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2440 GRAMÁTICA CONTEXTUALIZADA: O QUE OS PCNS REALMENTE DIZEM SOBRE ISSO? Patrícia AQUINO 1 (FAM) RESUMO O objetivo deste texto é questionar as afirmações de que a falta de leitura dos PCNs ou os problemas de formação dos professores de Língua Portuguesa são as causas das dificuldades e dos equívocos de interpretação dos PCNs de Língua Portuguesa, no que se refere à Gramática Contextualizada e ao trabalho com gramática em sala de aula. Dizer isso é uma facilitação, pois implica desconsideração de problemas inerentes à elaboração dos Parâmetros. Esses problemas serão explicitados a partir da análise de algumas interpretações possíveis de trechos que deveriam orientar o ensino de Língua Portuguesa no Brasil. ABSTRACT The aim of this paper is to question the statements of problems in teacher training of Portuguese Language, or PCNs are not read by teachers which are the causes of difficulties and misunderstandings when reading the PCNs of Portuguese Language, referring to the Contextualized Grammar and to the grammar work in the classroom. Stating these is a facilitation, because it is implied not considering the problems related to the preparation of the Parameters. These issues will become explicit from the analysis of some possible interpretations of excerpts that should guide the teaching of the Portuguese Language in Brazil. 1. Introdução Diante da persistência, dentre os professores 2 de Língua Portuguesa (LP) de ensinos Fundamental e Médio, de dúvidas sobre o trabalho com a gramática em sala de aula, é preciso problematizar os motivos que levam à sobrevivência do impasse que vivem muitos desses profissionais em relação à ruptura de uma tradição difícil de superar. Parece claro, óbvio, que o trabalho com a gramática tradicional, nesses níveis de ensino – sobretudo quando se leva em consideração o nível dos alunos que se tem formado na escola brasileira 3 é equivocado. Alguns autores (Franchi, 1991; Perini, 1985; Possenti, 1999; Rocha , 2002), já explicitaram isso, de forma bastante eloqüente, e não é objetivo deste texto retomar essa discussão. Parte-se do pressuposto de que não há dúvidas, no meio acadêmico, de que o trabalho com a gramática tradicional não se adequa às necessidades do ensino de Língua Portuguesa no Brasil de hoje. O que se traz à discussão é uma hipótese sobre o que estaria subjacente à persistência de dúvidas – e de equívocos – em relação ao trabalho com a gramática e, conseqüentemente, com o trabalho com a disciplina Língua Portuguesa. Partindo do pressuposto de que a questão é transparente no circuito acadêmico, pelo menos em relação ao que não dever ser feito 4 , e de que as dúvidas se apresentam na educação básica, buscou-se, assim, analisar o material mais representativo da mediação dos conhecimentos do saber acadêmico que fundamenta as novas diretrizes do ensino de LP, os Parâmetros Curriculares Nacionais, os conhecidos PCNs, cujo objetivo primeiro é levar à educação básica os parâmetros a partir dos quais a educação deve ser conduzida, nomeadamente, as propostas didáticas e em cuja elaboração foram levados em consideração os resultados de anos de pesquisas realizadas nas universidades nacionais, muitas vezes frutos de um contato direto com as práticas do ensino Fundamental e Médio. Para essa análise, tomaram-se como objeto trechos PCNs e, também, textos de alunos do último ano do curso de Letras, que evidenciam o modo como os Parâmetros podem ser interpretados. 1 [email protected] 2 os professores do ensino básico são assim nomeados, como se representassem um conjunto homogêneo, como forma de simplificação textual (e consciente). O convívio só permite (re)conhecer heterogeneidades. 3 sofrível em leitura, conforme dados do PISA e do SAEB, ambos de 2003, e com problemas de produção de textos escritos. 4 sabe-se que há muitas discussões sobre o papel da gramática; terminologias diferentes, inclusive, foram propostas: “gramática do texto”, “gramática como conhecimento reflexivo da língua”, como se vê em Rocha (2000).

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GRAMÁTICA CONTEXTUALIZADA: O QUE OS PCNS REALMENTE DIZEM SOBRE ISSO?

Patrícia AQUINO1 (FAM) RESUMO O objetivo deste texto é questionar as afirmações de que a falta de leitura dos PCNs ou os problemas de formação dos professores de Língua Portuguesa são as causas das dificuldades e dos equívocos de interpretação dos PCNs de Língua Portuguesa, no que se refere à Gramática Contextualizada e ao trabalho com gramática em sala de aula. Dizer isso é uma facilitação, pois implica desconsideração de problemas inerentes à elaboração dos Parâmetros. Esses problemas serão explicitados a partir da análise de algumas interpretações possíveis de trechos que deveriam orientar o ensino de Língua Portuguesa no Brasil. ABSTRACT The aim of this paper is to question the statements of problems in teacher training of Portuguese Language, or PCNs are not read by teachers which are the causes of difficulties and misunderstandings when reading the PCNs of Portuguese Language, referring to the Contextualized Grammar and to the grammar work in the classroom. Stating these is a facilitation, because it is implied not considering the problems related to the preparation of the Parameters. These issues will become explicit from the analysis of some possible interpretations of excerpts that should guide the teaching of the Portuguese Language in Brazil. 1. Introdução

Diante da persistência, dentre os professores2 de Língua Portuguesa (LP) de ensinos Fundamental e Médio, de dúvidas sobre o trabalho com a gramática em sala de aula, é preciso problematizar os motivos que levam à sobrevivência do impasse que vivem muitos desses profissionais em relação à ruptura de uma tradição difícil de superar.

Parece claro, óbvio, que o trabalho com a gramática tradicional, nesses níveis de ensino – sobretudo quando se leva em consideração o nível dos alunos que se tem formado na escola brasileira3 – é equivocado. Alguns autores (Franchi, 1991; Perini, 1985; Possenti, 1999; Rocha , 2002), já explicitaram isso, de forma bastante eloqüente, e não é objetivo deste texto retomar essa discussão. Parte-se do pressuposto de que não há dúvidas, no meio acadêmico, de que o trabalho com a gramática tradicional não se adequa às necessidades do ensino de Língua Portuguesa no Brasil de hoje.

O que se traz à discussão é uma hipótese sobre o que estaria subjacente à persistência de dúvidas – e de equívocos – em relação ao trabalho com a gramática e, conseqüentemente, com o trabalho com a disciplina Língua Portuguesa.

Partindo do pressuposto de que a questão é transparente no circuito acadêmico, pelo menos em relação ao que não dever ser feito4, e de que as dúvidas se apresentam na educação básica, buscou-se, assim, analisar o material mais representativo da mediação dos conhecimentos do saber acadêmico que fundamenta as novas diretrizes do ensino de LP, os Parâmetros Curriculares Nacionais, os conhecidos PCNs, cujo objetivo primeiro é levar à educação básica os parâmetros a partir dos quais a educação deve ser conduzida, nomeadamente, as propostas didáticas e em cuja elaboração foram levados em consideração os resultados de anos de pesquisas realizadas nas universidades nacionais, muitas vezes frutos de um contato direto com as práticas do ensino Fundamental e Médio. Para essa análise, tomaram-se como objeto trechos PCNs e, também, textos de alunos do último ano do curso de Letras, que evidenciam o modo como os Parâmetros podem ser interpretados.

1 [email protected] 2 os professores do ensino básico são assim nomeados, como se representassem um conjunto homogêneo, como forma de simplificação textual (e consciente). O convívio só permite (re)conhecer heterogeneidades. 3 sofrível em leitura, conforme dados do PISA e do SAEB, ambos de 2003, e com problemas de produção de textos escritos. 4 sabe-se que há muitas discussões sobre o papel da gramática; terminologias diferentes, inclusive, foram propostas: “gramática do texto”, “gramática como conhecimento reflexivo da língua”, como se vê em Rocha (2000).

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2. Metodologia

O volume dos Parâmetros Curriculares Nacionais selecionado para a presente análise foi o “Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa”; o que motivou essa seleção foi o contato com professores dos terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental, da Rede Estadual de São Paulo, durante o programa Teia do Saber, em 2003, 2004 e 2005. Esse contato, em que as dúvidas eram constantemente explicitadas, desencadeou a questão que motiva esta análise: “por que os professores não seguiam/seguem os PCNs?”.

Decidido o corpus, fez-se o seguinte recorte: seriam analisados os trechos que fizessem, direta ou indiretamente, referência a questões gramaticais.

Deparou-se, para fazer esse recorte, com uma dificuldade: em relação às referências diretas – em que aparece a palavra “gramática”, não há dúvidas; em relação, porém, ao que seja uma referência indireta... Mesmo quando se lida com a noção de coesão textual, às vezes se dialoga com questões gramaticais diretamente, às vezes, indiretamente e, em alguns casos, pode-se estar fazendo referência a elementos discursivos de outra natureza. Não parece haver consenso, nem no universo acadêmico, em relação à confluência entre questões gramaticais e efeitos de sentido, por exemplo. Uma forma de lidar com questões gramaticais, ainda que não necessariamente, é mencionar o “processo de reflexão sobre a linguagem”,[PCN, p 18]. Essa expressão é suficientemente vaga para que se afirme que está ou não fazendo menção a recursos gramaticais. A partir dessa dificuldade, criou-se a seguinte dúvida, ou suspeita: há consenso sobre essa questão dentro dos PCNs? Para este trabalho, porém, tomou-se a seguinte decisão: as possíveis referências a questões gramaticais serão consideradas como relacionadas a questões gramaticais, com base no contexto em que surgem, nos exemplos que as acompanham.

Deu-se atenção especial à seção intitulada “A reflexão sobre a linguagem”, que contém, como subseção uma “Reflexão gramatical na prática pedagógica”. Em seguida, fez-se um trabalho de verificação da compreensão de algumas dessas referências. Professores da Educação Básica e alunos do último ano de uma graduação em Letras realizaram atividades que haviam sido elaboradas com o objetivo de depreender essa compreensão. 3. Análise de trechos dos PCNs

A seguir, são apresentados alguns trechos dos PCNs, nos quais se observou referência a questões gramaticais. Esses trechos são analisados, um a um, tendo em mente sua função de esclarecer o seu público leitor sobre a noção “gramática contextualizada”. Cabe salientar que essas análises foram feitas pela pesquisadora.

a) “Deve-se ter em mente que tal ampliação não pode ficar reduzida apenas ao trabalho sistemático com a matéria gramatical.” p. 27

Há uma palavra que merece atenção especial no trecho acima: “apenas”. Com esse modalizador, a

leitura mais adequada parece ser: o trabalho sistemático com a matéria gramatical deve ser feito, mas não se deve fazer só isso.

Bom, esse é o entendimento que parte dos professores efetivamente tem do trabalho com a gramática tradicional. Deve-se, também, trabalhar com leitura e produção de textos, além da gramática. Qual terá sido a intenção desse texto, ou desse trecho? Cada trecho teria uma intenção diferente?

b) “Assim, não se justifica tratar o ensino gramatical desarticulado das práticas de linguagem. É o caso, por exemplo, da gramática que, ensinada de forma descontextualizada, tornou-se emblemática de um conteúdo estritamente escolar, do tipo que só serve para ir bem na prova e passar de ano – uma prática pedagógica que vai da metalíngua para a língua por meio de exemplificação, exercícios de reconhecimento e memorização de terminologia. Em função disso, dicute-se se há ou não necessidade de ensinar gramática. Mas essa é uma falsa questão: a questão verdadeira é o que, para que e como ensiná-la.” p. 28

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Para o leitor adepto e conhecedor da “gramática contextualizada”, é claro que a primeira linha do trecho já deixa claro que não se pode trabalhar a gramática nos moldes tradicionais. É preciso reconhecer, porém, que é o conhecimento prévio que garante essa leitura; há, aqui, um círculo vicioso; a depender da forma como o leitor compreende o termo “contextualizado”, a compreensão do trecho será ou não a pretendida. Um professor que antigamente fazia análise sintática a partir de frases isoladas e que tenha passado a fazer análise sintática de frases de um texto, por exemplo, de uma história em quadrinhos, tem todo direito de reconhecer seu trabalho como o adequado, em oposição ao trabalho descontextualizado. E essa interpretação é reforçada pela seqüência do trecho acima: “dicute-se se há ou não necessidade de ensinar gramática. Mas essa é uma falsa questão: a questão verdadeira é o que, para que e como ensiná-la.” – seqüência de frases que tem sido reproduzida, parafraseada constantemente por professores que insistem em trabalhar com gramática tradicional.”

Ressalta-se que não há, na seqüência desse trecho, cujo desenvolvimento se estende por três parágrafos, nenhuma exemplificação do que fazer e do que não fazer. Sequer se explicita que não é adequado usar texto como pretexto para trabalhar gramática. O terceiro parágrafo da seção é o seguinte:

c) “O modo de ensinar, por sua vez, não reproduz a clássica metodologia de definição, classificação e exercitação, mas corresponde a uma prática que parte da reflexão produzida pelos alunos mediante a utilização de uma terminologia simples e se aproxima, progressivamente, pela mediação do professor, do conhecimento gramatical produzido. Isso implica, muitas vezes, chegar a resultados diferentes daqueles obtidos pela gramática tradicional, cuja descrição, em muitos aspectos, não corresponde aos usos atuais da linguagem, o que coloca a necessidade de busca de apoio em outros materiais e fontes.” p. 29

Como se pode verificar, não há exemplificação. A seção termina com esse parágrafo – compreensível

para quem já fez análise de “paradigmas morfológicos” (expressão usada no 3o parágrafo dessa mesma seção). E uma nova seção se inicia: “Implicações da questão da variação lingüística para a prática pedagógica”. Há um “gancho” óbvio entre essas duas subseções que, se explicitado, tornaria mais clara sua compreensão: o caso dos pronomes pessoais do caso reto na língua portuguesa. Sabe-se que a exemplificação é uma das formas de esclarecimento de idéias, tanto que consiste num dos recursos mais utilizados quando se pretende ser didático; dicionários, por exemplo, recorrem muito a exemplos. Por que, então, os PCNs, que pretendem “contribuir com técnicos e professores no processo de revisão e elaboração de propostas didáticas”, não lançaram mão desse recuso com maior freqüência? Por que exemplos do que se diz nas páginas 27 a 29 (da primeira parte do volume só serão dados na página 61 (segunda parte), e –o que é ainda mais sintomático de uma falta de preocupação didática – como notas de rodapé?:

d) “* expansão dos sintagmas para expressar sinteticamente elementos dispersos no texto que predicam um mesmo núcleo ou o modificam20 ; * integração à sentença mediante nominalizações da expressão de eventos, resultados de eventos, qualificações e relações21 ; 20 Exemplos: a) Naquela casa morava um velhinho muito bondoso. Ele deixou Pedrinho esconder lá. ⇔ Um velhinho muito bondoso que morava naquela casa/ O morador daquela casa, um velhinho muito bondoso, deixou...; b) Meu tio comprou um carro velho que parecia não estar nada bom de motor. ⇔ Meu tio comprou um carro velho, aparentemente nada bom de motor. 21 Exemplos: a) O carro correndo daquele jeito, saiu e bateu no poste. Morreram os dois que estavam no banco da frente. ⇔ A alta velocidade fez perder o controle do carro que bateu em um poste, matando os dois passageiros do banco dianteiro. b) As mudas de alface são muito sensíveis à qualidade do terreno. É preciso que elas sejam plantadas em um canteiro bem adubado e removido. ⇔ A sensibilidade das mudas de alface à qualidade do terreno requer que o plantio seja feito em um canteiro bem adubado e removido.” p. 61

Esses exemplos são bastante elucidativos; cumprem o papel de propor atividades a partir do

conhecimento gramatical. Um grave problema, porém, reside no fato de nem todas as sugestões de “Prática de análise lingüística” serem exemplificadas. Uma delas, por exemplo, na página 63, é a seguinte:

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e) “* capacidade de projetar, a partir do elemento lexical (sobretudo verbos), a estrutura complexa associada a seu sentido, bem como os traços de sentido que atribuem aos elementos (sujeito, complementos) que preencham essa estrutura;” p. 63

O contato com o público ao qual os PCNs são destinados é suficiente para garantir que essa sugestão

não é compreensível, pelo menos para parte dos leitores. Um exemplo que, como outros, seria esclarecedor, não foi dado.

Uma outra sugestão, de extrema utilidade para as aulas de Língua Portuguesa e que provavelmente necessite de exemplificação é a seguinte:

f) “* Utilização das regularidades observadas em paradigmas morfológicos como parte das estratégias de solução de problemas de ortografia e de acentuação gráfica.” p. 63

Ainda que seja óbvio para um estudante de Lingüística, ou para um pós-graduando, o que sejam

paradigmas morfológicos, uma exemplificação seria bem-vinda; dispensaria alguns dos trabalhos realizados em programas como Teia do Saber, Ensino em Rede etc.

É estranho que se tenha perdido essa consciência. A palavra escolhida foi “perdido” pois, nesse mesmo volume dos PCNs, na p. 28, há uma nota explicativa para os termos epilingüística e metalingüística:

11 Por atividade epilingüística se entendem processos e operações que o sujeito faz sobre a própria linguagem (em uma complexa relação de exterioridade e interioridade). A atividade epilingüística está fortemente inserida no processo mesmo da aquisição e desenvolvimento da linguagem. Ela se observa muito cedo na aquisição, como primeira manifestação de um trabalho sobre a língua e sobre suas propriedades (fonológicas, morfológicas, lexicais, sintáticas, semânticas) relativamente independente do espelhamento na linguagem do adulto. Ela prossegue indefinidamente na linguagem madura: está, por exemplo, nas transformações conscientes que o falante faz de seus textos e, particularmente, se manifesta no trocadilho, nas anedotas, na busca de efeitos de sentido que se expressam pela ressignificação das expressões e pela reconstrução da linguagem, visíveis em muitos textos literários. 12 Por atividade metalingüística se entendem aquelas que se relacionam à análise e reflexão voltada para a descrição, por meio da categorização e sistematização dos conhecimentos, formulando um quadro nocional intuitivo que pode ser remetido a construções de especialistas.

O desconhecimento dessa terminologia costuma ser tão freqüente quanto o da expressão “paradigmas

morfológicos”. Os exemplos acima indicam não ter havido construção da imagem adequada do público ao qual o

material se destina. Resta saber se teria havido clareza em relação aos objetivos com os quais as seções sobre gramática foram escritas. Como os trechos c) a f) se relacionam ao trecho a)? Qual a intenção do trecho b)? O que os PCNs realmente dizem sobre o trabalho com a gramática? Alguém poderia alegar que não se pode ler um texto por trechos; que só a leitura do texto todo permite a compreensão. Essa afirmação poderia ser rebatida com os seguintes argumentos: a obra criticada se pretende um material de consulta e foi dividida em itens, todos nomeados; duas características de obras que – se sabe – serão lidas por partes.

A necessidade de transposição didática desse material é amplamente reconhecida. Conforme Rojo:

Se isso se apresenta como uma qualidade inovadora dos PCNs, se comparados a outros documentos oficiais já elaborados no território nacional, por outro lado, isso implica em grande esforço de reflexão para a transposição didática (Chevallard, 1985, 1991, apud Bronckart, 1998) destes princípios e referenciais às práticas educativas em sala de aula (2000, p. 49).

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4. Questões para análise da compreensão da noção de “gramática contextualizada”

A seguir são apresentadas análises de propostas de exercícios de sintaxe extraídas de um livro didático, elaboradas por alunos concluintes do curso de Letras. Há trechos dos PCNs utilizados para justificar, de formas diferentes, a adequação ou não de determinadas atividades extraídas de livros didáticos. Isso parece comprovar que, para o público ao qual se destina, os PCNs não surtem efeito, especificamente em relação ao papel da gramática na Língua Portuguesa.

Primeiramente será apresentada e discutida a atividade que os alunos desenvolveram como avaliação.

Considere as propostas de ensino de sintaxe abaixo e avalie-as, uma a uma, com base nos conhecimentos adquiridos neste semestre. (Justifique suas avaliações com a bibliografia pertinente):

Bill Watterson, O melhor de Calvin

2 - Os trechos abaixo, extraídos de redações de alunos do ensino médio, apresentam problemas na construção sintática. Leia-os com atenção.

1. Aquele foi o dia onde eu descobri que estava apaixonado por ele. 2. A mulher na qual Sandoval se referia foi uma das que ele conversou. 3. A mulher cuja a qual ele conversava..

a) Explique que tipo de problemas os enunciados apresentam. b) Reescreva-os de forma a adequá-los à norma culta.

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3 - Observe a tira abaixo:

a) Na última fala de Flô há uma oração subordinada adverbial condicional, mas a oração principal não está expressa. O efeito dessa construção é a possibilidade de leitura de um implícito. Qual é ele? b) Que elementos da tira possibilitam a resposta do item a? As propostas acima foram extraídas do livro: Coleção Base: português: volume único. Abaurre. M. L.- 1. ed. -, São Paulo: Moderna, 1999.

Antes de passarmos para as respostas dos alunos, cabem dois comentários a respeito das questões. O

primeiro consiste no fato de elas estarem presentes num mesmo material didático. É comum que se assuma que parte do papel do “didaticista” – o responsável por traduzir, de maneira simplificada, o conhecimento científico para a educação básica – seja conferido a livros didáticos, já que, no Brasil, não é tradição que pesquisadores, nas universidades, se dediquem a esse trabalho. Tendo sido esse o papel assumido pelo material didático, não se pode deixar de considerar como relevante que atividades tão díspares estejam presentes no mesmo material.

A primeira questão deveria ser avaliada como equivocada, pois usa um texto como pretexto para a “análise” gramatical, para o mero reconhecimento de unidades gramaticais e de sua nomenclatura.

A segunda questão, segundo a leitura que, aqui, se julga apropriada5 dos PCNs, é adequada, pois sugere o trabalho de reescrita a partir de textos efetivos de alunos e, o que é fundamental, de uma forma adequada do ponto de vista sociolingüístico, pois deixa claro que os “problemas” de construção sintática são problemas na medida em que foram produzidos em textos nos quais se pretendia usar a norma culta.

Já a terceira questão é, obviamente, adequada a partir de qualquer leitura que se faça dos PCNs. A grande questão é que é essa a interpretação menos conhecida; o que talvez explique que, por um lado, sejam, até hoje, poucas as propostas desse tipo e, por outro, que até mesmo um material que traz questões desse tipo traga, também, questões em que textos – sobretudo tirinhas – são usados como pretextos para o trabalho com a gramática tradicional.

5 Essa leitura decorre da adesão aos autores Geraldi, Ilari e Possenti que afirmam que a consciência das relações entre recursos lingüísticos e efeitos de sentido é útil para o trabalho do professor, durante as atividades de produção textual com seus alunos.

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5. Análise de respostas de formandos do curso de Letras 1. (Atividade que pede para classificar a oração do quadrinho) a.

Nota-se que essa aluna fez um cruzamento de leituras de trechos diferentes nos PCNs. Realmente, há trechos como o da p. 72 do livro 02 (reproduzido a seguir) que trazem, apenas, alguns exemplos de gêneros, sem tratar do trabalho que se deve fazer com a escrita. É claro que seria impossível repetir, retomar todas as informações a todo momento; fica registrado, porém, um cruzamento equivocado, feito por alguém que entendeu, pelo menos, que não se deve usar textos como pretexto para trabalhar com a gramática.

“Gêneros adequados para o trabalho com a linguagem escrita: • receitas, instruções de uso, listas; • textos impressos em embalagens, rótulos, calendários; • cartas, bilhetes, postais, cartões (de aniversário, de Natal, etc.), convites, diários (pessoais, da classe, de viagem, etc.); • quadrinhos, textos de jornais, revistas e suplementos infantis: títulos, lides, notícias, classificados, etc.; • anúncios, slogans, cartazes, folhetos; • parlendas, canções, poemas, quadrinhas, adivinhas, trava-línguas, piadas; • contos (de fadas, de assombração, etc.), mitos e lendas populares, folhetos de cordel, fábulas; • textos teatrais;”

b.

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Esse (b) é um exemplo de resposta que atingiu a expectativa de resposta. Os trechos selecionados dos

PCNs são adequados à leitura que se procurou desenvolver com os alunos.

2. (Proposta de identificação de problemas de coesão e de reescrita de frases escritas por vestibulandos ) a.

Observa-se que o equívoco de análise dessa aluna teria sido evitado com uma exemplificação do que fazer. Como se critica o trabalho com frases isoladas, isso foi tomado ao pé da letra e parece não haver possibilidade de analisar frases extraídas de uma “situação de produção de texto”. Se os exemplos, como os das notas de rodapé das p. 61 e 62 tivessem sido freqüentes, esse equívoco poderia indicar outras falhas; não problemas de elaboração dos PCNs.

2448

b.

Pode-se perceber que o mesmo equívoco das respostas anteriores está presente no exemplo seguinte.

c.

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As respostas a, b e c são exemplares. Nessa questão, grande parte dos alunos identificou os trechos extraídos de textos de alunos como frases isoladas para trabalhar gramática. Como justificar tal equívoco de análise? É muito interessante observar que o único trecho em que os PCNs demonstram análise lingüística e, portanto, no qual aparecem fragmentos de textos analisados, são as notas de rodapé já mencionadas. Qualquer leitor que se depare com essas notas, como já se disse, terá maior clareza sobre o uso que se pode/deve fazer a partir de textos de alunos; e que os próprios PCNs sugerem, por exemplo, a reescrita de trechos. Quantos alunos encontraram tais exemplos, antes da intervenção da professora? Nenhum. E nota-se que esses alunos leram, pelo menos partes dos tais Parâmetros... Será que a leitura que os professores, sem que alguém lhes mostre especificamente tais páginas, fazem desse material é uma leitura mais “completa”, mais “adequada”, do que a feita por esses alunos? Eis a questão, ou, reescrevendo: tudo tem indicado que não. 3. (Atividade de leitura de um implícito) a.

Esse (a) é um exemplo de resposta que atingiu as expectativas da professora. b.

A resposta b, ainda que de forma vaga, representa uma análise adequada da questão. Julga-se interessante observar que a vagueza de alguns trechos dos PCNs acaba sendo reproduzida por quem neles busca fundamentação.

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c.

Nota-se, nessa resposta, o seguinte equívoco: a partir do que se diz que deve ser feito, assume-se que o que não deve mais ser o objetivo das aulas de Língua Portuguesa também não possa mais ser feito. A nomenclatura costuma ser o maior alvo dessa discussão. Sim, o objetivo não é a nomenclatura. Mas usá-la não é um crime, um defeito. O importante da questão proposta é que ela esteja, efetivamente, contribuindo para o reconhecimento e a leitura de um implícito.

Mais uma vez, exemplos poderiam evitar esse outro equívoco tão freqüente. 6. Considerações Finais

Com base nas análises feitas, encerra-se este trabalho com a mesma dúvida que o abriu: o que os PCNs realmente dizem sobre gramática contextualizada? Decodificamos algumas coisas; arriscamos – como diria Geraldi (2005, p. 99) alguns “mergulhos” de interpretação; mas essas entrelinhas ainda merecem análise. Talvez não haja um consenso interno aos Parâmetros sobre o papel da gramática. Aquele “mundo perfeito”, no qual todos sabem o que se deve e o que não se deve fazer nas aulas de língua portuguesa talvez seja uma ilusão. As dúvidas e equívocos dos professores de ensino básico talvez sejam um reflexo de uma realidade. Uma coisa é certa: não houve, realmente, consciência sobre para quem se disse o que se disse nos Parâmetros Curriculares Nacionais. 7. Referências bibliográficas Franchi, C. (1998). Gramática e criatividade. São Paulo, SEE/CENP. Geraldi, J. W. (org) (2005). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, (3a. edição). Ilari, R. (1997) A lingüística e o ensino de língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes. Possenti, S. (1996). Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, ALB/Mercado de Letras. Rocha, L. C. A. (2002). Gramática: nunca mais – o ensino da língua padrão sem o estudo da gramática. Belo Horizonte: Editora UFMG.

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Rojo, R. (2000). “Os PCNs, as práticas de linguagem (dentro e fora da sala de aula) e a formação de professores” . In: Rojo, R. (org.) A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. Campinas: Mercado de Letras, pp 27-38. SEF (1998b). Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portugues. Brasília, MEC/SEF.