passo-a-passo da pesquisa -...

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7 R. Periodontia - Março 2011 - Volume 21 - Número 01 INTRODUÇÃO Apesar de se reconhecer a importância da abordagem qualitativa (Minayo, 1993), a pesquisa científica na área da saúde é hegemonicamente quantitativa. Desta forma, quando desenvolvemos estudos laboratoriais e clínico-epidemiológicos, um dos tripés da pesquisa é a estatística que aplicada à área das ciências da saúde e biológicas é denominada de bioestatística. A bioestatística será útil, pelo menos em dois momentos da pesquisa científica: no delineamento do estudo e na análise dos dados (Walter, 1995). Não será objetivo do presente artigo, discutir aprofundadamente a primeira etapa. Livros clássicos de epidemiologia e pesquisa odontológica (Gordis, 2008; Luiz et al., 2005) abordam esta etapa de forma bastante adequada. Abordaremos questões relativas ao delineamento amostral, quando esse repercutir na etapa seguinte. Os resultados de (quase) todo estudo quantitativo deveria envolver a descrição de variáveis. Algumas vezes, o estudo é PASSO-A-PASSO DA PESQUISA A BIOESTATÍSTICA É ÚTIL EM ESTUDOS DESCRITIVOS? BIOSTATISTICS IS USEFUL IN DESCRIPTIVE STUDIES? Recebimento: 19/01/11 - Correção: 01/02/11 - Aceite: 14/02/11 Mauro Henrique Nogueira Guimarães de Abreu eminentemente descritivo. Uma dúvida que aparece entre alguns pesquisadores é não considerar a análise descritiva como análise estatística. Além disso, alguns artigos publicados insistem na inclusão de testes estatísticos, quando os objetivos do estudo não demandam tal técnica. Considerando assim a importância da descrição dos resultados em qualquer pesquisa, o presente artigo abordará a utilidade da bioestatístca em estudos descritivos. UNITERMOS: bioestatística, pesquisa, periodontia Análise estatística descritiva dos resultados Bom referencial teórico, objetivo relevante, desenho do estudo elegante e uma honesta coleta de dados são imprescindíveis e não há análise estatística, a posteriori, que possa superar problemas com os três tópicos. Considerando que o pesquisador foi cuidadoso nos seus objetivos, no delineamento do estudo Revista Perio Março 2011- 4ª REV - 21-03-11.indd 7 21/03/2011 11:04:58

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R. Periodontia - Março 2011 - Volume 21 - Número 01

INTRODUÇÃO

Apesar de se reconhecer a importância da abordagem qualitativa (Minayo, 1993), a pesquisa científica na área da saúde é hegemonicamente

quantitativa. Desta forma, quando desenvolvemos estudos laboratoriais e clínico-epidemiológicos, um dos tripés da pesquisa é a estatística que aplicada à área das ciências da saúde e biológicas é denominada de bioestatística.

A bioestatística será útil, pelo menos em dois momentos da pesquisa científica: no delineamento do estudo e na análise dos dados (Walter, 1995). Não será objetivo do presente artigo, discutir aprofundadamente a primeira etapa. Livros clássicos de epidemiologia e pesquisa odontológica (Gordis, 2008; Luiz et al., 2005) abordam esta etapa de forma bastante adequada. Abordaremos questões relativas ao delineamento amostral, quando esse repercutir na etapa seguinte.

Os resultados de (quase) todo estudo quantitativo deveria envolver a descrição de variáveis. Algumas vezes, o estudo é

PASSO-A-PASSO DA PESqUISA

A BIOESTATíSTIcA É ÚTIL EM ESTUDOS DEScRITIVOS?BIOSTATISTIcS IS USEFUL IN DEScRIPTIVE STUDIES?

Recebimento: 19/01/11 - Correção: 01/02/11 - Aceite: 14/02/11

Mauro Henrique Nogueira Guimarães de Abreu

eminentemente descritivo. Uma dúvida que aparece entre alguns pesquisadores é não considerar a análise descritiva como análise estatística. Além disso, alguns artigos publicados insistem na inclusão de testes estatísticos, quando os objetivos do estudo não demandam tal técnica.

Considerando assim a importância da descrição dos resultados em qualquer pesquisa, o presente artigo abordará a utilidade da bioestatístca em estudos descritivos.

UNITERMOS: bioestatística, pesquisa, periodontia

Análise estatística descritiva dos resultadosBom referencial teórico, objetivo relevante,

desenho do estudo elegante e uma honesta coleta de dados são imprescindíveis e não há análise estatística, a posteriori, que possa superar problemas com os três tópicos.

Considerando que o pesquisador foi cuidadoso nos seus objetivos, no delineamento do estudo

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e na coleta de dados, chega o momento da análise dos mesmos. Basicamente, podemos dividir a análise estatística em dois tipos: a análise estatística descritiva e a inferencial. O pesquisador deve utilizar uma e/ou outra dependendo do objetivo do estudo que foi realizado. Se a pergunta do pesquisador envolve a descrição de um fenômeno qualquer, deve-se realizar análise estatística descritiva. Caso a pergunta da pesquisa envolva a associação entre duas ou mais variáveis, deve-se realizar, também, a análise estatística inferencial. Serão discutidas apenas algumas técnicas úteis para análise descritiva

A análise estatística descritiva é fundamental para o

INdIcAÇãO de ALguMAs ANáLIses descRItIVAs

Variável Exemplo Análise(s) indicada(s) Figuras indicadas

Categórica Presença de periodontite

Cálculo de proporção

Gráfico de barrasGráfico de colunas

Gráfico de setor (pizza)Tabelas

QuantitativaProfundidade de sondagem

Medidas de tendência central Medidas de variabilidade

Testes de avaliação de normalidade (KS e SW)

HistogramaBox-Plot

Gráfico Q-Q

Quadro 1

entendimento do que se pesquisou. Ela envolve a descrição de freqüências, para as variáveis quantitativas e, especialmente, para as categóricas. Para as variáveis quantitativas, cálculos de medidas de tendência central e de variabilidade também são utilizados.

Quando se estuda a frequência de pacientes com periodontite por algum critério internacional qualquer, há apenas duas possibilidades de respostas: ou o indivíduo apresenta a doença ou não. Para este último exemplo, temos uma variável categórica dicotômica. Em estudos descritivos, nossa única opção é descrever a freqüência, geralmente em termos percentuais, dos indivíduos com e sem periodontite.

Apresentações gráficas e tabelas podem ser úteis para descrever frequências.

Quando se deseja descrever a profundidade de sondagem periodontal em um sítio periodontal de um dente específico, podem-se calcular as medidas de tendência central (média, mediana, moda), bem como as medidas de variabilidade (desvio-padrão, coeficientes de variação) e quartis, percentis, dentre outros. Além dessas medidas é muito útil que se saiba se a variável estudada apresenta ou não distribuição normal, também chamada de gausssiana. Análises gráficas e testes estatísticos (Testes de Kolmogorov-Smirnov - KS, Shapiro-Wilk - SW) são utilizados para essa avaliação (Soares & Siqueira, 2002; Kim & Dailey, 2008). Vamos exemplificar um pouco, para clarear esses conceitos. É bastante comum lermos em artigos científicos que a profundidade de sondagem média foi igual a 4,0 (±0,4) mm. A interpretação destes resultados é importante para o entendimento do que se estudou. Considerando que a distribuição dessa variável é normal, aproximadamente 68% dos indivíduos apresentam profundidade de sondagem entre 3,6 e 4,4 mm. Quando o

dobro do valor do desvio-padrão é adicionado e subtraído da média, ou seja, de 3,2 a 4,8 mm, temos, aproximadamente, 95% dos pacientes do estudo.

Pode-se verificar, ainda, se a variável quantitativa apresenta distribuição de Poisson ou Binomial. A utilidade do desvio-padrão e da média é questionável, quando a distribuição da variável não é gaussiana.

Quando a distribuição de uma variável quantitativa não é normal, é interessante apresentar os valores mínimo, máximo e os quartis. Quando se afirma que para a variável perda de inserção periodontal, o primeiro quartil é igual a 2,0 mm, isso significa que 25% dos pacientes apresentam até 2,0 mm de perda de inserção periodontal. Se a mediana, sinônimo de Segundo quartil, for igual a 3,5 mm, podemos afirmar que metade dos indivíduos pesquisados perdeu até 3,5 mm de inserção periodontal. Esse mesmo raciocínio vale para o terceiro quartil e para os percentis, tercis etc.

Algumas apresentações gráficas são úteis para a apresentação de uma variável quantitativa. Histograma e Q-Q plot também permitem avaliar se há ou não distribuição normal

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dos dados. O gráfico Box-Plot é útil para a apresentação das medidas de tendência central e variabilidade em uma única figura (Soares & Siqueira, 2002; Kim & Dailey, 2008).

Quando se descreve uma amostra calculada e selecionada de forma aleatória, deve-se apresentar ainda o Intervalo de Confiança, geralmente de 95% (IC95%), para a estimativa calculada (Walter, 1995; Soares & Siqueira, 2002; Kim & Dailey, 2008). Por exemplo, se a prevalência de gengivite associada à placa em uma amostra aleatória simples de 1000 crianças de uma cidade foi igual a 22%, o IC 95% variará de 19,5% a 24,7%. Pode-se concluir que se fossem realizadas, por exemplo, 100 outras amostras aleatórias simples neste município em 95 destas amostras, a prevalência de gengivite variaria de 19,5% a 24,7%. Especificamente na amostra que foi sorteada, observou-se a prevalência de 22%. Intuitivamente, pode-se afirmar que quando se pesquisa o universo de indivíduos (estudos censitários), não se deve calcular tal intervalo.

Em estudos com amostras se lec ionadas por conglomerados, estratificação ou pela combinação destas técnicas, as estimativas das variáveis categóricas ou quantitativas devem ser calculadas considerando o delineamento amostral. Tanto as estimativas descritivas quanto as inferenciais devem considerar, neste caso, que o plano amostral foi complexo (Queiroz et al., 2009).

Há vários anos, quem desenvolve pesquisas na área da saúde, utiliza, inevitavelmente, algum software para a análise dos seus dados. Há boas e amigáveis opções no mercado. Quando se deseja um programa de uso livre, o Epi-Info (Dean, 1999) é, ainda, uma opção confiável e que abarca quase a totalidade do que se discutiu no presente artigo. Softwares licenciados podem até ser amigáveis, mas muitos têm custo proibitivo.

A utilização e interpretação adequadas dos estudos descritivos, além de responder às perguntas colocadas pelo pesquisador, geram novas perguntas descritivas ou sobre determinantes dos fenômenos que foram pesquisados. Assim, interpretando bem seus dados descritivos, além de conhecer bem o que foi pesquisado, sua pesquisa poderá ser útil para a formulação de novas hipóteses, contribuindo para o avanço do conhecimento científico.

Finalmente, respondendo ao título do trabalho, a bioestatística é, não apenas útil, mas fundamental em estudos descritivos na área da saúde. O (ab)uso de técnicas estatísticas (bivariadas, multivariadas, multiníveis, etc, etc...) tão em moda nos dias de hoje, não pode passar a sensação de que a descrição dos resultados é algo de menor valor ou ultrapassado.

UNITERMS: biostatistics, research, periodontics

REFERÊNcIAS BIBLIOGRÁFIcAS

1- Minayo MCS. Desafio do conhecimento. A pesquisa qualitativa em

saúde. 2a ed. Rio de Janeiro: Hucitec; 1993. p.269.

2- Walter SD. Methods of Reporting Statistical Results from Medical

Research Studies. Am J Epidemiol 1995; 141:896-906.

3- Gordis L. Epidemiologia. 4a. Ed. Rio de Janeiro: Revinter; 2010. p.392.

4- Luiz RR, Costa AJL, Nadanovsky P. Epidemiologia e bioestatística na

pesquisa odontológica. São Paulo: Atheneu; 2005. p.473.

5- Soares JF, Siqueira AL. Introdução à estatística médica. 2a Ed. Belo

Horizonte: Coopmed; 2002. p.300.

6- Kim JS, Dailey RJ. Biostatistics for oral healthcare. Oxford: Blackwell

Munksgaard; 2008. p.332

7- Queiroz RCS, Portela MC, Vasconcellos MTL. Pesquisa sobre as

Condições de Saúde Bucal da População Brasileira (SB Brasil 2003): seus

dados não produzem estimativas populacionais, mas há possibilidade

de correção. Cad Saude Publica 2009; 25:47-58.

8- Dean AG. Epi Info and Epi Map: current status and plans for Epi info

2000. J Public Health Manag Pract 1999; 5:54-7.

Endereço para correspondência:

Mauro Henrique Nogueira Guimarães de Abreu

Departamento de Odontologia Social e Preventiva,

Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Minas Gerais

Av. Antônio Carlos, 6627

CEP: 312.70901 - Belo Horizonte - MG - Brasil

E-mail: [email protected]

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