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*Mestrando em Cultura e Sociedade – Universidade Federal da Bahia Participação social e diversidade cultural: o Conselho Nacional de Política Cultural como instância plural na formulação da política nacional de cultura Leonardo Alexandre Santiago*

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*Mestrando em Cultura e Sociedade – Universidade Federal da Bahia

Participação social e diversidade cultural: o Conselho Nacional de Política

Cultural como instância plural na formulação da política nacional de cultura

Leonardo Alexandre Santiago*

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Resumo: A centralidade adquirida pela cultura, a partir da segunda metade do século XX, colocou em evidência a relação entre diversidade cultural, desenvolvimento e democracia. Em um mundo cada vez mais globalizado, a questão das diferenças tem ganhando atenção e apontado para a necessidade de formulação de políticas públicas democráticas. e que representem a diversidade da sociedade. A participação social é fundamental nesse processo e instâncias como o Conselho Nacional de Política Cultural caracterizam-se como potenciais instrumentos de promoção da diversidade cultural.

Palavras-chave: Conselho Nacional de Política Cultural; Participação Social; Diversidade Cultural; Políticas Culturais.

1 – INTRODUÇÃO

A participação social é um elemento fundamental na constituição da democracia. As

formas como a participação se dá, no entanto, muitas vezes se mostram

insuficientes para atender às demandas apresentadas por uma sociedade marcada

pela diversidade cultural e por uma pluralidade de interesses. Refletir sobre as

condições em que ocorrem os processos de negociação entre a sociedade e o

Estado. e sobre formas mais democráticas de elaboração de políticas públicas, tem

se mostrado uma necessidade para que as políticas públicas alcancem efetividade.

No campo da cultura, cenário de rápidas e complexas transformações, essas

questões produziram experiências como a do Conselho Nacional de Política Cultural

(CNPC), instância implementada pelo Ministério da Cultura em 2007. Tomando a

perspectiva antropológica de cultura, o ministério formulou a orientação de que os

conselhos, além de propor, formular, monitorar e fiscalizar as políticas culturais,

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deveriam representar não só as linguagens artísticas e os segmentos culturais, mas

também incorporar representantes da economia da cultura, como produtores

culturais, trabalhadores e empresários; representantes dos movimentos de

identidade, como índios e afro-brasileiros; de identidades sexuais, como os

movimentos de gênero e orientação sexual; de faixas etárias, como a juventude;

além de ONGs, representantes de territórios etc (BRASIL, 2011).

O que se propõe neste artigo é verificar, através de marcos legais, como a questão

de diversidade é abordada na composição dos conselhos de cultura da esfera

federal e como essas instâncias se constituem como mais ou menos plurais ao

longo da história brasileira.

2 – DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL

O século XX viu emergir a democracia como modelo desejado de governo. A

proposta democrática que se tornou hegemônica, no entanto, implicou no

favorecimento de procedimentos eleitorais de representação, em detrimento da

participação social (SANTOS, 2002). Em resposta à dificuldade demonstrada pelo

modelo de democracia representativa liberal em representar agendas e identidades

específicas, o tema da democratização do Estado tem ganhado evidência, dando

origem a novas experiências participativas.

De acordo com Santos (2002), além da concepção hegemônica de democracia -

como prática restrita de legitimação de governos - surgiu também, no pós-guerra, um

conjunto de concepções alternativas que podem ser chamadas de contra-

hegemônicas e que negam as formas homogeneizadoras de organização da

sociedade, reconhecendo a pluralidade humana.

“Quanto mais se insiste na fórmula clássica da democracia de baixa intensidade, menos se consegue explicar o paradoxo de a extensão da democracia ter trazido consigo uma enorme degradação das práticas democráticas. Aliás, a expansão global da democracia liberal coincidiu com uma grave crise desta nos países centrais onde mais se tinha consolidado, uma crise que ficou conhecida como a da dupla patologia: a patologia da

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participação, sobretudo em vista do aumento dramático do abstencionismo; e a patologia da representação, o fato de os cidadãos se considerarem cada vez menos representados por aqueles que elegeram” (SANTOS, 2002, p.42).

Especialmente nos países do Sul, os processos de democratização resultaram em

experiências de procedimentalismo participativo, com a inserção de novos atores na

cena política, instaurando uma disputa pelo significado da democracia. Conforme

Santos (2002), essa ressignificação das práticas democráticas teve impacto

particularmente alto na discussão democrática na América Latina, onde a questão foi

associada ao problema da transformação da gramática social e colocou em

discussão questões como a necessidade de uma nova forma de relação entre

Estado e Sociedade, e a relação entre representação e diversidade cultural e social.

Santos (2002) argumenta que os grupos mais vulneráveis socialmente, os setores

sociais menos favorecidos e as etnias minoritárias, não conseguem que os seus

interesses sejam representados no sistema político com a mesma facilidade dos

setores majoritários ou economicamente mais prósperos. Dessa forma, a articulação

entre democracia representativa e democracia participativa parece mais promissora

na defesa de interesses de identidades subalternas.

De acordo com Cuéllar (1997), muitos grupos têm sido privados de poder ou

influência e as políticas raramente têm refletido as tradições e os costumes de todos

os segmentos da comunidade. Além disso, poucos governos possuem instituições

que representam adequadamente os interesses, tanto da maioria quanto da minoria

– estas entendidas como grupos marginalizados ou vulneráveis que partilham de

sistemas de valores diferentes da cultura majoritárias, distintas e hegemônicas. Para

Cuéllar, o ritmo de implantação das políticas que os governos estão dispostos a

colocar em prática é distinto das necessidades reais, principalmente no domínio da

vida cultural, em que as transformações são aceleradas, contrastando com a rigidez

da política.

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No Brasil, a questão da participação social na elaboração de políticas públicas

guarda profunda relação com os movimentos sociais que reivindicaram a

redemocratização do país nas décadas de 1970 e 1980. Deles resultou a

Constituição Federal de 1988, considerada um marco no estabelecimento de novos

instrumentos de participação da sociedade na gestão da coisa pública,

estando entre estes os conselhos gestores que, segundo Gohn (2011), são uma

forma de participação sociopolítica e, como tal, se configuram como:

“...canais de participação que articulam representantes da população e membros do poder público estatal em práticas que dizem respeito à gestão de bens públicos. Eles constituem, no início deste novo milênio, a principal novidade em termos de políticas públicas. Após as análises, conclui-se que eles são agentes de inovação e espaço de negociação dos conflitos” (GOHN 2011, p. 7).

Da década de 1970 em diante, verificou-se um aumento significativo no número de

associações comunitárias no país e a alteração na forma de relação destas com o

Estado. Nesse período, registrou-se o surgimento do que se convencionou chamar

de “sociedade civil autônoma e democrática” (AVRITZER, 2009). Ao final da década

de 1980, uma série de formas híbridas de participação foram criadas. Entre elas os

conselhos de políticas públicas, principalmente nas áreas de saúde, assistência

social, meio ambiente e criança e adolescente (AVRITZER, 2009).

Gohn (2011) afirma que é possível diferenciar três tipos de conselhos no cenário

brasileiro do século XX. Primeiro, os criados pelo próprio poder público executivo

para mediar suas relações com os movimentos e com as organizações populares, a

partir do final dos anos 1970. Em segundo, os conselhos populares, construídos

pelos movimentos populares ou setores organizados da sociedade civil, em suas

relações de negociações com o poder público no final dos anos 1970 e parte dos

1980. E, por fim, os conselhos institucionalizados, criados por leis originárias do

poder legislativo para atender a pressões e demandas da sociedade civil,

que reivindicava participar da gestão dos negócios públicos.

O entendimento dos processos de participação da sociedade civil e sua presença nas políticas públicas nos conduz ao entendimento do processo

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de democratização da sociedade brasileira; o resgate dos processos de participação leva-nos, portanto, às lutas da sociedade por acesso aos direitos sociais e à cidadania. Nesse sentido, a participação é, também, luta por melhores condições de vida e pelos benefícios da civilização. (GOHN, 2011, p. 16)

O modelo de conselhos institucionalizados vem se proliferando desde a década de

1990 nas esferas federal, estadual e municipal, a partir de um redesenho

institucional implementado após a Constituição Federal de 1988, que trouxe um

novo formato de gestão das políticas públicas, instituindo os mecanismos de

descentralização e a participação nas três esferas de governo.

No campo cultural, a necessidade de descentralização da vida cultural em seus

aspectos geográfico e administrativo foi apontada pela UNESCO, em 1982, na

Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais, como forma de assegurar que as

instituições conhecessem melhor as preferências, opções e necessidades da

sociedade. Para isso, a declaração produzida pela conferência afirma ser essencial

“multiplicar as oportunidades de diálogo entre a população e os organismos

culturais” (UNESCO, 1982, p.3).

A declaração da UNESCO está inserida em um contexto de profundas

transformações no mundo, com o avanço da ciência e da técnica que modificaram o

lugar do ser humano no mundo, assim como a natureza de suas relações

(UNESCO, 1982). Esse momento resultou também na ampliação e na

complexificação do conceito de cultura pelo órgão que passou a considerar cultura

como:

conjunto dos traços distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afetivos

que caracterizam uma sociedade e um grupo social. Ela engloba, além das

artes e das letras, os modos de vida, os direitos do ser humano, os sistemas

de valores, as tradições e as crenças (UNESCO, 1982, p.1).

As transformações pelas quais passou o campo cultural, apontadas por Cuéllar, e a

amplitude da cultura, aponta pela Unesco, repercutem no que Hall (1997) irá

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classificar como “Centralidade da Cultura”, com o campo cultural, a partir da

segunda metade do século XX, ocupando um lugar cada vez mais central nas

sociedades, passando a ser abordado a partir de diversas frentes, desempenhado

diferentes papéis no mundo contemporâneo e penetrando em todos os espaços da

vida social.

2 - A CENTRALIDADE DA CULTURA E AS POLÍTICAS CULTURAIS

A cultura vem, ao longo das últimas décadas, ocupando um lugar cada vez mais

central nas sociedades. O campo cultural tem sido abordado a partir de diversas

frentes e desempenhado diferentes papéis no mundo contemporâneo, fazendo-se

presente em todos os espaços da vida social.

Essa centralidade da cultura (HALL, 1997) estaria se dando tanto em aspectos

substantivos quanto epistemológicos, com o primeiro dizendo respeito ao lugar que

a cultura ocupa na estrutura empírica, real e na organização das atividades,

instituições e relações na sociedade; e o segundo referindo-se à posição da cultura

quanto às questões de conhecimento e conceituação; o uso que é feito dela para

transformar a compreensão e modelos teóricos do mundo.

Hall identifica a existência de uma “Revolução Cultural” a partir de dimensões como

a ascensão de novos domínios, instituições e tecnologias; a força da mudança

histórica global; a transformação cultural do cotidiano; e a formação de identidades

pessoais e sociais. A cultura estaria, assim, assumindo uma importância inédita no

que diz respeito à estrutura e à organização da sociedade, aos processos de

desenvolvimento e à disposição de recursos econômicos e materiais, estando os

meios de produção, circulação e troca cultural se expandindo através de tecnologias

e da revolução da informação. A compressão do tempo e do espaço gerado pelas

tecnologias estariam levando a mudanças na consciência popular, já que vivemos

em ambientes cada vez mais múltiplos e virtuais.

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A importância dessas revoluções consistiria em sua escala global, na amplitude de

seu impacto e em seu caráter democrático e popular, tendo consequências sobre os

modos de viver, sobre os sentidos que as pessoas dão à vida, sobre suas

aspirações de futuro e sobre a cultura num sentido mais local. Essa revolução afeta

a vida cotidiana das pessoas comuns e tem como característica a penetração da

cultura em cada recanto da vida social, mediando tudo. Neste cenário, a cultura não

pode mais ser tomada como uma variável de importância secundária, mas precisa

ser vista como algo fundamental, constitutivo, que determina a forma como se move

o mundo e a vida das pessoas.

De acordo com Rubim (2009), a centralidade ocupada pela cultura repercute

também sobre a elaboração das políticas culturais, que agora, além de enfrentar os

desafios situados no interior do campo cultural, deparam-se com novos desafios que

surgiram do transbordamento da cultura para além de suas fronteiras. Esse

processo é apreendido pela noção de transversalidade da cultura, que expressa as

múltiplas possibilidades existentes de dimensões sociais, hoje visitadas e

perpassadas pela cultura.

“Assim, as políticas culturais devem ser desenvolvidas interagindo com fluxos provenientes das dimensões nacionais, globais, regionais e locais, mas também buscando incorporar e articular um conjunto bastante variado de agentes culturais; estados nacionais, subnacionais (estaduais e municipais), supranacionais (organismos multilaterais); sociedade civil; empresas; grupos sociais e culturais etc. Este desafio pode e deve ser enfrentado através da construção de efetivas políticas públicas de cultura, nas quais os diferentes agentes culturais sejam incluídos e tenham garantias de participação e deliberação” (RUBIM, 2009, p.109).

Segundo Rubim (2007), para se falar em políticas culturais, são necessários

requisitos como a existência de intervenções conjuntas e sistemáticas, além de

atores coletivos e metas, o que só é possível identificar no Brasil a partir da década

de 1930. De opinião semelhante, Calabre (2009) afirma que a maior parte dos

estudiosos concorda que as políticas culturais podem ser definidas como:

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um conjunto de ações elaboradas e implementadas de maneira articulada pelos poderes públicos, pelas instituições civis, pelas entidades privadas, pelos grupos comunitários dentro do campo do desenvolvimento do simbólico, visando a satisfazer as necessidades culturais do conjunto da população (CALABRE, 2009, p.12).

Embora o olhar do Estado sobre a cultura como uma área que deva ser tratada sob

a ótica das políticas públicas seja uma questão recente e os estudos dispersos,

Calabre ressalta que:

A compreensão contemporânea do tema é que se trata de uma política pública que deve ser, necessariamente, elaborada a partir de um pacto entre os diversos agentes envolvidos (gestores, produtores e consumidores) e não em um movimento de mão única por meio do qual o Estado determina o que será colocado em ação, quais práticas culturais deverão ser exercidas e consumidas pela população, ou, ainda, como será o atendimento dos

interesses exclusivos das classes artísticas (CALABRE, 2009, p.12-13)..

A inauguração efetiva das políticas nacionais de cultura na década de 1930 significa

também o início de uma tradição de relação entre governos autoritários e políticas

culturais, que irá se fazer presente de forma problemática na história brasileira

(RUBIM, 2007). Durante o século XX, o Estado brasileiro ficou marcado por sua

ausência na produção de políticas culturais durante os períodos democráticos e por

sua forte intervenção durante os períodos autoritários. Em ambos os casos, a

sociedade civil foi colocada à margem dos processos decisórios sobre estratégias e

ações, que acabaram sujeitas ao mercado ou a governos ditatoriais. A falta de um

debate crítico com a sociedade civil para a construção de políticas de cultura

democráticas tornou-se, segundo Rubim (2008), um dos fatores responsáveis pela

escassez de políticas dotadas de efetividade no país.

“A tradição autoritária das políticas culturais nacionais mais ativas tem impossibilitado, igualmente, que elas possam ser discutidas e negociadas com a sociedade civil, em especial com os setores interessados em cultura, e por conseqüência, traduzidas em políticas públicas de cultura. Isto é, políticas que podem emanar do governo, mas que, ao passarem pelo crivo do debate crítico com a sociedade civil, se transformam em políticas públicas de cultura. Tais políticas, democráticas, também detêm mais possibilidade de transcenderem esta comprometedora tradição de instabilidade” (RUBIM, 2008, p.194).

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Se no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) se deu a implementação de

diversas ações articuladas para promover a intervenção do Estado no campo

cultural, no período de 1946-1960 a presença do Estado como elaborador e

fomentador de políticas ficou restrita praticamente à função de regular e dar

continuidade às instituições criadas ao longo do governo Vargas. A presença do

Estado voltou a ser sentida durante o período do governo militar (1964 a 1984) com

a forte presença do Conselho Federal de Cultura; a contribuição para a

institucionalização da área a partir da criação e da reformulação da estrutura pública;

e a efetiva presença em escala nacional das instituições. Porém, a partir de 1985, a

presença do Estado na elaboração de políticas culturais foi sendo reduzida

gradativamente, até que, em 2002, o governo havia praticamente se retirado do

processo decisório, enquanto predominavam as leis de incentivo (CALABRE, 2009).

O desafio de formular e operar políticas públicas de cultura articulando um conjunto

variado de agentes com garantias de participação e deliberação foi enfrentado, a

partir de 2003, pelo Ministério da Cultura com a elaboração de políticas de

democratização, participação social, valorização da diversidade, além da adoção do

conceito ampliado de cultura. A centralidade da cultura e o papel do governo na

elaboração de políticas culturais foram pontos reafirmados em diversas

oportunidades por Gilberto Gil, enquanto esteve à frente do Ministério da Cultura, de

2003 a 2008.

a tarefa do Ministério da Cultura é formular e executar políticas públicas de cultura, articuladas e democráticas, que promovam a inclusão social e o desenvolvimento econômico, e consagrem a pluralidade que nos singulariza entre as nações, e que singulariza, dentro da nação, as comunidades que a compõem (GIL, 2003b). Não duvidem: a realização do desejo coletivo de construir um país de todos passa necessariamente pela cultura. Não no sentido das concepções acadêmicas ou dos ritos 'artístico-intelectuais', mas em seu sentido pleno, antropológico e econômico. Cultura, portanto, como a dimensão simbólica da existência social brasileira. Como usina de signos de cada comunidade e de toda a nação. Como eixo construtor de nossa identidade, permanentemente alimentada pelos encontros entre as múltiplas

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representações do ser brasileiro e da diversidade cultural do planeta (GIL, 2003a).

3 – CONSELHOS DE CULTURA, DIVERSIDADE E PLURALISMO

Considerando-se que a diversidade cultural refere-se à “multiplicidade de formas

pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão”

(UNESCO, 2005, p. 4) e que “o pluralismo se manifesta na forma da promoção da

heterogeneidade sobre a homogeneidade, da diferença sobre a mesmice, ou da

distribuição de poder sobre a centralização” (EDGAR e SEDGWICK, 2003, p.244-

245), funcionando como uma garantia de “que grupos de interesses rivais e outras

facções tenham um papel decisivo de controle e equilíbrio no processo político”

(EDGAR e SEDGWICK, 2003, p.245), pode-se tomar, de forma comparativa, a

composição dos conselhos de cultura ao longo da história brasileira como parâmetro

para se verificar como a diversidade e a pluralidade no campo cultural foram

tratadas por diferentes governos, sob a perspectiva da participação.

Segundo Barros (2011), a relação entre conselhos de cultura e diversidade cultural

remete a uma dupla dimensão reflexiva. A diversidade pode ser tomada como objeto

de políticas públicas e, consequentemente, objetivo de ação dos conselhos, mas

também pode ser percebida a partir da forma como os conselhos expressam a

diversidade em sua estrutura, atribuições, composição e modus operandi.

No que se refere à composição, as variáveis poderiam revelar o grau efetivo de representação dos diversos setores da sociedade civil, considerando não só as diferenças simbólicas e estéticas, mas a heterogeneidade dos setores representados, as diferenças de estágios organizativos, e a diversidade de sua representação em termos de gênero, etnia, territorialidade etc (BARROS, 2011. p.364).

Embora seja possível encontrar iniciativas brasileiras no campo dos conselhos de

cultura desde a década de 1930, essas experiências se caracterizaram por serem

elitistas e não democráticas, já que os conselhos eram formados por personalidades

indicadas para os conselhos graças às suas ligações com o governo, não tendo

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nenhum compromisso de representar os interesses dos diferentes segmentos

culturais e sociais (RUBIM, 2011).

Em 1931, quando o setor de cultura ainda fazia parte do Ministério da Educação e

Saúde, o Decreto nº 19.850, de 11 de Abril, criou o Conselho Nacional de Educação,

como órgão consultivo. A composição desse conselho se dava por “conselheiros,

nomeados pelo Presidente da República e escolhidos entre nomes eminentes do

magistério efetivo ou entre personalidade de reconhecida capacidade e experiência

em assuntos pedagógicos” (BRASIL, 1931).

Em 1938, ainda no governo de Getúlio Vargas, foi instituído pelo Decreto-Lei nº 526,

de 1º de Julho, o Conselho Nacional de Cultura, ligado ao Ministério da Educação e

Saúde. Ele é constituído por “sete membros, designados pelo Presidente da

República, dentre pessoas notoriamente consagradas ao problema da cultura,

devendo figurar entre eles pelo menos quatro dos diretores ou altos funcionários de

repartições do Ministério da Educação e Saúde, encarregadas de qualquer

modalidade de atividade cultural” (BRASIL, 1938).

Em 1961, o Decreto nº 50.293, de 23 de Fevereiro, criou outro Conselho Nacional de

Cultura. Ele tinha integrantes nomeados pelo governo e era formado por

representantes setoriais (Literatura; Teatro; Cinema; Música e Dança; Artes

Plásticas) integrantes de entidades de cada setor artístico ou por pessoas de

reconhecido valor cultural, além de cinco representantes do governo.

Esse decreto, no entanto, não durou muito tempo e foi substituído no ano seguinte,

1962, pelo Decreto do Conselho de Ministros nº 771, de 23 de Março, que reativava

o Conselho Nacional de Cultura de 1938, ligando-o ao Ministério da Educação e

Cultura (criado em 1955). Sua composição se dava por “sete membros, designados

pelo Presidente da República, dentre pessoas notoriamente consagradas aos

problemas da cultura, devendo figurar entre eles, pelo menos, quatro diretores ou

servidores de órgãos culturais do Ministério da Educação e Cultura” (BRASIL,

1962). Além disso, o conselho era assessorado por sete comissões (nas áreas de

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Literatura; Teatro; Cinema; Música; Artes Plásticas; Ciências Sociais; Filosofia e

História), formadas cada uma por cinco membros indicados pelo Ministro da

Educação e Cultura “escolhidos dentre os representantes de entidade cultural ou

pessoas de reconhecido valor” (BRASIL, 1962).

Em 1966, já no regime militar, foi criado o Conselho Federal de Cultura pelo

Decreto-lei Nº 74, de 21 de novembro. Ele era composto por 24 membros nomeados

pelo Presidente da República, “dentre personalidades eminentes da cultura

brasileira” (BRASIL, 1966). Na escolha dos membros do Conselho, o Presidente da

República deveria levar em consideração “a necessidade de nele serem

devidamente representadas as diversas artes, as letras e as ciências”

(BRASIL,1966).

Em 1992, a Lei N° 8.490, de 19 de novembro, criou o Conselho Nacional de Política

Cultural e, em 1993, o decreto Nº 823, de 21 de maio, dispôs sobre a sua estrutura.

Como parte integrante do Ministério da Cultura (criado em 1985), o conselho era

composto de “24 membros, nomeados pelo Presidente da República, por indicação

do Ministro de Estado da Cultura, escolhidos dentre personalidades eminentes da

cultura brasileira” (BRASIL, 1993), sendo que “na escolha dos membros do

Conselho, será considerada a necessidade de nele serem representadas todas as

áreas de atuação do Ministério da Cultura” (BRASIL, 1993)

Em 2000, já no governo de Fernando Henrique Cardoso, o decreto 3.617, de 2 de

outubro, praticamente extingue o conselho ao reduzir sua composição ao Ministro da

Cultura, ao Secretário-Executivo do Ministério da Cultura, ao IPHAN, aos titulares

das Secretarias e aos presidentes das fundações que compõem a estrutura

organizacional do ministério.

A reformulação do Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC), em 2005, e sua

reativação, em 2007, é uma iniciativa que se inscreve nos esforços do Ministério da

Cultura de cumprir as mudanças anunciadas por Gil e conciliar um período de

democracia com um papel ativo do Estado na formulação de políticas culturais.

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Instituído em 2005, durante o governo Lula, pelo Decreto Nº 5.520, de 24 de agosto,

e alterado pelos decretos de nº 6.973, de 2009, e nº 8.611, de 2015, o Conselho

Nacional de Política Cultural (CNPC) entrou em atividade em 2007 como integrante

da estrutura básica do Ministério da Cultura. O CNPC tem por finalidade “propor a

formulação de políticas públicas, com vistas a promover a articulação e o debate dos

diferentes níveis de governo e a sociedade civil organizada, para o desenvolvimento

e o fomento das atividades culturais no território nacional” (BRASIL, 2005) e a

responsabilidade de propor e aprovar as diretrizes gerais do Plano Nacional de

Cultura, bem como acompanhar e avaliar a execução deste.

A estrutura do CNPC é constituída por cinco entes:

1 – Plenário: formado por 24 representantes do Poder Público federal, 14 das áreas

técnico-artísticas, 11 do patrimônio cultural, 4 do Poder Público dos Estados e

Distrito Federal, 4 do Poder Público municipal, 1 do Fórum Nacional do Sistema S; 1

das organizações não-governamentais de inclusão social, 1 de entidades de

pesquisadores na área da cultura, 1 do Grupo de Institutos, Fundação e Empresas –

GIFE, 1 da Associação Nacional das Entidades de Cultura - ANEC; 1 da Associação

Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior - ANDIFES; 1

do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB; e 1 da Sociedade Brasileira

para o Progresso da Ciência – SBPC).

2 - Comitê de Integração de Políticas Culturais: formado pelos titulares das

secretarias, autarquias e fundações vinculadas ao Ministério da Cultura;

3 - Colegiados Setoriais: constituídos por representantes do Poder Público e da

sociedade civil, de acordo com regimento interno do CNPC;

4 - Comissões Temáticas ou Grupos de Trabalho: integrados por representantes do

Poder Público e da sociedade civil, de acordo com norma do Ministério da Cultura;

5 - Conferência Nacional de Cultura: constituída por representantes da sociedade

civil indicados em Conferências Estaduais, na Conferência Distrital, em Conferências

Municipais ou Intermunicipais.

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4 - CONCLUSÃO

As informações colhidas nos decretos federais, embora restritas à questão da

composição dos conselhos, tornam possível estabelecer uma distinção entre o

CNPC de 2005, dos conselhos anteriores, no que diz respeito à diversidade cultural

e pluralidade expressa nas representações que o constituem.

Além da restrição numérica dos conselhos anteriores, percebe-se que,

diferentemente do CNPC, os membros eram escolhidos pelo presidente da

república, o que não imputava aos conselheiros, compromisso em representar as

diversidades culturais e sociais. Verifica-se também que são privilegiadas as

representações de artes em detrimento de segmentos culturais, economia da

cultura, movimentos de identidade, entre outros. No caso do CNPC, a opção do

Ministério da Cultura de tomar a cultura a partir de uma perspectiva ampla, fez com

que, em seu decreto mais recente, o conselho estabelecesse um Plenário com

representação de grupos e setores diversos, como arte digital, cultura hip hop;

expressões artísticas culturais afro-brasileiras; culturas dos povos indígenas;

culturas populares; capoeira; cultura alimentar; culturas quilombolas; culturas dos

povos e comunidades tradicionais de matriz africana, entre outras.

Embora não seja possível afirmar que a articulação entre diversidade cultural e

participação social se dê de forma efetiva no CNPC sem avaliar outras questões

expressas por Barros (2011), verifica-se que, no que tange aos critérios de

composição, o CNPC instituído em 2005 estabelece grandes avanços no desafio de

considerar a diversidade cultural na elaboração das políticas culturais ao viabilizar

um ambiente de deliberação em que múltiplas vozes podem ser ouvidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

16

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