, com a obrigao imposta aos

  • proprietrios e inquilinos de um prdio de no prejudicarem a segurana, o sossego e a

    sade dos vizinhos (CC, art. 1.277). Decorre da contiguidade dos dois prdios. Por se

    transferir a eventuais novos ocupantes do imvel (ambulat cum domino), tambm

    denominada obrigao ambulatria.

    So obrigaes que surgem ex vi legis, atreladas a direitos reais, mas com eles no se

    confundem, em sua estruturao. Enquanto estes representam ius in re (direito sobre a coisa,

    ou na coisa), essas obrigaes so concebidas como ius ad rem (direitos por causa da coisa,

    ou advindos da coisa) 50.

    Embora o Cdigo Civil no tenha isolado e disciplinado essa modalidade de obrigao,

    pode ela ser identificada em vrios dispositivos esparsos e em diversas situaes, como,

    por exemplo: na obrigao imposta ao condmino de concorrer para as despesas de

    conservao da coisa comum (CC, art. 1.315); na do condmino, no condomnio em

    edificaes, de no alterar a fachada do prdio (CC, art. 1.336, III); na obrigao que tem o

    dono da coisa perdida de recompensar e indenizar o descobridor (CC, art. 1.234); na dos

    donos de imveis confinantes, de concorrerem para as despesas de construo e

    conservao de tapumes divisrios (CC, art. 1.297, 1) ou de demarcao entre os prdios

    (CC, art. 1.297); na obrigao de dar cauo pelo dano iminente (dano infecto) quando o

    prdio vizinho estiver ameaado de runa (CC, art. 1.280); na obrigao de indenizar

    benfeitorias (CC, art. 1.219) etc. 51.

    Divergem os autores com relao natureza jurdica da obrigao propter rem.

    Enquanto TITO FULGNCIO a reduz a uma obrigao comum, outros, como SAN TIAGO DANTAS e

    SERPA LOPES destacam, como trao caracterstico, sua vinculao a um direito real.

    Na realidade, como entende a moderna doutrina, a obrigao propter rem situa-se em

    terreno fronteirio entre os direitos reais e os pessoais. Configura um direito misto,

  • constituindo um tertium genus, por revelar a existncia de direitos que no so puramente

    reais nem essencialmente obrigacionais. Tem caractersticas de direito obrigacional, por

    recair sobre uma pessoa que fica adstrita a satisfazer uma prestao, e de direito real, pois

    vincula sempre o titular da coisa.

    EDMUNDO GATTI 52 figura tambm entre os que rechaam o pretendido carter intermdio

    ou misto das propter rem, uma vez que a natureza jurdica de um direito determinada, antes

    de tudo, por seu contedo. E este, segundo se admite pacificamente, de carter

    obrigacional. O elemento real se assenta no fato de que o vnculo jurdico no se estabelece,

    como na obrigao, entre pessoas determinadas, seno indeterminadamente entre aquelas

    pessoas que venham a revestir o carter de titulares de um direito real ou possuidores de

    uma coisa. Trata-se, pois, no entendimento do mencionado jurista argentino, de obrigaes

    que ostentam caractersticas especiais no que se refere, principalmente, a seu nascimento,

    desenvolvimento e extino.

    CAIO MRIO DA SILVA PEREIRA 53, por sua vez, situa a obrigao em apreo no plano de uma

    obrigao acessria mista, no a considerando nem uma obligatio, nem um jus in re. No

    seu entender, erram os que lhe pretendem atribuir autonomia, pois essa modalidade de

    obrigao somente encorpa-se quando acessria a uma relao jurdico-real ou se objetiva

    numa prestao devida ao titular do direito real, nesta qualidade (ambulat cum domino). Ela

    , segundo entende, uma obrigao de carter misto, pelo fato de ter como a obligatio in

    personam objeto consistente em uma prestao especfica; e como a obligatio in re estar

    sempre incrustrada no direito real.

    3.2. nus reais

    No volume II desta obra, no captulo concernente introduo ao direito das obrigaes

  • (Livro I, Captulo I, item n. 5.2.3), tivemos a oportunidade de dizer que nus reais so

    obrigaes que limitam o uso e gozo da propriedade, constituindo gravames ou direitos

    oponveis erga omnes, como, por exemplo, a renda constituda sobre imvel. Aderem e

    acompanham a coisa. Por isso se diz que quem deve esta e no a pessoa.

    Para que haja, efetivamente, um nus real e no um simples direito real de garantia

    (como a hipoteca, ou o privilgio creditrio especial), conforme foi dito, essencial que o

    titular da coisa seja realmente devedor, sujeito passivo de uma obrigao, e no apenas

    proprietrio ou possuidor de determinado bem cujo valor assegura o cumprimento de dvida

    alheia.

    Embora controvertida a distino entre nus reais e obrigaes propter rem , costumam

    os autores apontar as seguintes diferenas: a) a responsabilidade pelo nus real limitada

    ao bem onerado, no respondendo o proprietrio alm dos limites do respectivo valor, pois

    a coisa que se encontra gravada; na obrigao propter rem responde o devedor com todos

    os seus bens, ilimitadamente, pois este que se encontra vinculado; b) os primeiros

    desaparecem, perecendo o objeto, enquanto os efeitos da obrigao propter rem podem

    permanecer, mesmo havendo perecimento da coisa; c) os nus reais implicam sempre uma

    prestao positiva, enquanto a obrigao propter rem pode surgir com uma prestao

    negativa; d) nos nus reais, a ao cabvel de natureza real (in rem scriptae); nas

    obrigaes propter rem, de ndole pessoal.

    Tambm se tem dito que, nas obrigaes propter rem, o titular da coisa s responde, em

    princpio, pelos vnculos constitudos na vigncia do seu direito. Nos nus reais, porm, o

    titular da coisa responde mesmo pelo cumprimento de obrigaes constitudas antes da

    aquisio do seu direito. Tal critrio, no entanto, tem sofrido desvios, como se pode

    observar pela redao do art. 4 da Lei n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964,

  • responsabilizando o adquirente da frao autnoma do condmino pelos dbitos do

    alienante, em relao ao condomnio.

    3.3. Obrigaes com eficcia real

    Obrigaes com eficcia real so as que, sem perder seu carter de direito a uma

    prestao, transmitem-se e so oponveis a terceiro que adquira direito sobre determinado

    bem. Certas obrigaes resultantes de contratos alcanam, por fora de lei, a dimenso de

    direito real.

    Embora os direitos reais s possam ser criados por lei, nossa legislao, como acentua

    SLVIO VENOSA 54, traz exemplos de relaes contratuais que, por sua importncia, podem ser

    registradas no cartrio imobilirio, ganhando eficcia que transcende o direito pessoal.

    Pode ser mencionada, como exemplo, a obrigao estabelecida no art. 576 do Cdigo

    Civil, pelo qual a locao pode ser oposta ao adquirente da coisa locada, se constar do

    registro. Tambm pode ser apontada, a ttulo de exemplo de obrigao com eficcia real, a

    que resulta de compromisso de compra e venda, em favor do promitente comprador, quando

    no se pactua o arrependimento e o instrumento registrado no Cartrio de Registro de

    Imveis, adquirindo este direito real aquisio do imvel e sua adjudicao compulsria

    (CC, arts. 1.417 e 1.418).

    Observa-se, assim, que o legislador, quando entende que determinada relao

    obrigacional merece tratamento de maior proteo, concede eficcia real a uma relao

    obrigacional, criando uma exceo regra geral dos efeitos pessoais das relaes

    obrigacionais 55.

  • TTULO I

    DA POSSE

    CAPTULO I

    NOES GERAIS SOBRE A POSSE

    Sumrio: 1. Introduo ao estudo da posse. 1.1. As dificuldades do estudo do tema. 1.2. Fundamento da posse.Jus possessionis e jus possidendi. 2. Origem histrica da posse. 3. Teorias sobre a posse. 3.1. Teoria subjetiva deSavigny. 3.2. Teoria objetiva de Ihering. 3.3. Teorias sociolgicas. 4. Conceito de posse. 5. Posse e deteno. 6.Posse e quase posse. 7. O objeto da posse e a posse dos direitos pessoais. 8. Natureza jurdica da posse.

    1. Introduo ao estudo da posse

    1.1. As dificuldades do estudo do tema

    Inmeras so as dificuldades que aparecem no estudo da posse. Muitos tratados j foram

    escritos. Apesar disso, continua sendo tema altamente discutido e controvertido.

    Segundo ROBERTO DE RUGGIERO, no h matria que se ache mais cheia de dificuldades do

    que esta, no que se refere sua origem histrica, ao fundamento racional da sua proteo,

    sua terminologia, sua estrutura terica, aos elementos que a integram, ao seu objeto, aos

    seus efeitos, aos modos de adquiri-la e de perd-la 56.

    LAFAILLE enumera algumas dessas dificuldades, afirmando que diversas causas tm

    contribudo para que a posse seja um dos setores mais rduos e mais complicados do Direito

    Civil. Os problemas que ela coloca so j de si difceis, tanto no que se refere ao distingui-

    la de outras figuras, como no que respeita ao regulament-la e no organizar a sua defesa.

    Tudo isto, alis, se agrava com a anarquia de linguagem que se reflete nos autores e nas

  • prprias leis 57.

    OLIVEIRA ASCENSO lembra que, quanto posse, surgem grandes dificuldades

    terminolgicas e que o seu fundamento vivamente debatido, sem que desse debate

    resultem, alis, proveitos visveis 58.

    MANUEL RODRIGUES, por sua vez, adverte que nas leis, nos livros dos jurisconsultos e nas

    decises dos tribunais, a terminologia da posse vria e imprecisa. Desta impreciso

    ressentem-se as exposies, as crticas das teorias e a exegese da lei em to grande parte,

    donde o poder dizer-se, justificadamente, que a questo da terminologia complica em muito

    o estudo da posse 59.

    J se disse, inclusive, que seguramente, nesta questo da proteo possessria, o

    Direito Civil encontra-se nos limites de suas possibilidades 60.

    Tambm JOS CARLOS MOREIRA ALVES comenta que poucas matrias h, em direito, que

    tenham dado margem a tantas controvrsias como a posse. Sua bibliografia amplssima, e

    constante a afirmao dos embaraos de seu estudo 61. Uma das razes, como explica a

    seguir, citando observao feita por CASTAN TOBEAS, est em que a doutrina moderna da

    posse nem sempre tem guardado correspondncia com os diferentes direitos positivos,

    porque sofreu vigorosa influncia dos dois mais clebres autores que, com vistas ao direito

    romano, trataram da posse no sculo XIX SAVIGNY e IHERING , ao passo que parte das

    codificaes modernas (entre elas o Cdigo Civil francs) se elaborou independentemente

    das teorias de ambos.

    1.2. Fundamento da posse. Jus possessionis e jus possidendi

    O nosso direito protege no s a posse correspondente ao direito de propriedade e a

    outros direitos reais como tambm a posse como figura autnoma e independente da

  • existncia de um ttulo. Embora possa um proprietrio violentamente desapossado de um

    imvel valer-se da ao reivindicatria para reav-lo, prefervel se mostra, no entanto, a

    possessria, cuja principal vantagem possibilitar a reintegrao do autor na posse do bem

    logo no incio da lide. E a posse, como situao de fato, no difcil de ser provada.

    A posse protegida para evitar a violncia e assegurar a paz social, bem como porque a

    situao de fato aparenta ser uma situao de direito. , assim, uma situao de fato

    protegida pelo legislador.

    Na doutrina de OLIVEIRA ASCENSO, a posse uma das grandes manifestaes no mundo do

    direito do princpio fundamental da inrcia. Em princpio, no se muda nada. Deixa-se tudo

    continuar como est, para evitar o desgaste de uma mudana. Isto assim, tanto na ordem

    poltica, como na vida das pessoas ou das instituies. Quando algum exerce poderes sobre

    uma coisa, exteriorizando a titularidade de um direito, a ordem jurdica permite-lhe, por esse

    simples fato, que os continue a exercer, sem exigir maior justificao. Se ele realmente o

    titular, como normalmente acontece, resulta da a coincidncia da titularidade e do exerccio,

    sem que tenha sido necessrio proceder verificao dos seus ttulos 62.

    Se algum, assim, instala-se em um imvel e nele se mantm, mansa e pacificamente, por

    mais de ano e dia, cria uma situao possessria, que lhe proporciona direito a proteo. Tal

    direito chamado jus possessionis ou posse formal, derivado de uma posse autnoma,

    independentemente de qualquer ttulo. to somente o direito fundado no fato da posse

    (possideo quod possideo) que protegido contra terceiros e at mesmo o proprietrio. O

    possuidor s perder o imvel para este, futuramente, nas vias ordinrias. Enquanto isso,

    aquela situao ser mantida. E ser sempre mantida contra terceiros que no possuam

    nenhum ttulo nem melhor posse.

    J o direito posse, conferido ao portador de ttulo devidamente transcrito, bem como

  • ao titular de outros direitos reais, denominado jus possidendi ou posse causal. Nesses

    exemplos, a posse no tem qualquer autonomia, constituindo-se em contedo do direito real.

    Tanto no caso do jus possidendi (posse causal, titulada) como no do jus possessionis (posse

    autnoma ou formal, sem ttulo) assegurado o direito proteo dessa situao contra atos

    de violncia, para garantia da paz social.

    Como se pode verificar, a posse distingue-se da propriedade, mas o possuidor encontra-

    se em uma situao de fato, aparentando ser o proprietrio. Se realmente o , como

    normalmente acontece, resulta da, como consta da lio de ASCENSO retrotranscrita, a

    coincidncia da titularidade e do exerccio, sem que tenha sido necessrio proceder

    verificao dos seus ttulos.

    Todavia, se o possuidor no realmente o titular do direito a que a posse se refere, das

    duas uma: a) o titular abstm-se de defender os seus direitos e a inrcia vai consolidando a

    posio do possuidor, que acabar eventualmente por ter um direito aquisio da prpria

    coisa possuda, por meio da usucapio; ou b) o verdadeiro titular no se conforma e exige a

    entrega da coisa, pelos meios judiciais que a ordem jurdica lhe faculta, que culminam na

    reivindicao e permitem a sua vitria. Enquanto no o fizer, o possuidor continuar a ser

    protegido. Assim, se o titular do direito no toma a iniciativa de solicitar a interveno da

    pesada mquina judicial, as finalidades sociais so suficientemente satisfeitas com a mera

    estabilizao da situao fundada na aparncia do direito 63.

    Em suma, no jus possidendi se perquire o direito, ou qual o fato em que se estriba o

    direito que se argi; e no jus possessionis no se atende seno posse; somente essa

    situao de fato que se considera, para que logre os efeitos jurdicos que a lei lhe confere.

    No se indaga ento da correspondncia da expresso externa com a substncia, isto , com

    a existncia do direito. A lei socorre a posse enquanto o direito do proprietrio no desfizer

  • esse estado de coisas e se sobreleve como dominante. O jus possessionis persevera at que

    o jus possidendi o extinga 64.

    2. Origem histrica da posse

    Desde os tempos remotos a tutela da situao de fato originada pela posse um mero

    reflexo da defesa da paz social. Se algum, pela violncia, se apodera de coisa que outro

    tem em seu poder, a quebra da paz tem uma sano natural: restituem-se manu militari os

    sujeitos situao anterior 65.

    A origem da posse questo controvertida, malgrado se admita que em Roma tenha

    ocorrido o seu desenvolvimento. As diversas solues propostas costumam ser reunidas em

    dois grupos: no primeiro, englobam-se as teorias que sustentam ter a posse sido conhecida

    do direito antes dos interditos; no segundo, figuram todas aquelas que consideram a posse

    mera consequncia do processo reivindicatrio.

    Dentre as teorias do primeiro grupo, destaca-se a de NIEBUHR, adotada por SAVIGNY 66.

    Costumavam os romanos distribuir aos cidados uma parte dos terrenos conquistados e

    reservar para a cidade a parte restante. Como as constantes vitrias dessem a Roma grandes

    extenses de terras, resolveu-se conceder aos particulares a fruio das reas destinadas s

    cidades, para que no ficassem improdutivas, repartindo-as em pequenas propriedades

    denominadas possessiones. Essas concesses eram feitas a ttulo precrio e tinham natureza

    diferente da propriedade quiritria. No podiam, por isso, ser defendidas pela reivindicatio,

    restrita ao titular da propriedade. Para que no permanecessem indefesas, criou-se um

    processo especial, inspirado nas formas de defesa da propriedade, denominado interdito

    possessrio.

    Dentre as teorias que afirmam ter a posse surgido como uma consequncia do processo

  • reivindicatrio desponta a de IHERING 67, segundo a qual os interditos possessrios, na sua

    origem, constituam incidentes preliminares do processo reivindicatrio. Antes que este

    assumisse forma contenciosa regular em juzo, o pretor podia entregar a posse da coisa

    litigiosa a qualquer das partes. A contemplada no se eximia, todavia, do nus de produzir

    prova de seus direitos. Depois de passar por diversas fases, esse processo preparatrio

    adquiriu independncia, desvinculando-se do petitrio.

    Discute-se at hoje a origem da posse e dos interditos possessrios, sem que se possa

    apontar com certeza qual das teorias expostas reflete a verdadeira histria do aludido

    instituto 68.

    3. Teorias sobre a posse

    O estudo da posse repleto de teorias que procuram explicar o seu conceito. Podem,

    entretanto, ser reduzidas a dois grupos: o das teorias subjetivas, no qual se integra a de

    FRIEDRICH KARL VON SAVIGNY, que foi quem primeiro tratou da questo nos tempos modernos; e

    o das teorias objetivas, cujo principal propugnador foi RUDOLF VON IHERING.

    Algumas teorias intermedirias ou eclticas, como as de FERRINI, de RICCOBONO e de

    BARASSI, pouca repercusso tiveram. No incio do sculo passado novas teorias surgiram,

    dando nfase ao carter econmico e funo social da posse, sendo denominadas teorias

    sociolgicas. Merecem destaque as de PEROZZI, na Itlia; de SALEILLES, na Frana; e de

    HERNANDEZ GIL, na Espanha.

    3.1. Teoria subjetiva de SAVIGNY

    O mrito de FRIEDRICH VON SAVIGNY foi ter descoberto, quando procurava reconstruir a

    dogmtica da posse no direito romano em sua obra clssica sobre o assunto intitulada

  • Tratado da posse (Das Recht des Besitzes), a posio autnoma da posse, afirmando

    categoricamente a existncia de direitos exclusiva e estritamente resultantes da posse o ius

    possessionis; e, neste sentido, sustentou que s este ius possessionis constitua o ncleo

    prprio da teoria possessria 69.

    A aludida obra foi publicada em 1893, quando contava o autor apenas 24 anos, sendo

    considerada por IHERING, que fora seu aluno na Faculdade de Direito de Berlim, a pedra

    angular da cincia do direito, malgrado dela tenha divergido em diversos pontos. Nenhuma

    monografia sobre o direito romano, enfatizou IHERING, despertou tanta admirao e aplausos,

    e tanta oposio e doestos como a de SAVIGNY sobre a posse e, a meu ver, com toda a razo.

    SAVIGNY ter eternamente a glria de haver restaurado na dogmtica do direito civil o esprito

    da jurisprudncia romana, e qualquer que seja definitivamente o resultado prtico que dele

    se obtenha, seu mrito incontestvel no sofrer detrimento algum 70.

    Para SAVIGNY, a posse caracteriza-se pela conjugao de dois elementos: o corpus,

    elemento objetivo que consiste na deteno fsica da coisa, e o animus, elemento subjetivo,

    que se encontra na inteno de exercer sobre a coisa um poder no interesse prprio e de

    defend-la contra a interveno de outrem. No propriamente a convico de ser dono

    (opinio seu cogitatio domini), mas a vontade de t-la como sua (animus domini ou animus

    rem sibi habendi), de exercer o direito de propriedade como se fosse o seu titular.

    Os dois citados elementos so indispensveis, pois, se faltar o corpus, inexiste posse, e,

    se faltar o animus, no existe posse, mas mera deteno. A teoria se diz subjetiva em razo

    deste ltimo elemento. Para SAVIGNY adquire-se a posse quando, ao elemento material (poder

    fsico sobre a coisa), vem juntar-se o elemento espiritual, anmico (inteno de t-la como

    sua). No constituem relaes possessrias, portanto, na aludida teoria, aquelas em que a

    pessoa tem a coisa em seu poder, ainda que juridicamente fundada (como na locao, no

  • comodato, no penhor etc.), por lhe faltar a inteno de t-la como dono (animus domini), o

    que dificulta sobremodo a defesa da situao jurdica 71.

    Nesse ponto a aludida teoria no encontrou sustentculo. O direito moderno no pode

    negar proteo possessria ao arrendatrio, ao locatrio e ao usufruturio, que tm a

    faculdade de ajuizar as medidas competentes enquanto exercerem a posse, sob alegao de

    que detm a coisa animo nomine alieno. A recusa posse, nestes casos, diz IHERING, um

    fato que pode causar-nos no pequena surpresa. Aquele que arrebatou a posse de uma

    coisa, como verbi gratia, o ladro, o bandido, e aquele que conseguiu pela violncia a posse

    de um imvel, obtm a proteo jurdica contra quem no tem melhor posse, enquanto

    aquele que a ela chegou de uma maneira justa no tem esta proteo: est, no que diz

    respeito relao possessria, destitudo de todo e qualquer direito, no s quanto a

    terceiros, como em face daquele para com o qual ele se obrigou a devolver a coisa no termo

    do arrendamento ou locao 72.

    SAVIGNY 73 procurou uma soluo tangencial, criando uma terceira categoria alm da

    posse e da mera deteno, a que denominou posse derivada, reconhecida na transferncia

    dos direitos possessrios, e no do direito de propriedade, e aplicvel ao credor

    pignoratcio, ao precarista e ao depositrio de coisa litigiosa, para que pudessem conservar

    a coisa que lhes fora confiada.

    Assim, contrariando a prpria tese, isto , admitindo a posse sem a inteno de dono,

    SAVIGNY mostrou a fragilidade de seu pensamento, embora tenha procurado fazer a distino

    entre o nimo exigido para a posse e o nimo do proprietrio propriamente dito. No

    primeiro caso, o nimo mais que representao (animus repraesentandi). No outro, o

    arrendatrio, o locatrio e o usufruturio estariam representando o arrendante, o locador ou

    o nu-proprietrio, situao, no entanto, diferente daquela que a realidade apresenta 74.

  • Tanto o conceito do corpus como o do animus sofreram mutaes na prpria teoria

    subjetiva. O primeiro, inicialmente considerado simples contato fsico com a coisa (, por

    exemplo, a situao daquele que mora na casa ou conduz o seu automvel), posteriormente

    passou a consistir na mera possibilidade de exercer esse contato, tendo sempre a coisa sua

    disposio. Assim, no o perde o dono do veculo que entrou no cinema e o deixou no

    estacionamento. Tambm a noo de animus evoluiu para abranger no apenas o domnio,

    seno tambm os direitos reais, sustentando-se ainda a possibilidade de posse sobre coisas

    incorpreas 75.

    3.2. Teoria objetiva de IHERING

    A teoria de RUDOLF VON IHERING por ele prprio denominada objetiva porque no

    empresta inteno, ao animus, a importncia que lhe confere a teoria subjetiva. Considera-

    o como j includo no corpus e d nfase, na posse, ao seu carter de exteriorizao da

    propriedade. Para que a posse exista, basta o elemento objetivo, pois ela se revela na

    maneira como o proprietrio age em face da coisa.

    Para IHERING, portanto, basta o corpus para a caracterizao da posse. Tal expresso,

    porm, no significa contato fsico com a coisa, mas sim conduta de dono. Ela se revela na

    maneira como o proprietrio age em face da coisa, tendo em vista sua funo econmica.

    Tem posse quem se comporta como dono, e nesse comportamento j est includo o animus.

    O elemento psquico no se situa na inteno de dono, mas to somente na vontade de agir

    como habitualmente o faz o proprietrio (affectio tenendi), independentemente de querer ser

    dono (animus domini).

    A conduta de dono pode ser analisada objetivamente, sem a necessidade de pesquisar-

    se a inteno do agente. A posse, ento, a exteriorizao da propriedade, a visibilidade do

  • domnio, o uso econmico da coisa. Ela protegida, em resumo, porque representa a forma

    como o domnio se manifesta.

    Assim, o lavrador que deixa sua colheita no campo no a tem fisicamente; entretanto, a

    conserva em sua posse, pois que age, em relao ao produto colhido, como o proprietrio

    ordinariamente o faz. Mas, se deixa no mesmo local uma joia, evidentemente no mais

    conserva a posse sobre ela, pois no assim que o proprietrio age em relao a um bem

    dessa natureza 76.

    Para se configurar a posse basta, portanto, atentar no procedimento externo, uma vez que

    o corpus constitui o nico elemento visvel e suscetvel de comprovao. Para essa

    verificao no se exige um profundo conhecimento, bastando o senso comum das coisas.

    Para demonstrar a posse de minha casa, de meu gato etc., diz IHERING, no tenho necessidade

    de provar que adquiri a posse; salta aos olhos que eu possuo. O mesmo pode-se dizer do

    campo que cultivei at hoje. Mas que dizer da posse de um terreno que eu comprei no ltimo

    inverno, do qual recebi a tradio, e que no cultivei at agora? Como provar aqui o estado

    de minha posse? V-se nesse caso que no resta outro remdio seno remontar-se at o ato

    de aquisio da posse 77.

    Acrescenta IHERING, na sequncia, que a visibilidade da posse tem uma influncia

    decisiva sobre sua segurana, e toda a teoria da aquisio da posse deve referir-se a essa

    visibilidade. O proprietrio da coisa deve ser visvel: omnia ut dominum fecisse oportet.

    Chamar a posse de exterioridade ou visibilidade do domnio resumir, numa frase, toda a

    teoria possessria.

    Mas como tornar-se visvel?, indaga. um erro assentar a aquisio da posse

    exclusivamente sobre o ato de apreenso do possuidor; porque assim no se pode evitar a

    condio de presena do possuidor sobre a coisa, a menos que no se prefira, como SAVIGNY,

  • passar adiante sem se importar disso. Um fabricante de ladrilhos leva para meu edifcio os

    ladrilhos que eu lhe encomendei; aquele que me vendeu adubo levou-o para meu campo; o

    jardineiro conduz as rvores ao meu jardim; necessrio que eu veja essas coisas para

    adquirir a posse? De modo algum... Ser preciso que eu veja os ovos postos por minhas

    galinhas ou minhas pombas para adquiri-los?

    Para IHERING 78, portanto, a posse no o poder fsico, e sim a exteriorizao da

    propriedade. Indague-se, diz o aludido jurista, como o proprietrio costuma proceder com as

    suas coisas, e saber-se- quando se deve admitir ou contestar a posse. Protege-se a posse,

    aduz, no certamente para dar ao possuidor a elevada satisfao de ter o poder fsico sobre a

    coisa, mas para tornar possvel o uso econmico da mesma em relao s suas

    necessidades. Partindo-se disto, tudo se torna claro. No se guardam em mveis, em casa, os

    materiais de construo, no se depositam em pleno campo dinheiro, objetos preciosos etc.

    Cada qual sabe o que fazer com estas coisas, segundo a sua diversidade, e este aspecto

    normal da relao do proprietrio com a coisa constitui a posse.

    Essa noo de posse oferece a vantagem de possibilitar a terceiros reconhecerem se

    existe posse, de saberem se a relao possessria normal ou anormal. Procurando explic-

    la didaticamente, IHERING 79 fornece vrios exemplos. Assim, nos povos montanheses, a

    madeira para o fogo, que foi cortada nos bosques, lana-se ao rio, e mais abaixo, tiram-na da

    corrente que a conduzia. No se pode falar neste caso de um poder fsico do proprietrio, e

    contudo a posse persiste. Por qu? A condio da madeira que flutua a imposta por

    consideraes econmicas, e neste caso qualquer pessoa sabe que no pode apanh-la sem

    incorrer em culpa de furto. O rio, entretanto, com a enchente, apanha e arrasta outros objetos:

    mesas, cadeiras etc. E ento, tambm a, o homem comum sabe muito bem que pode tirar

    estas coisas da gua, e salv-las, sem que por isto seja acusado de ter furtado. O motivo da

  • distino que a flutuao da madeira um fato normal, e a das mesas e cadeiras, uma

    ocorrncia anormal. No primeiro caso existe posse; no segundo, no.

    Exemplifica, ainda, IHERING, no mesmo captulo: Suponhamos dois objetos que se

    encontrem reunidos num mesmo local, alguns pssaros apanhados num lao, ou materiais de

    construo ao lado de uma residncia em construo, e ao lado uma charuteira com charutos.

    O homem comum sabe que ser responsvel por um furto se apanhar os pssaros ou os

    materiais, mas que o mesmo no acontece se apanhar os charutos. O homem honrado deixa

    onde esto os pssaros e os materiais, e pe no bolso a charuteira para procurar o seu dono,

    ou, caso no o enco