parteira e modista sec xix

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MARIA LUCIA DE BARROS MOTT Madame Dur, °cher , modista e parteira ' Pesquisa realizada pelo CEDHAL/Centro de Demografia HIstorica da America Latina USP 2 Ercllia Nogueira Cobra (1891 ')) e autora do livro Virgindade Anil Higlenica publicado em 1924 Sobre a vida e obra da escritora ver MOTT M L B Biografia de Uma Revoltada Cadernos de Pesquisa n a 58 89 104 agosto 1986 A escolha do estudo da vida e da obra de Mme Durocher (1809-1893) como assunto de pesquisa deve se em parte a uma preocupação antiga sobre a reprodu ção da população no Brasil no seculo XIX Mas deve se tambem a surpresa e ao encantamento quando em 1988 trabalhando em um levantamento sobre a criança e a infância na Historia do Brasil' na biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo deparei com pequenas lembranças homenagens biografias caricatura fotografia e artigos da primeira parteira diplomada no Brasil Se as Ilustrações de Mme Durocher vestida de homem com casaca gravata borboleta e de ralos cabelos brancos reproduzidas nos livros causaram me surpresa as primeiras informações sobre a vida da parteira foram impactantes Era impossivel não associar aquela figura a de outra mulher - a da paulista Ercilia Nogueira Cobra - que por outros meios a escrita tambem tinha se rebelado contra as normas e os padrões de comportamento impostos ao sexo feminino bem como aos limites que restringiam as aspiraçoes e os sonhos das mulheres de sua epoca 2 Assim mais uma vez decidi me dedicar ao estudo da vida de uma mulher que havia rompido com os papeis sociais normativos e prescritos A biografia como forma de conhecimento historico principalmente quando trata da vida de mulheres adquire em geral um tom ufanista onde a vida da biografada e tomada como exemplo de excepcionalidade Esse não e o meu objetivo O fato de ter escolhido a vida de uma mulher precursora não significa que deseje associa ia com a exceção que confirmaria a regra das mulheres brasileiras do passado como subjugadas pela familia patriarcal reclusas na casa grande ou no sobrado analfabetas relaxadas e incultas vivendo numa eterna ociosidade ESTUDOS FEMINISTAS 1 01 N 1/94

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Parteira e Modista sec xix

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Page 1: Parteira e Modista Sec Xix

MARIA LUCIA DE BARROS MOTT

Madame Dur, °cher ,

modista e parteira

' Pesquisa realizada peloCEDHAL/Centro deDemografia HIstorica daAmerica Latina USP

2 Ercllia Nogueira Cobra(1891 ')) e autora do livroVirgindade Anil Higlenicapublicado em 1924 Sobre avida e obra da escritora verMOTT M L B Biografia deUma Revoltada Cadernosde Pesquisa na 58 89 104agosto 1986

A escolha do estudo da vida e da obra de MmeDurocher (1809-1893) como assunto de pesquisa deve seem parte a uma preocupação antiga sobre a reprodução da população no Brasil no seculo XIX Mas deve setambem a surpresa e ao encantamento quando em1988 trabalhando em um levantamento sobre a criançae a infância na Historia do Brasil' na biblioteca daFaculdade de Medicina da Universidade de São Paulodeparei com pequenas lembranças homenagensbiografias caricatura fotografia e artigos da primeiraparteira diplomada no Brasil Se as Ilustrações de MmeDurocher vestida de homem com casaca gravataborboleta e de ralos cabelos brancos reproduzidas noslivros causaram me surpresa as primeiras informaçõessobre a vida da parteira foram impactantes

Era impossivel não associar aquela figura a deoutra mulher - a da paulista Ercilia Nogueira Cobra - quepor outros meios a escrita tambem tinha se rebeladocontra as normas e os padrões de comportamentoimpostos ao sexo feminino bem como aos limites querestringiam as aspiraçoes e os sonhos das mulheres desua epoca2 Assim mais uma vez decidi me dedicar aoestudo da vida de uma mulher que havia rompido comos papeis sociais normativos e prescritos

A biografia como forma de conhecimentohistorico principalmente quando trata da vida demulheres adquire em geral um tom ufanista onde avida da biografada e tomada como exemplo deexcepcionalidade Esse não e o meu objetivo O fato deter escolhido a vida de uma mulher precursora nãosignifica que deseje associa ia com a exceção queconfirmaria a regra das mulheres brasileiras do passadocomo subjugadas pela familia patriarcal reclusas nacasa grande ou no sobrado analfabetas relaxadas eincultas vivendo numa eterna ociosidade

ESTUDOS FEMINISTAS 1 01

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, Dado levantado natraduçao da certiclao denascimento de MmeDurocher feita por ocasiaodo pedido de naturalizaçaoArquivo Nacional/AN IJJ 6 N

6 SENNA Ernesto ParteiraDurocher Notas de umReporter Rio de JaneiroJornal do Commercio 1895p 193 Todas as citaçoesdeste autor foram retiradasda referida obra

'Dado levantado noRegistro da Carta deParteira Arquivo Geral daCidade do Rio de Janeiro/AGCRJ 84 31 fl 160v

3 DUROCHER M J M Ideiaspor Coordenar a Respeitoda Emancipaçao dosEscravos Rio de Janeiro Typdo Nom do Rio de Janeiro1871

4 MOTT M L B De Modista aAcademia Imperial deMedicina D O Leitura12(142) 89 março 1994

Embora a trajetoria de Mme Durocher tenhavanos aspectos de excepcionalidade como porexemplo o fato de ter sido a primeira mulher educadano Brasil que se tem noticia ate o momento a publicartextos com o propno nome na area de Medicina (1848)e a unica mulher admitida como socia no seculopassado na Academia Imperial de Medicina (1871)sua vida se aproxima a de outras mulheres do Brasilurbano do secuio XIX que sobreviveram do mesmooficio de parteira como tambem das costureiras emodistas que cruzaram o Atlantico para fazer aAnnenca e ainda das escritoras que em pleno regimeescravista chegaram a expor suas ideias contra aescravidao3 Dai o meu desejo que esse trabalho sejaentendido principalmente como uma contribuiçãopara o conhecimento dos papeis sociais femininos noseculo XIX

Neste artigo serão abordadas apenas as duasprimeiras decadas de vida de Mme Durocher Não voume estender para alem de 1834 pois uma primeiraanalise dos 50 anos de sua atividade enquanto par-teira bem como de sua clinica obstetnca que chegoua somar mais de cinco mil partos foi publicadarecentemente4

O artigo divide se em duas partes interligadasentre si A primeira delas refere se principalmente achegada das modistas francesas no Rio de Janeiro edas Durocher em particular e a segunda a formaçãoeducacional e profissional da nossa parteira sem perderde vista as possibilidades de educaçao oferecidas asmulheres na Corte nas primeiras decadas do seculo XIXOs limites cronologicos situam se basicamente entre1816 data da chegada das Durocher ao Brasil e 1834ano em que Josefina obteve o diploma no curso departos

Uma genealogia no feminino

Situar a parteira Durocher no universo das modistas francesas no Rio de Janeiro das primeiras decadasdo seculo XIX tem por objetivo reconstruir sua genealogia Reconstruir significou deparar se com a presençaconstante de mulheres

A mãe Ana Durocher nascida em Nancy(França)5 e lembrada como uma mulher educadareligiosa defensora de ideias poli-ficas liberais que teriasido educada por uma tia abastada residente naAlemanha Em Paris Ana Durocher teria aprendido ooficio de florista com um mestre portugues6 Ai ja comuma filha pequena de pai dito desconhecido 7 teria

ANO 2 102 1

. SEMESTRE 94

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9 SAY H Histotre desRelatIons CommerctalesEntre /a France et le Brestl etConsiderations Generales surles Monnaies /es Changes/es Banques et le CommerceExteneur Paris Guillaumin1839 p 56 o trecho entreaspas foi transcrito do livrode DEVEZA G Um Precursordo Comercio Frances noBrasil Soo Paulo EditoraNacional Brasilia INL1976 p 3

' e SAINT PRIEST A Memorialsobre o Estado PoliticoEstatistico Judiciário eAdministrativo do Brasildesde a Abdicação de DPedro late 02/05/1834dirigido ao Ministro deEstrangeiros Conde deRigny pelo Conde Alexis deSt Pnest In ColeçaoEscragnolle Dona Relaçaodos Documentos Francesescolhidos em Arquivos daFrança (extratos) p 172 ANRE 34 vi 2

e DUROCHER M J M Deveou Não Haver Partetras9Anais Brasi/tenses deMedicina t 22 n2 9 fev1871 p 296 Com exceçaodas notas n2 50 e 52 todasas citagoes de MadameDurocher foram retiradas doreferido artigo

sustentado a mãe idosa e enferma ate a mortemomento em que deixou a França com Josefina queentão teria apenas sete anos de idade

Na pequena autobiografia que inclui no artigoDeve ou Não Haver Parteiras? Mme Durocher fala dasua partida daquele pais Afirma desconhecer as razõesque levaram a mae a emigrar em 1816 sem ter decidido de antemao um roteiro a ser seguido primeiro forampara a Belgica e em Antuerpia teria decidido embar-car para o Bramia

Ernesto Senna atribui esta viagem a razões econô-micas e politicas Arrimo de familia Ana Durochervendo escassear o trabalho e sem meios de sustentar a

sua filha para a qual era muito extremosa e com ocoração amargurado por ver a sua patna invadida eocupada pelas tropas das nações aliadas resolveuabandonar a França (p 193)

A falta de um roteiro de viagem pre estabelecidolembrada pela parteira e a emigração por motivospoliticos e economicos acima referidos por Senna sãoas razões apontadas por Horace Say para a emigraçãofrancesa nos anos seguintes a abdicação (1814) ederrota de Napoleao (1815) Diz o autor de Histolre desRelations Commerciales entre Ia Franco et /e Bresil queum grande numero de pessoas ligadas aos acontecimentos anteriores com a mudança politica ficaramsem emprego Visando conseguir novas oportunidadesna industria e no comercio administradores militaresartistas alguns exaltados que desejavam associar-se ainfortunios ilustres ou que pensavam não poder viver nosolo nacional maculado pela ocupação estrangeiraprecipitaram se para os portos mantimos munidos dealgumas mercadorias compradas as pressas o primeironavio que partia era o que lhes convinha mais poucolhes Importando de resto o lugar de destino 9

Assim a partir de 1814 uma população variadano que se refere ao sexo idade relações familiarescondição social e profissao desembarcou no Brasil Em1834 o Conde de St Pnest referindo se aos seus compatnotas no Brasil dizia que a população francesa aquitinha representantes de todo o Terceiro Estadol°

Na relação de franceses que vieram para o Riode Janeiro entre 1808 1820 dentre os mais de 300imigrantes relacionados constata se que a maioria erado sexo masculino e se declarava como sendo solteiraMas havia tambem mulheres que declaram ser casadase estarem acompanhadas de seus maridos filhas efilhos viuvo com filhos filhas e/ou sobrinha mãe efilhos mae e filhas umas irmao e irmãs tio e sobrinhaviuva e filhos e algumas poucas mulheres que sedeclararam sozinhas Varias dentre estas mulheres tanto

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"Franceses Residentes noRIO de Janeiro (1808 1820)Rio de Janeiro Publicaçoesdo Arquivo Nacional 10serie v 45 p 1 38 1960

' Mecanica sao todas asmanufaturas de trabalhosde maos e pes todas quenao se aprendem porprincipias cientificas as quese praticam por mesteresVer SILVA A M Dicionanoda Lingua PortuguesaLisboa Typ Antonio Jose daRocha 1858 vol 2 p 345

' , AN IJJ 6 N

' 4 A viagem durava emgeral por volta de 70 diasUm acidente ainda nolitoral da Inglaterra foi omotivo de uma travessia taoprolongada

' 5 DEVEZA G op cit(nota 9) p 34

16 Almanaque do Rio deJaneiro 1817 Revista daInstituto Hístonco eGeografia° Rio de Janeirona 270 304 305 jan mar1967

casadas como viuvas e solteiras afirmaram possuir umaprofissão"

Manana Jolly por exemplo tinha 35 anos seapresentou como meca nica 12 e casada com umportugues Embarcou no porto de Havre de Grâce em1815 Mme Suesse 30 anos mecanica era solteirachegou em 1816 para se estabelecer assim como aviuvo Joana Possane de 43 anos tambem mecanicaque veio com a Irma Anette Ferran chegou em 1817tinha 24 anos era solteira nobre e veio com o desejo dese estabelecer Naquele ano chegou Maria David comseu mando Tinha 28 anos era mecanica e desejavaempregar se como criada Clementina chegou em1817 Foi morar na rua S Jose n 2 19 Era solteira tinha 33anos e seu objetivo era ensinar musica Na mesma ruano mesmo numero morava a nobre Carlota Fragosoque em 1818 aos 26 anos deixou Paris para ser costureira no Brasil Em 1818 desembarcou a viuva JulianaAlexandre com dois filhos Mme Pierret 42 anosmeca nica veio sem o mando mas com suas filhasdançarinas Na rua do Cano n2 19 morava Mme Zelieque era modista E na mesma rua morava Ana Mulleque não apresentou ou recebeu nenhum qualificativo

Nesta listagem não localizei qualquer menção aAnne Nicolli Colette Durocher que tinha cerca de 26anos era solteira costureira e florista de profissãomoradora em Paris que veio com uma filha pequenaem março de 1816 no navio a velas Dois Amigos 13 quechegou ao Rio de Janeiro em agosto do mesmo anodepois de cinco longos meses de viagemm

No ano de 1816 houve um aumento consideraveldo numero de franceses no Brasil e do comercio comaquele pais Em março havia chegado a MissãoArtistica Francesa e em setembro Luiz Joaquim dosSantos Marrocos em correpondencia ao pai relata aabunda ncia de mercadorias provenientes da Françamudando inclusive o gosto e a moda Diz Marrocos quenum unico mes tinham chegado 29 navios franceses eque não se via mais fazendas inglesas toda gente seve ataviada ao gosto frances 1-'

Ernesto Senna afirma que ao chegar no BrasilAna Durocher contou com auxilio de compatriotasobtendo o credito necessano para estabelecer umamodesta casa de miudezas e modas (p 193) que empouco tempo prosperou Esta ajuda teria vindo de LUIZ

Nicolau Dufrayer com quem Ana Durocher teve socie-dade por algum tempo'? Nicolau Dufrayer estava nopais pelo menos desde 1816' e em 1819 tinha umestabelecimento comercial na rua Direita n°53 e 39 NaGazeta do Rio de Janeiro de 11 de dezembro de 1819encontra se um anuncio do comerciante oferecia

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' 9 SAINT PRIEST A InColeçao Escragnolle DonaRelação dos DocumentosFranceses colhidos emArquivos da França(extratos) Documentocitado p 174

20 GESTAS Conde deRelatono do Consul Francesno Rio de Janeiro Conde deGestas fevereiro de 1825 InColeçao Escragnolle DonaRelaçao dos DocumentosFranceses colhidos emArquivos da França(extratos) Documentocitado p 73

"Arrolamento realizado peloouvidor da ComarcaJoaquim de Queiroz em1821 Citado por LOBO E ML Histona do Rio de Janeiro(do capita/ comercia/ aocapita/ industrial e financeiro) Rio de Janeiro IBMEC1978 p 121 2 vol I

' , Gazeta do Rio de Janeiro03/04/1816 e 18/11/1818

bolacha em barricas de superior qualidade carne devaca e de porco muito boa vinho em meias pipas eoutros muitos generos propnos para consumo de embarcação

Em 1821 a populaçao da cidade do Rio deJaneiro (area urbana suburbana e rural) somava112 695 habitantes' 7 e nao excedia os limites entre oLargo do Machado e o Campo de Santana A casacomercial de Ana Durocher localizava se na rua dosOurives que havia recebido esse nome por terem ai seinstalado desde o seculo XVIII ourives e joalheirosentre a rua do Ouvidor e a rua do Rosario no centrocomercial da cidade

Nas primeiras decadas do seculo passado a ruaainda concentrava ourives e joalheiros mas acolhiatambem artesaos e um comercio diversificado podendo ser encontrados em suas lojas e armazens desdetecidos objetos e artefatos para decoraçao comopianos espelhos e oleados ate livros produtos alimenticios e remedios Entre 1816 e 1818 Ana Joaquina quetinha licença e receita para curar a enfermidade de"chagas na Madre ou seja no utero morava no n 1218

No extremo da rua situava se o Recolhimento deNossa Senhora do Parto como o propno nome indicadedicado a santa padroeira das mulheres gravidas edas parturientes Era tambem um recolhimento destinado as mulheres que desejavam ou eram obrigadas porseus familiares a levar uma vida reclusa

Pode se dizer que o ponto da loja de Ana Durocherera excelente para o tipo de comercio que desenvolviavendia fazendas aquilo que chamanamos hoje dearmarinho fino vestidos e artigos para completar atollette como luvas chapeus e flores de pena

O seu estabelecimento ficava nas proximidadesda rua do Ouvidor que nesse inicio da decada de 20começava a concentrar o comercio chique e florescente das famosas modistas francesas as quais o condede St Pnest atribui no penodo um papel fundamentalpara o escoamento de mercadorias daquele pais'9

Os relatonos e memonas enviados anualmentepelos representantes do governo francês no Brasilexistentes em arquivos franceses resumidos e traduzidospor Escragnolle Dona documentam o crescente comer-cio desenvolvido pelas modistas O conde de Gestasno relatono de 1825 escrevia que o comercio de modashavia tomado um impulso inaudito que ruas inteirastinham lojas abastecidas nos armazens franceses Aspropnas negras vestiam se a francesa e as costureirasfrancesas não davam conta das encomendas afirmavaentao o autor2°

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2 ' LUCCOCK J Notas sobreo Rio de Janeiro e PartesMendionais do Brasil SooPaulo EDUSP Belo HorizonteItatiaia 1975 p 27

Em 21 de julho de 1821 Ana Durocher publicou noDiano do Rio de Janeiro uma denuncia contra a Sra AWirt primeira modista de Paris Diz o anuncio A SraAna Durocher tem a honra de participar ao respeitavelpublico que depois da dissolução da sua sociedadecom o Sr L N Dufrayer ela sempre foi e e so e unicapossuidora da casa de modas em todos os generossituada na rua dos Ourives entre a do Rosario e a doOuvidor e que pelo anuncio inserido no Diario de 10 docorrente a Sra Wirt deu a conhecer que era sacia daSra da dita casa na rua dos Ourives Porem saiba econheça o respeitavel publico que tal não e mas simque a dita Sra Wirt ali habitava sempre como mercenaria recebendo os ajustados salmos Faz tombemparticipar a Sra Durocher que em sua casa se acha umgrande sortimento de chapeus vestidos e mais fazendasde todas as qualidades e que os Senhores compradoresserão sempre tratados com aquele respeito e atividadeque a todos tem mostrado no espaço de quatro anosque se acha estabelecida a referida casa Ha oito diasque a mesma Sra pretendia fazer esse anuncio porempor inconvenientes que houvera não pode realizar se

Alem do tom irado percebe se pelo texto acimatranscrito o perfil forte e empreendedor da modistaOutros documentos revelam estas mesmas facetasErnesto Senna conta que por °casta° da lndependencia (1822) Ana Durocher festejou o acontecimentoornamentando luxuosamente a fachada do seu

estabelecimento que era iluminado por transparênciae que distribuiu gratuitamente fitas com as cores nacio-nais tal o jubilo por ver o Brasil independente (p 194)

Esta imagem de mulher empreendedora e fortetombem e a lembrança que a filha guardou da mãefoi minha mae a primeira francesa que abriu uma loja

de fazendas francesas e que conservou a loja abertadurante a noite estou ainda bem lembrada quando arua dos Ourives se achava repleta de gente na primeiranoite e nas seguintes havendo apenas duas casas trancesas que nao se tinham animado a abrir a noite (p 296)

As lojas varejistas vistas como miseraveis pelocomerciante ingles Luccock em 1808 2' com a chegadados franceses foram substituidas por outras melhoraparelhadas As lojas das modistas chamavam aatenção ate mesmo dos viajantes europeus e norteamericanos que estiveram no Rio de Janeiro no periodoVitrines armaçao como se dizia então espelhoscortinas vasos ornamentais iluminaçao alem deatendentes e artesas vistas em geral como sedutorasaparecem frequentemente nos relatos

Schlichthorst descrevendo a rua do Ouvidorreparava as caixeiras exageradamente pintadas com

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22 SCHLICHTHORST C O Riode Janeiro Como E (18241826) Rio de Janeiro EdGetulio Costa 1943 p 101

"EBEL E O Rio de Janeiro eSeus Arredores em 1824 SoaPaulo Editora Nacional1972 p 70 1

24 SEIDLER C F G Dez Anosno Brasil 32 ed Sao PauloMartins 1976 p 40

"DEBRET J B ViagemPitoresca e Histonca aoBrasil Soo Paulo EDUSP BeloHorizonte ltatiata 1978tomo 1 p 294

"SAY H op cif p 120

"DIAS M O L da SQuotidiano e Poder em ScioPaulo no Seculo XIX SoaPaulo Brasiliense 1984 p 14

cinturas finas e olhos a espreita ( ) e gastos encantos 22

Ebel que esteve na cidade em 1824 sentia se em Parisao entrar na Rua do Ouvidor porque ai estavam estabelecidos os franceses com aquela elegancia que lhes epeculiar vendendo os tecidos mais finos e as milmiudezas de luxo e da moda que atraiam o transeuntepelo gosto e pelo brilho da apresentação Por traz deuma mesa bem polida podia se ver sentada Madameou Mademoiselle elegantemente posta ocupandomeia duzia de negrinhas vestidas com esmero e escolhidas pelo fisico ocupadas a costurar a luz de numerosastampadas arganticas que refletindo se em grandesespelhos duplicavam a claridade 23 Seidler quetombem chegou em 1824 fala do encanto singularmente magico que a rua do Ouvidor tinha para osforasteiros Dentro das casas de moda iluminadas viaatras das cortinas e dos perfumados reposteiros de florese folhas duma natureza transatlantica as costureinnhascujos olhos brilham mais que a claridade das lampadase dos falsos diamantes e perolas com que enfeitam oscabelos24

Pelo relato de Ebel verifica se que apesar do luxoe da aparencia francesa das lojas e das modistas estasnao dispensavam a mao de obra local de origemafricana escrava e livre alias como os demais comerciantes Debret que desenhou a fachada destas lojasafirma que as negras livres mais bem educadas einteligentes procuravam logo entrar como operarias porano ou por dia numa loja de modista ou de costureirafrancesa o que lhes permitia posteriormente encontrartrabalho nas casas brasileiras2'

Ana Durocher não fugiu a regra pois alem de contar com o trabalho da propria filha como caixeira daSra Wirt que era estrangeira e "mercenana" tinha cercade cinco escravas costureiras em seu estabelecimento

Horace Say credita o sucesso das lojas dasfrancesas a presença de mulheres que traziam de Parisvivacidade nos negocios e graca na acolhida dosfregueses Para o autor isso era novidade no pais 26 Ascomerciantes e balconistas chamavam a atenção poisnada parecido havia sido introduzido pelos negociantesda Inglaterra e as mulheres da terra e as portuguesasnao eram admitidas como balconistas de lojas ate asprimeiras decadas do seculo passado conforme lembraMaria Odila da Silva Dias no livro Quotidiano e Poder 27

Aqui talvez seja necessarlo fazer uma ressalvasobre o tipo especifico de comercio frances aquelededicado ao retalho Hugh Salvin que esteve no Rio deJaneiro em 1824 foi um dentre os muitos estrangeirosque mencionaram a diferença entre o comerciorealizado pelos ingleses e aquele dos franceses Segun

ESTUDOS FEMINISTAS 1 07 N 1/94

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28 SALVIN H Joumal Wnttenon Board of tos Majesty $Ship Cambridge fromJanuary 1824 to May 1827By lhe Rev H S ChaplainNew Castle Edward Walker1829 p 17

29 Tomo emprestada aexpressao mediadorasculturais de PERROT MSortir In DUBY G & PERROTM Historre de Femmes enOc/dent Le XIX" mede ParisPlon 1991 p 480

3° Ver JACQUEMONT VCorrespondence de avec$a Famille et Plusiers de sesAnus Pendant son Voyagedons! Inde 2a ed ParisLibrane de Fournier 1835p 44 5 e EXPILLY C le BrodTel Qu ri Est Paris E Dentu1862 p 257 In LEITE M M L(org ) A Condiçao Femininano Rio de Janeiro op citp 114

3‘ Sobre a reputaçao dasmarchandes de modes verBERNABOU E M LaProstitution et /a Police desMoeurs au XVIII siecle ParisPernn 1987

32 Yvonne Verdier verificouentre as costureiras de umavila do interior da França(Mino° a partir da analiseda taxa de ilegitimidadeentre 1790 e 1970 aquiloque chama de verdadeirasdinastias de maes solteirasformadas por avos maes enetas Ver VERDIER YFaçons de Dire Façons deFane Paris Gallimard 1979p 224

do este autor na epoca da sua visita havia no Rio deJaneiro cerca de 100 merchants ingleses estabelecidose quatro shop keepers enquanto dentre os franceseshavia cerca de quatro merchants para 100 shopkeepers 28 Horace Say por sua vez afirma que o comercio frances havia empregado mais individuos do quecapital Os pacotilheiros como depreciativamenteeram chamados compravam a credito no atacadopara vender no varejo Dai talvez a razão de havermulheres comerciantes no negocio a retalho dosfranceses

Apesar do sucesso comercial das modistasfrancesas devido em parte a crescente urbanização eeuropeizaçao dos costumes no Rio de Janeiro daimportancia do seu comercio para o escoamento dasmercadorias francesas e do importante papel quetiveram como mediadoras culturais 29 seja pela renovaçao que introduziram nas vendas a varejo seja peladivulgaçao de novos costumes e habitos elas sãoprincipalmente lembradas por uma reputaçao duvidosa Historias fabulosas de modistas gananciosas que seenvolveram sexualmente com homens nacionais eestrangeiros provenientes das diferentes camadassociais brancos e negros preenchem paginas e paginasda literatura deixada por viajantes estrangeiros e atemesmo por autores brasileiros3°

Na França no seculo XIX as costureiras e asmarchandes de modes tambem nao tinham boa famamuitas delas eram consideradas como sendo prostitutase/ou cafetinas3 A fama atravessou o oceano O fatode terem emigrado enfrentando muitas vezes sozinhasmeses de viagem em embarcações a vela o quemuitos homens pensariam duas vezes antes de sedecidir a fazer de desenvolverem um tipo de comercioconsiderado pequeno desprestigiado a retalho demostrarem se trabalhando em atividades consideradasprodutivas fora do lar de prescindirem de uma figuramasculina para prover o sustento de ficarem muitasvezes perto das janelas para aproveitar a luz do dia emelhor enxergar suas costuras e bordados o quepossibilitava que vissem a rua e fossem vistas pelostranseuntes alem de se dedicarem a um empreendimento que tinha por finalidade desenvolver a seduçãoe o encanto nas mulheres certamente contribuiu paraperpetuar esta fama

A isso talvez deva ser acrescentado o fato dealgumas dentre elas terem transgredido certas normasde relacionamento entre os sexos Ana Durocher eramae solteira e a propna Mme Durocher que foicaixeira florista sacia e propnetana da casa de modastambem seria alguns anos mais tarde mãe-solteira32

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35 NASCIMENTO A MmeDurocher e a Obstetricia doseu Tempo Anais doAcademia de Medicina t82 226 230 ian dez 1916

Requerimento apresentado ao Juiz de Paz do 2°Distrito do SantissimoSacramento (pedido denaturalizaçao) datado de06/02/1834 AN 1JJ 6 N

"Registro de Parteirapassado a Maria JosefinaMatildes Durocher AGCRJ8431 fl 160v

In LEITE M 1 M (org ) Acondiçao Feminina no Riode Janeiro op crt p 114

Almanaque imperial doComercio e das Corporapoes Civis e Militares do/mpeno do Brasil 1829 Riode Janeiro PlancherSeignot 1829

Alguns poucos viajantes que chegaram a conhecer as modistas mais de perto como Ebel e o pintorfrances Manet referem se porem a elas como dignasde todo o respeito Na carta de Manet a mae le seDesejaria que escrevesses uma carta muito amavel a

minha correpondente e que lhe agradecesses a maneira pela qual me recebeu ( ) Não te aflijas pelo seutitulo de modista ela esta acima de qualquer suspeitae seu filho e aluno do internato Jouffroy um rapazencantador melhor educado asseguro te que muitosdentre nos 33

No Almanaque de 1829 Ana Durocher figuradentre as onze marchandes de modes existentes naCorte34 Apesar do tratado de comercio entre o Brasil ea França assinado em 1826 que diminula os impostospagos pelas mercadorias francesas a partir do final dadecada de 20 a loja teria segundo Mme Durochercomeçado a entrar em decadencia Senna atribui adecadencia da loja a franqueza generosidade edoença prolongada de Ana Durocher (p 193)

Depois da morte da mae em 1829 ainda porcerca de tres anos Mme Durocher continuou comoproprietana mas em julho de 1831 a casa ja não lhepertenceria mais

Uma educação para o trabalho

Ao verificar o ano de nascimento de MmeDurocher apresentado nas diferentes biografiasconstata se que nem sempre existe uma coincidênciade datas Senna cuja biografia publicada em 1895serviu de modelo para vanos autores que escreveramposteriormente sobre a parteira afirma que ela terianascido em 06 de janeiro de 1808 (p 192) AlfredoNascimento por sua vez afirma que o diploma departeira depositado na Academia Nacional de Meddna teve o ano de nascimento corrigido a mão nãosabemos quando por quem com que fundamento1809 foi substituido por 180835 Baseado num calculoequivocado o da data do inicio do curso de partosque acredita ser 1833 enquanto o correto e 1834 omedico chega porem a data de 1809 a mesma queconsta no extrato da cedida° de nascimento feito porum tradutor juramentado

Outros documentos apresentam tambem 1809como ano de nascimento uma declaraçao da propriaMme Durocher feita em fevereiro de 1834 35 por ocasiãodo pedido de naturalizaçao e o registro de carta departeiras"

Se para a data de nascimento foi possivel confrontar as varias informações sobre outro dado forneci

ESTUDOS FEMINISTAS 1 09 N 1/94

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38 SILVA M B N da Cultura

no Brasil Co/onia PetropoleVozes 1981 p 68 80

do por Ernesto Senna nao foi possivel obter-se maisdetalhes de que Mme Durocher teria ficado cega deum olho na primeira infancia Diz o autor que a meninaveio ao mundo ao termo de sete meses e os parcosrecursos da mãe nao permitiram que eia dispensasse oscuidados necessarios a filha de sorte que foi acometida de uma oftalmia de que lhe resultou a perda davista do olho direito (p 192)

A redaçao do reporter e ambigua de forma quenao saberia dizer se esta cegueira foi passageira ounão No paragrafo seguinte ele escreve Seus sofrimentos se agravaram tanto nessa ocasião que o Dr AntoineDubois cremos nos que a examinou deu a por perdida (Quem'? a menina ou a vista do olho direito' ? ) Econtinua Grande porem foi a sua surpresa quandotempos depois ele viu a mãe e a filha que o procuraram para uma consulta no hospital que satisfeito deve la viva e forte presenteou a sua ex doente com umamoeda de ouro (p 192 3)

Diferentemente da data de nascimento cujavariaçao de um ano pouco ou nada alteraria a analiseda trajetoria da parteira ja no que se refere -a deficiência visual mesmo que parcial a posse desta informação possivelmente ajudaria a avaliar o esforço e oempenho empreendidos para educar se atraves daleitura principalmente se lembrarmos que a educaçãoque adquiriu ao longo de sua vida estava acima damedia das mulheres daquele tempo

Mme Durocher conta que enquanto pode a mãecuidou pessoalmente da sua educaçao inclusive durante a longa e acidentada viagem que as trouxe para oBrasil Depois ocupada com a loja Ana Durochermatriculou a filha em algumas das escolas existentespara o sexo feminino neste inicio do seculo XIX Diz aparteira que estudou num colegio brasileiro em outroingles e ainda em outro holandes particular paraaprender o alemao e o ingles (p 296)

As oportunidades educacionais para o sexofeminino no final do perlado colonial não eram muitasMaria Beatriz Nizza da Silva no livro Cultura no BrasilCo/onia refere se aos recolhimentos como um doslocais de educaçao para as mulheres no seculo XVIIIonde as educandas aprendiam principias de religiãoregras de comportamento alem de ler escrevercontar bordar e coser

Com a chegada da Corte ampliaram se asoportunidades de educação para as mulheres atravesdo ensino ministrado por particulares ou por religiosasForam criadas escolas leigas e religiosas para receberalunas em regime de pensionato ou externato professoras e professores se ofereciam para ministrar aulas

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"Para localizar as referencias das varias professoras verGazeta do Rio de Janeiro06/09/1809 16/12/181217/11/1813 e 02/102/181406/08/1817 07/03/181903/11/1819

40 0s Jornais documentamlambem as oportunidadeseducacionais oferecidasaos escravos quem desejarpor negros e negras de 8ate 10 anos de idade aaprendera oficio deJardineiro cocheiro oucozinheiro alem disto a lerescrever cortar e coserdirija se a casa de CarlosDurand e Coma ruaDireita n2 9 As condiçoessao as seguintes 1 deve terboa constituiçao e boasaude ter tido bexigasnaturais ou vacinadas 2 terao menos duas camisas ecalças uma Jaqueta 3 nosprimeiros tres meses o Senhorpodera tirar o escravodepois de tres meses deveradeixa lo fres anos a pessoaque dele se encarregar aqual se obriga a faze loaprender tudo o que oSenhor houver destinado edemais e diversos conhecimentos elementaresindicados Gazeta do Riode Janeiro 15/09/1819

4 ' Co/eçao de Leis eDecrsoes do /mpeno doBrasil 05/11/1821

"DEBRET J B op cit t 2p 23 4

particulares senhoras recebiam em suas casas alunas eaprendizes

Nos jornais publicados na Corte no penadodepara se com anuncias de estabelecimentos deensino para o sexo feminino na rua dos Ourives umaInglesa tinha uma casa de educação para meninas quequisessem aprender a ler escrever contar falar ingles eportugues coser e bordar (1809)39 D Catarina Jacobtinha uma Academia que recebia alunas em regime deinternato e externato Ensinava a ler escrever e falargramaticalmente as linguas portuguesa e inglesa todaqualidade de costura e o manejo da casa (1812) paraaquelas que pagassem a parte haveria aulas demusica dança e desenho Dona Maria do Carmo daSilva e Gama natural de Lisboa na rua S Jose n°31prometia esmerar se em todo genero de educaçao deforma que em pouco tempo saiam perfeitas as suaseducandas ensinava a coser bordar marcar fazertoucados cortar e fazer vestidos e enfeites lavar Nosfazer chapeus de palha tambem ensinava a ler escrever contar e gramatica portuguesa (1813 e 1814)Mme Clemency entoo recem chegada da Françapropunha se a dar liçoes de musica vocal de harpa depiano e de lingua francesa na rua S Jose (1817) MmeMallet no Catete alem da lingua francesa ensinava osdiferentes ramos de instruçao convenientes a mocidade(1819) Dona Maria Botlett natural de Lisboa moradorana rua das Violas afirmava que ensinaria as meninastudo o que fosse necessano para a educaçao de umasenhora (1819)4°

Ao lado desta educação leiga algumas ordensreligiosas tambem propunham se a educaçao demeninas Em 1821 a Congregaçao de N Sra do Socorrodirigiu um requerimento a D Pedro a fim de estabelecerescolas de primeiras letras para ambos os sexos Reconhecendo a utilidade que deveria resultar do estabelecimento o principe regente concedeu a autorização asservas e servos daquela congregaçao para abrirem as

referidas escolas41Debret nos seus 16 anos de estada no Brasil

assinala a transformaçao do ensino para o sexo femininoneste penodo O pintor afirma que quando chegou em1816 havia apenas dois colegas particulares poucomais tarde algumas senhoras portuguesas e francesascom ajuda de um professor ja se comprometiam areceber em suas casas a titulo de pensionistas moçasque quisessem aprender noções de lingua nacional dearitmetica religiao bem como bordados e costuras 42

Diz Debret que alguns franceses forçados a tirarpartido de sua educação davam lições de linguafrancesa e de geografia em casas de pessoas ricas

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4 Caixeiro significa aqueleque tem a seu cargo osfundos do negociante decujos negocias e gerenteEscrituraria ou empregadono expediente interno ouexterno de qualquer casado comercio ou companhiaSILVA A M op cit v 1 p377 Dentre as atribuiçoesdos caixeiros incluiu seportanto desde atender nobalcao e vender na ruacomo fazer compras evendas em grosso fazer aescnturaçao mercantil atevigiar os escravos ocupadosnos serviços da loja VerMARTINHO L M Negocian

tes e Caixeiros na Sociedade da Independencia RJ

Secretaria Municipal deCultura Turismo e Esportes1993

Mme Durocher foiemancipada em 26/11/1829 AN IJJ 6 N

Por outro lado os brasileiros ja nao se envergonhavammais de mandar suas filhas para a escola Uma meninaindo para a escola acompanhada de uma escrava foiinclusive retratada pelo pintor

Nestas primeiras duas decadas do seculo XIX ainstrução para as meninas mais ricas e das camadasmedias embora mais diversificada do que aquelaensinada nos recolhimentos no final do seculo anteriorrestringia se ao aprendizado de ler escrever e contar ede outros idiomas principalmente o ingles e o francesalem de artes ditas femininas como costura bordadodesenho e de salao como canto musica instrumentale dança

Apesar do aumento do numero de estabelecimentos e da ampliacao das materias ministradas aspossibilidades de instruçao para o sexo feminino continuavam restritas o curriculo era limitado e muitas vezesnao ia ao encontro das aspirações e das necessidadesde muitas mulheres Uma das possibilidades paraaquelas que desejassem ampliar seus conhecimentos eque a historiografia sobre mulheres que estuda o pertodo tem dado pouca atençao refere se ao ensinoparticular ministrado por professores dos dois sexos nãoapenas por professoras e governantas quando aseducandas aprendiam historia geografia e filosofiadentre outras disciplinas

Mme Durocher e bem um exemplo deste tipo deeducaçao recebida atraves de professores particularesquando desejou ser caixeira uma profissão exercidaexclusivamente pelo sexo masculino no perlado emesmo posteriormente quando decidiu abraçar aprofissao de parteira

Na ja citada pequena auto biografia ela mesmaafirma que embora a mae tivesse um grande desejoque aprendesse ingles e alemao quando meninasentia verdadeira repugnancia por estas linguas poisachava as muito feias A inclinaçao e gosto quesentia entao eram pelo comercio (p 296) Respeitandoa aspiraçao da filha Ana Durocher deu lhe o lugar decaixeira43 na loja de tecidos e a educaçao foi complefada com aulas particulares recebeu noções deescrituraçao mercantil historia e geografia com umvizinho e amigo Simpliciano Jose de Souza lentesubstituto da aula de comercio Com esta formacaoprofissional começou a trabalhar na loja de tecidos aipermanecendo ate o inicio da decada de 30

Com o decorrer dos anos Mme Durocher teveum acrescimo de reponsabilidade pois a mae ficoudoente Tornou se inclusive socia da loja passando adirigir os negocios e emancipada a assinar letras 44

Segundo Senna a jovem caixeira evitou nesse periodoque a mãe fosse assassinada por uma escrava (p 194)

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4, Livro de Obitos daFreguesia do SantissimoSacramento 1829 ff 84vArquivo da Ck.sna Metropolilana do Rio de Janeiro/ACMRJ

46 AN Vara Civil processon 1241 maço 2318

"livro de Batismo (19/30/1830) Freguesia doSantissimo SacramentoACMRJ fl 30v

4, Livro de Batismo (12/05/1832) Freguesia doSantissimo SacramentoACMRJ fl 136

Em 28 novembro de 1829 com pouco mais de 20anos Mme Durocher ficou orfa 45 Apesar de proprietariae herdeira de alguns bens problemas familiares ecomerciais resultaram em sofrimento dificuldades eperdas mas ainda por pelo menos dois anos continuoua viver da profissao de modista e a manter a loja nomesmo endereço

Um processo movido em junho de 1831 pelosnegociantes franceses estabelecidos no Rio de JaneiroGarrais e Marcassus localizado no Arquivo Nacionalalem de deixar conhecer as mercadorias vendidas naloja sugere que ela tenha enfrentado uma situaçãodificil enquanto propnetana devia para esses comerclantes a quantia de cento e dez mil e seiscentos esetenta reis (o que equivalia a metade do preço de umescravo destinado ao serviço agncola) A mercadoriada loja linho cambraias sedas fitas luvas bordadosem ouro e prata acabou indo posteriormente paraIeda° a fim de saldar a letra ou seja as dividas46

Os problemas comerciais podem ser acompanhados tambem atraves de uma serie de anuncios colocados no Jornal do Commercio em julho e agosto daqueleano quando Mme Durocher chama seus credorespara lhes entregar os bens em pagamento ate onde

chegarem ficando obrigada ao que restar para pagarquando melhorar de fortuna (28/07/1831)

Em agosto de 1831 Mme Durocher foi despejada Ja nao morava mais na rua dos Ourives n2 109onde tinha morado por mais de uma decada

Ernesto Senna afirma que com a morte da mãea jovem modista se viu reduzida a mui parcos recursose que por isso teria vivido maritalmente sem ser casadacom Pedro David um comerciante frances (p 194) Adocumentaçao indica porem que a relaçao amorosaentre Mme Durocher e Pedro David provavelmentedata de antes mesmo da morte de Ana Durocherocorrida em novembro de 1829 pois oito meses depoisem 19 de julho de 1830 47 nascia o primeiro filho docasal Vicente Joao Francisco do Rocher (sic) que naofoi reconhecido por ocasiao do batismo pelo pai Emdezembro do ano seguinte (1831) nascia Pedro AmadoHuberto David este sim legitimado na pia batisma148

Isto significa que o penodo da crise comercial daloja de tecidos ate o subsequente fechamento doestabelecimento corresponde exatamente aos doisperiodos de gravidez de Mme Durocher E que PedroDavid partiu para a França durante a segunda gravidezda companheira justamente quando ela estava sendoprocessada por dividas voltando ao Brasil as vesperasdo nascimento do segundo filho

Seguindo as informaçoes fornecidas por Senna erepetidas por quase todos os biografos Pedro David

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teria sido assassinado por engano pois fora confundidocom um comerciante portugues morador na mesma ruae casa que teria seduzido uma moça (p 195) O Jornaldo Commercto de 03 de julho de 1832 assim noticia amorte de Pedro David Necrologico Passando antes deontem pelo Largo Sao Francisco de Paula o Sr NeneDavid negociante frances foi acometido por umhomem alto coberto por um ponche que lhe deu nascostas perto das vertebras huma facada de quemorreu ontem pelo meio dia A autopsia cadavencafeita pelos Srs Drs lmbert lonequet Cuissart Senechale Sigaud tem feito verificar a penetração da fenda aqual estendeu entre a 6° e 7° costela da parte superior eesquerdo do tronco penetrando o pulmão o diafragmae o estomago O Comercio sente profundamente aperda que fez na pessoa de um de seus membros maishonrados representante nesta praça a celebre casados Srs Koechlin lrmaos ignoram os motivos desseatentado mas parece que foi um funesto equivoco queroubou aos seus numerosos amigos um homem tãodigno da estimaçao geral Ha de ser sepultado hoje 03de julho as 10 horas da manha em S Francisco de Paulae a familia roga a todos os amigos do defunto queira°assistir este ato de caridade e religião

Ainda e Senna quem afirma que no leito demorte Pedro David teria expresso o desejo de se casarcom Mme Durocher e não o fez porque o padre teriachegado tarde demais Infelizmente os documentoslevantados ate agora nada dizem sobre isto (p 195)

Embora nos textos de Mme Durocher sejamencontradas frequentes referencias a propria vida nelesnao localizei qualquer mençao afetuosa nem mesmobiografica sobre Pedro David O aviso necrologicocolocado no Jornal do Commercio acima mencionado seria de sua autoria'? A lembrança desta união ficouporem gravada no nome de um dos filhos aquele quechegou a idade adulta Pedro David

Assim em menos de quatro anos e com cercade 23 anos Mme Durocher estava não apenas orfãcomo tombem viuva e com dois filhos pequenos

O perfil mais conhecido de Mme Durocheraquele da parteira que se vestia com roupas masculinasparece ter sido construido neste penodo quando

decidiu abandonar a profissao de modista Em 1832tinha por causa da decadencia do comercio deixadoa casa que minha mae havia me legado ja em principio de decadencia Mae entao de dois filhos sem pai edispondo de parcos recursos (5 contos e tanto) tive derefletir seriamente sobre os meios que deveria adotarpara proporcionar aos meus filhos com a instrução e osustento honesto (p 298)

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"Sobre mulheres vivendo dojornal de seus escravos eescravas ver o capituloSenhoras e Ganhadeiras nolivro Quotidiano e Poder emSao Paulo no Seculo XIX deDIAS M O L da S op citp 83 113

50 DUROCHER M J MConsideraçoes sobre aClinica Obstetrica Anais daAcademia de Medicina doRio de Janeiro VI serie t IIng 3 272 jan mar 1887

Ate o inicio do seculo XIX ooficio era exercidoprincipalmente por parteiraspraticas em geral negras emulatas livres Medicas ecirurgioes apenas excepcionalmente participavam daparturiçao em geral noscasos de partos laboriosos edificeis As primeiras parteirasdiplomadas que exerceramo oficio no Brasil eramestrangeiras e chegarampor volta de 1828 Os cursosde partos das Faculdadesde Medicina do Rio deJaneiro e da Bahiaformaram no perladopoucas alunas conforme seve no artigo de MOTT M LB Parteiras no Seculo XIXMme Durocher e suaepoca In COSTA A O &BRUSCHINI C Entre aVirtude e o Pecado SaoPaulo Fundaçao CarlosChagas Rio de JaneiroRosa dos Tempos 1992p 37 56

DUROCHER M J MConsideraçoes sobre aClinica Obstetrea op citp 250 251

Vale lembrar que aquilo que Mme Durocherchama de parcos recursos (5 contos) daria para comprar em 1832 entre 10 e 20 escravos adultos' O preçode um/uma escravo/a para serviço urbano conforme oJornal do Commercio de julho de 1832 variava entre250$000 e 500&000 reis o que possibilitaria se assim eladesejasse viver remediavelmente da exploraçao dotrabalho de escravos de ganho como faziam muitasmulheres no pais42

Segundo ela mesma nos conta ocorreu lhededicar se a profissao de parteira a partir do exemplodas francesas Mme Pipar que havia se hospedado emsua casa no final dos anos 20 e de Mme Berthouparteira da Santa Casa de Misencordia (p 298)

A formaçao de Mme Durocher como parteirainiciou se em 183350 Este primeiro contato com aprofissao se deu fora da escola de partos Mais uma vezela recorreu ao ensino particular agora seu professor foio medico negro Joaquim Candido Soares de Meirelles

Seguindo um modelo de parteira bastantedifundido no seu pais de origem que obtinha a forma-çao em escolas que ensinavam a profissão mas aindanovo no Brasil Mme Durocher matriculou se em 1834no curso de partos recem criado na Faculdade deMedicina do Rio de Janeiro (1832) Foi a primeira e umadas poucas mulheres no decorrer do seculo XIX a sematricular num curso para aprender a partejars'

Paralelamente ao curso regular Mme Durochercompletou sua formaçao atraves de aulas particularesEm 1834 sai da Faculdade de Medicina do Rio de

Janeiro da qual muito me honra ter sido a primeiraaluna munida de alguns conhecimentos de anatomiade fisiologia de higiene e da açao dos medicamentoscom os quais tinha que haver me na especialidadeestes muitos favores devi os as obsequiosas liçõesparticulares dadas pelo meu lente e amigo de infanciao finado Dr Julio Xavier e pelo Dr Cambuci A pedidodo Dr Canado Soares Meirelles devo ao Dr AntonioFreire Alemao cirurgia° do banco da Santa Casa deMisericordia o obsequio de duas liçoes por semana deanatomia '2

A escolha da profissao de parteira por MmeDurocher foi acompanhada no mesmo penado deoutras duas decisoes extremamente significativas a daopçao pela nacionalidade brasileira e a adoçao deroupas de estilo masculino

A acolhida que as Durocher receberam no pais eo numero de amigos que aqui fizeram desde a chegada da França sao as razoes apontadas para a decisãoda permanencia no Brasil Na opção pela nacionalidade pode se perceber inclusive uma homenagem a

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-, Citado por SANTOS FRLicurgo Historia da Medicinano Brasil Sao PauloBrasillense 1947 p 201 v l

nova patria Diz a parteira Entusiasmada como se eaos 24 anos ao planejar uma vida nova entendi que porgratidao ao pais berço de minha segunda infancia euprimeira aluna que ia se matricular na Faculdade deMedicina do Rio de Janeiro devia ser brasileira eportanto tratei logo de naturalizar me (p 299)

Quanto a escolha das vestes que usou durante osmais de 50 anos de clinica esta foi decidida ainda noperlado em que frequentava o curso de partos RodrigoOtavio que a conheceu pessoalmente afirma que aparteira vestia se de preto com uma simples sara e umcasaco masculino colarinho e gravata de homem euma pequena cartola pouco afunilada'''

No artigo Deve ou Nao Haver Parteiras' ? MmeDurocher justifica o uso deste traje adotei um vestuarioque não so me pareceu mais comado para os trabalhosda minha profissao como mais decente e caracteristicopara parteira Julgava que esse meu exterior deveriaatuar muito no moral da mulher inspirando lhe maisconfiança e distinguindo a parteira do comum dasmulheres (p 299)

A opçao pela nacionalidade brasileira e peiasroupas de estilo masculino embora explicadas racionalmente pela parteira talvez tenham mais alguns significados E preciso lembrar que estas opções tem comoreverso a renuncia da nacionalidade francesa comodo perfil feminino e sugerem uma enorme necessidadede mudança e o desejo da criação de outro referencialde identificaçao Seria o passado das desconsideradasmarchandes de modas francesas que Mme Durocherestaria querendo apagar)

Para terminar gostaria de lembrar que emboradesejando servir de modelo as parteiras diplomadasparece que o figurino masculinizado adotado por MmeDurocher nao chegou a ser copiado muito pelo contrario foi ate mesmo ridicularizado conforme ela com umcerto amargor relata anos mais tarde Quanto aosirrefletidos que por imitaçao tudo criticam ( ) nadarespeitam ( ) almas mesquinhas ( ) e que procuram noridiculo arma certeira para ferir aos que a opiniãopublica reconhece como probos e honestos quanto aesses eu entrego ao desprezo que merecem (p 300)

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