paulo lucon garantia do tratamento paritrio das partes

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PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 1 CONSTITUIÇÃO E PROCESSO CIVIL GARANTIA DO TRATAMENTO PARITÁRIO DAS PARTES 1 PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON Mestre e Doutorando em Direito Processual na USP. Professor Universitário. Advogado em São Paulo. 1. Introdução: Constituição Federal e direito processual - 2. Princípios constitucionais - 3. Tratamento paritário: premissas - 4. Tratamento paritário e devido processo legal - 5. Tratamento paritário e contraditório - 6. Conclusão parcial e encaminhamento de novas questões - 7. Igualdade e imparcialidade - 8. Igualdade, acesso à justiça e assistência judiciária - 9. Igualdade substancial: a inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor - 10. Igualdade nas relações internacionais - 11. Igualdade e processo de execução - 12. Igualdade, Fazenda Pública e Ministério Público: I) introdução; II) prazos processuais; III) reexame necessário; IV) honorários advocatícios; V) outros inconstitucionais privilégios; VI) casos em que não há ofensa à igualdade; VII) conclusão parcial 13. Conclusão 1. Introdução: Constituição Federal e direito processual Grande importância tem merecido o estudo do chamado direito processual constitucional, por meio do qual o operador do direito passa a se preocupar com os grandes temas constitucionais do processo civil. Torna-se, portanto, relevante a perspectiva do sistema processual a partir da observância dos princípios, garantias e regramentos que a Constituição impõe. Exige-se, sempre com uma visão crítica de todo o ordenamento jurídico, que as regras relacionadas com o processo subordinem-se às normas constitucionais de caráter amplo e hierarquicamente superiores. O respeito aos preceitos constitucionais torna-se premissa ética na aplicação do direito processual. Mas a própria ordem constitucional também sofre influências do processo, na medida em que será ele o instrumento de efetivação e preservação das normas constitucionais. Essas assertivas parecem muito óbvias, mas têm importância ao revelarem uma preocupação diversa de outra tradicional, mas igualmente relevante, que diz respeito apenas e tão-somente ao estudo interno do sistema processual. Com isso, o processo passa a ser visto como técnica informada por objetivos e ideologias priorizados pelo direito processual e que tem como meta a efetivação 1 - Estudo atualizado e publicado originalmente no livro Garantias constitucionais no processo civil, São Paulo, PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON paridade 2 do valor do justo, pacificando as pessoas à medida em que restam cumpridos os anseios políticos e sociais eleitos pela nação. O presente estudo preocupa-se com a análise da igualdade no processo civil a partir da Constituição Federal e sua inserção no sistema como verdadeiro princípio a ser observado por todo o ordenamento jurídico. 2. Princípios constitucionais Utilizado de maneira usual pelos estudiosos e operadores do direito, o termo princípio na ciência jurídica até de certa forma vulgarizou-se. Princípio vem do latim principium e tem significação variada. Por um lado, quer dizer começo, início, origem, ponto de partida; de outro, regra a seguir, norma. No plural, o termo princípios tem ampla significação, ora se referindo a elementos, ora a rudimentos ou mesmo a convicções. 2 Na ciência jurídica, os princípios têm a grande responsabilidade de organizar o sistema e atuar como elo de ligação de todo o conhecimento jurídico com a finalidade de atingir resultados eleitos; por isso, são também normas jurídicas, mas de natureza anterior e hierarquicamente superior às normas comuns (ou “normas não principais”); servem de base axiológica e estruturante do conhecimento jurídico, sendo fontes de sua criação, aplicação ou interpretação. As normas por assim dizer comuns são, como conseqüência, subordinadas aos princípios. Para o sistema jurídico, se princípio não for norma nenhuma relação tem com o direito. 3 Com tal premissa, é correto afirmar que “os princípios jurídicos são os pensamentos diretores de uma regulação jurídica existente ou possível”, apresentando uma função positiva e outra negativa: a primeira “consiste no influxo que exercem nas sucessivas decisões e, desse modo, no conteúdo de regulação que tais decisões criam”; a segunda “consiste na exclusão dos valores contrapostos e das normas que assentam sobre tais valores”. 4 Portanto, os princípios devem ser utilizados como critério superior de interpretação das demais normas, orientando sua aplicação no caso concreto. Além disso, exercem a função criativa, na medida em que impõem ao legislador a função de criar novas regras que complementem o sistema ou micro-sistema em que estão inseridos. Mas, antes de tudo, são harmônicos, não se admitindo choques entre eles; um nunca poderá eliminar outro. Por isso, devem procurar ser vetorizados, potencializando suas forças na busca da real intenção do sistema jurídico em que se situam. Entre os princípios não se admite antinomia jurídica, ou seja, não é possível a extirpação de um deles do sistema. 2 - BUENO, Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, 6º v., p. 3.193. 3 - Cfr. COMPARATO-GRAU, “Liberdade de empresa e proteção ao consumidor”, pp. 138-139. Relativamente aos princípios gerais de direito, GRAU observa que são proposições descritivas (e não-normativas), por meio das quais os juristas referem, sinteticamente, o conteúdo e as grandes tendências do direito positivo (Contribuição para a interpretação e a crítica da ordem econômica na Constituição de 1.988, n. 34, p. 95). V. também GRAU, com arrimo em JERZY WRÓBLEWSK (“Principes du droit”, p. 317) , “Interpretando o Código de Defesa do Consumidor; algumas notas”, n. 5, p. 183, com destaque para p. 188, e Contribuição para a interpretação e a crítica da ordem econômica na Constituição de 1.988, n. 34, pp. 94-7. 4 - KARL LARENZ, Derecho justo, pp. 32-3. V. também, CANOTILHO, Direito constitucional, p. 171.

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  • PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON

    paridade

    1

    CONSTITUIO E PROCESSO CIVIL

    GARANTIA DO TRATAMENTO PARITRIO DAS PARTES1

    PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON

    Mestre e Doutorando em Direito Processual na USP. Professor Universitrio. Advogado em So Paulo.

    1. Introduo: Constituio Federal e direito processual - 2. Princpios constitucionais - 3. Tratamento paritrio: premissas - 4. Tratamento paritrio e devido processo legal - 5. Tratamento paritrio e contraditrio - 6. Concluso parcial e encaminhamento de novas questes - 7. Igualdade e imparcialidade - 8. Igualdade, acesso justia e assistncia judiciria - 9. Igualdade substancial: a inverso do nus da prova no Cdigo de Defesa do Consumidor - 10. Igualdade nas relaes internacionais - 11. Igualdade e processo de execuo - 12. Igualdade, Fazenda Pblica e Ministrio Pblico: I) introduo; II) prazos processuais; III) reexame necessrio; IV) honorrios advocatcios; V) outros inconstitucionais privilgios; VI) casos em que no h ofensa igualdade; VII) concluso parcial 13. Concluso

    1. Introduo: Constituio Federal e direito processual

    Grande importncia tem merecido o estudo do chamado direito processual

    constitucional, por meio do qual o operador do direito passa a se preocupar com os grandes temas

    constitucionais do processo civil. Torna-se, portanto, relevante a perspectiva do sistema processual a partir

    da observncia dos princpios, garantias e regramentos que a Constituio impe. Exige-se, sempre com uma

    viso crtica de todo o ordenamento jurdico, que as regras relacionadas com o processo subordinem-se s

    normas constitucionais de carter amplo e hierarquicamente superiores. O respeito aos preceitos

    constitucionais torna-se premissa tica na aplicao do direito processual. Mas a prpria ordem

    constitucional tambm sofre influncias do processo, na medida em que ser ele o instrumento de efetivao

    e preservao das normas constitucionais. Essas assertivas parecem muito bvias, mas tm importncia ao

    revelarem uma preocupao diversa de outra tradicional, mas igualmente relevante, que diz respeito apenas e

    to-somente ao estudo interno do sistema processual. Com isso, o processo passa a ser visto como tcnica

    informada por objetivos e ideologias priorizados pelo direito processual e que tem como meta a efetivao

    1 - Estudo atualizado e publicado originalmente no livro Garantias constitucionais no processo civil, So Paulo,

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    do valor do justo, pacificando as pessoas medida em que restam cumpridos os anseios polticos e sociais

    eleitos pela nao.

    O presente estudo preocupa-se com a anlise da igualdade no processo civil

    a partir da Constituio Federal e sua insero no sistema como verdadeiro princpio a ser observado por

    todo o ordenamento jurdico.

    2. Princpios constitucionais

    Utilizado de maneira usual pelos estudiosos e operadores do direito, o termo princpio na cincia jurdica at de certa forma vulgarizou-se. Princpio vem do latim principium e tem significao variada. Por um lado, quer dizer comeo, incio, origem, ponto de partida; de outro, regra a seguir, norma. No plural, o termo princpios tem ampla significao, ora se referindo a elementos, ora a rudimentos ou mesmo a convices.2 Na cincia jurdica, os princpios tm a grande responsabilidade de organizar o sistema e atuar como elo de ligao de todo o conhecimento jurdico com a finalidade de atingir resultados eleitos; por isso, so tambm normas jurdicas, mas de natureza anterior e hierarquicamente superior s normas comuns (ou normas no principais); servem de base axiolgica e estruturante do conhecimento jurdico, sendo fontes de sua criao, aplicao ou interpretao. As normas por assim dizer comuns so, como conseqncia, subordinadas aos princpios. Para o sistema jurdico, se princpio no for norma nenhuma relao tem com o direito.3 Com tal premissa, correto afirmar que os princpios jurdicos so os pensamentos diretores de uma regulao jurdica existente ou possvel, apresentando uma funo positiva e outra negativa: a primeira consiste no influxo que exercem nas sucessivas decises e, desse modo, no contedo de regulao que tais decises criam; a segunda consiste na excluso dos valores contrapostos e das normas que assentam sobre tais valores.4

    Portanto, os princpios devem ser utilizados como critrio superior de interpretao das demais normas, orientando sua aplicao no caso concreto. Alm disso, exercem a funo criativa, na medida em que impem ao legislador a funo de criar novas regras que complementem o sistema ou micro-sistema em que esto inseridos. Mas, antes de tudo, so harmnicos, no se admitindo choques entre eles; um nunca poder eliminar outro. Por isso, devem procurar ser vetorizados, potencializando suas foras na busca da real inteno do sistema jurdico em que se situam. Entre os princpios no se admite antinomia jurdica, ou seja, no possvel a extirpao de um deles do sistema. 2 - BUENO, Grande dicionrio etimolgico-prosdico da lngua portuguesa, 6 v., p. 3.193. 3 - Cfr. COMPARATO-GRAU, Liberdade de empresa e proteo ao consumidor, pp. 138-139. Relativamente aos princpios gerais de

    direito, GRAU observa que so proposies descritivas (e no-normativas), por meio das quais os juristas referem, sinteticamente, o contedo e as grandes tendncias do direito positivo (Contribuio para a interpretao e a crtica da ordem econmica na Constituio de 1.988, n. 34, p. 95). V. tambm GRAU, com arrimo em JERZY WRBLEWSK (Principes du droit, p. 317) , Interpretando o Cdigo de Defesa do Consumidor; algumas notas, n. 5, p. 183, com destaque para p. 188, e Contribuio para a interpretao e a crtica da ordem econmica na Constituio de 1.988, n. 34, pp. 94-7.

    4 - KARL LARENZ, Derecho justo, pp. 32-3. V. tambm, CANOTILHO, Direito constitucional, p. 171.

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    Quando duas normas jurdicas esto em confronto, uma delas simplesmente excluda do ordenamento jurdico. No entanto, quando dois princpios esto em conflito nenhum deles expulso ou excludo do sistema.5 Na realidade, h uma conjugao dos objetivos neles contidos ou, quando isso no for possvel, a escolha do princpio prevalente sobre o caso concreto. Nesses casos, a fundamentao de tal opo muito mais poltica e social do que jurdica; h verdadeiramente uma escolha do aplicador do direito ou do intrprete por um deles em detrimento do que a ele, diante de uma situao substancial, se ope. Tal tipo de conflito no resulta em antinomia jurdica. Exemplificando, h efetivamente uma antinomia jurdica imprpria quando h normas que protegem valores opostos como liberdade e segurana (BOBBIO alude antinomia de princpio, ao lado da antinomia de valorao e da antinomia teleolgica).6 Enquanto a antinomia de regras insolvel ou real, exigindo a aplicao de critrio cronolgico (lex posterior derogat priori), hierrquico (lex superior derogat inferiori) e de especialidade (lex specialis derogat generali), a antinomia de princpios solvel ou aparente.7 Os conflitos entre as regras situam-se no plano da validade; os conflitos entre princpios verificam-se na dimenso do peso.8

    Ningum pode negar o carter axiolgico dos princpios. Desse modo, correto afirmar-se que a maneira de interpret-los evolui de acordo com o tempo; valores atuais eleitos pela nao definiro o que precisamente se tornou importante, isto , quais so os resultados escolhidos e que devem preponderar. A partir da, d-se um novo enfoque observncia dos princpios ou, por que no dizer, um amlgama s necessidades emergentes das normas jurdicas hierarquicamente superiores consagradoras de tais princpios, mediante a adequao da tcnica processual s regras de direito material. Um exemplo do que se procura demonstrar a crescente necessidade de coletivizao da tutela jurisdicional, que tem como um de seus corolrios implementar a participao do chamado bem-estar social, ou seja, dos bens que os homens, atravs de um processo coletivo, vo acumulando no tempo. Ser a tcnica processual, conjugada com o direito material, que permitir a participao coletiva desse bem-estar. Com a Constituio de 1.988, o Poder Judicirio passa a ter um controle da administrao pblica no somente tendo por escopo a tutela

    individual mas, tambm, a tutela coletiva. A idia de que ningum pode estar em juzo, em nome prprio,

    para a defesa de interesses alheios, vai gradativamente se relativizando, assim como a limitao dos efeitos

    da sentena s partes do processo em que foi proferida (eficcia ultra partes). H uma verdadeira

    5 - KARL ENGISH entende que as contradies entre princpios so inevitveis e surgem numa ordem jurdica em razo de, na

    constituio desta, tomarem parte diferentes idias fundamentais entre as quais possvel se estabelecer um conflito (Introduo ao pensamento jurdico, p. 318). As diversas concepes de idias fundamentais so resultantes dos diferentes critrios polticos e sociais adotados pelo constituinte ou pelo legislador. Por isso, a soluo de um caso concreto exige verdadeira opo teleolgica, ou seja, a escolha de certos critrios polticos e sociais com vista a atingir determinados resultados, dentro de parmetros que o prprio ordenamento jurdico estabelece.

    6 - DINIZ, Conflito de normas, p. 27. GRAU cita, como antinomia jurdica imprpria, a situao em que h preponderncia do interesse social sobre o direito adquirido. O grande e inegvel problema do exemplo dado de se definir o conceito e a extenso de interesse pblico. De todo modo, fica claro que nenhum dos dois valores, interesse pblico e direito adquirido, ser excludo do sistema (v. Contribuio para a interpretao e a crtica da ordem econmica na Constituio de 1.988, n. 41, pp. 114-6).

    7 - Teoria do ordenamento jurdico, pp. 91-7. 8 - Esse o entendimento de ROBERT ALEXY (Theorie der Grundrech, p. 76, que remete o leitor obra de DWORKIN, Taking rights

    seriously), apud GRAU, Contribuio para a interpretao e a crtica da ordem econmica na Constituio de 1.988, n. 42, p. 116.

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    transmigrao do individual para o coletivo (BARBOSA MOREIRA). Mais ainda, com a participao do

    Judicirio em todos os campos, inclusive na tutela dos direitos do consumidor, constata-se verdadeira

    tendncia a uma judicializao de todos os setores da vida humana.9

    Nos temas fundamentais do direito processual moderno merecem grande destaque os princpios e garantias consagrados na Constituio Federal, pois a tutela constitucional do processo realiza-se atravs de sua observncia, que estabelecer padres polticos e ticos destinados a tambm traar o modo-de-ser do processo. Esse o sentido hierrquico vertical que se espera; no entanto, algumas vezes no h como negar o sentido inverso, ou seja, a influncia da tutela constitucional do processo na prpria interpretao do texto constitucional. Nesses casos, os valores atuais, mediante o exerccio contnuo e dinmico da jurisdio, podem alterar o significado antes atribudo a alguma norma constitucional. A efetivao dos preceitos contidos na Constituio Federal d-se atravs da realizao do processo; a este caber pr em prtica tais preceitos e impor verdadeiro controle sobre a vida das normas constitucionais. Assim ocorre no chamado controle indireto ou difuso, realizado diuturnamente pelo juiz ao examinar a compatibilidade existente entre o texto constitucional e determinado ato, e no controle direto ou concentrado, exercido pelo Supremo Tribunal Federal na ao direta de inconstitucionalidade. Em ambos os casos a incompatibilidade resulta no afastamento (temporrio ou definitivo) do ato e na preservao da ordem constitucional.

    3. Tratamento paritrio: premissas

    Exatamente por ser um dos pilares da democracia moderna, a igualdade multifacetria, apresentando-se de modo diverso conforme a natureza da situao jurdica, da situao social e da conduta a ser regulada.10 De todo o modo, seu primeiro e principal destinatrio o legislador, j que por mais discricionrios que possam ser os critrios da poltica legislativa, encontra no princpio da igualdade a primeira e mais fundamental de suas limitaes.11 No processo, a igualdade constitui princpio fundamental e revela-se no tratamento paritrio das partes, pois e sempre foi historicamente objetivada, progressivamente introduzida na conscincia jurdica e encontra recepo expressa no texto constitucional. igualdade inerente o carter de idia-mestra ou ponto de partida, pertencendo ordem jurdica positiva consoante o previsto no caput do art. 5 da Constituio Federal. No -toa que o legislador constituinte iniciou com o direito igualdade a relao dos direitos individuais; dando-lhe o primeiro lugar na enumerao, quis significar expressamente, embora de maneira tcita, que o princpio da igualdade rege todos os direitos em seguida a ele enumerados. 12 No Cdigo de Processo Civil, o art. 125, inc. I, muito 9 - FERREIRA FILHO, O Poder Judicirio na Constituio de 1.988, p. 13. 10 - REALE, Lies preliminares de direito, p. 124. 11 - CAMPOS, Direito constitucional, t. II, p. 30. 12 - FRANCISCO CAMPOS, Direito constitucional, v. II, p. 12. Positivada pela primeira vez na Virginia Bill of Rights, de 12 de junho

    de 1.776, a isonomia era assim tratada: all men are by nature equally free and independent and have certain inerent rights. Logo em seguida, a Constituio de Massachussets, de 2 de maro de 1.780, assim cuidava do tema: all men are born free and equal and have certain inerent rights. Na Frana, a Dclaration des Droits de lHomme et du Citoyen de 1.789 cuidava

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    claro e objetivo ao estabelecer como dever primrio do juiz o tratamento paritrio das partes e dos procuradores. Por tudo isso, no h como deixar de erigir a igualdade condio de princpio, constituindo importante fundamento para a interpretao, integrao, conhecimento e aplicao do direito positivo.13 A responsabilidade por sua preservao, a fim de que arbitrariedades no sejam cometidas, principalmente do legislador e do juiz, responsveis em grande parte pela criao e interpretao do direito. A clusula garantidora da isonomia, inserida no sistema jurdico, tem por finalidade coibir abusos na elaborao e aplicao da norma.14

    No processo, a isonomia revela-se na garantia do tratamento igualitrio das partes, que deve ser vista no apenas sob o aspecto formal, mas tambm (e principalmente) analisada pelo prisma substancial. A paridade das partes no processo tem por fundamento o escopo social e poltico do direito; no basta igualdade formal, sendo relevante a igualdade tcnica e econmica, pois elas tambm revelaro o modo-de-ser do processo.15 Enquanto a igualdade formal diz respeito identidade de direitos e deveres estatudos pelo ordenamento jurdico s pessoas, a igualdade material leva em considerao os casos concretos nos quais essas pessoas exercitam seus direitos e cumprem seus deveres.16 Ao julgador compete assegurar s partes a paridade de tratamento, cabendo-lhe observar e fazer observar a igualdade entre os iguais e a desigualdade entre os desiguais, na exata medida das desigualdades presentes no caso concreto. Como observa KELSEN, a igualdade dos indivduos sujeitos ordem jurdica, garantida pela Constituio, no significa que aqueles devam ser tratados por forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituio, especialmente nas leis. No pode ser uma tal igualdade aquela que se tem em vista, pois seria absurdo impor os mesmos deveres e conferir os mesmos direitos a todos os indivduos sem fazer quaisquer distines, por exemplo, entre crianas e adultos, sos de esprito e doentes mentais, homens e mulheres.17

    A igualdade est estreitamente vinculada ao devido processo legal, ao contraditrio e imparcialidade. H, por assim dizer, uma importante conjugao de princpios que contribuem para formar um todo dotado de coerncia teleolgica, atribuindo desse modo um propsito comum s normas, em consonncia com os anseios politicamente eleitos pela nao.18

    da igualdade no art. 1o: les hommes naissent et demeurent libres et gaux en droits. Por fim, a Constituio Francesa de 1.791 previa a igualdade no seu prembulo: lAssemble nationale... abolit irrvocablement les institutions qui blessaient la libert et lgalit des droits. Il na plus ni noblesse, ni pairie, ni distinctions hreditaires, ni distinction dordres.... No Brasil, a Constituio do Imprio de 1.824 assim dispunha sobre a igualdade: a lei ser igual para todos quer proteja, quer castigue, e recompensar em proporo dos merecimentos de cada um (art. 179, 13). J a Constituio Republicana de 1.891, disciplinava o tema no 2o do art. 72: todos so iguais perante a lei. A Repblica no admite privilgios de nascimento, desconhece foros de nobreza, e extingue as origens honorficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias bem como os ttulos nobilirquicos e de conselho. Nas demais Constituies, de 1.937 (art. 122, 1), de 1.946 (art. 141, 1o) e de 1.969 (art. 153, 1o ), a isonomia vem positivada de forma idntica: todos so iguais perante a lei.

    13 - Cfr., sobre os princpios jurdicos fundamentais e em sentido semelhante, CANOTILHO, Direito constitucional, p. 171. 14 - SAN TIAGO DANTAS, Igualdade perante a lei e due process of law, p. 58. 15 - Cfr, em sentido semelhante, CALAMANDREI, Istituzioni di diritto processuale civile, p. 231. 16 - V. LVARO MELO FILHO, O princpio da isonomia e os privilgios processuais da Fazenda Pblica, p. 168. 17 - Teoria pura do direito, p. 154. 18 - Alis, como bem observado por FERRAZ JR., o pressuposto e, ao mesmo tempo, a regra bsica dos mtodos teleolgicos de que

    sempre possvel atribuir-se um propsito s normas (Introduo ao estudo de direito - tcnica, deciso, dominao, p. 291).

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    4. Tratamento paritrio e devido processo legal

    A igualdade interage com o devido processo legal, pois o exerccio do poder

    estatal s se legitima atravs de resultados justos e conformes com o ordenamento jurdico, por meio da

    plena observncia da ordem estabelecida, com as oportunidades e garantias que assegurem o respeito ao

    tratamento paritrio das partes. Tal o direito ao processo justo,19 ou seja, o direito efetividade das normas

    e garantias que as leis do processo e de direito material oferecem.

    A real consecuo do acesso justia e do direito ao processo exige o respeito s normas processuais portadoras de garantias de tratamento isonmico dos sujeitos parciais do processo. Ao estabelecer a ordem de atos a serem praticados lgica e cronologicamente, com a observncia de todos os requisitos inerentes a cada um deles e a exigncia da realizao de todos, a lei pretende atingir um resultado de modo a tutelar quem tem razo. Isso significa atingir a ordem jurdica justa,20 que tem estreita relao com o devido processo legal, pois igualmente pode ser vista como meio e fim; se de um lado a prpria abertura de caminhos para a obteno de uma soluo justa, de outro, constitui a prpria soluo justa que se espera justa porque conforme com os padres ticos e sociais eleitos pela nao.21 Da por que o devido processo legal uma clusula de abertura do sistema na busca por resultados formal e substancialmente justos. Tal a amplitude que se espera dessa garantia de meio e de resultado, que desenha o perfil democrtico do processo brasileiro na obteno da justia substancial.

    Determinado modelo procedimental contido na lei absorve em si a efetividade do direito ao devido processo adequado, com a prtica de todos os atos a ele inerentes, alm do direito ao exame das provas constantes dos autos ou a serem a eles carreadas, e produo de alegaes endereadas convico do julgador. Prejudicando a participao igualitria das partes litigantes, desvios ou omisses do modelo procedimental previsto na lei violam frontalmente as garantias do devido processo legal e do tratamento paritrio das partes no processo.22 Desse modo, a garantia constitucional da igualdade deve estar presente em todas as etapas do processo, de sorte que ningum seja privado de seus direitos, a no ser que no procedimento se constatem todas as formalidades e exigncias em lei previstas. Cumprir adequadamente o procedimento institudo em lei, com o tratamento isonmico das partes, significa, do lado dos sujeitos parciais do processo e de toda a comunidade, preservar os valores democrticos eleitos e

    19- Cfr. GRINOVER, O processo em sua unidade, cap. 8, nn. 5-6, pp. 138-139. 20 - A expresso de WATANABE (v. Assistncia Judiciria e Juizado Especial de Pequenas Causas, p. 161 e ss.). 21 - Em sentido semelhante, v. DINAMARCO, Superior Tribunal de Justia e acesso ordem jurdica justa, p. 251. 22- Sobre a origem da clusula do "due process of law" e seu significado, V. SAMPAIO DRIA, Direito constitucional tributrio e

    "due process of law" - Ensaio sobre o controle da razoabilidade das leis, pp. 1-34; NERY JNIOR, Princpios do processo civil na Constituio Federal, n. 3, pp. 25-37. Para esse autor, com razo, "bastaria a norma constitucional haver adotado o princpio do due process of law para que da decorressem todas as conseqncias processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e uma sentena justa. , por assim dizer, o gnero do qual todos os demais princpios constitucionais do processo so espcies" (op. cit., p. 25). V. tambm CRUZ E TUCCI, "Garantia da prestao jurisdicional sem dilaes indevidas como corolrio do devido processo legal", p. 107, e LAURIA TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituio e processo, n. 6, p. 17.

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    legitimar o provimento jurisdicional; do ponto-de-vista do juiz, estar consciente de seu dever de pacificar com justia os conflitos, no se limitando a um laissez faire da filosofia liberal, incompatvel com o Estado social de direito da atualidade e com a realizao do processo adequado e justo. O processo um instrumento a servio dos objetivos do Estado e no pode ficar ao bel prazer dos interesses e condutas das partes litigantes.

    A garantia constitucional do devido processo legal exige que se d s partes a tutela jurisdicional adequada. Alm disso, aos sujeitos do processo devem ser conferidas amplas e iguais oportunidades para alegar e provar fatos inerentes consecuo daquela tutela. Para efetividade dessa garantia, indispensvel cumprir as exigncias procedimentais trazidas na lei. Assim, quando se pretende a tutela jurisdicional preventiva, so necessrias todas as medidas destinadas a evitar danos ao invs de permitir que eles ocorram para depois buscar sua reparao, sopesando o juiz as conseqncias de tais medidas sobre o eventual direito da parte contrria. J a tutela ressarcitria visa a recompor situaes de prejuzo j efetivadas, mas que devero ser delimitadas antes da adoo de medidas constritivas. Por sua vez, essa modalidade de proteo incompatvel com a tutela especfica, que procura outorgar a situao ou bem da vida desejado pelo demandante.23

    O princpio-garantia do devido processo legal no pretende apenas a observncia do procedimento estatudo na lei, com a realizao de todos os atos inerentes a ele: pretende tambm a efetividade da tutela jurisdicional, concedendo proteo queles que merecem e necessitam dela. O direito material somente se efetiva se lhe corresponderem instrumentos adequados de tutela,24 com um processo justo mediante o tratamento igualitrio das partes. Nesse ponto reside a preocupao do processualista moderno com o resultado jurdico-substancial do processo, seja para o demandante como para o demandado, com a relativizao do binmio direito-processo.25 Observado o modelo procedimental previsto em lei, com o tratamento paritrio das partes, a tutela jurisdicional ser concedida parte que tiver razo em suas alegaes, de acordo com o disposto no direito material. A tutela, vista como proteo, independe do resultado do processo; est presente na extino do processo com ou sem julgamento do mrito. A atuao jurisdicional do Estado ocorre na declarao de existncia ou inexistncia do direito afirmado pelo autor ou de ausncia de uma das condies da ao e dos pressupostos processuais. J a tutela jurisdicional est reservada apenas para os casos que meream ser amparados pelo direito material. O processo um instrumento disposio das partes para que o Estado cumpra uma de suas funes, mais precisamente a jurisdio, chegando a um resultado justo. Por isso, a noo de efetividade da tutela jurisdicional coincide com a de pleno acesso justia.26 Esse entendimento vai ao encontro conhecidssima

    23- V. BARBOSA MOREIRA, "Tutela sancionatria e tutela preventiva", pp. 24-25. 24- GRINOVER, "A tutela preventiva das liberdades: habeas corpus e mandado de segurana", n. 1, p. 70. Cfr. tambm BEDAQUE,

    Direito e processo, n. 7, pp. 24-26. 25- Cfr. importante trabalho de MONTESANO, Le tutele giurisdizionali dei diritti. Cfr. tambm DINAMARCO, "Direito e processo", pp.

    12-37, esp. pp. 34-37. 26- Cfr. YARSHELL, Tutela jurisdicional especfica nas obrigaes de declarao de vontade, pp. 19-20.

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    mxima de CHIOVENDA de que na medida do que for praticamente possvel, o processo deve proporcionar a quem tem um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha o direito de receber.27

    Na experincia concreta, no se atinge o devido processo legal e a plenitude

    da igualdade jurdica sem um ordenamento jurdico igualitrio e sem que as partes tenham acesso

    informao plena sobre o contedo das normas que o compem.28 Preservados estaro a igualdade e o devido

    processo legal quando, no caso de procedncia parcial da demanda, o juiz fixa percentuais distintos de

    honorrios de sucumbncia, considerando precisamente a parte do litgio em que cada um ficou vencido. A

    sucumbncia recproca deve considerar a verdadeira extenso do xito obtido com a propositura da demanda

    (CPC, arts. 20 e 21).29

    O devido processo legal objetiva tambm limitao poltica do poder

    estatal como um todo, mediante uma srie de condicionamentos e restries legtimas ao exerccio das

    funes do Estado moderno. Relativamente jurisdio, tais limitaes referem-se a situaes substanciais e

    s formas dos atos, mediante o adequado processo legal, no qual o julgador deve fazer cumprir as normas

    constitucionais e infra-constitucionais para que as partes tenham no processo, administrativo ou judicial,

    tratamento paritrio. Em ltima anlise, a legtima limitao ao poder, mediante o due process of law, visa a impedir que a desigualdade impere no processo, tornando-o justo na exata medida em que assegure s partes participao paritria e proporcione o resultado esperado pela sociedade.

    5. Tratamento paritrio e contraditrio

    Na sntese tantas vezes difundida, MENDES DE ALMEIDA define o princpio do contraditrio como sendo a expresso da "cincia bilateral dos atos e termos do processo e possibilidade de contrari-los".30 Hodiernamente, o contraditrio representa verdadeira meta poltica de legitimao do provimento jurisdicional ou administrativo mediante a outorga, pelo ordenamento jurdico, de garantias de participao igualitria das partes no processo. Ao juiz, sujeito tambm do contraditrio, cabe observar e fazer observar essas garantias. Por isso, contraditrio e ampla defesa relacionam-se to intimamente com o tratamento paritrio das partes no processo, pois nele se inclui a igualdade de oportunidades de participao, absolutamente necessria para a defesa dos direitos em juzo.

    Como direito de pedir a tutela jurisdicional para determinada pretenso fundada em direito material, possvel afirmar-se que a ao tem uma espcie de rplica na exceo, na qual o ru tem o direito de pedir que a tutela jurisdicional pedida pelo autor seja denegada por no se conformar 27- As palavras constantes do texto no foram exatamente aquelas proferidas por CHIOVENDA, que foram propositadamente adaptadas

    com a finalidade de destacar o escopo instrumental do processo e se tornaram verdadeiro slogan do direito processual moderno: "il processo deve dare per quanto possibile praticamente a chi ha um diritto tutto quello e proprio quello ch'egli ha diritto di conseguire" (Istituzioni di diritto processuale civile, v. I, n. 12, pp. 41-42).

    28- Cfr. WATANABE, "Assistncia Judiciria e o Juizado Especial de Pequenas Causas", p. 162. 29 - V. CHIOVENDA, La condanna nelle spese giudiziari, nn. 270-274, pp. 268-276. 30- Cfr. A contrariedade na instruo criminal, p. 110.

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    com o direito objetivo.31 A exceo resultado da bilateralidade do processo e determina que deve haver tratamento igual ao sujeito da ao e ao sujeito da exceo. absolutamente incompatvel com a isonomia e com os prprios princpios da tutela jurisdicional um tratamento unilateral no processo. Assim, a exceo um direito processual anlogo ao.32 importante afastar a ultrapassada concepo do processo civil do autor, hoje com nova roupagem, nos casos em que sem fundamento suficiente outorga-se a antecipao de tutela (CPC, arts. 273 e 461, 3), ou seja, o direito de ao igual ao direito de defesa, diferindo apenas na faculdade de o demandante ter iniciado o processo. A circunstncia, ocasional e exterior, de um dos sujeitos do processo ter promovido sua demanda antes do demandado no parece por si s suficiente a justificar a atribuio a um dos litigantes de armas diversas daquelas conferidas a outro.33 Ou seja, a paridade de armas entre os sujeitos parciais do processo deve ser uma realidade e realiza-se com a outorga, pelo julgador, a partir da observncia dos poderes e dos limites que o ordenamento lhe confere e impe, de meios processuais idnticos s partes para fazerem valer suas prprias razes. O contraditrio est precisamente no direito de participao no processo, mediante a utilizao de todas as armas legtimas e disponveis destinadas a

    convencer o julgador a outorgar um julgamento favorvel a quem tem um direito.

    O contraditrio preservado na medida em que a igualdade entre os litigantes o seja. natural que a parte com melhores recursos quase sempre tem mais fcil acesso a informaes processuais, est em condies mais favorveis para recolher dados relevantes e valer-se de provas, contrata os servios de profissionais mais competentes. O poder econmico facilita a resistncia longa durao do processo.

    Pelo enfoque do direito processual constitucional, o poder (genrico, indeterminado e inexaurvel) do autor agir em juzo e do ru apresentar defesa a qualquer pretenso de outrem representa garantia fundamental para a defesa de seus direitos e compete a todos, indistintamente, como atributo imediato da personalidade e, por essa razo, pertence categoria dos direitos democrticos, que se baseiam nas trs colunas da liberdade, igualdade e fraternidade.34 Desse modo, no se pode conceber um processo unilateral, em que somente uma parte age no sentido de obter vantagem em relao ao adversrio, sem que este apresente suas razes ou, pelo menos, sem que se lhe d efetiva oportunidade de manifestar-se.35 Nessa linha est o moderno enfoque do processo como procedimento em contraditrio, desenvolvido por FAZZALARI.36 Os poderes, faculdades, nus, deveres e sujeies das partes no processo significam que esto em determinada relao jurdica exercendo o contraditrio. Ou seja, fundamentalmente,

    31- CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, Teoria Geral do Processo, n. 166, pp. 228-9. 32- LIEBMAN, "Intorno ai rapporti tra azione ed eccezione", p. 75. Cfr. tambm ADA P. GRINOVER, Os princpios constitucionais e o

    CPC, n. 9.1, p. 92. 33 - ANDOLINA-VIGNERA, Il modelo costituzionale del processo civile italiano, p. 107. V. tambm HABSCHEID, Introduzione al

    diritto processuale civile comparato, p. 132. 34- Com acerto, LIEBMAN entende que o direito de participao das partes no processo deve ser elevado categoria de direitos cvicos

    (Manual de direito processual civil, n. 73, esp. pp. 150-1). 35- LAURIA TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituio de 1.988 e processo, p. 65. 36- Cfr. Istituzioni di diritto processuale, com destaque para p. 29, e Il processo ordinario di cognizione, pp. 51-4.

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    o processo caracterizado pelo contraditrio estabelecido no procedimento, sendo a participao assegurada aos interessados por meio do exerccio das faculdades e poderes que integram a relao jurdica processual.37

    CARNELUTTI entende que o princpio do contraditrio seria a prpria igualdade entre as partes, porquanto, como sustenta, " fondato sulla duplicit e sulla opposizione delle parti, mirabilmente intuito in un versetto del Cantico dell'Eclesiastico (43, 22): 'omnia duplicia, unum contra unum'; non esiste una parte senza l'altra e ciascuna parte si oppone all'altra".38 A igualdade de oportunidades de participao no processo diz respeito diretamente ao contraditrio estabelecido entre as partes. Nesse mesmo sentido, como assevera GIMENO SENDRA, o princpio do contraditrio deve ser completado pelo da igualdade no processo, pois "no es suficiente que exista contradiccin en el proceso, sino que, para que sta sea efectiva, se hace necesario que ambas partes tengan las mismas posibilidades de ataque y defensa".39 Igualdade e contraditrio esto preservados quando o juiz outorga s partes prazos idnticos para a apresentao de memoriais e vista deles aps sua juntada aos autos. Esse mesmo escopo de preservao ocorre quando o juiz, sensvel s circunstncias do caso concreto, permite a manifestao da parte contrria nos casos de embargos de declarao de ntido carter infringente. Plenitude e efetividade do contraditrio revelam a necessidade de utilizao de todos os meios necessrios para impedir que a diferena de posies no processo possa influenciar no seu xito, condicionando-o a uma distribuio desigual de foras, isto , a possibilidade de obter a tutela de suas razes deve ser assegurada de forma equnime a quem age e a quem se defende em Juzo.40

    O contraditrio traduz-se no binmio informao-reao, sendo relevante a observao de que a primeira sempre necessria, sob pena de provocar nulidade dos atos e termos do processo e tornar ilegtimo o provimento final, e a segunda apenas possvel.41 pressuposto da reao aos atos desfavorveis a comunicao ou cincia dos atos e termos que ocorrem ao longo do processo. O culto liberdade expresso na eventualidade da reao torna o objeto do processo sujeito a diferentes situaes jurdicas. A possibilidade equnime de obter a tutela de suas razes somente se realizar com a participao dos litigantes em todas as fases do processo, mais precipuamente na instruo. Como observa BARBOSA MOREIRA, " misso do processo conduzir o litgio a uma soluo que corresponda, com a maior fidelidade possvel, realizao do direito material no caso concreto; por conseguinte, a atividade judicial cognitiva, consciente embora das suas inevitveis limitaes, deve tender reconstituio verdadeira dos fatos, pressuposto da correta aplicao das normas jurdicas. Ora, o conhecimento humano da realidade, unilateral e fragmentrio por natureza, s pode tornar-se menos imperfeito na medida em que as coisas sejam 37- DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, n. 8, p. 67. Na preparao do provimento jurisdicional, a participao das

    pessoas que podero afinal ser atingidas por ele em sua esfera de direitos expressa pelo contraditrio, que transparece nos atos com que cada uma procura influir no esprito do julgador, objetivando um pronunciamento favorvel (cfr. ainda, DINAMARCO, "Institutos fundamentais do direito processual", n. 37, p. 64-72).

    38- Diritto e processo, n. 59, p. 99, nota 2. 39- Fundamentos del derecho procesal, p. 183. Sobre o contraditrio e sua importncia sob o enfoque constitucional, ver ainda de

    GIMENO SENDRA, Constitucin y proceso, cap. 5, "El derecho de defensa", pp. 88 e ss.. 40- Cfr. GRINOVER, "O contedo da garantia do contraditrio", p. 18. 41- DINAMARCO, Princpios e garantias no processo.

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    contempladas por mais de um ngulo e se ponham em confronto as diversas imagens parciais assim colhidas".42A cognio um ato prevalentemente de inteligncia, pois consiste na atividade de considerar, analisar e valorar as alegaes e as provas produzidas pelas partes litigantes em torno das questes de fato e de direito que so deduzidas no processo. Por essa razo, a cognio pressupe, de um lado, a participao das partes por meio de um contraditrio pleno, efetivo e equilibrado e, de outro, a participao do juiz na preparao do julgamento a ser realizado.43

    A observncia de um procedimento apto a garantir s partes litigantes o amplo exerccio dos poderes e faculdades inerentes ao princpio do contraditrio legitima a autoridade dos provimentos jurisdicionais, destinados, em ltima anlise, a disciplinar os interesses alheios. Alis, "a democratizao do exerccio do poder atravs da participao pressupe que esta participao se traduza, mediante sua canalizao atravs de 'procedimentos justos', numa influncia qualitativa no resultado das decises".44

    O contraditrio interessa aos sujeitos do processo e no apenas aos sujeitos parciais do processo, ou seja, o juiz deve participar ativamente da preparao do julgamento a ser proferido. Isso porque escopo da jurisdio a pacificao social com justia. O juiz tem deveres primrios de promoo e preservao da igualdade substancial entre as partes, neutralizando eventuais desigualdades. Essa a idia contida no art. 125 do Cdigo de Processo Civil.45 Por esse motivo, hoje inegvel a possibilidade de o juiz adotar de-ofcio iniciativas relacionadas com a instruo da causa.46 A utilizao das faculdades instrutrias previstas no ordenamento jurdico no , em absoluto, incompatvel com a preservao da imparcialidade do juiz. O objetivo do rgo jurisdicional de decidir com justia permanece o mesmo, dando ganho de causa parte que tenha razo em sua alegaes. A produo da prova pode auxiliar o juiz a aferir qual das partes est certa e esse resultado no dever ser desprezado pelo direito.47 Os poderes instrutrios do juiz tm por escopo precpuo perseguir a verdade real, mas no h dvida de que consistem tambm em uma forma de tutela igualdade real entre as partes litigantes, principalmente nos casos de hiposuficincia econmica de uma delas, garantindo o contraditrio efetivo. Assim que o correto uso dos poderes instrutrios pelo juiz tem por finalidade ltima suprir inferioridades relacionadas com a carncia de

    42- BARBOSA MOREIRA, "A garantia do contraditrio na atividade de instruo", p. 232. 43- Cfr. WATANABE, Da cognio no processo civil, p. 41. Sobre a importncia da participao das partes no processo e efetividade e

    plenitude do contraditrio, cfr. ainda COMOGLIO, La garantia costituzionale dell'azione ed il processo civile, p. 152. 44- CANOTILHO, Direito Constitucional, p. 1.024. 45- DINAMARCO, Princpios e garantias do processo, texto cedido aos alunos do curso de ps-graduao da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo. 46- "La facultad que se otorga al juez es la de esclarecer esos hechos. Esclarecer significa etimolgicamente 'poner en claro una cosa'.

    En virtud de ese poder el juez puede ordenar las diligencias necesarias a esos efectos. Y as podr complementar la prueba producida por las partes, y an en el caso de que no hayan producido prueba, en ejercicio de ese poder jurdico de esclarecimiento de la verdad que se le otorga al juzgador, puede suplir la no producida por las partes, ya sea por omisin, negligencia, etc." (ABELLA, "Los deberes y faculdades del Juez y de las partes", p. 47).

    47- Cfr. BARBOSA MOREIRA, "Poderes do juiz na direo e na instruo do processo", pp. 45-51. A iniciativa continua sendo da parte, mas existem modos pelos quais o juiz pode participar ativamente na sua "direo formal", principalmente nos casos de "disparidade das foras em conflito" (cfr. "Tendncias contemporneas do direito processual civil", n. 3, p. 40 e "A funo social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direo e na instruo do processo", pp. 145-147).

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    recursos e de informaes, ou mesmo com a dificuldade de obter o patrocnio de advogados mais capacitados.48

    Na mesma linha do Estado social de direito que participa atravs de seus rgos ativamente na vida da sociedade, o juiz de hoje no um mero espectador dos fatos diante do conflito de interesses estabelecido entre os seus jurisdicionados; deve preocupar-se com a sua incumbncia de perseguir a verdade real, no se contentando, na medida do possvel, com a meramente formal. Deve, portanto, ordenar a produo de todas as provas pertinentes ao caso concreto, requeridas pelas partes ou por ele determinadas de-ofcio. Os poderes instrutrios fundam-se tambm na igualdade, pois atravs deles procurar o julgador diminuir as diferenas substanciais existentes entre as partes, tornando sem efeito desigualdades econmicas ou culturais ao evitar qualquer possibilidade de omisso na instruo da causa.49 No entanto, a iniciativa do magistrado no campo probatrio est muito longe de afastar a realidade de que a parte com melhores condies econmicas tem maiores possibilidades de contratar profissionais mais preparados (advogados, assistentes tcnicos etc.). No processo caracterizado como adversary system, presente nos pases de tradio anglo-saxnica, compete aos maiores interessados, ou seja, s partes, encartar aos autos os elementos de convico segundo os quais o juiz decidir. No processo dos pases de tradio romano-germnica essa regra tambm vale pois o interesse pessoal , sem qualquer questionamento, a maior fora de realizao dos direitos; mas no se ignora que caber ao julgador, ao observar as diferenas substanciais no processo, propiciar um tratamento desigual entre desiguais valendo-se tambm e no s das regras de experincia comum, subministradas pela observao do que ordinariamente acontece, bem como das regras de experincia tcnica. Tal a regra contida no art. 335 do Cdigo de Processo Civil. Isso significa que, mesmo na prova pericial, no deve o julgador subscrever in totum as observaes expendidas pelo perito judicial, mas verificar o que comumente ocorre valendo-se de regras de experincia e procurando compreender os fundamentos de critrios tcnicos.

    A justia no processo no comea com a deciso, mas j com o incio da causa, no qual se abre desde logo um largo campo justia distributiva.50 Ao longo de todo o arco procedimental, o julgador deve promover um tratamento igualitrio entre os sujeitos parciais do processo, outorgando a eles as mesmas oportunidades de participao e o mesmo tratamento. Tratar igualitariamente no tratar da mesma forma, mas tratar de maneira a atingir o acesso ordem jurdica justa, possibilitando isonomicamente s partes a possibilidade de efetiva defesa de seus direitos, sustentao de suas razes, produo de provas.51 A promoo dessa atividade das partes tem por finalidade influenciar o esprito do juiz, destinatrio final das provas. Portanto, correto afirmar que tambm de seu interesse a observncia do

    48- Cfr. BARBOSA MOREIRA, "A funo social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direo e na instruo do

    processo", pp. 146-149). Do mesmo autor, v. ainda "A garantia do contraditrio na atividade de instruo", pp. 237-238; "Breves reflexiones sobre la iniciativa oficial en materia de prueba", pp. 79-86; "O juiz e a prova", pp. 178-184. Cfr. tambm BEDAQUE, Poderes instrutrios do juiz, pp. 67-73.

    49 - V. BEDAQUE, Poderes instrutrios do juiz, pp. 67-68. 50 - CHIOVENDA, Le riforme processuali e le correnti del pensiero moderno, p. 385. 51- GRINOVER, As garantias constitucionais e o direito de ao, p. 15.

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    contraditrio,52 a fim de fazer prevalecer a isonomia processual. Da ser correto afirmar a existncia de verdadeira unio funcional entre igualdade e contraditrio pois ambos representam verdadeiros pilares da democracia, na qual o moderno direito processual est completamente inserido.

    6. Concluso parcial e encaminhamento de novas questes

    O objetivo principal at aqui traado foi o de demonstrar a estreita relao

    existente entre igualdade das partes no processo e devido processo legal e contraditrio. Nos itens

    subseqentes, procurar-se- traar um desenho mais detalhado do tratamento paritrio das partes no processo

    a partir da anlise de situaes especficas.

    7. Igualdade e imparcialidade

    A igualdade entre as partes exige tambm a imparcialidade, i. e., o

    provimento jurisdicional deve ser concedido por um juiz independente, que atua de modo equilibrado. Os

    conceitos de igualdade e imparcialidade caminham em conjunto h muito; na Declarao Universal dos

    Direitos do Homem, aprovada pela Assemblia Geral das Naes Unidas em 10 de dezembro de 1.948, est

    consagrado o direito ao julgamento por juiz imparcial: todos homens tm direito, em plena igualdade, a

    uma justa e pblica audincia por parte de um tribunal independente e imparcial... (art. 10). Para que tal

    preceito se realize, caber ao julgador decidir em consonncia com a lei e com os valores vigentes na

    sociedade em que se insere, fundamentando suficientemente suas decises e conferindo tratamento paritrio

    aos sujeitos parciais do processo. repugnante aceitar que os agentes do Estado solucionem conflitos

    movidos por interesses ou sentimentos prprios, com total desprezo lei. No podem tambm prevalecer no

    processo opes pessoais do juiz ligadas unicamente a preferncias sociais, polticas ou econmicas.

    A liberdade de julgar est vinculada correta interpretao do ordenamento jurdico que, por sua vez, deve

    exprimir os valores preponderantes na sociedade. Vincular o sistema jurdico realidade em que atua

    significa, da parte do juiz, revelar a norma a partir dos princpios e garantias que sobre ela sempre devem

    atuar.

    Para coibir atos arbitrrios existem os instrumentos legtimos da suspeio e

    do impedimento, garantias infra-constitucionais que tm por escopo propiciar a imparcialidade do juiz e, em

    52 - Nesse sentido o art. 16 do Novo Cdigo de Processo Civil Francs:

    le juge doit, en toutes circonstances, faire observer lui-mme le principe de la contradiction. Il ne peut retenir, dans sa dcision, les moyens, les explications et les documents invoqus ou produits par les parties

    que si celles-ci ont te mme dn dbattre contradictoirement. Il ne peut fonder sa dcision sur les moyens de droit quil a relevs doffice sans aboir au pralable invit les parties

    prsenter leur observations.

    Como observado por ROGER PERROT e HENRY SOLUS, a partir du moment o le juge est appel participer activement linstruction de la cause en relevant doffice certains moyens ou en modifiant de sa propre autorit la qualification des faites, des devoirs simposent lui comme aux parties elles-mmes et, en particulier, le devoir de provoquer les observations des parties sur les moyens dont peut dpendre la solution dun litige qui met en cause leurs propres intrets (Droit judiciaire priv, p. 122).

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    ltima anlise, garantir a prpria igualdade entre as partes. Outros meios para garantir a imparcialidade do

    juiz e fiscalizar a liberdade interpretativa do texto legal so a publicidade dos atos judiciais e o sistema de

    pluralidade de graus de jurisdio. A possibilidade de conhecimento dos autos do processo aos rgos

    hierarquicamente superiores de jurisdio preserva a igualdade das partes na medida em que elas no tero

    apenas uma chance de demonstrar suas razes e os atos judiciais sero suscetveis de um controle interno.

    Espera-se que a segurana jurdica resultante de mais de um julgamento sobre o mesmo caso permita a

    melhora qualitativa da atuao dos rgos jurisdicionais e a maior confiabilidade da populao nessa

    atuao. J a publicidade tem sua importncia pois preserva o direito informao e permite que a populao

    faa a fiscalizao de seus juzes mediante um controle externo legtimo.

    Todavia, esses meios de controle no tm se mostrado suficientes. A

    responsabilidade penal, civil e disciplinar do juiz deve ser uma realidade, mediante a instaurao de

    processos de publicidade plena. Agindo com dolo ou culpa grave ou, ainda, tendo denegado justia sem a

    interpretao da lei e a anlise das circunstncias que norteiam o caso concreto, deve o juiz responder pelos

    prejuzos causados. No se pode admitir, sob pena de comprometer a promessa do tratamento igualitrio das

    partes no processo, a violao da lei por negligncia inescusvel, a afirmao da inexistncia de um fato

    incontrastavelmente existente ou da existncia de um fato incontrastavelmente inexistente.53

    Por outro lado, imparcialidade no se confunde com passividade e

    neutralidade absoluta. Observando uma situao de extrema desigualdade entre as partes litigantes, deve o

    julgador intervir no sentido de propiciar o tratamento paritrio. Partes hipossuficientes, sem condies de

    contratar bons profissionais para defesa de seus interesses, devem ter seus direitos tutelados mediante a

    participao efetiva do julgador. Dele se espera um conhecimento do contexto social em que atua.

    8. Igualdade, acesso justia e assistncia judiciria

    bices perversos, a maioria deles estranha ordem jurdica processual, so

    decorrentes da interpretao retrgrada da lei e da realidade scio-econmica. Pobreza, desinformao, custo

    e durao do processo, burocracia, desdia e falta de compromisso dos operadores do direito com a justia

    so alguns dos obstculos que afastam o leigo da Justia. Por isso, ao fazer observar a igualdade das partes

    no processo, caber ao juiz compensar de modo adequado desigualdades econmicas de modo a permitir a

    efetiva, correta e tempestiva defesa dos direitos e interesses em juzo. Tal a igualdade real e proporcional,

    isto , o tratamento desigual deve ser dispensado aos substancialmente desiguais na exata medida da

    desigualdade.54

    53 - No mesmo sentido, PROTO PISANI, Lezioni di diritto processuale civile, p. 314. 54 - de CANARIS essa observao: em termos esquemticos, pode considerar-se que, mediante bitolas eleitas em cada cultura

    jurdica, o Direito tende a tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferena. De outro modo, os diversos problemas concretos seriam resolvidos ao acaso, surgindo como expresso do puro arbtrio (Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito, p. 63). Essas bitolas so os princpios jurdicos, que servem de base para o sistema.

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    Neutralizando carncias culturais e econmicas, estar o juiz demonstrando

    conscincia da realidade na qual est inserido e promovendo a verdadeira igualdade substancial.

    Indiretamente, est propiciando a educao dos jurisdicionados. Est bem claro hoje que tratar como igual

    de forma igual sujeitos que econmica e socialmente esto em desvantagem, no outra coisa seno

    uma ulterior forma de desigualdade e de injustia.55 Por ser natural e extremamente razovel, tratar

    desigualmente os desiguais uma forma legtima de fazer com que o processo atinja os resultados

    previamente eleitos.

    A assistncia jurdica integral aos necessitados, embora elevada a

    verdadeira promessa constitucional (art. 5, inc. LXXIV), est longe de ser uma realidade. Mas

    muito j foi feito. A lei n. 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, que estabelece normas para a concesso

    de assistncia judiciria aos necessitados, tem ainda a sua importncia, embora at hoje importantes

    questes relativas ao modo-de-ser do processo civil no estejam bem resolvidas. Exemplo vivo do

    que se procura ilustrar ocorre quando o beneficirio da justia gratuita necessita de prova pericial

    para a demonstrao dos fatos alegados; as dificuldades so tantas que, muitas vezes, a prova no

    realizada ou resta de alguma forma comprometida. Recentemente, a jurisprudncia tem se mostrado

    sensvel a tais problemas ao entender que a assistncia judiciria abrange tambm os honorrios do

    perito.56 A iniciativa do juiz no campo probatrio essencial garantia constitucional da igualdade e

    efetivao do processo justo. Ainda sobre a assistncia judiciria, o 5 ao art. 5 da lei n. 1.060, de 5 de

    fevereiro de 1950, outorga o prazo em dobro para o defensor pblico ou para quem exera cargo equivalente

    (ateno: cargo e no munus semelhante). Alm disso, os tribunais ptrios tm entendido que as intimaes

    do defensor pblico devem ser feitas pessoalmente.57 Tais medidas parecem ser exageradas; melhor seria

    conceder ao juiz, nos casos de assistncia judiciria, o poder de definir apenas e to-somente o prazo para

    resposta. A instituio do prazo em dobro genrica e permite o tratamento privilegiado de uma das partes.

    A mesma situao ocorre com a necessidade de intimao pessoal do defensor dativo, que s vem a retardar

    a prestao jurisdicional.

    Um sistema de assistncia jurdica integral pressupe um verdadeiro

    programa de seguridade social, destinado a auxiliar o jurisdicionado preventivamente e em juzo.

    Mais ainda, em consonncia com as circunstncias do caso concreto, o julgador deve verificar

    precisamente as condies de carncia e, por conseqncia, em que condies a assistncia jurdica

    ser outorgada. Advogados do prprio poder pblico ou a ele vinculados por meio de algum modo

    justo de remunerao fazem parte de um sistema misto para permitir o efetivo acesso justia. Na

    55 - Proceso, ideologia, sociedad, p. 67. 56 - STJ, RT 688/198; RSTJ 57/275. Em sentido contrrio: RJTJERGS 167/270. V. THEOTONIO NEGRO, Cdigo de Processo Civil e

    legislao processual em vigor, nota 7b ao art. 3 da lei n. 1.060, de 5 de fevereiro de 1.950, p. 815. 57 - Cfr. farta messe jurisprudencial citada por THEOTONIO NEGRO, Cdigo de Processo Civil e legislao processual em vigor, p.

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    segunda alternativa, o Estado est descentralizando suas atividades e permitindo a participao de

    indivduos e grupos realmente interessados na consecuo dos direitos sociais. 58

    Outro ponto importante que representa um grande passo na

    consecuo do efetivo acesso justia a lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que instituiu os

    juizados especiais, destinados a resolver causas cveis de menor complexidade e causas penais de

    menor potencial ofensivo. Por meio de um processo orientado pela oralidade, simplicidade,

    informalidade, economia processual e celeridade, o processo dos juizados especiais procura

    diminuir bices culturais, que comprometem a efetiva participao de jurisdicionados carentes.

    Mais ainda: os juizados especiais tm o grande mrito de tentar solucionar conflitos antes no-

    jurisdicionalizveis.59 Todavia, preciso que o Estado estruture e aparelhe os juizados especiais de

    maneira adequada, com juzes que exeram apenas essa funo e possam nela se especializar.

    Um dos grandes bices promessa constitucional de oferta integral de

    assistncia judiciria o custo do processo. A procrastinao do pagamento de custas processuais,

    como o preparo, meio eficaz para preservar a isonomia entre as partes litigantes; mediante o

    tratamento formalmente desigual, objetiva-se a igualdade substancial. Medida que tambm se

    afigura justa e permite o acesso justia a dispensa, aos beneficirios da assistncia judiciria, de

    efetuar o depsito prvio no valor de cinco por cento do valor da causa para a propositura de ao

    rescisria (CPC, art. 488, par. n.).

    Mas no h a menor dvida de que o maior bice da atualidade

    efetividade do processo sua durao excessiva. Demoras sem justificativa aumentam a descrena

    nos servios judicirios e a angstia do litigante que pretende ver seu direito tutelado, alm de

    abalar sensivelmente a segurana que deve haver nas relaes jurdicas. A celeridade e a segurana

    jurdica so objetivos difceis de serem delineados conjuntamente, mas o retardamento excessivo da

    prestao jurisdicional vem contribuir sensivelmente para o descaso com a lei. O direito

    tempestiva prestao jurisdicional inerente igualdade jurdica, j que o tempo excessivo fator

    de desequilbrio, mormente naqueles casos em que esto envolvidos direitos patrimoniais.

    Sabe-se que a certeza absoluta no inerente idia de processo, que

    se desenvolve de diversos modos em funo dos vrios sistemas de gradao da cognio. Todo e

    qualquer processo representa um espelho de uma realidade e, por isso, funda-se numa maior ou

    menor verossimilhana dos fatos. No processo de conhecimento, por exemplo, a sentena de mrito

    58 - BERIZONCE, Algunos obstculos al acceso a la justicia, nn. 4-5, p. 69. 59 -Isso significa universalizar a tutela jurisdicional, endereando-a maior abrangncia possvel e, com isso, reduzindo os resduos

    no-jurisdicionalizveis. O objetivo fazer com que o universo dos litgios possa ser canalizado para o processo (v. DINAMARCO, O futuro do direito processual civil, pp. 38-40).

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    paridade

    17

    vem aps atividade cognitiva exauriente, que permite um conhecimento total da realidade que lhe

    trazida pelas partes; no processo cautelar ou na antecipao de tutela (art. 273), a deciso chega

    depois de realizada cognio sumria, na qual se evidencia a probabilidade, ou seja, a constatao

    da presena de mais pontos convergentes a uma dada realidade que trazida ao julgador

    comparativamente aos pontos divergentes. Mediante a correta tcnica processual pretende-se

    estabelecer uma linha de equilbrio entre a celeridade e segurana, fazendo com que o processo

    atinja os resultados prticos esperados no menor espao de tempo e de modo a no prejudicar as

    partes litigantes.

    9. Igualdade substancial: a inverso do nus da prova no Cdigo de Defesa do Consumidor

    A denominada inverso do nus da prova, na realidade, nada inverte.

    Etmologicamente, inverter vem do latim invertere e significa mudar a ordem de, dispor de maneira

    contrria ao normal.60 Portanto, quando se fala de inverso do nus da prova quer o legislador dizer que, em

    determinadas situaes, h a dispensa da parte de fazer prova de algum fato por ela alegado. Em tais

    circunstncias, dispensa a lei que o demandante faa prova do fato constitutivo de seu direito. Ou seja, no

    basta ao demandado impugnar os fatos apenas alegados pela parte contrria; tem ele o encargo, como

    imperativo de seu prprio interesse,61 de fazer prova de que aqueles fatos alegados pelo demandante no

    ocorreram ou, admitindo-os, que no produziram as conseqncias afirmadas da petio inicial (defesa

    direta) ou, ainda, apresentar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos daqueles integrantes da causa

    petendi descrita na petio inicial (defesa indireta).

    A inverso do nus da prova est presente no ordenamento jurdico

    brasileiro h muito tempo. No-obstante a regra rgida contida no art. 333 do Cdigo de Processo Civil, pelo

    pargrafo nico desse dispositivo, possvel a inverso convencional do nus de provar quando a questo

    versar sobre direito disponvel e no dificultar excessivamente o exerccio do direito de defesa. No direito

    comparado essa possibilidade tambm est presente. No direito italiano, o art. 2.698 do Cdigo Civil, que

    serviu de matriz para o par. n. do art. 333, admitiu implicitamente a conveno com o efeito de alterar a

    distribuio do onus probandi.62

    O Cdigo de Defesa do Consumidor representou um grande avano a partir

    do momento em que disciplinou a inverso do nus da prova por deciso judicial. Enquanto no sistema do

    Cdigo de Processo Civil admite-se a inverso convencional, com as ressalvas contidas nos dois incisos do

    pargrafo nico do art. 333, no sistema do Cdigo de Defesa do Consumidor permite-se a inverso judicial 60 - BUENO, Grande dicionrio etimolgico-prosdico da lngua portuguesa, p. 1.978. 61 - Muito atual ainda o ensinamento de GOLDSCHMIDT, segundo o qual o nus, considerado como imperativo do prprio interesse,

    tem estreita relao com a possibilidade processual, pois toda possibilidade impe parte o nus de ser diligente (Derecho procesal civil, 2, n. 3, p. 8, e ainda, 35, n. 3, p. 203).

    62 - V. MICHELI, Lonere della prova, n. 38, pp. 244 e ss.; cfr. tambm VERDE, Lonere della prova nel processo civile, n. 21, esp. p. 131, nota 194.

    PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON

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    18

    do nus da prova (CDC, art. 6, inc. VIII). Essa nova situao jurdica processual tem estreita relao com o

    direito material, na medida em que a finalidade especfica da norma por fim vulnerabilidade das

    alegaes do consumidor no tocante demonstrao dos fatos constitutivos de seu direito.63 Mas essa

    inverso no incondicionada pois, para que ela ocorra, os fatos devem ser verossmeis. Ao examinar a

    veromissilhana dos fatos deduzidos pelo consumidor em juzo, deve o julgador imbuir-se do sentimento de

    que a realidade ftica pode ser como a descreve o autor.64 Isso significa condicionar a inverso

    verossimilhana das alegaes, que deve ser aferida segundo as regras ordinrias de experincia

    subministradas pela observao do que comumente acontece e ainda as regras de experincia tcnica.

    A inverso judicial do Cdigo de Defesa do Consumidor est condicionada verossimilhana a fim de evitar

    uma absurda e impossvel onerosidade ao produtor de bens ou servios. Sem incluir tal condicionamento, o

    dispositivo seria inconstitucional, pois violaria de tal forma a paridade substancial das partes no processo e a

    ampla defesa que impediria o acesso ordem jurdica justa (CF, art. 5, caput, incs. XXXV e LIV). Estaria

    tambm prestigiada a probatio diabolica e ignorada a possibilidade, da qual falou GOLDSHMIDT, j que de

    nada adiantaria a parte ser diligente em torno de um fato impossvel.65

    No Cdigo de Defesa do Consumidor, o art. 6, inc. VIII, tem por fim

    aprimorar os mecanismos internos do processo e preservar o tratamento paritrio das partes, uma vez que

    no havendo posies isonmicas dos sujeitos parciais do processo admite-se a inverso judicial do nus da

    prova,66 condicionada sempre verossimilhana das alegaes aduzidas pelo consumidor em juzo.

    Com isso, evitam-se desigualdades e preserva-se a igualdade substancial das partes no processo.

    10. Igualdade nas relaes internacionais

    A coeso dos sistemas jurdicos imperativa para a intensificao das

    relaes entre os diversos pases e, em particular, da atividade econmica. Nesse contexto tm

    muita importncia os estudos desenvolvidos pelo Instituto Ibero-Americano de Direito Processual. O

    Cdigo de Processo Civil Modelo para a Iberoamrica ou Cdigo Tipo, elaborado por essa entidade, tem

    grande importncia na medida em que reconhece institutos comuns (com a diferena de nomenclatura) e

    procura introduzir outros recepcionados pelo trabalho da doutrina e da jurisprudncia. Esse compndio tem

    grande importncia pois oferece idias que podem ser perfeitamente assimiladas pelos pases integrantes da

    Iberoamrica. O importante no criar um nico diploma, mas compatibilizar os sistemas jurdicos de pases

    integrantes de uma mesma comunidade de modo a atingir escopos previamente traados. Todavia, preciso

    que haja a preservao da reciprocidade e do princpio da igualdade de tratamento entre os litigantes nas

    relaes internacionais. Assim, apenas exemplificando o que se procura demonstrar, no Brasil no seria

    63 - MATOS, O nus da prova no Cdigo de Defesa do Consumidor, p. 196. 64 - DINAMARCO, A Reforma do Cdigo de Processo Civil, n. 106, p. 145. 65 - Derecho procesal civil, 35, n. 3, p. 203. 66. Cfr. ARRUDA ALVIM, Cdigo do Consumidor comentado, cit., esp. p. 71, em comentrio ao art. 6.

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    vlida prova produzida no exterior sem a participao das partes litigantes, porque violaria a garantia

    constitucional da igualdade.

    Portanto, tambm no campo do chamado direito processual internacional

    revela-se importante a observncia do tratamento paritrio das partes no processo. A cooperao jurdica

    entre os diversos pases exige apenas coeso de sistemas, ou seja, ao operador do direito compete verificar

    apenas se garantias constitucionalmente eleitas foram observadas. Um apego excessivo s formalidades

    constantes do ordenamento jurdico nacional prejudicariam sensivelmente a coeso que se espera. Por tudo

    isso, na cincia do direito tende a crescer o valor sistemtico dos princpios medida que se torna imperativa

    a cooperao internacional; os princpios comuns tero o condo de harmonizar os diferentes sistemas

    jurdicos. A prpria Constituio Federal, ao consagrar o modelo democrtico e formular princpios, deseja

    um processo universal e isonmico.

    11. Igualdade e processo de execuo

    O tratamento paritrio das partes no se revela apenas no processo cognitivo,

    mas tambm no de execuo. Embora o ttulo executivo permita desde logo o desencadeamento de atos

    constritivos, certo que o processo deve se desenvolver de modo a no ultrapassar os limites estabelecidos

    no ttulo, tornando a execuo, na medida do possvel, menos gravosa. A igualdade no processo executivo

    est na observncia da fidelidade do ttulo executivo com os atos de agresso patrimonial.

    Em se tratando de matrias que devem ser conhecidas de-ofcio (as assim

    denominadas objees), viola a isonomia no processo quando deixa o magistrado de sobre elas se

    pronunciar.67 Demonstrada a inadmissibilidade da execuo por ausncia de pressupostos de constituio e

    de desenvolvimento do processo e das condies da ao, no possvel o desencadeamento de atos de

    agresso patrimonial, para somente depois de seguro o juzo pela penhora ou pelo depsito permitir a defesa

    do executado pela via incidental dos embargos. Portanto, se de um lado deve o juiz proporcionar ao

    exeqente um processo de execuo efetivo, coibindo expedientes procrastinatrios e totalmente infundados,

    de outro deve rejeitar de incio execues fundadas em obrigaes inexistentes ou inadmissveis. Para esses

    expedientes do exeqente existe o que a doutrina nominou de excees e objees de pr-executividade,

    defesas de mrito ou processuais oferecidas diretamente no processo de execuo. As primeiras devem ser

    necessariamente alegadas pelo executado e dizem respeito ao mrito do processo executivos (p. ex.,

    pagamento, prescrio etc.); as outras, por se referirem prpria admissibilidade do processo de execuo,

    devem ser cognoscveis de-ofcio pelo juiz.68 Nas duas situaes, impe-se o dever de o julgador sobre elas

    se manifestar in executivis, sob pena de flagrante tratamento desigual entre os sujeitos parciais do processo.

    67 - Com esse entendimento tambm, SHIMURA, Ttulo executivo, p. 72. 68 - Mais amplamente, cfr. LUCON, O controle dos atos executivos e a efetividade da execuo, nn. 6 e 11, pp. 341-344, 349-352,

    respectivamente.

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    12. Igualdade, Fazenda Pblica e Ministrio Pblico

    I) introduo

    Prerrogativas legais outorgadas a uma das partes no processo tm por

    finalidade restabelecer o equilbrio, propiciando a chamada igualdade substancial na tutela dos

    direitos. Esse , por assim dizer, o trao fundamental que legitima diferenciaes feitas pelo

    legislador e pelo magistrado no caso concreto. O que no se pode admitir o tratamento

    privilegiado dispensado a apenas uma das partes de modo arbitrrio ou caprichoso, em total

    prejuzo da outra. Assim sucede com os inexplicveis benefcios da Fazenda Pblica (Unio,

    Estados, Municpios, Distrito Federal e respectivas autarquias), que remontam poca de um

    modelo estatal superado e no tm razo de hoje sobreviver. Como observa BANDEIRA DE MELLO, a

    igualdade violada quando a norma singulariza atual e definitivamente um destinatrio

    determinado, ao invs de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e

    indeterminada69 ou ainda no momento em que o legislador cria o discrmen, quando no h

    qualquer previso constitucional, implcita ou explcita, para tanto. Como adverte PONTES DE

    MIRANDA, a igualdade perante a lei regra geral, no podendo ser invocada se a Constituio de modo

    implcito ou explcito permite a desigualdade.70

    Diferenciaes feitas genericamente pela norma em funo da parte

    litigante so inconstitucionais; preciso que o discrmen seja feito de forma particularizada, tal

    como ocorre nos casos de concesso dos benefcios da assistncia judiciria. Por isso, afigura-se

    genrico e inconstitucional o reexame obrigatrio previsto na ao popular, quando decretada a

    carncia de ao ou julgado improcedente o pedido, a teor do disposto no art. 19 da lei n. 4.717, de

    29 de junho de 1965.

    O dia-a-dia forense tem demonstrado que o maior fomentador dos

    litgios o prprio Estado, que tem no mais das vezes se comportado como inimigo na voracidade

    fiscal, no comportamento processual, muitas vezes eivado de m-f, nos privilgios que a lei lhe

    confere em total violao ao princpio da igualdade.71

    69 - O contedo jurdico do princpio da igualdade, p. 47. Para BANDEIRA DE MELLO, h tambm ofensa ao preceito constitucional

    da isonomia quando: II - a norma adotada como critrio discriminador, para fins de diferenciao de regimes, elementos no residentes nos fatos, situaes ou pessoas por tal modo desequiparadas. o que ocorre quando pretende tomar o fator tempo- que no descansa no objeto como critrio diferencial; III a norma atribui tratamentos jurdicos diferentes em ateno a fator de discrmen adotado que, entretanto, no guarda relao de pertinncia lgica com a disparidade de regimes outorgados; IV a norma supe relao de pertinncia lgica existente em abstrato, mas o discrmen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente; V interpretao da norma extrai dela distines, discrmens, desequiparaes que no foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via implcita (op. cit., pp. 47-48).

    70 - Comentrios Constituio de 1.967, v. IV, p. 701. 71 - V. DINAMARCO, Privilgios do Estado em Juzo, p. 5.

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    II) prazos processuais

    O primeiro desses privilgios indevidos refere-se aos prazos

    outorgados Fazenda Pblica (e ao Ministrio Pblico) em qudruplo para contestar e em dobro

    para recorrer, constantes do art. 188 do Cdigo de Processo Civil. Tambm aqui se inclui o prazo

    em dobro para a Fazenda Pblica contestar no procedimento sumrio (art. 277, caput); essas

    vantagens so inadmissveis por violarem frontalmente a Constituio Federal no que diz respeito

    igualdade das partes no processo. Por isso, no podem encontrar justificativa no complexo da

    administrao pblica. Caso contrrio, as mega-empresas tambm deveriam ser assim beneficiadas.

    Nos dias de hoje, com o uso em larga escala do computador, no pode mais prevalecer o

    entendimento de que o Estado necessita de privilgios inconstitucionais. Alis, um Estado

    organizado, melhor do que qualquer particular, deve primar pela perfeio dos seus servios,

    tendo, a tempo e hora, todos os elementos indispensveis sua mais perfeita quo possvel

    atuao, e correlatas informaes.72 Toda e qualquer discriminao tem por objetivo atender

    situaes desiguais; caso contrrio, mostra-se arbitrria e odiosa.73

    Inconstitucional tambm a possibilidade de prazo em dobro por

    terem os litisconsortes procuradores distintos, constante do art. 191 do Cdigo de Processo Civil.

    Essa regra provoca a dilao excessiva do processo e beneficia um dos sujeitos parciais do processo

    em total detrimento do outro. Normalmente somente os litigantes com capacidade econmica que

    tm a possibilidade de contratar procuradores autnomos, com escritrios muito bem montados e

    capacitados para cumprir regularmente os prazos, sem a necessidade do inconstitucional benefcio

    do prazo em dobro.74

    III) reexame necessrio

    O segundo desses privilgios conferidos Fazenda Pblica diz

    respeito ao duplo exame necessrio, tambm chamado de duplo grau de jurisdio obrigatrio. Por

    essa regra, prevista no art. 475 do Cdigo de Processo Civil, a Fazenda Pblica est dispensada de

    recorrer das sentenas desfavorveis pois o reexame pelo rgo jurisdicional hierarquicamente

    superior est garantido. Da o erro grosseiro de designar esse inconstitucional privilgio de recurso

    de-ofcio, pois nenhuma manifestao de irresignao h; o que existe a dupla possibilidade de

    exame das razes da Fazenda Pblica nos casos de sentenas desfavorveis, sem que haja a

    exigncia da interposio de recurso. Mesmo sem recurso das partes, pode haver modificao da 72 - TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituio de 1.988 e processo, p. 43. 73 - Entendendo tambm ser inconstitucional e excessivo os prazos concedidos para a Fazenda Pblica e para o Ministrio Pblico,

    TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituio de 1.988 e processo, pp. 44-45. A favor, NERY, Princpios do processo civil na Constituio Federal, p. 45.

    74 - Com igual entendimento, TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituio de 1.988 e processo, p. 44.

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    sentena, mas nunca em prejuzo da Fazenda Pblica por fora de outro inconstitucional benefcio,

    violador do princpio da isonomia e consubstanciado na Smula 45 do Superior Tribunal de Justia:

    no reexame necessrio, defeso, ao Tribunal, agravar a condenao imposta Fazenda

    Pblica.75 Os defensores da regra do reexame obrigatrio, que no encontra respaldo em nenhum

    ordenamento jurdico (exceo feita Colmbia), sustentam esse inconstitucional benefcio a partir

    de uma inexistente inpcia administrativa e na falta de confiana existente em relao s sentenas

    de primeiro grau contrrias Fazenda Pblica. Sobre o primeiro argumento, essa indevida

    compensao no tem razo de ser, pois, como asseverado, grandes conglomerados econmicos

    dotados de personalidade jurdica deveriam ter tambm esse direito. O segundo argumento tem uma

    repercusso negativa ainda maior, pois desestimula o magistrado de primeiro grau e abala a sua

    independncia, j que se parte da premissa de que as decises proferidas contra a Fazenda Pblica

    no so confiveis. Soma-se a isso tudo a circunstncia objetiva de que a misso do Poder

    Judicirio declarar relaes jurdicas e no suprir as deficincias dos representantes da Fazenda

    ou do Ministrio Pblico.76 Alm de desacreditar a Administrao e o Judicirio, esse privilgio

    denota verdadeiro desprezo ao tratamento paritrio das partes no processo.77

    IV) honorrios advocatcios

    O terceiro desses inconstitucionais privilgios concedidos Fazenda

    Pblica diz respeito aos honorrios advocatcios, que podem ser fixados em percentual inferior a

    dez por cento quando vencida for a Fazenda Pblica (CPC, art. 20, 4). Ao contrrio, sagrando-se

    vencedora, a Fazenda Pblica ter a sucumbncia fixada entre o mnimo de dez por cento e o

    mximo de vinte por cento sobre o valor da condenao, consoante o disposto no 3o do art. 20 do

    Cdigo de Processo Civil. Novamente o legislador tratou de impor situao desigual em funo da

    qualidade da parte (pessoa jurdica de direito pblico). A fixao equitativa de honorrios nos casos

    em que for vencida a Fazenda Pblica deve ser equnime, por isso deve levar em considerao o

    valor econmico envolvido na causa e ter como parmetro mnimo o correspondente a dez por

    cento desse valor. A sucumbncia no pode ser fixada segundo uma apreciao desigualitria, que

    impossibilite completo ressarcimento da pessoa lesada pela Administrao Pblica, obrigada por

    ato omissivo ou comissivo desta a contratar os servios profissionais de um advogado. Como

    75 - Como j observado em sede doutrinria (NERY, Princpios do processo civil na Constituio Federal, p. 59), a remessa

    obrigatria no decorrncia do efeito devolutivo em favor da Fazenda Pblica, mas da necessidade de se estabelecer um controle sobre a sentena de primeiro grau. Portanto, equivocado o fundamento da Smula 45 do Superior Tribunal de Justia, podendo haver piora no resultado obtido em primeiro grau pois o efeito translativo deve ser pleno na remessa necessria. Com essa orientao sumular fica tambm patente a ofensa ao tratamento paritrio das partes no processo.

    76 - TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituio de 1.988 e processo, p. 55. 7777 - Com o mesmo entendimento, BUENO FILHO, O direito defesa na Constituio, pp. 24-25; ROSAS, Direito processual

    constitucional, p. 43; TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituio de 1.988 e processo, pp. 55-56. Em sentido contrrio, mas com a particularidade apontada na nota anterior, NERY, Princpios do processo civil na Constituio Federal, pp. 59-60.

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    observado por CHIOVENDA, a atuao da vontade concreta da lei no deve representar uma

    diminuio patrimonial para a parte a cujo valor se efetiva.78 Caso contrrio beneficia-se apenas um

    dos sujeitos parciais do processo e consagra-se um intolervel tratamento especial Fazenda

    Pblica.79

    V) outros inconstitucionais privilgios

    Existem outros inconstitucionais privilgios que tambm no tm

    razo de ser, como a possibilidade de substituio de bens penhorados pela Fazenda Pblica

    independentemente de qualquer ordem de enumerao (art. 15, inc. II, da lei n. 6.830, de 22 de

    setembro de 1980).

    Fator que contribui para intempestividade da prestao jurisdicional e

    viola tambm o tratamento paritrio das partes no processo a necessidade de intimao pessoal do

    representante da Fazenda Pblica, quando o patrono do executado intimado pela imprensa (art. 25

    da lei n. 6.830, de 22 de setembro de 1.980). Assim, ao contrrio do que ocorre com os demais

    jurisdicionados, o representante da Fazenda Pblica deve ser intimado no s na execuo fiscal

    como nos embargos a ela opostos.80

    A desigualdade est tambm presente no art. 26 da lei n. 6.830, de 22

    de setembro de 1980, pois se antes da deciso de primeira instncia, a inscrio de dvida ativa

    for, a qualquer ttulo, cancelada, a execuo fiscal ser extinta, sem qualquer nus para as

    partes. Havendo desistncia da execuo fiscal, por esse inconstitucional dispositivo, a Fazenda

    Pblica fica dispensada do pagamento de honorrios advocatcios. Alm de impor tratamento

    diferenciado s partes litigantes, a desistncia da execuo fiscal sem sucumbncia viola tambm a

    Constituio Federal quando essa impe o dever de o Estado ressarcir todo o dano que seus

    funcionrios, no exerccio de suas atribuies, causarem a terceiros.81

    Outro ponto que no possvel se aceitar na atualidade o

    entendimento de que no possvel a fixao de multa diria Fazenda Pblica nos casos de

    78 - Istituzioni di diritto processuale civile, n. 381, p. 515. 79 - Com esse entendimento, BARBI, Comentrios ao Cdigo de Processo Civil, n. 189, pp. 115-116. 80 - STJ, 1 T., REsp-RS, rel. Min. CSAR ROCHA, j. 24.8.94, deram provimento, v.u., DJU 19.9.94, p. 24.645, 2 col. em., in

    THEOTONIO NEGRO, Cdigo de Processo Civil e legislao processual em vigor, nota 3 ao art. 25 da lei n. 6.830, de 22 de setembro de 1.980, p. 930. O privilgio da intimao pessoal tambm do Ministrio Pblico, por fora do disposto no 2 do art. 236 do Cdigo de Processo Civil.

    81 - CRUZ E TUCCI, Desistncia da ao, p. 44; FLAKS, Comentrios Lei de Execuo Fiscal, p. 63; THEODORO JNIOR, Lei de execuo fiscal, pp. 91-92; TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituio de 1.988 e processo, p. 58 (com destaque farta messe jurisprudencial relacionada na nota 146).

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    24

    inexecuo de obrigao de fazer.82 Como sabido, a multa tem grande importncia na questo da efetividade do processo pois, em certas situaes, a tutela jurisdicional desejada mostra-se impossvel de ser obtida sem o concurso ou a participao da parte contrria. Nesses casos, constitui a imposio de multa importante meio destinado ao cumprimento das obrigaes. Impedir a aplicao de multa diria Fazenda Pblica nos casos de obrigao de fazer e no fazer ofende frontalmente a igualdade de partes no processo civil. Como natural, nessas obrigaes espera-se que o ato judicial declare a violao ao preceito de direito material e imponha o comando emergente de tal violao. Muito mais que isso, deseja-se que seja ele apto a solucionar uma crise de inadimplemento. O titular do direito no espera a declarao de infringncia do direito material; quer o resultado objetivado por meio de uma ordem apta a compelir o demandado a cumprir a prestao desejada. A multa destina-se a propiciar o cumprimento do obrigado a realizar um ato comissivo ou omissivo; destina-se, em sntese, a tornar o processo efetivo. Por tudo isso e a fim de que a igualdade entre os litigantes seja preservada, que se deve aplicar multa diria Fazenda Pblica nos casos de renitncia injustificada no cumprimento de suas obrigaes.

    VI) casos em que no h ofensa igualdade

    Por outro lado, no h ofensa ao tratamento paritrio das partes no

    processo quando a lei permite o oferecimento de embargos execuo contra a Fazenda Pblica

    independentemente de qualquer ato constritivo (CPC, art. 730) ou, ainda, quando difere o

    recolhimento ao Estado de custas processuais da Fazenda Pblica ou do Ministrio Pblico para o

    fim do processo, se esses entes forem vencidos (CPC, art. 27 e art. 39 da lei n. 6.830, de 22 de

    setembro de 1980). Essas normas tm a justificativa pragmtica de agilizar os atos processuais j

    que, no primeiro caso, os bens pblicos so impenhorveis e acredita-se que o Estado tenha sempre

    condies de saldar seus dbitos; no segundo caso, eventual recolhimento torna-se despiciendo, j

    que destinado ao prprio Estado. A mesma situao ocorre na dispensa de preparo da Fazenda

    Pblica e do Ministrio Pblico para a interposio de recurso (CPC, art. 511). Todavia,

    relativamente ao diferimento de despesas processuais de auxiliares eventuais da justia, o art. 27 do

    Cdigo de Processo Civil impe tratamento diferenciado s partes litigantes, alm de prejudicar

    sensivelmente esses auxiliares na remunerao de seus servios.

    No que se refere dispensa do depsito prvio no valor de cinco por

    cento do valor da causa para a propositura de ao rescisria (CPC, art. 488, par. n.), a questo

    tambm muda de figura pois eventual improcedncia da rescisria por unanimidade de votos deve

    fazer reverter automaticamente os cinco por cento parte vencedora (CPC, art. 488, inc. II);

    injusto impor parte o recebimento desse valor por meio de precatrio.

    82 - Execuo de obrigao de fazer. Encargo da Fazenda Estadual. Fixao de multa. Descabimento. A demora no apostilamento

    de correo monetria sobre pagamentos administrativos nenhum prejuzo acarreta aos credores e desautoriza imposio de multa pecuniria devedora. Agravo provido (TJSP, ag. inst. n. 78.788.5/9, rel. Des. DEMOSTENES BRAGA, j. 12.5.98).

  • PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON

    paridade

    25

    Do mesmo modo inconstitucional, por violar o princpio da

    isonomia processual, a regra que permite ao juiz conceder medida cautelar de arresto Unio,

    Estado ou Municpio, independentemente do oferecimento de cauo, quando para as outras

    pessoas exige-se tal garantia (CPC, art. 816). Essa discriminao deve ser banida do sistema, j que

    afeta diretamente o efetivo acesso justia na medida em que impe verdadeiro obstculo para que

    o Poder Judicirio aprecie e tutele eventual leso ou ameaa a direitos. A concesso ou no do

    arresto deve considerar a provvel existncia do direito alegado (fumus boni iuris) e a possibilidade

    concreta da ocorrncia de dano de difcil reparao (periculum in mora). No ser unicamente a

    qualidade do litigante que ensejar a concesso ou no da medida cautelar de arresto pois, a, a

    discriminao no encontra amparo no sistema jurdico.

    VII) concluso parcial

    Os inconstitucionais benefcios concedidos Fazenda Pblica e ao

    Ministrio Pblico demonstram o arbtrio e a atecnia do legislador, alm de travar o regular

    prosseguimento do processo e contribuir para a descrena da populao no Poder Judicirio e nas

    nossas instituies. Contribui tambm para a descrena a postura conservadora de alguns juzes no

    sentido de entender como regra que a Fazenda Pblica (e o Ministrio Pblico) est sempre

    defendendo legtimos e reconhecidos direitos pblicos. Teses diametralmente opostas defendidas

    pela Fazenda Pblica e a propositura de aes civis pblicas disparatadas pelo Ministrio Pblico

    demonstram que no pode haver uma presuno absoluta a favor de tais entes.

    Estado e particular desejam uma prestao jurisdicional efetiva e legtima. Para tanto, tal prestao necessariamente deve observar as trs colunas sobre as quais se sustenta o Estado de Direito: liberdade, igualdade e participao. O processo tem como contedo a conduta humana motivada pelas relaes sociais e destina-se realizao de valores fundamentais nos quais se insere a igualdade. De tudo isso, verifica-se que o princpio da isonomia violado quando o legislador inclui na norma

    pessoas que nela no deveriam figurar ou quando deixa de amparar outras que deveriam ser. O

    problema da isonomia resolve-se a partir do binmio elemento discriminado finalidade da norma

    (escopo jurdico).83 Caso contrrio, a diferenciao ser irracional e arbitrria. Justificar os

    privilgios da Fazenda Pblica no interesse pblico no convence.84 Como sabido, por conta do

    interesse pblico, foram elaboradas normas (e outros atos) eivadas de inconstitucionalidade pelas

    quais at hoje a nao responde. hora de mudar e preciso ter coragem para as mudanas, caso

    contrrio continuar um modelo estatal vetusto e distante do terceiro milnio. Os benefcios

    83 - BASTOS, Comentrios Constituio do Brasil, v. II, p. 9. 84 - do Supremo Tribunal Federal: a igualdade perante a lei que a Constituio Federal assegura a brasileiros e estrangeiros

    residentes no Pas, no compreende a Unio e as demais pessoas de direi