passeio ao farol

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    Virginia WoolfPasseio Ao Farol

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    Ttulo original: TO THE LIGHTHOUSE

    Copyright 1927 by Angelica Garnett, Virgnia Bell and CressidaBell.

    Copyright desta edio, Editora Rio Grfica Ltda. Rio de Janeiro,1987.

    Publicado no Brasil sob licena de Editora Nova Fronteira S.A.

    Traduo: Luiza Lobo.

    Ilustrao de capa: Enio Squeff.

    Composio: Editora Rio Grfica Ltda. e AM Produes Grficas Ltda.

    Digitalizao e converso para epub: Nalua

    Distribuidor exclusivo para todo o Brasil: Fernando Chinaglia Distribuidora S.A. Rua Teodoro da Silva,907,CEP20563,Rio deJaneiro.

    Editora Rio Grfica Ltda. Rua Itapiru,1209,CEP20251,Rio de Janeiro. Rua do Curtume,665,CEP05065,So Paulo.

    Impresso e acabamento nas oficinas grficas da Grfica Editora Hamburg Ltda.

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    Sumrio

    A janela124567891011

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    O tempo passa

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    10O Farol123456

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    1213VIRGINIA WOOLF VIDA E OBRA

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    A janela

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    claro que amanh far um dia bonito disse a Sra.Ramsay. Mas vocstero que madrugar acrescentou.

    Essas palavras trouxeram uma extraordinria alegria a seu filho, como se aexcurso j estivesse definitivamente marcada. Aps a escurido de uma noite e a

    travessia de um dia, o desejo por tantos anos aspirado era agora tangvel.James Ramsay, sentado no cho, enquanto a me falava, recortava gravuras do

    catlogo das Lojas do Exrcito e da Marinha. Mesmo aos seis anos de idade, pertenciaao nmero daqueles que no conseguem separar um sentimento do outro mas, aocontrrio, deixam que as expectativas futuras com suas alegrias e tristezas toldem o que no momento est ao alcance da mo. Para tais pessoas, ainda na maistenra idade, qualquer oscilao de sensaes tem o poder de cristalizar e fixar omomento em que repousam, misturadas, alegria e tristeza: assim que James Ramsay

    emprestava fotografia de uma geladeira uma felicidade beatfica. Cercava-a dealegria. O carrinho de mo, o cortador de grama, o som dos lamos, folhasbranqueando antes da chuva, gralhas grasnando, o raspar de vassouras, vestidosroando tudo isso era to colorido e distinto em sua mente que ele j tinha secdigo particular, sua linguagem secreta, embora fosse a imagem da mais pura e

    inflexvel severidade: testa alta, arrogantes olhos azuis, impecavelmente cndido,recriminativo ao deparar com alguma fraqueza humana. Observando-o assim a guiar a

    tesoura com preciso em torno da geladeira, sua me imaginou-onum tribunal couma rtila toga de arminho, ou talvez dirigindo uma empresa durante uma crisefinanceira.

    Mas o dia no ficar bomdisse o pai, parando em frente janela da salade visitas.

    Se houvesse um machado, um atiador, ou qualquer outra arma mo que abrisse

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    uma fenda no peito do pai e por onde a vida se escoasse, James a teria empunhadonaquele instante. Tais eram os extremos de emoo que o Sr. Ram-say despertava nontimo dos filhos, apenas com sua presena. Ali estava: de p, o perfil agudo como uma

    faca e estreito como sua lmina, sorrindo sarcasticamenteno apenas pelo prazerde desiludir o filho e lanar sua mulher (que era mil vezes melhor do que ele, penso

    James) no ridculo, mas sobretudo por causa da certeza ntima que tinha daexatidodeseus julgamentos. O que ele dizia era verdade. Era incapaz de mentir: nunca interferiaem alguma coisa ou se pronunciava de modo a dar um pouco de prazer a qualquermortal, e muito menos a seus filhos, que, desde a infncia, ficavam sabendo que a vida rdua, os fatos inflexveis, e que a passagem para essa terra fabulosa onde nossasesperanas mais brilhantes se extinguem e nossas frgeis crticas malogram na

    escurido exige, acima de tudo concluiria o Sr. Ramsay, empertigando-se efranzindo os olhos azuis na direo do horizonte , coragem, lealdade eperseverana.

    Mas talvez fique bom, pelo menos espero disse a Sra. Ramsayimpacientemente, ao dar um ponto na meia castanha que tricotava. Se a terminassenessa mesma noite, e afinal fossem mesmo ao Farol, seria dada ao filho do faroleiro,que estava ameaado de tuberculose, alm de uma pilha de revistas velhas e um poucode fumo. Tudo que encontrassem atirado pelo cho, desarrumando a sala, e querealmente ningum quisesse para si, seria dado quela pobre gente que devia morrer detdio, sentada o dia inteiro, sem nada para fazer, a no ser limpar a lmpada, acender olume e revolver um pequeno jardim. Faria qualquer coisa para alegr-los, pois comopoderia algum gostar de ficar trancado um ms inteiro, num rochedo perdido no meio

    do mare ainda mais, se o tempo estivesse ruim?,perguntou-seela. No recebercartas ou jornais, no ver ningum; sendo casado, no ver a mulher, no saber comoesto os filhos: se adoeceram, se caram e quebraram a perna ou o brao. Ver sempreas mesmas ondas quebrando tristemente semana aps semana, interrompidas em seritmo montono apenas pela tempestade que se aproxima, cobrindo as janelas deespuma, atirando os pssaros de encontro ao Farol, estremecendo tudo, impedindo aspessoas de sarem, com medo de serem varridas para o mar. Como se poderia gostar

    disso?, perguntou,dirigindo-seprincipalmente s filhas. Acrescentou, ento, num tombastante diferente, que as pessoas precisavamlevar-lhestodo o conforto possvel.

    justamente o "oeste"disse Tansley. o ateu, que compartilhava do passeionoturnodo Sr. Ramsay pelo terrao, mantendo os dedos ossudos afastados para que o

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    vento soprasse por entre eles. Isso significava que o vento soprava da pior direopossvel para se atracar no Farol. Era detestvel de sua parte trazer isso baila edesapontar James ainda mais, admitiu a Sra. Ramsay. Realmente ele dizia coisas

    desagradveis, mas ela no permitiria que rissem dele. "O ateu", chamavam-no, "oateuzinho." Rose zombava dele; Prue, Andrew, Jasper, Roger tambm. At o velho e

    desdentado Badger espicaara-o quando Nancy dissera (segundo suas prpriaspalavras) que ele era o centsimo dcimo jovem a persegui-las at as Hbridas,quando elas teriam preferido ficar sozinhas.

    Isso no faz sentidodisse a Sra. Ramsay com severidade. No admitia queseus filhos, exagerados como ela mesma (que convidava pessoas demais e acabava porter de hospedar algumas na cidade), fossem indelicados para com seus convidados,particularmente em relao aos jovens que vinham passar as frias e que eram pobres

    como ratos de igrejaembora "excepcionalmente capazes", como dizia seu maridocom ungida admirao. Sem dvida alguma tinha sob sua proteo a totalidade do sexoque no era o seu, por razes que no conseguia explicar: pelo cavalheirismo doshomens, seu valor, pelo fato de negociarem tratados, governarem a ndia, controlaremas finanas ou, mais possivelmente, por certa atitude em relao a ela que nenhumamulher poderia se eximir de achar agradvel algo de leal, inocente, respeitvel,que, em sua idade, poderia receber de um jovem sem perder a dignidade, enquanto asovens (rogava aos cus no se desse o mesmo com suas filhas) no viam o verdadeiro

    e recndito valor disso.

    Ela se voltou paraNancy,dizendo com severidade: ele no as perseguira. Foraconvidado.

    Era preciso achar um meio de escapar a tudo aquilo. Devia haver uma forma maissimples, menos complicada, suspirou ela. Quando se olhou no espelho, viu os cabelosgrisalhos, a face abatida, aos cinqenta anos, e pensou: poderia ter conduzido melhoras coisas seu marido, o dinheiro, os livros dele. Mas nunca se, arrependeria de suasdecises, nunca fugiria das dificuldades ou se eximiria de suas obrigaes. Irradiava

    dignidade nesse momento, e s com um rpido alar de olhos do prato diante de si,aps o silncio que se seguiu s suas palavras sobre CharlesTansley, que as filhas

    Prue,Nancye Rose ousaram deleitar-se com a idia do que imaginavam ser umavida diferente da que tinham: talvez mais emocionante, possivelmente em Paris, sem terde se precaver contra este ou aquele homem. Havia no pensamento de todas elas uma

    indizvelcuriosidade em relao a coisas to diversas comocavalheirismo,o Banco

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    da Inglaterra e o Imprio das ndias, dedos repletos de anis e rendas. Havia nisso,para todas elas, um pouco da essncia da beleza, que enchia seus jovens coraes de

    anseios pelamasculinidade,e as fazia, enquanto se sentavam mesa sob os olhos dame, respeitar a extrema severidade e cortesia com que as advertira sobre odesprezvel ateu que as tinha perseguido na Ilha de Skye, ou falando mais

    precisamente fora convidado para ficar com elas. Tal advertncia fora feita com amesma dignidade com que uma rainha tiraria da lama o p imundo de um mendigo paralav-lo.

    Ningum atracar no Farol amanh disse Charles Tansley ao Sr. Ramsay,batendo as mos, enquanto olhava pela janela. Sem dvida, ele j havia dito o bastante.Ela desejava que ambos deixassem James e a ela em paz, e continuassem seu passeio.No pde evitar olh-lo: era um espcime to miservel, diziam as crianas, cheio de

    reentrncias e salincias. No sabia jogar etiquete, era hesitante, confundia-se. Eragrosseiro e sarcstico, diziaAndrew.Sabiam do que mais gostava: andar de um ladopara outro com o Sr. Ramsay, comentando quem havia ganho isto ou aquilo, quem"recitava s maravilhas" versos latinos, quem era "brilhante mas fundamentalmente

    doente, na minha opinio", quem era sem dvida "o sujeito mais capaz em Balliol",mas enterrara sua inteligncia em Bristol ou Bedford, estando agora, no entanto,prestes a alcanar fama, quando seusprolegmenospara um ramo da matemtica ofilosofia fossem publicados. A propsito, as provas das primeiras pginas j estavam

    com ele, ser que o Sr. Ramsay gostaria de v-las? Era sobre isso que falavam.Algumas vezes ela no podia deixar de rir. H dias falara algo sobre ondas "altas

    como montanhas". Sim, respondera Charles Tansley, estavam um pouco agitadas.

    "Voc no est completamenteencharcado?",perguntara-lhe ela. "S um pouco mido,mas no muito", respondeu o Sr. Tansley apertando a camisa, tocando as meias.

    Mas no era bem isso que importunava as crianas, nem seu rosto ou suasmaneiras: era ele mesmo, seu modo de ser interior. Quando falavam de alguma coisa

    interessante sobre pessoas, msica, histria ou quando comentavam que a manhestava bonita e seria bom ficarem sentados ao ar livre, Charles Tansley no se dava

    por contente enquanto no mudasse completamente o rumo da conversa e osexasperasse com sua mania de esmiuar tudo. Estava sempre falando de galerias dearte e perguntando se gostavam de sua gravata. "S Deus sabe como sua gravata detestvel", dizia Rose.

    Desaparecendo da mesa logo aps a refeio, furtivos como gazelas, os oito

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    filhos da Sra. Ramsay procuravam seus quartos o nico lugar seguro na casa em que

    poderiam conversar sobre qualquer coisa: a gravata de Tansley, a Carta da Reforma,aves marinhas, borboletas ou pessoas. Enquanto isso, numa dessas mansardas separadas umas das outras por uma simples tbua que permitia ouvir cada passo ou ossoluos da moa sua que chorava pelo pai que morria de cncer num vale dos

    Grisons , o sol se despejava iluminando raquetes, flanelas, chapus de palha,tinteiros, tubos de tinta, escaravelhos e crnios de pequenos pssaros, fazendodesprender-se de longas tirasencrespadasde algas presas parede um odor de sal eervas: o mesmo que se desprendia das toalhas de banho carregadas de areia.

    Brigas, separaes, divergncias de opinio e preconceitos compunham a prpria

    tessitura do ser oh, por que tinham de comear to cedo, lastimava-se a Sra.Ramsay.Eram to crticos, seus filhos. Diziam tantas tolices. Veio da sala de jantar,segurando James pela mo, pois ele no iria com os outros. Parecia-lhe to sem nexoinventar divergncias, quando as pessoas j as tinham em demasia. "As divergnciasreais so mais que suficientes", pensou, de p junto janela da sala de visitas. Nessemomento pensava nos ricos e nos pobres, nos nobres e nos plebeus: os nobres, ela os

    respeitava com certa relutncia, pois possua nas veias o sangue daquelanobilssimaealgo mtica casa italiana, cujas descendentes to trfega e encantadoramente

    sussurraram e saracotearam pelos sales ingleses do sculo XIX. Delas herdara ainteligncia, a maneira de ser e o gnio: no dos

    vadios

    ingleses ou dos frios

    escoceses. Preocupava-se particularmente com o problema dos ricos e dos pobres: ascoisas que vira pessoalmente ali e em Londres, quando visitara vivas e esposasdedicadas, munida de uma bolsa, um caderno de notas e um lpis, apontando salrios edespesas, emprego e desemprego, em colunas cuidadosamente dispostas para esse fim,na esperana de assim deixar de ser uma mulher voltada apenas para si mesma, cujacaridade era em parte um consolo para sua prpria indignao, em parte um alvio parasua curiosidade pretendendo tornar-se uma pesquisadora que explicasse o fenmeno

    social, coisa que, para seu esprito pouco cultivado, era objeto devvidaadmirao.

    Essas questes pareciam-lhe insolveis, enquanto permanecia de p ali,segurando James pela mo. O jovem do qual todos riam tinha-a seguido at a isala devisitas. Estava perto da mesa, mexendo desajeitadamente em alguma coisa. Mesmo seo olhar, ela percebia o quanto se sentia deslocado. Todos tinham ido embora: as

    crianas, MintaDoylee Paul Rayly, Augustus Carmichael,o Sr. Ramsay todos.Ela voltou-se com um suspiro e disse:

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    Ser que o aborreceria acompanhar-me, Sr.Tansley?Tinha que dar um recadoenfadonho na cidade e uma ou duas cartas para escrever. Demoraria uns dez minutos.Iria pr um chapu. Passado algum tempo, ela reapareceu com uma cesta e umasombrinha, como se estivesse preparada para uma excurso que, no entanto,interrompeu no preciso momento em que cruzavam o campo de tnis, para dirigir-se ao

    Sr. Carmichael que se aquecia ao sol com seus olhos felinosentreabertos,olhosque pareciam refletir o movimento dos ramos e o passar das nuvens, sem, contudo, darqualquer sinal da existncia de pensamentos ou emoes. Perguntou-lhe se queriaalguma coisa.

    Estavam fazendo uma grande expedio disse ela, rindo. Iam cidade. Selos, papel de carta, fumo?, sugeriu, parando a seu lado. No, ele no queria nada.

    Suas mos entrelaavam-se sobre a vasta barriga. Os olhos pestanejaram como se

    quisesse agradeceramavelmenteessas gentilezas (ela estava sedutora, apesar de upouco nervosa). Mas no pde, submerso numasonolnciacinzento-esverdeada que osenvolvia a todos, sem necessidade de palavras, numa vasta e bondosa letargiacarregada de benevolncia: toda a casa, o mundo e as pessoas que o habitavam. Elepusera umas gotas de alguma coisa em seu copo no almoo pensavam as crianas,devido s vivas listras amarelo-canrio nas barbas e bigodes, que normalmente seriabranco-leito-sos. No, no queria nada murmurou finalmente.

    Poderia ter sido um grande filsofo disse a Sra. Ramsay, enquanto desciam a

    estrada em direo vila de pescadores , mas fizera um mau casamento. Segurandosua sombrinha com muito aprumo e andando com um ar de indescritvel expectativacomo se fosse encontrar algum na primeira esquinacontou a histria: uma paixoem Oxford por uma moa, um casamento prematuro, a pobreza, uma viagem ndia,

    algumas tradues de poemas "belssimas em minha opinio", a vontade deensinar persa ou hindustani s crianas (mas qual a utilidade disso?). E agora se

    deixava ficar deitado na gramacomo tinham visto.

    Charles Tansleysentiu-selisonjeado. Maltratado como sempre fora,agradou-lheque a Sra. Ramsay lhe contasse isso. As insinuaes que ela fazia sobre a grandeza da

    inteligncia masculinamesmo na sua decadncia,sobre a submisso de todas asesposas aos trabalhos de seus maridos (no que ela culpasse aquela moa, pois o

    casamento no fora de todo mau),fizeram-no sentir-sebem como nunca. Gostaria, setomasse um txi, por exemplo, de pagar a corrida. Quanto sua sacola, no poderia

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    carreg-la? No, no respondeu,sempre a carregava ela mesma. E foi isso oque ela fez. Sim, isso e muitas outras coisasparticularmente algo que o exaltava eperturbava por razes que no saberia dizer. Gostaria que o visse de bata e capuz,

    andando numa procisso. Uma colegiatura,um professorado sentia-se capaz dequalquer coisa e imaginava-se...mas o que estava ela olhando? Um homem colandoum cartaz. A enorme folha de papel pendente alisava-se, e cada golpe da brocharevelava pernas, arcos, cavalos, brilhantes tonalidades de verde e vermelho lindamente

    suaves at que metade do muro ficou coberta com o anncio de um circo: umacentena de homens a cavalo, vinte focas amestradas, tigres. Esticando o pescoo, pois

    era mope, ela leu:. . ."visitar esta cidade." Era um trabalho terrivelmente perigosoum homem com um s brao subir ao topo de uma escada assimexclamou. O braoesquerdo daquele ali fora cortado por uma ceifadeira dois anos atrs.

    Vamos!gritou ela, continuando a andar, como se todos esses cavalos ecavaleiros a tivessem enchido de euforia infantil,fazendo-aesquecer sua comiseraode h pouco.

    Vamosrepetiu ele, estalando a lngua, mas com uma tal circunspeco quea fez estremecer.Vamos ao circo. No, ele no conseguia diz-lo normalmente.

    Nem senti-lo direito. Mas por que no? perguntou-sea Sra. Ramsay. O que haviade errado com o rapaz? Gostava dele sinceramente naquele momento. No tinhaambos ido ao circo, quando eram crianas? perguntou-lhe.Nunca respondeu-lhe,como se ela tivesse feitoexatamentea pergunta que ele queria responder: ansiavah dias por dizer que no iam ao circo. Sua famlia era grande, com nove irmos e

    irms, e seu pai era um trabalhador:Meu pai farmacutico, Sra. Ramsay. Temuma loja.Eles,emantinha desde os treze anos. No raro passava os invernos se

    umcasaco.Na universidade nunca pde "retribuir gentilezas" (esse era seu jargohabitual). Tinha que fazer seus pertences durarem duas vezes mais que os outros;fumava o tabaco mais barato desse fumo ruim que os velhos de beira de caisfumam. Trabalhava muito: sete horas por dia.. . continuava falando, e o assuntoagora era sobre a influncia de alguma coisa sobre algum. Prosseguiam em se

    caminho, e a Sra. Ramsay no captava bemosentido do que ele dizia, apenas uma

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    palavra aqui e ali: tese... bolsa de estudos. . . licenciatura. .. leitorado.. . Noconseguia acompanhar o horrvel jargoacadmicoque jorrava com tanta facilidade

    mas via agora por que a ida ao circo o perturbara tanto, coitadinho, e por que nomesmo instante se sara com toda aquela histria sobreopai, a me, os irmos eirms. Cuidaria que no rissem mais dele. Contaria isso a Prue. Supunha que elegostaria de comentar que fora ver Ibsen com os Ramsays. Ele era terrivelmente pedante

    oh, sim, um maante insuportvel, pois, embora j tivessem chegado cidade eestivessem na rua principal onde carroas passavam raspando o cascalho, mesmoassim continuava falando sobre escolas populares, ensino, operrios, ajuda nossaprpria classe, e conferncias, at que ela percebeu que ele recobrara completamente

    sua circunspeco.Tinha-se recuperado do circo, e ia comear (agora gostava delesinceramente) a lhe contar que...Mas nesse momento deram no cais e, ao ver ascasas desvanecendo de ambos os lados e toda a baa estendendo-se diante deles, a Sra.

    Ramsay no pde deixar de exclamar: Oh! Que lindo!,pois a imensido de guaazul surgia diante dela; o antigo Farol, distante, austero, no centro; e direita, to longequanto a vista alcanava, diminuindo e declinando em suaves ondulaes, as dunas

    verdes derelvafluida e selvagem, que sempre pareciam correr para algum pas lunar,inabitadopelos homens.

    Era essa a paisagem disse ela, parando, com os olhos mais cinzentos de queseu marido gostava tanto.

    Ficou imvel por um momento. Mas agora, disse, artistas vieram para c. E l

    estava, a apenas alguns passos, um deles, de p, com um chapu panam e botasamarelas todo seriedade, suavidade, concentrao. Por tudo isso era observado por

    dezmenininhos,com um ar de profundo contentamento no rosto redondo e vermelho.Olhava atentamente e, depois, mergulhava a ponta do pincel nummontculomacio deverde ou rosa. Desde que o Sr. Paunceforte chegara ali, trs anos atrs, todos os

    quadros eram assim, disse ela, verdes eacinzentados,com barcos a vela cor de limoe mulheres cor-de-rosa na praia.

    Mas os amigos de sua av, observou ela, lanando uma olhadela discreta aopassarem, tinham o maior trabalho: primeiro misturavam ospigmentos,depoismoam-nos,e ento colocavam panos levemente molhados sobre a tinta para mant-la mida.

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    O Sr.Tansleypensou que ela estava insinuando que a pintura daquele homeestava rala foi isso o que disse? As cores no pareciam slidas? Foi isso o quedisse? Sob a influncia da extraordinria emoo que comeara no jardim, quandoquisera segurar sua sacola, e crescera durante todo o passeio, aumentando na cidade,quando quisera contar-lhe tudo sobre si mesmo (e tudo que conhecera at ento),

    chegava a ver tudo um pouco deformado. Era terrivelmente estranho.

    Ali estava ele de p, na sala da casinha acanhada onde ela o trouxera, esperando-a, enquanto ia um instante ao segundo andar ver uma mulher. Ouvia seu passo rpido

    em cima;

    ouvia sua voz alegre e logo depois baixa. Olhou osguardanapose caixas de ch,e as sombras dos globos, enquanto esperava bastante impaciente, ansioso por voltarpara casa e decidido a levar a sacola dela. Ento ouviu-a sair; fechar a porta; dizer quedeveriam manter as janelas abertas e as portas fechadas (devia estar falando com umacriana). De repente, surgiu, parando por um instante em silncio (como se tivesseficado representando l em cima, e por um momento permanecesse parada agora, quaseimvel, diante do quadro da Rainha Vitria, com a Ordem Azul da Jarretei-ra). Derepente, descobriu: era a pessoa mais bela que conhecera.

    Com estrelas nos olhos e vus no cabelo, com ciclamens e violetas selvagens mas em que despropsito estava pensando? Tinha no mnimo cinqenta anos e oitofilhos. Caminhando por campos floridos e levando ao peito botes esmagados e

    carneiros cados; com estrelas nos olhos e o vento no cabelo ele segurou sua sacola.

    Adeus,Elsie disse ela, e subiram a rua, ela segurando a sombrinha, muitoaprumada, andando como se esperasse encontrar algum na prxima esquina. Pelaprimeira vez em sua vida, Charles Tansley sentiu um orgulho extraordinrio; umhomem escavando num bueiro parou de cavar e olhou-a; deixou o brao tombar eolhou-a. Charles Tansley sentiu um orgulho extraordinrio; sentiu o vento, os ciclamense as violetas, pois andava com uma mulher bela pela primeira vez em sua vida.Segurou sua sacola.

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    Ningum vai ao Farol, James disse ele, de p, ao lado da janela, falando

    grosseiramente, mas, emdeferncia Sra. Ramsay, tentando abrandar a voz e dar-lhepelo menos uma aparncia deamabilidade.

    "Quehomenzinhodetestvel", pensou a Sra. Ramsay, "para que continuar dizendoisso?"

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    Talvez voc acorde e encontre o sol brilhando e os passarinhos cantandodisse ela compassivamente, alisando o cabelo do menino, pois o marido, com a frasecustica de que o dia no ficaria bom, abatera seu nimo, como bem se podia ver. Essaida ao Farol era uma paixo dele, e, como se o marido j no tivesse dito bastante,esse homenzinho detestvel trouxera tudo de novo baila.

    Talvez o dia fique bonito amanhdisse ela, alisando o cabelo do menino.

    Tudo que ela poderia fazer agora era admirar a geladeira e virar as pginas do

    catlogo das Lojas, na esperana de chegar a algo semelhante a um ancinho ou umaceifeira que, com seus dentes e cabos, exigiriam o maior cuidado e habilidade para

    recortar. Todos esses jovens parodiavam seu marido, refletiu;ele disse que choveria;eles declaravam que seria positivamente um furaco.

    Ento, quando virou a pgina, a procura de uma gravura de um ancinho ou uma

    ceifeira foi repentinamente interrompida; o murmrio grosseiro dos homens falandoque o tirar e recolocar do cachimbo na boca interrompia a intervalos dava-lheuma

    certa sensao de conforto, embora no pudesse compreender o que diziam, poisestava junto janela. Esse murmrio j durava h meia hora e se juntava suavemente escala de sons que se acumulava ao bater dos tacos nas bolas e ao alarido das crianasogando crquete, irrompendo por vezes, de modo abrupto; "Acertou? Acertou?" Mas,

    de repente, todo rudo cessou, restando apenas a cadncia montona das ondas na praia

    que quase sempre era um rufiar repousante e ritmado para seus pensamentos,parecendo repetir sempre, enquanto se sentava com as crianas, as palavras

    consoladorasde uma velha cano de ninar: "Eu cuido de voc; eu sou o seu apoio."

    Mas, s vezes, repentina e inesperadamente sobretudo quando sua ateno sedesviava um pouco do que estava fazendo no momento,no tinha esse sentido tocalmo: pois, como o rufar fantasmagrico de tambores que batessem impiedosamente osentido da vida, fazia pensar na destruio da ilha e no seu engolfamento com o mar e aprevenia (a ela cujo dia escapara com um afazer depois do outro) de que tudo era

    efmerocomo umarco-ris.Esse som que fora abafado e encoberto sob os outros sonsde repente soou oco em seus ouvidos e a fez erguer os olhos num impulso de horror.

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    Eles haviam parado de falar; era essa a explicao. Escapando por um segundo tenso de que fora possuda, passou, como para se recuperar do dispndiodesnecessrio de emoo, ao outro extremo de seu ser, que era frio, divertido, e mesmoum tanto malicioso, e concluiu que o pobre Charles Tansley fora rechaado. Isso notinha muita importncia. Se seu marido lhe exigia sacrifcios (e sem dvida os exigia),

    ela lhe ofertava alegremente Charles Tansley, que tinha sido grosseiro com seufilhinho.

    E ainda um momento, com a cabea erguida, ela ouviacomo se esperasse poralgum som habitualum rudo mecnico e regular, algo ritmado, entre dito e cantado,comear no jardim (o marido andava compassadamente para cima e para baixo no

    terrao), algo entre um coaxar e uma cano. Acalmou-se ainda uma vez,reconfortada, pois tudo ia bem, e tornando a olhar o catlogo solire o colo, achou a

    gravura de uma faca com seis lminas, que James s poderia recortar se tivesse muitocuidado.

    De repente, um grito agudo, como o de um sonmbulo meio acordado, algo como

    Bombardeados por tiros e granadas1

    soou com a maior intensidade em seu ouvido, e a fezvoltar-seapreensivamente

    para ver se algum mais ouvira. Era apenas Lily Briscoe, e estava contente por v-la; e

    aqui lo no importava. Mas ao ver a moa de p, na extremidade do gramado,pintando, lembrou-se de que deveria manter a cabea tanto quanto possvel na mesma

    posio para o quadro deLily.O quadro deLily!A Sra. Ramsay sorriu. Com seuspequenos olhos chineses e seu rosto enrugado, ela nunca se casaria; mas era uma

    criatura independente. A Sra. Ramsay gostava dela por isso, e assim, lernbrando-sedesua promessa, inclinou a cabea.

    --

    1 Stormed at with shot and shell. Verso famoso do poema "Carga da brigada ligeira" ("The charge of the light brigade"), escrito porTennyson em 1854, seguido de outras citaes do mesmo poema. Ele se refere batalha de Balaclava, na Crimia, a 25 de novembro daquele ano.(N. da T.)

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    Sem dvida ele quase derrubou ocavalete,ao vir em sua direo, agitando asmos e gritando: "Cavalgamos bem e com coragem", mas, felizmente, deu meia volta ese afastou cavalgando, para morrer gloriosamente, supunha, nas alturas de Balaclava.Nunca algum fora to ridculo e to assustador ao mesmo tempo. Contudo, enquantoele se mantivesse assim, gritando, agitando-se, estava salva; pelo menos no ficariaparado e quieto, olhando seu quadro. Era isso que Lily Briscoe no poderia suportar.Mesmo enquanto olhava o volume, as cores e linhas, a Sra. Ramsay sentada janelacom James, Lily Briscoe mantinha-se atenta para o caso de algum surgir, pois noqueria ter sua pintura observada repentinamente. Agora, porm com todos ossentidos to avivados, olhando, tensa, at que a cor do muro e das iridceas mais alse incendiaram em seus olhos , tinha conscincia de que algum saa da casa ecaminhava em sua direo. Mas, de certa forma, adivinhou, pelo modo de andar, ser

    William Bankes,e por isso, embora sentisse o pincel estremecer, no virou a tela nagrama como faria se fosse o Sr. Tansley, Paul Rayley, Minta Doyle, opraticamente qualquer outra pessoa e deixou-a ficar onde estava.WilliamBankesparou a seu lado. Hospedavam-se no mesmo lugar na cidade e assim, entrando e

    saindo, despedindo-se tarde nasoleirada porta, faziam pequenos comentrios sobre asopa, as crianas, sobre isto ou aquilo, o que os tornava aliados. Por isso, quando eleparou a seu lado, om seu jeito judicial (tinha idade bastante para ser seu pai, u

    botnico, ou um vivo, muito escrupuloso e limpo, cheirando a sabonete), elapermaneceu no mesmo lugar. Ele tambm. Os sapatos dela eram excelentes, observouele. Permitiam aos dedos sua natural expanso. Habitando a mesma casa que ela,tambm notara como era arrumada, levantando-se antes do caf e saindo para pintar

    sozinha. Embora pobre, como era de supor, e sem a tez ou a seduo da Srta. Doyle,seu bom senso a fazia, a seu ver, superior a essa jovem. Por exemplo, tinha certeza deque, quando Ramsay irrompeu diante deles gritando, gesticulando, a Srta. Briscoe ocompreendera.

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    Algum se equivocara.2

    O Sr. Ramsay fixou os olhos neles. Fixou os olhos neles sem parecer v-los. E

    isso os fez sentirem-se vagamente constrangidos. Juntos viram uma coisa que noqueriam ver. Haviam penetrado em algo muito ntimo. Foi provavelmente um pretexto,pensou Lily, para partir, para ficar fora de alcance, que fez o Sr. Bankes quaseimediatamente comentar que fazia frio e sugerir uma volta. Ela iria, sim. Mas no foisem dificuldade que desprendeu os olhos de seu quadro.

    As iridceas estavam de um violeta brilhante; o muro, de um branco cintilante. Elano considerava honesto modificar o violeta claro e o branco cintilante, j que os viaassim, embora isso estivesse na moda depois da visita do Sr. Paunceforte. Ento, sob acor havia a forma. Podia ver isso com clareza, imperiosamente, quando olhava: quandopegava no pincel que tudo mudava. Era nesse vo momentneo entre a paisagem e suatela que os demnios a possuam, levando-a beira das lgrimas, e tornavam apassagem da concepo para o trabalho to terrvel quanto o era a incurso por ucorredor escuro para uma criana. Assim se sentia, freqentemente, numa lutaterrivelmente desigual para manter a coragem e dizer: "Mas isso o que eu vejo, isso o que eu vejo", e desse modo reunir em seu peito os restos miserveis de sua viso,que milhares de foras buscavam arrancar-lhe. E era tambm nesse momento, dessaforma fria e inconstante, que, quando comeava a pintar, pressionavam-na outros

    pensamentos, sua prpria imperfeio, sua insignificncia, tendo de sustentar o painuma casa alm da estrada de Brompton, e tendo de se esforar muito para controlarseu impulso de se atirar ao colo da Sra. Ramsay (graas a Deus, sempre resistira) e

    dizer-lhe mas o que poderia dizer-lhe? "Estou apaixonada por voc?" No, no eraverdade. "Estou apaixonada por tudo isso?" com um gesto largo abrangendo asebe,a casa, as crianas? Era absurdo, impossvel. No se pode dizer o que se tem vontadede dizer. Por isso, pousou os pincis ordenadamente na caixa, um ao lado do outro, e

    disse ao Sr.Bankes:

    Esfriou de repente. O sol parece estar menos quente

    falou, olhando em redor, pois tudo estava muito claro, a grama ainda de um

    suave verde profundo, a casa cintilando na sua folhagem com flores prpuras demaracuj, egralhaslanando gritos cortantes do alto azul. Mas alguma coisa moveu-se, brilhou, virou uma asa prateada no cu. Afinal, era setembro, meados de setembro,

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    e mais de seis horas da tarde. Assim, caminharam pelo jardim na direo costumeira;

    passando pela quadra de tnis e pela grama alta, at aquela clareira na espessasebeprotegida por suas hastes de vermelho incandescente como brasas de carvo queimado,por entre as quais as guas azuis da baa pareciam ainda mais azuis.

    Vinham at ali regularmente, todas as noites, arrastados por alguma necessidade.Era como se a gua flusse e fizesse com que os pensamentos estagnados em terra firmedeslizassem por ela e dessem at mesmo a seus corpos uma espcie de alvio fsico.Primeiro, o movimento da cor inundava a baa de azul e o corao expandia-se com ele

    e o corpo nadava, para somente no instante seguinte ser reprimido eenregeladopelacortante escurido das ondas inquietas. Ento, bem atrs da grande rocha negra, quasetoda noite jorrava irregularmente uma fonte de gua branca, de modo que se tinha deaguard-la e era um deleite quando a gua brotava; enquanto se esperava por ela, via-

    se, na plida praia em semicrculo, onda aps onda derramar continuamente umanvoasuave em tons demadreprola.

    Os dois permaneceram ali, sorridentes. Ambos sentiram uma alegria em comum,exaltados pelas ondas em movimento; e ento, pela corrida cortante e rpida de ubarco que, tendo traado uma curva na baa, parou, estremeceu, deixou tombar a vela,com um instinto natural para completar o quadro, aps esse rpido movimento, ambosolharam para as dunas distantes e, em vez de alegria, uma certa tristeza abateu-se sobreeles em parte porque tudo estava completo, em parte porque paisagens distantes

    parecem ultrapassar de um milho de anos (pensouLily)aquele que as observa, e estarem comunho com um cu que contempla uma terra em completo descanso.

    Olhando as dunas longnquas,WilliamBankes pensou em Ramsay: pensou eRamsay andando sozinho com largaspassadas por um longo caminho, com a solidoque parecia ser seu ar natural. Mas isso foi repentinamente interrompido. WilliaBankes lembrou-se (e devia referir-se a algum incidente real) de uma galinhaestirando

    as asas para proteger uma ninhada de pintinhos, e Ramsay, parando, apontara suabengala e dissera: "Bonito, bonito" o que era como uma estranha centelha nocorao que mostrava sua simplicidade, sua simpatia para com as coisas humildes;parecia-lhe, no entanto, que sua amizade cessara, ali, naquele trecho de estrada.Depois, Ramsay se casara. E mais tarde, com uma coisa e outra, a melhor parte de suaamizade se fora. De quem era a culpa, no saberia dizer; apenas, aps algum tempo, arepetio tomara o lugar da novidade. Era para repetir que se encontravam. Mas

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    nesse mudocolquiocom as dunas ele insistia que sua afeio por Ramsay no tinhade modo algum diminudo; l estava como o corpo de um jovem encerrado emturfapor um sculo, a carne vermelha dos lbios sua amizade, em toda a suaagudezaerealidade, conservada do outro lado da baa, por entre as dunas.

    Angustiava-se ao pensar em sua amizade e talvez tambm por querer escapar acusao de que teria envelhecido e ficado enrugado. Enquanto Ramsay vivia nu

    rebulio de filhos,Bankesno tinha nenhum e era vivo angustiava-se. No fosseLily Briscoe desprezar Ramsay (a seu modo uma grande pessoa); queria que elacompreendesse como as coisas eram entre eles. Sua amizade comeara h muitos anos

    e acabara numa estrada deWestmoreland,onde uma galinha aninhara seus pintinhosentre as asas; depois, Ramsay se casara, e seus caminhos se separaram, e passou a

    haver, sem dvida ningum era culpado disso , uma certa tendncia, quando seencontravam, repetio.

    Sim. Era isso. Acabara. Virou-se de costas para o mar. E, tendo-se voltado paraseguir por outro caminho, o Sr. Bankes emocionou-se com coisas que no o tocariam,

    se essas dunas no lhe tivessem revelado o corpo daquela amizade encerrado emturfa emocionando-se, por exemplo, comCam,amenininha,a filha menor de Ramsay.Ela colhia um ramo de alelis junto gua. Era rebelde e violenta. No "daria uma florao cavalheiro", como a bab mandara. No! No! No! No daria! Cerrou os punhos ebateu o p. O Sr. Bankes sentiu-se velho e triste e de' certa forma enganado sobre suaamizade, s por causa dela. Devia ter envelhecido e ficado enrugado.

    OsRamsaysno eram ricos, e era um prodgio como conseguiam dar conta detudo aquilo. Oito filhos! Alimentar oito filhos de filosofia! L adiante passeava outro

    deles,Jasper,que ia atirar num passarinho como disse com indiferena ao passar,sacudindo a mo de Lily como uma alavanca de bomba, coisa que fez o Sr. Bankes

    comentar amargamente que era ela a favorita. Havia tambm a educao a serconsiderada (era verdade que a Sra. Ramsay talvez possusse alguns bens), sem falarda roupa diria, o gasto dos sapatos e das meias, de que esses "respeitveis senhores",

    todos bem crescidos,angulosos,jovens despreocupados, deviam precisar. Quanto ater certeza de quem eram, ou em que ordem vinham, estava alm de sua capacidade.

    Chamava-os, na intimidade, pelos nomes dos reis e rainhas da Inglaterra: Cam aPerversa, James o Cruel, Andrew o Justo, Prue a Bela pois Prue seria linda,

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    pensou, e como poderia ser diferente? , e Andrew seria inteligente. Enquantocaminhava pela estrada e Lily Briscoe dizia sim ou no e concordava com seuscomentrios (pois gostava de todos, amava o mundo), ele ponderava o caso deRamsay, comiserava-se dele, invejava-o, como se o tivesse visto privar-se de todas asglrias do isolamento e austeridade que o coroaram na sua juventude, para se

    embaraar definitivamente no alvoroo e na agitao dos problemas caseiros. Essascoisas davam algo a Ramsay, reconheceuWilliamBankes; teria sido agradvel seCamtivesse prendido uma flor no seu casaco ou subido em seu ombro, como fazia coo pai para olhar uma gravura doVesvioem erupo; mas seus velhos amigos nopodiam deixar de sentir que se havia destrudo alguma coisa. O que pensaria uestranho agora? O que essa Lily Briscoe pensava? Poderia algum deixar de notar queRamsay adquirira certos hbitos? Excentricidades, fraquezas talvez? Era surpreendentecomo um homem de seu intelecto conseguira decair tanto como ele fizera mas essa

    era uma frase por demais rude e que pudesse depender tanto da aprovao dosoutros. Oh,mas pense na obra dele! disse Lily. Sempre que ela "pensava" naobra dele, via claramente diante de si uma grande mesa de cozinha. Era por culpa de

    Andrew.Perguntara-lhe de que tratavam os livros do pai. "O sujeito e o objeto e anatureza da realidade", responderaAndrew.E quando ela exclamara: "Cus", pois notinha a menor idia do que isso significava, ele acrescentara: "Pense numa mesa decozinha, ento, quando voc no est l."

    Assim, ela sempre via uma mesa de cozinha rstica, quando pensava na obra doSr. Ramsay. Estava pousada agora na forquilha de uma pereira, pois tinhaalcanado o pomar. E com um penoso esforo de concentrao, focalizou sua mente,no nas pregas prateadas da casca da rvore ou nas folhas, que tinham a forma depeixes, mas em uma mesa de cozinha imaginria, uma dessas toscas mesas de madeira,speras e cheias de ns, cuja principal virtude parece ser a de terem sempre ficado ali,despojadas, durante anos de integridade muscular, com as quatro pernas ao vento.Naturalmente, se a vida de uma pessoa transcorresse na viso dessas essncias

    angulares, na reduo dessas noites maravilhosas com nuvens purpreas, azuis eprateadas, a uma mesa de pinho com quatro pernas (e era um sinal da maiorinteligncia faz-lo), naturalmente no se poderia julgar essa pessoa como algucomum.

    Agradou ao Sr.Bankesque ela lhe tivesse pedido que "pensasse na obra dele".Ele pensara nisso muitas e muitas vezes. Vezes sem fim dissera: "Ramsay um desses

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    homens que fazem o melhor de sua obra antes dos quarenta." Dera uma contribuiodecisiva para a filosofia em um pequeno livro, quando tinha mais ou menos vinte ecinco anos; o que veio depois foi praticamente ampliao, repetio. S que o nmerode homens que do uma contribuio decisiva em qualquer sentido muito pequeno,disse ele, parando ao lado da pereira, muito compenetrado, com seu ar

    escrupulosamenteexato, perfeitamente judicial. Bruscamente, como se o movimento desua mo tivesse libertadoLilydo peso das impresses acumuladas, estas inflaram erebentaram numa pesada avalanche com tudo o que ela sentia por ele. Era s umasensao. Ento, como uma fumaa, elevou-se a essncia do ser do Sr. Bankes. E agorahavia outra sensao. Sentia-se trespassada pela intensidade de sua percepo: era suaseveridade; sua bondade. Eu o respeito (dirigia-se a ele em silncio) em todos os seustomos; voc no vaidoso; extremamente altrusta; mais dedicado que o Sr.Ramsay; o melhor ser humano que conheo; no tem mulher nem filho (sem qualquersentimento sexual, ela ansiava por confortar sua solido), voc vive para a cincia(involuntariamente prateleiras de batatas surgiram diante de seus olhos); elogi-loseria um insulto para voc; generoso, puro de corao, um homem herico!

    Simultaneamente,porm, lembrou-se de que ele trouxera consigo um criado; que faziaobjees a cachorros subirem em cadeiras; que discorreria durante horas (at que o Sr.

    Ramsay sasse da sala batendo a porta) sobre sal nas verduras e a abominao dacozinha inglesa.

    Em que resultava tudo isso, ento? Como julgar os outros, pensar sobre osoutros? Como se acrescentava uma coisa outra e se conclua que era afeto ou desafetoo que se sentia? E que sentido atribuir a essas palavras, afinal? Ela estava de p, pertoda pereira, aparentemente transportada e inundada pelas impresses sobre esses doishomens. Seguir o pensamento dela era como seguir a voz que fala rpido demais paraque se possa tomar nota do que diz. E a voz era a sua prpria dizendo, sem que lhe

    soprassem nada, coisas inegveis, eternas, contraditrias, tanto que mesmo asfendasesalincias no tronco da pereira estavam irrevogavelmente fixadas ali por toda aeternidade. Voc tem grandeza, continuou ela, e o Sr. Ramsay no. Ele inferior,

    egosta, vaidoso, egocntrico; temperamental; um tirano; cansa a Sra. Ramsay at amorte; mas ele tem o que voc (dirigia-se ao Sr. Bankes) no tem: desapegado das

    coisas mundanas; no se importa cominsignificncias;gosta de cachorros e dos filhos.Tem oito. Voc no tem nenhum. No descera ele, uma dessas noites, com dois casacosnas costas, deixando que a Sra. Ramsay amparasse seu cabelo com uma bacia? Tudoisso rodava em sua mente, como um enxame de mosquitos, cada qual separado, mastodos maravilhosamente controlados por uma rede elstica e invisvel girava na

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    mente de Lily, no meio e ao redor dos ramos da pereira, onde ainda sedependuravaaimagem da tosca mesa de cozinha, smbolo de seu profundo respeito pela intelignciado Sr. Ramsay, at que seu pensamento, que rodopiara cada vez mais rpido, explodiupor sua prpria intensidade; sentiu-se aliviada; um tiro partiu bem prximo, e surgiu,fugindo de seus estilhaos, num vo assustado, efusivo, tumultuado, um bando de

    estorninhos.

    Jasper! exclamou o Sr. Bankes. Voltaram-se na direo de onde haviamvoado osestorninhos,sobre o terrao. Seguindo a disperso rpida dos pssaros nocu, atravessaram a passagem na sebe edepararam-se imediatamente com Ramsay,que se precipitou tragicamente sobre eles: "Algum se equivocara!"

    Os olhos deste, translcidos de emoo, arrogantes de trgica intensidade,

    encontraram os deles por um segundo e pestanejaram beira do reconhecimento; masento, esboando um gesto at o rosto, como para afastar, expulsar, numa angustiante epersistente vergonha, o olhar deles, que era absolutamente normal, Ramsay

    pareciaimplorar-lhesque refreassem por um momento o que ele sabia ser inevitvel,como se impusesse a eles seu prprio ressentimento infantil por ter sido interrompido.Contudo, mesmo no momento da revelao, no seria completamente destroado,

    estava decidido a reter algo dessa deliciosa emooa impura rapsdia de que seenvergonhava, mas com a qual se deleitava.Voltou-seabruptamente, batendo-lhes norosto a porta de seu gabinete; Lily Briscoe e o Sr. Bankes, olhando o cu pouco vontade, observaram que os estorninhos que Jasper desbaratara com sua espingardaforam se empoleirar em bandos no topo dos carvalhos.

    --

    2 Someone had blundered. A brigada em questo foi dizimada por um ataque herico, mas resultante de um erro na transmisso de umaordem. (N. da T.)

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    E mesmo que amanh o tempo no fique bom, ficar melhor noutro diaqualquer disse a Sra. Ramsay, erguendo os olhos para dar uma espiadela emWilliam Bankes e Lily Briscoe que passavam.E agoradisse, pensando que ocharme de Lily eram os olhos de chinesa, oblquos no seu ros-tinho branco e enrugado;

    s que seria necessrio um homem muito inteligente para descobrir isso.E agorafique em p quieto edeixe-memedir sua perna.Pois, apesar de tudo, poderiam irao Farol, e tinha de verificar se a meia no precisava de uma ou duas polegadas a maisna perna.

    Sorrindo, pois umaidiaadmirvel surgira em sua mente naquele mesmo instanteWilliam e Lily deveriamcasar-se ,pegou a meia em tons de urze e cuja bocatinha desenhos em pontos de cruz feitos com agulhas de ao, e a mediu sobre a perna de

    James.

    Meu querido, fique quietodisse, pois James, no seu cime, no gostava deservir de modelo para o filho menor do faroleiro;agitava-sede propsito e, assim,como poderia ela ver se estava comprida ou curta demais?, perguntou.

    Ergueu os olhosquedemniopossua o filho menor, o seu querido? e,vendo a sala, as cadeiras,achou-asterrivelmente maltratadas. Suas entranhascomoAndrew dissera h diasestavam espalhadas pelo cho; mas ento,perguntou-se,que vantagem havia em comprar boas cadeiras para deix-las estragarem-se alidurante todo o inverno, quando a casa, com apenas uma velha para tomar conta, ficava

    literalmente encharcada deumidade?No importava: o aluguel era precisamente dedois pences e meio; as crianas a adoravam; fazia bem ao marido ficar a trezentasmilhas de sua biblioteca, das conferncias e discpulos; e havia lugar para visitas."

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    Esteiras, camas de campanha, carcaasdesengonadasde cadeiras e mesas, e cadeirascujo tempo de utilidade em Londres terminara e que serviam bastante bem ali; umafotografia ou duas, e livros. Livros, pensou, cresciam por si mesmos. Nunca tinhatempo para l-los. Coitada! Nem mesmo os livros que lhe tinham sido dados eassinados pela mo do prprio poeta: "Para aquela cujos desejos devem ser

    obedecidos"... " mais alegre Helena de nossos dias"...Era vergonhoso confess-lo,mas nunca os lera. E Croom, escrevendo sobre o intelecto, e Bates, escrevendo sobre

    os costumes selvagens da Polinsia(Meu querido, fique quietodisse), no sepoderia mandar nenhum desses para o Farol. Imaginava que um dia a casa ficaria toestragada que algo precisaria ser feito. Se eles conseguissem aprender a limpar os pse no trazer areia para dentro de casa, j seria alguma coisa. Caranguejos ela tinha depermitir, enquanto Andrew quisesse realmente dissec-los; e enquanto Jasperacreditasse que se poderia fazer sopa de algas, no se poderia evit-las; nem os

    objetosde Rose: contas, juncos, pedras. Pois eram bem dotados, os seus filhos, s quede formas diferentes. E o resultado dissosuspirou, enquanto media a sala com osolhos, apoiando a meia na perna de Jamesera que a cada vero as coisas ficavamais gastas. O tapete estava desbotado; o papel de parede descolava. J no se podiadizer que havia rosas nele. Alm disso, se todas as portas de uma casa soinvariavelmente deixadas abertas, e nenhum serralheiro em toda a Esccia capaz deconsertar um ferrolho, claro que as coisas se estragam. De que servia colocar uxale verde de caxemira sobre a moldura de um quadro? Em duas semanas ficaria da

    cor de sopa de ervilhas. Eram as portas que mais a aborreciam; todas as portas eradeixadas abertas.Punha-se escuta. A da sala de visitas estava aberta; a do vestbuloestava aberta; parecia que as do banheiro estavam abertas; e sem dvida a janela que

    dava para o cais estava aberta, pois ela mesma a abrira. Era simples janelasabertas, portas fechadas, contudo, ningum era capaz de se lembrar disso? Elaentraria nos quartos das empregadas, noite, e os encontraria trancados como fornos,

    excetoo de Marie, a moa sua, que preferiria passar sem um banho do que sem ar

    fresco; dissera que na sua terra "as montanhas so muito lindas".Dissera-o ontem,olhando pela janela com lgrimas nos olhos. "As montanhas so muito lindas." Seu paiestava morte l, sabia a Sra. Ramsay. Ia deixar os filhos rfos. Ralhando edemonstrando (como fazer uma cama, como abrir uma janela, com mos que adejava

    como as de uma francesa), tudo se acomodava tranqilamentea seu redor quando amoa falava, da mesma forma que, depois de umvoatravs da luz solar, as asas de

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    para uma mulher assim. As Graas, reunindo-se,pareciam ter-sedado as mos eprados floridosde asfdelospara compor esse rosto. Sim, ele pegaria o trem das dez emeia em Euston.

    "Mas ela sabe menos da prpria beleza que uma criana", dissera o Sr. Bankes aopousar o receptor, atravessando a sala para ver o progresso dos trabalhadores no hotelem construo atrs de sua casa. E pensou na Sra. Ramsay ao ver toda aquela agitaopor entre as paredes inacabadas. Pois havia sempre algo incongruente a ser integradona harmonia de seu rosto, pensou. Ela punha s pressas um chapu de feltro; corria degalochas atravs do gramado para arrebatar uma criana de uma travessura perigosa.

    Assim, se pensava apenas em sua beleza, precisavalembrar-sedessa vitalidade, dessaagitao (os operrios carregavam tijolos por uma prancha enquanto os olhava), eintegr-las na sua imagem; ou caso se pensasse nela apenas como uma mulher, era

    preciso dot-la de uma certa excentricidade idiossincrsica; ou supor nela um desejolatente de se libertar da realeza de sua forma, como se a sua beleza e tudo o que os

    homens diziam sobre ela a aborrecessem, e ela quisesse ser to-somente como osoutros: insignificante. Ele no sabia. Precisava ir para o trabalho.

    Enquanto tricotava a felpuda meia marrom-avermelhada, com sua cabearecortada absurdamente pela moldura dourada, pelo xale que sobre ela lanara, e

    pelaobra-primaautenticada de Miguelngelo, a Sra. Ramsay abrandou a rudeza de suaatitude do momento anterior, levantou a cabea e beijou o filho na testa.

    Vamos

    achar outra gravura para recortardisse.

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    Mas o que sucedera? Algum se equivocara.

    Sobressaltando-se repentinamente, palavras que guardara no esprito sem a menorsignificao durante um longo tempo ganharam sentido. "Algum se equivocara."

    Fixando os olhos mopes no marido, que agora recorria a ela, abatido,fixou-oat quesua proximidade lhe revelou (o ressoarapaziguou-seem sua cabea) que alguma coisasucedera, que algum se equivocara. Contudo, por nada nesse mundo atentava no que

    fosse.Ele tremia; ele estremecia. Toda a sua vaidade, toda a sua satisfao com seu

    prprio esplendor, a cavalgar, caiu como um raio; orgulhoso como um falco frentede seus homens atravs do vale da morte, foi arrasado, destrudo. Bombardeados portiros e granadas, cavalgamos bem e com coragem; irrompemos pelo vale da morte

    fulminados por rajadas bem diante de Lily Briscoe e William Bankes. Eleestremecia; ele tremia.

    Por nada nesse mundo ela teria falado com ele, percebendo, pelos sinais

    familiaresseus olhos perturbados e um certo recolhimento curioso de sua pessoa,como que se resguardando, necessitado da solido para recuperar o equilbrio,quese sentia ultrajado e angustiado. Ela acariciou a cabea de James; transferiu para ele oque sentia pelo marido e, enquanto o - observava colorindo de amarelo a camisaengomada de um senhor do catlogo das Lojas do Exrcito e da Marinha, pensou eque maravilha seria para ela se ele se tornasse um grande artista; e por que no setornaria? Tinha uma esplndida testa. Ento, erguendo os olhos, quando o marido

    passava por ela mais uma vez,

    sentiu-se

    aliviada por descobrir que a runa estava

    encoberta; a domesticidade triunfava; o hbito engrenava em seu ritmo suave. Assim,

    ao se aproximar outra vez, ele parou resolutamente janela,curvou-se,caprichoso ezombeteiro, para fazer ccegas na perna despida de James com um ga-lhinhoe elacensurou-opor ter rechaado "aquele pobre rapaz", Charles Tansley. Tansley tinha deentrar para escrever sua tese, respondeu ele.

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    James tambm ter de escrever a sua tese um dia desses acrescentoironicamente, agitando o gravetinho.

    Cheio de dio pelo pai, James afastou o irritante galhinho, que ele roava naperna despida do filho de uma forma que lhe era peculiar, composta de um misto de

    severidade e humor.

    Estava tentando acabar essas meias interminveis para mand-las ao filho menorde Sorley amanh, disse a Sra. Ramsay.

    No havia a menor possibilidade de irem ao Farol amanh, irrompeu o Sr.Ramsay irascivelmente.

    Como podia sab-lo?, perguntou ela.Freqentementeo vento mudava.

    O extraordinrio irracionalismo de sua observao, a ilo-gicidade da mentefeminina o enraiveciam. Ele cavalgara atravs do vale da morte, fora arrasado edestroado; e agora ela queria fugir realidade dos fatos, e fazia seus filhos esperarepor algo absolutamente fora de propsito. Na verdade, mentia. Bateu o p no degrau de

    pedra e gritou:Dane-se!Mas que dissera ela? Simplesmente que talvez o dia ficassebonito no dia seguinte. E talvez ficasse mesmo.

    No com o barmetro caindo e o vento soprando do oeste.

    Perseguir a verdade com uma falta de considerao pelos sentimentos dos outrosto impressionante, to brutal, era para ela um ultraje to horrvel decncia humanaque, sem responder, entorpecida e cega, baixou a cabea como para deixar a saraivadade pedras, a enxurrada de gua imunda resping-la, sem qualquer censura. No havianada a dizer.

    Ele permaneceu ao seu lado em silncio. Por fim, humildemente, disse quepoderia sair e perguntar aos guardas se quisesse.

    No havia ningum a quem ela respeitasse tanto quanto a ele.

    Estava pronta a acreditar na sua palavra, disse. S que assim no precisavafazer sanduches, apenas isso. Vinham at ela, o dia inteiro, precisando de uma coisaou outra, naturalmente, j que era mulher; cada um queria uma coisa; as crianasestavam crescendo; muitas vezes sentia que no passava de uma esponja encharcada,

    cheia de emoes humanas. Ento ele dissera:"Dane-se"e "Deve chover". E quando

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    a letraQ.Ele alcanavaQ.Muito poucas pessoas em toda a Inglaterra chegam aalcanar Q. Nesse momento, detendo-se por um instante perto do vaso de pedra onde

    estavam osgernios,viu, mas no muito longe como crianas catando conchas,divinamente inocentes e ocupadas com pequenasinsignificnciasa seus ps, e de certaforma completamente indefesas contra um destino que ele percebia , a mulher e ofilho juntos janela. Eles precisavam de sua proteo, e isso ele lhes dava. Masdepois de Q? O que vinha? Depois de Q havia um sem-nmero de letras, a ltima delas

    quase invisvel a olhos mortais,reluzindoa distncia, vermelha. Z s alcanada umavez, por um homem, em cada gerao. Porm, se pudesse alcanar R, j seria algumacoisa. Pelo menos, aqui estava o Q. Fincou os ps em Q. Estava seguro do Q. Poderiademonstrar o Q. Se Q Q-R... aqui ele esvaziou o cachimbo com duas ou trs

    pancadinhas ressoantes na ala de chifre de carneiro do vaso e prosseguiu. "Ento

    R..."Endireitou-se. Contraiu-se.Qualidades que teriam salvo toda uma tripulao exposta ao mar agitado, co

    apenas seis biscoitos e uma garrafa d'gua resistncia, justia, preciso, devoo,habilidade vinham em seu auxlio. R ento... o que R?

    Algo se encobria como a plpebra encouraada de um lagarto epestanejavasob a intensidade de seu olhar,obscurecendoa letra R. Nesse segundo deescurido ele ouviu pessoas dizendo: voc um fracasso. R ficava alm de se

    alcance. Nunca alcanaria R. Adiante em direo ao R, mais uma vez.R...

    Qualidades que, numa expedio solitria atravs das desoladas extensesgeladas do rtico, t-lo-iam feito o capito, o guia, o conselheiro, cujo carter, nem

    ardente nem desalentado, presidiria com equanimidade e encararia o inevitvel,viriam em seu auxlio mais uma vez.

    O olho do lagartopestanejoude novo. As veias de sua testa intumesceram.Ogernio no vaso tornou-se surpreendentemente visvel e destacado entre as folhas;podia ver, sem o desejar, a velha, a bvia distino entre as duas espcies de homens;de um lado os que avanam com fora sobre-humana e, com esforo e perseverana,repetem o alfabeto inteiro, ordenadamente, vinte e seis letras ao todo, do comeo ao

    fim; do outro lado os bem-dotados, os inspirados que,miraculosamente,vislumbratodas as letras de uma s vez, numa nica viso o caminho dos gnios. Ele no era

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    genial; e no tinha nenhuma pretenso quanto a isso; mas tinha, ou poderia ter, acapacidade de repetir cada letra do alfabeto, de A a Z, primorosamente em ordem.Enquanto isso, fincou-se em Q. Adiante, ento, em direo ao R.

    Sentimentos que teriam desonrado um capito que agora, com a neve

    comeando a cair, e o topo da montanha encoberto pela bruma, sabe que deve deitar-see morrer antes que chegue a manh abateram-se sobre ele,empalidecendoa cor deseus olhos, dando-lhe, mesmo naqueles dois minutos de seu passeio pelo terrao, o ar

    esbranquiadoeemurchecidoda velhice. Ainda assim, no se deitaria; arranjaria umrochedo, e l, os olhos fixos na tormenta, tentando penetrar na escurido, at o fim,morreria de p. Nunca alcanaria R.

    Permaneceu de p, fincado no cho, junto ao vaso, onde flutuava ogernio.Mas,afinal, quantos homens em um bilho, perguntou-se, alcanam Z? Certamente o capitodos soldados desesperados pode se perguntar isso, e responder, sem trair o batalhoatrs de si: "Um, talvez." Um em cada gerao. Deveria ser culpado ento, se no eraele esse um, uma vez que trabalhara honestamente e dera o melhor de si, at que nadamais lhe restara para dar? E quanto duraria sua fama? permissvel, mesmo a um heri beira da morte, pensar, antes de morrer, que os homens falaro dele dali por diante.Sua fama duraria dois mil anos talvez. E que so dois mil anos (perguntou o Sr.

    Ramsay ironicamente, mirando asebe)?O que so, na verdade, se voc olha do altode uma montanha para o longo passar dos sculos? At mesmo a pedra que a pessoa

    chuta com a bota perdurar alm deShakespeare.Sua pequena luz brilharia, mas nomuito, por um ano ou dois, e depois se fundiria em alguma luz maior, e esta numa aindamaior. (Olhou para dentro da escurido, para dentro do emaranhado dos ramos.) Ento,quem poderia culpar o capito desse batalho desesperado que, afinal, subirasuficientemente alto para ver o passar dos anos e o findar das estrelas se, antes damorte, enrijecesse suficientemente os membros para no mais poder moviment-los eerguesse com alguma solenidade os dedos entorpecidos at a fronte, endireitasse osombros, para que, quando o esquadro de salvamento chegasse, o achasse morto eseu posto, bela figura de soldado? O Sr. Ramsay endireitou os ombros e parou, muitocorreto, perto do vaso.

    Quem o culparia se, detendo-se assim de p por um instante, se preocupasse coa fama, com esquadres de salvamento, com as pirmides que seus discpulosagradecidos ergueriam sobre seus ossos? Por fim, quem culparia o capito da esquadracondenada se, tendo-se aventurado ao mximo e esgotado toda a sua fora, e tendoadormecido sem pensar muito se acordaria ou no, agora percebesse, por uma

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    comichonos dedos dos ps, que ainda vivia? Em geral, no tinha objeo algumaquanto a viver; exigia apenas simpatia e usque, e algum para ouvir a histria de se

    sofrimento naquele mesmo instante. Quem o culparia? Quem no se rejubilariasecretamente quando o heri tirasse sua armadura e, parando junto janela, olhasse sua

    mulher e seu filho a princpio muito distantes, mas gradualmente se aproximandocada vez mais, at que lbios, livro e cabea surgissem nitidamente diante de si,embora ainda adorveis e estranhos devido intensidade da solido dele, o passar dossculos e o findar das estrelas , e, finalmente, colocando o cachimbo no bolso,curvasse sua magnfica cabea diante da mulher, quem o culparia se ele prestassehomenagem beleza do mundo?

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    Mas seu filho o odiava. Odiava-o por se ter aproximado deles, por ter parado e

    olhado para eles. Odiava-o por t-los interrompido; odiava-o pela exaltao egrandeza de seus gestos; pela magnificncia de sua cabea; pela sua exigncia eegosmo (pois ali estava ele, exigindo-lhes ateno); mas, acima de tudo, odiava oescrnio, a afetao e a emoo de seu pai, cujas vibraes perturbavam asimplicidade perfeita, o bom senso de sua relao com a me. Olhando fixamente apgina, esperava com isso faz-lo retirar-se; apontando uma palavra, esperava chamar

    outra vez a ateno da me para si, pois sabia, irritado, que esta comeara a vacilardesde o instante em que o pai chegara. Mas no. Nada faria o Sr. Ramsay sair dali. Aliestava ele, exigindo compreenso.

    A Sra. Ramsay, que at ento se sentara descontraida-mente, abraando o filho,

    empertigou-se e, voltando-se um pouco, pareceu se soerguer com esforo eimediatamente irradiar uma chuva de energia, um jato de espuma. Parecia ao mesmotempo animada e viva, como se todas as suas energias estivessem sendo fundidas numanica fora, ardendo e iluminando (embora se achasse tranqilamente sentada,

    retomando mais uma vez suas meias), e nessa deliciosa fecundidade,nessa fonte eorro de vida, a esterilidade fatal do macho se lanou, como um bico de cobre, estril enu. Ele queria compreenso. Ele era um fracasso, disse. A Sra. Ramsay agitou as

    agulhas. O Sr. Ramsay repetia, semdespregaros olhos do rosto dela, o que ele queria.Ela devolveu-lhe as palavras em pleno rosto. "Charles Tansley..." disse. Mas eleprecisava mais do que isso. Era compreenso o que ele queria; que, antes de tudo, lheconvencessem de sua genialidade, e ento que o trouxessem de volta ao mago da vida,

    aquecido e reconfortado,para que seus sentidos lhe fossem restitudos, sua aridezfertilizada, e todos os cmodos da casa abarrotados de vida a sala de visitas e,atrs da sala de visitas, a cozinha; acima da cozinha, os quartos; e alm deles, osquartos das crianas; precisavam todos ser mobiliados, precisavam ser abarrotados devida.

    Charles Tansley o achava o maior metafsico de seu tempo, disse ela, mas eleprecisava mais do que isso. Precisava de compreenso. Precisava que o convencesse

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    de que ele tambm vivia no mago da vida; que era necessrio; no apenas ali, mas no

    mundo todo. Agitando as agulhas, confiante, correta, ela criou a sala de estar e acozinha, e as iluminou;convidou-oaacomodar-sel, entrar e sair,divertir-se.Ela riae tricotava. De p, entre seus joelhos, James,rgido, sentiu toda a fora dela emergindoe sendo tragada e dissipada pelo bico de cobre, pela rida cimitarra do macho, queferia impiedosamente, incessantemente, vida de compreenso.

    Ele era um fracasso repetia. Bem, ento veja, compreenda. Agitando asagulhas, olhando de relance a seu redor, pela janela, a sala, e o prprio )ames, ela lhe

    asse-,gurou, para alm de qualquer sombra de dvida, por seu riso, seu equilbrio,sua competncia (como a ama, carregando uma luz atravs do quarto escuro, confortauma criana agitada), que tudo era real; a casa estava ntegra; ventava no jardim. Se eledepositasse uma f implcita nela, nada o atingiria, no importa quo fundo cienaufragasse ou quo alto subisse, nem por um segundo ele se veria sem ela. Assim,vangloriando-se de sua capacidade de vigiar e proteger, quase nada restava de si comque ela pudesse se reconhecer, tanto se prodigalizara e dissipara-; e James, sentado

    rgido entre seus joelhos,sentiu-adesabrochar numa rvore carregada de frutos, deflores rosadas, com folhas e galhos balouantes, em meio qual o bico de cobre, a

    rida cimitarra do pai, o homem egosta, cravava-se e golpeava, vida decompreenso.

    Refeito pelas palavras dela, restabelecido, renovado, disse, por fim, olhando-acom humilde gratidocomo uma criana que adormece satisfeita,que iria daruma volta; iria olhar as crianas jogando crquete. E se foi.

    Imediatamente a Sra. Ramsay pareceudobrar-seem copas, como se uma ptala sefechasse sobre a outra e todo o conjunto tombasse exaurido sobre si mesmo, tanto queela mal tinha fora para mexer o dedo, num delicioso abandono ao cansao, por sobre

    a pgina da histria fantstica de Grimm, enquanto palpitava atravs delacomo avibrao de uma mola retesada ao mximoeque agora cessasse suavemente de pulsar

    o xtase da criao, vitoriosa.

    Cada uma das vibraes desse pulsar, enquanto ele se afastava, parecia uni-la a

    seu maridoedar a cada um deles a consolao que duas notas diferentes, uma grave,outra aguda, feridas ao mesmo tempo, se do uma outra quando se combinam.

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    J vai entrar, Sr. Carmichael?

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    errada, incorreta. Era isso que a importunava, vindo exatamente depois do desgostoque seu marido lhe dera; era esta a sua sensao agora que o Sr. Carmichael passava,

    bamboleante,apenas sacudindo a cabea como resposta sua pergunta, com um livrodebaixo do brao e os chinelos amarelos: ele desconfiava dela; e todo esse seu desejode dar, de ajudar, no era seno vaidade. Era para sua auto-satisfao que queria to

    instintivamente dar, ajudar, para que as pessoas dissessem: "Oh, aSra. Ramsay! aquerida Sra. Ramsay... a Sra. Ramsay, decerto!" e precisassem dela, e a chamassem e aadmirassem? No era isso que queria secretamente? E por isso, quando o Sr.Carmichael fugia dela, como fez naquele momento, refugiando-se em algum canto ondecomporia versos acrsticos sem fim, no se sentia repudiada apenas em seu instinto,mas consciente da mesquinharia que havia em alguma parte dentro dela e daimperfeio dos relacionamentos humanos, e de como as pessoas eram desprezveis eegostas, por mais que se esforassem. Velha e gasta, j no sendo, presumivelmente,uma viso que enchesse os olhos de alegria (suas faces estavam cavas, o cabelobranco), seria melhor que devotasse seu esprito histria do Pescador e sua Mulher, eassim acalmasse esse feixe de sensibilidade que era seu filho James (pois nenhum deseus filhos era to sensvel quanto ele).

    "O corao do homem se entristeceu"leu em voz alta;"ele no queria.Disse consigo mesmo:No direitomas mesmo assim, foi. E quando chegou aomar, a gua estava prpura e azul-marinho, cinzenta e espessa e no mais verde e

    amarelamas aindatranqila.Ficou ali e disse..."A Sra. Ramsay desejaria que seu marido no tivesse escolhido aquele instante

    para se deter. Por que no foi olhar as crianas jogarem crquete, como dissera? Masele no falava; olhava, concordava, aprovava; continuou andando. Prosseguia, vendodiante de si aquela sebe que, vez aps vez, ilustrara alguma incerteza, significaraalguma concluso, vendo a mulher e o filho, vendo de novo os vasos com os gernios

    vermelhos enfileirados, que tantas vezes ornamentaram seqnciasde pensamento eque as traziam escritas entre suas folhas, como se fossem pedaos de papel em que se

    rabisca notas, na pressa da leitura prosseguiu, vendo tudo isso, se deixandosuavemente deslizar numa especulao sugerida por um artigo do Times sobre onmero denorte-americanosque visitam a casa de Shakespeare todos os anos. SeShakespeare nunca houvesse existido perguntou-se seria hoje o mundo muitodiferente do que ? Ser que o progresso da civilizao depende dos grandes homens?Seria o destino do ser humano mdio melhor hoje do que no tempo dos Faras?

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    (intermitentemente) e em CharlesTansley (obsequiosamente)e agora em sua mulher quando ela erguia os olhos e o via de p na extremidade do gramado umareverncia, uma compreenso e uma gratido profundas; assim tambm a estaca

    espetada num canal, onde pousam as gaivotas e as ondas quebram, inspira u

    sentimento de gratido em alegres barcos de carga por ter tomado somente a si oencargo de marcar o caminho ali, no meio da correnteza.

    Mas o pai de oito filhos no tem outra alternativa. . . murmurou a meia-voz.Deteve-se, voltou-se, suspirou e, erguendo os olhos, procurou a figura de sua esposacontando estrias para seu filho pequeno; encheu o cachimbo. Fugiu viso da

    ignorncia humana, do destino humanoedo mar corroendo a terra onde pisamos, que,fosse ele capaz de encarar fixamente, talvez tivesse levado a algum resultado; e

    encontrou consolo eminsignificnciasto pequenas, se comparadas com o magnficotema que tivera diante dos olhos ainda h pouco, que se sentiu inclinado a reprovaresse consolo, desvaloriz-lo, como se o fato de ser apanhado feliz num mundo demisrias, para um homem honrado, constitusse o mais desprezvel dos crimes. Eraverdade; ele era quase completamente feliz; tinha sua esposa; tinha seus filhos;

    prometera que dali a seis semanas diria "algumas tolices" aos jovens deCardiffsobreLocke,Hume, Berkeleye as causas da Revoluo Francesa. Mas isso, e o prazer quelhe proporcionava, as frases que compunha, o ardor da juventude, a beleza de suamulher, as homenagens que lhe mandavam de

    Swansea,Cardiff,Exeter,Southampton,Kidderminster, Oxford,Cambridge tudotinha de ser desvalorizado e dissimulado sob a frase "dizer tolices", porque, coefeito, no fizera o que poderia ter feito. Era um disfarce; era o refgio de um homeque temia se apoderar de seus prprios sentimentos, que no podia dizer: disso quegosto, isto o que sou; e isso parecia bastante lastimvel e desagradvel

    aWilliamBankes eLilyBriscoe, que se perguntavam por que ele precisava dessasdissimulaes; por que precisava sempre de elogios; por que um homem to valente noterreno do pensamento era to tmido na vida; e como ele era estranhamente respeitvele ridculo ao mesmo tempo.

    Ensinar e pregar ultrapassam as foras humanas, suspeitava Lily. (Estavaguardando suas coisas.) Os que aspiram muito alto acabam se dando mal. A Sra.Ramsay dava com facilidade demais tudo o que ele lhe pedia. Por isso que amudana deve ser to perturbadora continuou Lily. Sai de seus livros e nos encontraogando e dizendo tolices. Imagine o contraste entre isso e as coisas que pensa.

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    Ele caminhava na direo deles. De repente se deteve e, esttico, ficou olhando omar, em silncio. Agora se voltou, e afastou-se novamente.

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    Sim,disse o Sr. Bankes, vendo-o afastar-se. Era terrvel (Lily dissera algumacoisa sobre como ele a assustava ao mudardeestado de esprito to repentinamente).Sim, disseo Sr.Bankes, era terrvel que Ramsay no conseguisse se comportar comoas outras pessoas (pois gostava de Lily Briscoe;podia discutir sobre Ramsay com elacom toda a franqueza).Por essa razo continuou que os jovens no le

    Carlyle: acham-no um jogador velho e rabugento,que perde a calma sem a menorrazo. Com que direito elenosfazpregaes? era isso que o Sr. Bankes entendiacomo a opinio dos jovens modernos. Era terrvel pensarcomo ele faziaqueCarlyle foi um dos grandes pregadores da humanidade. Lily ficou envergonhada deconfessar que no lia Carlyle desde que sara do colgio. Mas em sua opinio aspessoas ainda gostavam mais do Sr. Ramsay por ele achar que uma pequena dor nodedo mindinho era o fim do mundo. Mas no era isso que a importunava. Pois quem sedeixaria enganar por ele? Pedia abertamente a todos que o admirassem, e seuspequenos rodeios no enganavam a ningum. Ela no gostava era de sua intolerncia,

    sua cegueira, disse, seguindo-o com os;olhos.

    Um tanto hipcrita talvez?sugeriu o Sr. Bankes, olhando tambm as costasdo Sr. Ramsay, pois no estava pensando na sua amizade por Cam, no fato de ela ter senegado a lhe dar uma flor, e em todos esses meninos e meninas, e em sua prpria casa,muito confortvel, mas, desde a morte de sua mulher, to silenciosa? Claro, tinha seu

    trabalho.. .De qualquer forma, bem que gostaria de ouvir Lily concordar que Ramsayera, conforme afirmara, "um tanto hipcrita".

    Lily continuou guardando os pincis, erguendo e baixando os olhos. Ao levantar acabea, ela via o Sr. Ramsay, caminhando em sua direo, num andar incerto,descuidado, o ar ausente, distante. Um tanto hipcrita?, repetiu ela. Oh, no, o maissincero dos homens, o mais honesto (l estava ele), o melhor; mas, baixando os olhos,pensou: ele egosta, tirnico, injusto; e continuou com os olhos baixos

    propositadamente, pois somente assim poderia manter-se imperturbvel entre os

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    Seria a sensatez? Seria o conhecimento? Ou seria, mais uma vez, a foraenganadora da beleza, de tal modo qi percepes de uma pessoa eram, a meiocaminho da verdal de, enredadas numa trama de ouro? Ou guardaria ela algurasegredo que, com toda a certeza, as pessoas precisam ter! para que o mundo siga o se

    curso? As pessoas no podian viver de modo assim to precipitado, imediatista,como ela Mas se sabiam, poderiam transmiti-lo? Estava sentada n cho, o mais pertopossvel da Sra. Ramsay, e com o braos ao redor dos joelhos desta. Sorria ao pensar

    que el nunca saberia a razo dessa proximidade. Imaginou que noscompartimentosdocrebro e do corao da mulher qu tocava fisicamente, depositavam-se, como ostesouros no tmulos dos reis, pequenas tbuas com inscries sagrada que, decifradas,ensinariam tudo, mas nunca se ofer ceriam livremente nem se fariam pblicas. Que arte

    a se continha, conhecida do amor ou daastcia,por mei da qual se forava a entradanessas cmaras secretas? Qu o artifcio para conseguir formar indissoluvelmentenico ser como a gua despejada numa jarra com pessoa que se adorava? Seria o

    corpo capaz de consegui-lo ou a mente penetrando sutilmente pelas passagensintrincadas do crebro, ou o corao? Seria o amor, na forma emJ que as pessoas oentendiam, capaz de tornar a Sra. Ramsa~ e ela uma nica pessoa? Pois no era o

    conhecimento, mas a unidade, que ela desejava. No inscries em tabuinhas,?nadaque pudesse ser escrito em qualquer lngua conhecida dos homens, mas a intimidade

    mesma, que o prprio conhecimento, tal como sentira ao

    reclinar

    a cabea no colo da

    Sra. Ramsay.

    Nada aconteceu! nada! nada! quandoreclinaraa cabea no colo da Sra. Ramsay.E mesmo assim, sabia que o conhecimentoea sensatez se ocultavam no corao daSra. Ramsay. Como, perguntara-se ento, podia-se saber certas coisas sobre os outros,se eram assim to fechados? Somente como uma abelha, atrada pela suavidade ou a

    acidezdoar inatingveis ao tato ou ao gosto que se podia freqentar acolmeia

    em forma de cpula.Percorria sozinha a extenso do espao acima dos pases domundo, e s depois comeava a freqentar as colmeias com seus murmrios erebulios; as colmeias que eram as pessoas. A Sra. Ramsay se levantou. Lily selevantou. A Sra. Ramsay se foi. Por muitos dias a envolveu assim como aps umsonho se sente uma mudana sutil na pessoa com quem se sonhou o som de u

    murmrio maisvvidodo que qualquer coisa que dissesse, e, ao sentar-se na cadeira

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    devimejanela da sala, ela revestiu-se, aos olhos de Lily, de uma forma majestosa: aforma de uma cpula.

    O raio do seu olhar, paralelo ao do Sr. Bankes,dirigia-seSra. Ramsay, que,sentada, lia para James, prximo a seus joelhos. Mas agora, enquanto ela ainda aolhava, o Sr. Bankes j no o fazia. Colocara os culos. Recuara um passo. Erguera amo. Franzira levemente os claros olhos azuis, enquanto Lily, recobrando-se, viu o queele fazia e estremeceu, como um cachorro ao ver algum erguendo a mo para lhe

    bater. Teria arrancado o quadro do cavalete, mas disse consigo mesma: isso necessrio. Endireitou-se para suportar a terrvel provao de ver algum olhando oseu quadro. necessrio, disse, necessrio. E se devia ser visto, era-lhe menosalarmante que o fosse pelo Sr. Bankes antes de qualquer outra pessoa. Mas eraangustiante que os olhos de qualquer outra pessoa vissem o resduo dos seus trinta e

    trs anos de vida, o repositrio de cada um dos seus dias, mesclado a algo muito maissecreto do que tudo o que dissera ou mostrara no decorrer de todos esses anos. Aomesmo tempo, era infinitamente emocionante.

    Nada poderia ser mais calmo e comedido. O Sr. Bank pegou um canivete no bolso

    e bateu na tela com seu cabode osso. Que queria dizer com essa forma triangularpurprea"logo ali"?, perguntou.

    Era a Sra. Ramsay lendo para James, respondeu ela. Conhecia sua objeo:ningum diria que aquela mancha era uma forma humana. Mas no tentara faz-laparecida, disse Ento, por que os colocara no quadro?, perguntou ele. Realmente, por

    qu? Apenas porque, se aquele canto eraclaro,sentia a necessidade de colocar umasombra no outro.Era simples, bvio, banal, mas o Sr.Bankes estava interessado.Ento, me e filho, objetos da venerao universal nesse caso a me era conhecida

    por sua beleza , poderia ser reduzidos, sem irreverncia, a uma mancha purpureponderou ele.

    Mas a pintura no era sobre eles disse ela. Pelo me nos, no no sentido em queele o entendia. Havia outras formas de reverenci-los. Com uma sombra aqui e uma luzali, por exemplo. Se um quadro deve ser uma homenagem como vagamente ela achava,

    o seu tributo se expressavaassim. Me e filho podiam ser reduzidos a uma sombra, seirreverncia. Uma luz aqui exige uma sombra ali, mais adiante. Ele refletia,interessado. Encarava a tela cientificamente numa total boa f. Mas a verdade que

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    uma coisa pensou a Sra. Ramsay. Que ela devia t-lo aceito ou recusado. O que

    poderia significar essa sada aps o almoo para uma volta, mesmo que Andrewestivesse com eles? O que poderia significar? Somente que ela decidira aceitar, e

    acertadamente pensou a Sra. Ramsay (e ela estava muito, muito orgulhosa de Minta)

    , esse timo rapaz, que poderia no ser brilhante, mas pensou a Sra. Ramsay,percebendo que James a puxava para que continuasse a leitura da histria do Pescadore sua Mulher no ntimo preferia os homens tolos aos inteligentes que escrevia

    teses: CharlesTansley,por exemplo. De qualquer forma, a essa hora j deveria teracontecido.

    Mas leu: "Na manh seguinte, a mulher acordou primeiro; o dia acabava denascer, e de sua cama viu o lindo campo diante de si. Seu marido ainda estava se

    espreguiando..."

    Mas como poderia Minta recus-lo agora?No poderia, depois de ficar a tardeinteiravadiandopelo campo sozinha com ele poisAndrew sairia atrs de seuscaranguejos embora talvezNancyestivesse com eles. Tentou reconstituir a visodos dois em p na porta dovestbulo,depois do almoo. Ali ficaram olhando o cu eperscrutandoo tempo, e ela dissera, em parte para esconder a timidez de ambos, eparte para incentiv-los a sair (pois sentia simpatia por Paul):

    No h uma nica nuvem em milhas de extenso quando sentiu que oinsignificante Charles Tansley, que os seguira at ali, tinha um riso de escrnio. Mas

    ela fizera-o de propsito. No conseguia ter certeza seNancy estava com eles, aoolhar para um e para outro, na sua imaginao.

    Continuou lendo: "Ah, mulher, por que seramos reis? No quero ser Rei disseo homem. Bem, se voc no for rei, eu o serei; v falar com o peixe Solha, pois eserei Rei disse a mulher."

    Entre ou saia,Cam disse, sabendo que ela fora atrada apenas pela palavra"solha", e que num instante ficaria agitada e comearia a brigar com James, como de

    hbito.Camsaiu correndo. A Sra. Ramsay continuou a ler, aliviada, pois ela e Jamestinham os mesmos gostos e sentiam-se bem juntos.

    "E quando ele chegou perto do mar, estava cinzento escuro, e a gua agitada, com

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    um cheiro ptrido. Ento parou diante do mar e disse:

    Solha, solha do mar,

    Vem comigo ter;

    Pois minha mulher, Ilsabil,

    No quer me obedecer.

    "Bem, que quer ela, ento? disse a Solha." E onde estaro agora?, ponderou aSra. Ramsay, lendo e pensando ao mesmo tempo, com grande facilidade; pois a histriado Pescador e sua Esposa era como um contrabaixo acompanhando docemente umamsica que de vez em quando irrompe inesperadamente na melodia. E quando lhecontariam? Se nada tivesse acontecido, teria de conversar seriamente com Minta. Poisela no podia ficar correndo por a no campo, mesmo que Nancy estivesse com eles(tentou visualizar mais uma vez, sem conseguir, suas costas se afastando pelo caminho

    e enumer-las). Era responsvel perante os pais de Mintaa Coruja e o Atiador.Seus apelidos surgiram em sua mente, durante a leituraa Coruja e o Atiador. Sim,ficariam aborrecidos se ouvisseme era certo que ouviriamque Minta, estandocom os Ramsays, fora vista, et coetera, et coetera, et coetera. "Ele colocou umacabeleira postia na Cmara dos Comuns e ela o ajudou habilmente no alto da escada"

    repetiu ela mais uma vez os apelidos, fisgando-os na sua lembrana graas a umafrase que inventara, ao voltar de uma festa, para divertir seu marido. Meu Deus, meDeus, disse consigo mesma, como puderam ter uma filha to incongruente? Essa Mintadesajeitada, com a meia furada? Como poderia existir um ambiente to portentoso,onde a empregada ficava o tempo todo tirando, com uma p de lixo, a areia que o

    papagaio espalhava, e a conversa se concentrava quase exclusivamente nas faanhas interessantes, talvez, mas afinal um tanto limitadas desse pssaro?Naturalmente,convidaram-napara almoar, tomar ch, jantar, e finalmente para ficarcom eles em Finlay, o que provocara uma discusso com a Coruja, a me, e maisconvites, mais conversas, e mais areia. Ao final, ela j contara a respeito de papagaiosmentiras suficientes para o resto da sua vida (fora isso que dissera a seu marido

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    naquela noite, ao voltar da festa). Entretanto, Minta veio...Sim, veiopensou a Sra.Ramsay, suspeitando de algum espinho no emaranhado de seu pensamento; e,desembara-ando-o, descobriu isto: uma mulher a acusara certa vez de ter "roubado o

    afetode sua filha". Algum comentrio da Sra. Doylefizera-arelembrar essa acusao.

    Queria dominar, interferir, fazer os outros obedecerem s suas vontades coisa queela achava a maior injustia. Mas que podia fazer se causava essa impresso? Ningupoderia acus-la de se esforar para impressionar os outros. Muitas vezes seenvergonhava de sua prpria fraqueza. No era autoritria, tampouco tirnica. Talvezse pudesse dizer isso quando reagia apaixonadamente em relao a hospitais, sadepblica e queijarias. E, se tivesse oportunidade, gostaria de agarrar as pessoas pelagola e obrig-las a ver. Nenhum hospital na ilha. Era uma vergonha. O leite entregue porta, em Londres, era literalmente negro de sujeira. Deveria ser proibido. Duas coisasque ela mesma gostaria de fazer ali: um hospital e uma queijaria modelo. Mas como?

    Com todos aqueles filhos? Quando ficassem mais velhos, talvez tivesse tempo; quandotodos estivessem na escola.

    Oh, mas no queria que fames ficasse nem um dia mais velho, nem Cam. Gostaria

    de conservar os dois para sempre, assim mesmo como eram, demnios perversos,anjos encantadores; nunca v-los crescer e se transformar em monstros de pernascompridas. Nada poderia compensar essa perda. Quando lera, h pouco, para James:"e havia uma infinidade de soldados com cmbalos e trombetas", e seus olhos seturvaram, pensou: por que precisavam crescer e perder tudo isso? James era o mais

    bem dotado, o mais sensvel de seus filhos. Mas todos, pensou, eram promissores. Prueera um perfeito anjo para com os outros, e s vezes acontecia, agora, principalmente

    noite, de as pessoas chegarem a perder a respirao com sua beleza. Andrew atmesmo o marido admitiatinha um talento extraordinrio para a matemtica. Nancye Roger eram criaturas selvagens que corriam pelo campoo dia inteiro. Quanto aRose, tinha a boca enorme, mas era extremamente bem dotada nas mos. Quandobrincavam de mmica, era Rose quem preparava as fantasias apropriadas; fazia detudo; gostava de arrumar mesas, flores, qualquer coisa. No lhe agradava que Jasper

    atirasse cm passarinhos; mas isso era apenas uma fase. Todas as crianas passam porfases. Por que,perguntou-se,apertandooqueixo contra a cabea de James, por queprecisavam crescer to depressa? Por que precisavam ir para a escola? Gostaria de ter

    sempre umbeb.Era a pessoa mais feliz do mundo quando carregava um beb nosbraos. Ento, se quisessem, as pessoas at poderiam dizer que era tirnica,

    autoritria,dominadora,no se importava. E, tocando no cabelo de James com os

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    escondida por detrs da sua beleza. Isso o entristeceu. E a sensao de seu afastamento

    o fez sofrer, e sentiu, ao passar, que no poderia proteg-la e quando chegou altura da sebe, estava triste. Devia ficar por ali e observ-la. Sem dvida, a terrvel

    verdade que ele lhe tornava a vida mais difcil. Era suscetvel, era irritvel.

    Descontrolara-sepor causa do Farol. Olhou para o interior da sebe, para o centro deseu emaranhado, de sua escurido.

    A Sra. Ramsay sabia que era sempre possvel sair da prpria solido atravs de

    alguma bagatela, algumobjeto,algum som.Ps-se escuta, mas tudo estava calmo; ocrquete terminara; as crianas estavam no banho; havia apenas o barulho do mar.Parou de tricotar; ergueu a longa meia castanha que oscilou por um instante em suas

    mos. Com uma certa ironia em sua indagaopois, quando uma pessoa acaba de

    acordar totalmente, seus relacionamentos se transformam , olhou a firme,inexorvel, implacvel luz que era, ao mesmo tempo, tanto ela e to pouco ela, e pelaqual tinha devoo (acordava noite, a viacurvar-seao redor da sua cama, riscando ocho). Mas por tudo issopensou, enquanto a olhava fascinada, hipnotizada, comose a luz fizesse surgir, com seus dedos de prata, algum veleiro em seu crebro que, ao

    explodir, a inundaria de prazerconhecera a felicidade, a mais perfeita felicidade,intensa felicidade. Entretanto, medida que a luz do dia enfraquecia, e o mar perdiaseu azul e se encrespava com suas ondas amarelas cor de limo, e estas se curvavam,

    cresciam e rebentavam na praia, o xtase inundou seus olhos, e ondas de puro deleiteprecipitaram-se no fundo de sul mente, e ela sentiu: "Chega! Basta!"

    Ele se voltou e a viu. Ah! Estava linda, mais linda doque nunca pensou. Masno podia falar-lhe. No podia interromp-la. Tinha premncia em falar-lhe,agora que James se fora e estava por fim sozinha. Mas no, decidiu; no ainterromperia. Estava distante dele agorana sua beleza, na sua tristeza. Ele no a

    incomodaria. Passou por ela sem uma palavra, embora ofendido por elaparecer todistante, por no poder alcan-la e por nopoder fazer nada para ajud-la. E outravez teriapassadopor ela sem uma nica palavra, se ela no lhe tivessedado,naquelemesmo instante, por sua prpria vontade, o que sabia que ele nunca lhe pediria.Chamando-o, retirou oxaleverde da moldura do quadro, e foi ter com ele. Poissabiaque ele desejava proteg-la.

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