para a kathleen magliochetti, · sentou-se na beira da cama e descalçou as meias, agitando os seus...

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Para a Kathleen Magliochetti, que me apresentou a Inglaterra

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Capítulo 1

— Ada! Afasta-te imediatamente dessa janela! — A voz da mãe a gritar. O braço da mãe a agarrar o meu

braço e a puxá-lo com tanta força que desabei da cadeira e aterrei no chão.

— Só estava a dizer olá ao Stephen White. — Eu sabia muito bem que não devia responder, mas às vezes a minha boca era mais rápida do que o meu cérebro. Nesse verão, eu tinha-me transformado numa lutadora.

A mãe deu-me uma bofetada. Com força. A minha cabeça desandou para trás e foi embater contra a perna da cadeira. Por instantes, vi estrelas.

— Não te quero a falar com ninguém! — ralhou a minha mãe. — Deixo-te olhar pela janela porque sou uma pessoa boa, mas garanto-te que a mando entaipar se meteres o nariz lá fora, ou se te puseres a falar com quem quer que seja!

— O Jamie está lá fora — balbuciei.— E porque não haveria de estar? — disse a mãe.

— Ele não é um aleijado, como tu.Engoli as palavras que tinha vontade de dizer e aba-

nei a cabeça para as esquecer. Foi então que vi a mancha de sangue no chão. Oh, céus. Não tinha limpado toda a

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sujidade que fizera naquela tarde. Se a mãe a visse, não demoraria a somar dois mais dois; e eu ficaria metida num belo sarilho. Deslizei pelo chão até tapar a mancha com o traseiro e meti o pé torto por baixo do corpo.

— É bom que comeces a preparar-me o chá — avisou a mãe. Sentou-se na beira da cama e descalçou as meias, agitando os seus dois perfeitos pés diante do meu rosto. — Daqui a pouco tenho de sair para o trabalho.

— Sim, mãe. — Empurrei a cadeira da janela para o lado, de modo a esconder o sangue. Rastejei pelo chão, esforçando-me por manter o pé torto e cheio de crostas longe do ângulo de visão da minha mãe. Trepei para a nossa segunda cadeira, acendi o bico do fogão e coloquei a chaleira ao lume.

— Arranja-me um pedaço de pão com banha — pediu a minha mãe. — Arranja também para o teu irmão. — Soltou uma gargalhada. — E se sobrar alguma coisa, podes atirar pela janela. Talvez o Stephen White aprecie o teu jantar. O que dizes?

Não respondi. Cortei duas grossas fatias de pão e empurrei o que sobrou para trás do lava-louça. De qual-quer forma, o Jamie só voltaria para casa depois de a mãe sair, e ele dividia sempre comigo toda a comida que houvesse.

Assim que o chá ficou pronto, a mãe veio buscar a sua caneca.

— Estou a ver esse teu olhar, minha menina — disse ela. — Não te ponhas a pensar que podes enganar-me. Já tens muita sorte que eu tome conta de ti. Não fazes ideia de como as coisas podiam ser piores.

Também me tinha servido de uma caneca de chá. Dei um gole demorado e senti o líquido quente abrir

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caminho até ao estômago. A mãe não estava a brincar. Mas a verdade era que eu também não.

Existem guerras de todos os tipos.Esta história começa há quatro anos, no início do

verão de 1939. A Inglaterra encontrava-se à beira de outra Grande Guerra, a guerra que enfrentamos agora. A maio-ria das pessoas estava apavorada. Eu tinha 10 anos (embora não soubesse a minha idade nessa altura), e apesar de já ter ouvido falar de Hitler — pequenas histórias e insul-tos que flutuavam desde a ruela até à minha janela, no terceiro andar — não estava minimamente preo cupada com ele, nem com nenhuma outra guerra disputada entre nações. Por tudo aquilo que já contei, dir-se-ia que estava em guerra com a minha mãe, contudo, a minha primeira guerra, aquela que empreendi naquele mês de junho, teve lugar entre mim e o meu irmão.

O Jamie tinha uma cabeleira castanho-escura, olhos de anjo e a alma de um diabinho. A mãe dizia que ele tinha 6 anos e que no outono começaria a frequentar a escola. Ao contrário de mim, tinha pernas fortes e dois pés saudáveis, que usava para fugir de mim.

Eu tinha pavor de ficar sozinha.O nosso apartamento consistia de uma assoalhada no

terceiro andar por cima do pub onde a mãe trabalhava à noite. De manhã ela dormia até tarde, e recaía sobre mim a responsabilidade de alimentar o Jamie e de o manter sossegado até ela acordar. Então ela saía, normalmente, para ir às compras ou conversar com as outras mulheres da ruela; por vezes levava o Jamie, mas era raro. Em che-gando a noite, a nossa mãe ia trabalhar, e eu dava o chá ao Jamie, cantava até ele adormecer e colocava-o na cama;

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e é o que tenho feito desde que me entendo por gente, desde os dias em que o meu irmão ainda usava fraldas e era muito pequeno para usar o penico.

Fazíamos jogos, cantávamos e observávamos o mundo através da janela — o vendedor de gelo e a sua carroça, o trapeiro e o seu pónei desgrenhado, os homens que regressavam das docas à noite e as mulheres a estenderem a roupa e debruçadas nas varandas à conversa. As crianças da rua a saltarem à corda e a jogarem à apanhada.

Eu podia ter descido as escadas, mesmo nessa altura. Podia ter rastejado, ou descido apoiada no traseiro. Não era uma inútil. Todavia, a única vez que me aventurei a sair, a mãe descobriu e deu-me uma tareia até os meus ombros sangrarem.

— Não passas de uma lástima! — gritou ela. — Um monstro, com esse pé horrível! Achas que eu desejo que o mundo inteiro veja a minha vergonha? — Ameaçou tapar a janela com tábuas se eu voltasse a sair de casa. Era sempre essa a sua ameaça.

O meu pé direito era pequeno e retorcido, de maneira que a sola apontava para cima, com todos os dedos no ar, e a parte que devia ficar para cima tocava no chão. O tor-nozelo não funcionava como devia, evidentemente, e doía de cada vez que lhe colocava algum peso em cima, por isso, durante grande parte da minha vida não me apoiei nesse pé. Era muito boa a rastejar. Não me queixava de ficar fechada em casa todo o dia desde que o Jamie esti-vesse comigo. Contudo, à medida que ia crescendo, ele passou a querer brincar na rua, com as outras crianças.

— E porque não? — declarava a nossa mãe. — É um rapaz normal. — Para o Jamie dizia: — Tu não és como a Ada. Podes ir onde quiseres.

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— Não pode, não — replicava eu. — Ele tem de ficar onde eu o possa ver.

Ao início, foi o que aconteceu, mas não tardou a fazer amizade com um grupo de rapazes e a desaparecer da minha vista durante todo o dia. Regressava a casa com histórias sobre as docas no rio Tamisa, onde enormes navios descarregavam mercadorias oriundas do mundo inteiro. Falava-me de comboios e de armazéns maiores do que o nosso quarteirão. Visitara St. Mary, a igreja cujos sinos me ajudavam a saber as horas. À medida que os dias de verão se tornavam maiores, ele ia ficando na rua até cada vez mais tarde, chegando a casa horas depois de a mãe ter saído. Ausentava-se grande parte do tempo, e a nossa mãe não se importava.

O meu quarto era uma prisão. Eu mal conseguia suportar o calor, o silêncio e o vazio.

Tentei de tudo para o Jamie não me abandonar. Barrei a porta para que ele não pudesse sair, mas ele já era mais forte do que eu. Roguei e supliquei à nossa mãe. Ameacei o Jamie. Então, num dia quente, atei-lhe as mãos e os pés enquanto ele dormia. Ia obrigá-lo a fazer-me companhia.

Quando acordou, o Jamie não gritou nem chorou. Debateu -se uma vez e depois deixou-se ficar deitado, impotente, a olhar para mim.

As lágrimas deslizavam-lhe pelo rosto.Eu desamarrei-o o mais rápido que consegui. Senti -

-me um monstro. Ele exibia uma marca vermelha no pulso, no local onde eu tinha atado a corda com dema-siada força.

— Não voltarei a fazê-lo — disse. — Prometo. Nunca mais o farei.

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Ainda assim, as lágrimas corriam. Eu compreendi. Em toda a minha vida, eu jamais fizera mal ao Jamie. Nunca lhe batera, nem uma única vez.

Naquele dia, tinha-me transformado na nossa mãe.— Eu fico em casa — sussurrou ele.— Não — recusei. — Não. Não precisas de ficar. Mas

toma ao menos uma caneca de chá antes de saíres. — Coloquei diante dele uma caneca de chá e um pedaço de pão com banha. Naquela manhã éramos apenas nós os dois, a mãe tinha ido não sei onde. Afaguei a cabeça do Jamie, dei-lhe um beijo no cocuruto, cantei-lhe uma can-ção e fiz tudo o que podia para o ver sorrir. — De qual-quer maneira, em breve irás para a escola — comentei, espantada por só naquele momento me dar conta desse facto. — Nessa altura estarás fora de casa o dia todo, mas eu ficarei bem. Vou tratar das coisas para ficar tudo bem. — Recorri a toda a minha lábia para o convencer a ir brincar para a rua, e acenei-lhe da janela.

Em seguida, fiz aquilo que devia ter feito desde o iní-cio. Aprendi a andar.

Se conseguisse caminhar, talvez a mãe não sentisse tanta vergonha de mim. Talvez pudéssemos disfarçar o meu pé aleijado. Talvez pudesse sair de casa e acompanhar o Jamie ou, pelo menos, ir ter com ele caso precisasse de mim.

Foi isso que aconteceu, embora não precisamente como eu imaginei. No final, foi a combinação dessas duas guerras — o fim da minha pequena guerra contra o Jamie, e o início da grande guerra, a de Hitler — que me libertou.

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Capítulo 2

Comecei nesse mesmo dia. Icei-me para o assento da minha cadeira e coloquei ambos os pés no chão.

O pé esquerdo, que era normal. E o direito, que era torto. Endireitei os joelhos e, agarrando as costas da cadeira, pus-me de pé.

Gostaria que compreendessem qual era o problema. Eu era capaz de me colocar de pé, claro que sim. E até de saltitar, ao pé-coxinho, se assim o desejasse. Mas era bem mais veloz de gatas, e o nosso apartamento era tão pequeno que raras eram as vezes em que me dava ao trabalho de me endireitar. Os músculos da minha perna, sobretudo os da direita, não estavam habituados a isso. Sentia as costas fracas. Mas tudo isso teria sido secundá-rio se a única coisa que tivesse de fazer fosse manter-me ereta.

Para caminhar tinha de apoiar o pé retorcido no chão, colocar todo o meu peso sobre ele, levantar o outro do chão e não cair por causa da falta de equilíbrio e da insu-portável dor.

Nesse primeiro dia mantive-me junto à cadeira, oscilando. Lentamente, passei parte do meu peso do pé esquerdo para o direito. Arquejei.

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Talvez não tivesse doído tanto se estivesse acostu-mada a caminhar. Talvez os pequenos ossos encolhidos do tornozelo já se tivessem habituado. Talvez a delicada pele que os cobria já tivesse ganhado calo.

Talvez. Mas não tinha maneira de o saber, e permane-cer simplesmente de pé não iria levar-me para junto do Jamie. Larguei a cadeira. Impulsionei o pé torto para fora e empurrei o corpo para a frente. A dor no tornozelo foi como uma facada. Caí.

Levantei-me. Agarrei-me à cadeira, fiz por me equi-librar e dei um passo. Caí. Levantei-me. Tentei de novo, dessa vez adiantando primeiro o pé bom. Respirei com força, oscilei sobre o pé torto… e não demorei a cair.

A pele da base do pé torto rasgou-se e o sangue man-chou o chão. Depois de outras tentativas, já não aguen-tava mais. Ajoelhei-me, a tremer, e com um trapo limpei a porcaria que tinha feito.

Tudo isso aconteceu no primeiro dia. O segundo foi ainda pior porque, para além de tudo, também me doíam o pé e a perna que não eram disformes. Senti dificuldade em esticar as pernas. Tinha nódoas negras nos joelhos de tanto cair e as feridas do pé retorcido não haviam cica-trizado. Tudo o que fiz nesse segundo dia foi ficar de pé, agarrada à cadeira, a olhar pela janela. Fui mudando o peso de um pé para o outro, para praticar. Depois esten-di-me na cama e chorei, de dor e de exaustão.

Como seria de esperar, mantive tudo em segredo. Não queria que a minha mãe ficasse a par de nada até eu con-seguir andar como deve ser, e não confiava na discrição do Jamie. Até poderia ter gritado a novidade pela janela, mas do que me serviria? Todos os dias via pessoas na rua, e às vezes até falava com elas, mas, embora muitas me

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acenassem, e algumas até dissessem, «Olá, Ada!», raras vezes tentavam mesmo falar comigo.

Quiçá a mãe sorrisse ao ver-me. Talvez até dissesse: «És tão inteligente.»

A minha imaginação voava. Após um dia particular-mente duro, enquanto me agarrava à perna na cama e tremia do esforço de não chorar mais, imaginava que a mãe me dava a mão para me ajudar a descer as escadas. Imaginava que me levava à rua, dizendo a quem pas-sasse: «Esta é a minha filha, Ada. Estão a ver, não é tão inútil como pensávamos.»

Afinal de contas, era minha mãe.Imaginava que a ajudava com as compras. Imaginava

que ia à escola.— Conta-me tudo — pedi ao Jamie, já a noite ia longa.

Sentei-o no meu colo, perto da janela aberta. — O que viste hoje? O que foi que aprendeste?

— Fui a uma loja, tal como me pediste — respondeu ele. — Era uma frutaria. Havia fruta por todo o lado, até empilhada sobre mesas.

— Que tipo de fruta?— Ah… maçãs. E outras parecidas com maçãs. E umas

coisas redondas, cor de laranja e brilhantes, e umas verdes.— Tens de descobrir os nomes — disse-lhe.— Não posso — declarou o Jamie. — Quando o

homem da loja me viu, correu comigo. Disse que estava farto de mendigos todos esfarrapados que lhe roubavam fruta, e escorraçou -me dali para fora com uma vassoura.

— Oh, Jamie. Tu não és um mendigo esfarrapado. — Nós tomávamos banho, de vez em quando, quando

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a mãe achava que cheirávamos mal. — E não eras capaz de roubar.

— Claro que era — disse o Jamie. Levou as mãos ao interior da camisa e retirou uma dessas frutas parecida com as maçãs, mas que não era bem uma maçã. Era um fruto granuloso, amarelo e suave. Era uma pera, embora na altura não o soubéssemos. Quando a mordemos, o sumo escorreu pelos nossos queixos.

Era a coisa mais deliciosa que eu jamais provara.No dia seguinte o Jamie trouxe um tomate, mas no

dia depois desse foi apanhado no talho a tentar roubar uma costeleta. O dono sovou-o no meio da rua e arras-tou-o até casa para fazer queixa à nossa mãe, que tam-bém o agarrou pelo pescoço e lhe deu uma tareia.

— Idiota! Roubar doces é uma coisa…! Para que que-rias uma costeleta?

— A Ada tem fome — soluçou o Jamie.Sim, eu tinha fome. Caminhar implicava tanto esforço

que eu estava sempre esfomeada. Mas dizê-lo não fora boa ideia, e o Jamie sabia-o. Vi como os seus olhos se esbugalharam, atemorizado.

— Ada! Já devia saber! — A mãe virou-se para mim. — Andas a ensinar o teu irmão a roubar para ti? Seu verme inútil! — Tentou dar-me uma bofetada com as cos-tas da mão. Eu estava sentada na minha cadeira e, sem pensar, dei um salto para me esquivar ao golpe.

Ainda assim, fui apanhada. Não podia dar um passo sem revelar o meu segredo. A mãe ficou a olhar para mim com um brilho estranho nos olhos.

— Estamos a ficar demasiado importantes para levar um bofetão, é? — disse ela. — Vai para o chão e mete-te no armário.

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— Não, mãe — implorei, enquanto me sentava no chão. — Não! Por favor!

O armário não passava de um cubículo sob o lava--louça. O cano às vezes pingava, por isso o armário estava sempre húmido e malcheiroso. E, pior do que isso, era habitado por baratas. Até não me importava muito de as ver cá fora, pois podia apanhá-las com um papel e atirá--las pela janela. Mas no cubículo, às escuras, não conse-guia esmagá-las. Subiam-me pelo corpo todo. Certa vez, uma delas chegou até a meter-se na minha orelha.

— Toca a entrar — ordenou a mãe, com um sorriso.— Eu vou — ofereceu-se o Jamie. — Fui eu que rou-

bei a costeleta.— É a Ada quem sofre o castigo — insistiu a mãe.

E dirigiu o seu sorriso para o Jamie. — De cada vez que fores apanhado a roubar, a Ada passará a noite no armário.

— A noite toda não — murmurei. Inutilmente, claro.

Quando as coisas corriam mesmo muito mal, eu podia perder-me no interior da minha cabeça. Sempre soubera como fazê-lo. Podia estar em qualquer parte, na cadeira ou no armário, e não via, ouvia ou sentia fosse o que fosse. Evadia-me, pura simplesmente.

Era uma coisa fantástica, sendo o único contra o facto de não acontecer tão depressa quanto eu necessi-tava. Os primeiros minutos no cubículo eram os piores. E depois, mais tarde, o meu corpo começava a doer por estar tão apertada. Era evidente que tinha crescido.

De manhã, quando a mãe veio abrir-me a porta, sen-tia-me tonta e nauseada. Ao esticar-me, senti cãibras e formigueiro nas pernas e nos braços. Deitei-me no chão. Ao ver-me, a mãe disse:

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— Que te sirva de lição. Não queiras ser mais do que és, minha menina.

Sabia que a mãe tinha adivinhado pelo menos uma parte do meu segredo. Eu estava a ficar mais forte e isso não lhe agradava. Assim que ela saiu de casa, levantei--me e obriguei-me a caminhar de uma ponta do quarto à outra.

O mês de agosto começava a chegar ao fim. Sabia que não faltava muito para o Jamie ir para a escola. Apesar de já não ter tanto medo da sua ausência, temia ficar tanto tempo sozinha com a mãe. No entanto, nesse dia o Jamie chegou a casa mais cedo, e parecia transtornado.

— O Billy White diz que os miúdos se vão todos embora — anunciou ele.

O Billy White era o irmão mais novo do Stephen White, e o melhor amigo do Jamie.

A mãe estava a arranjar-se para ir trabalhar. Inclinou--se para apertar os sapatos e, ao endireitar-se, resmungou:

— É o que dizem.— Como assim, vão-se embora? — perguntei.— Vão sair de Londres — explicou ela —, por causa

do Hitler, e das suas bombas. — Olhou para o Jamie, como se eu não existisse. — O que dizem é que a cidade vai ser bombardeada e, por isso, todas as crianças devem ir para o campo, para longe do perigo. Ainda não tinha decidido o que fazer contigo. Às tantas, o melhor seria enviar-te também. Sempre era menos uma boca para alimentar.

— Que bombas? — indaguei. — Qual campo?A mãe ignorou-me.O Jamie sentou-se numa cadeira e balançou os pés.

Parecia tão pequeno.

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— O Billy diz que vão embora no sábado. — Isso era dali a dois dias. — E que a mãe lhe vai comprar roupas novas.

A nossa mãe disse:— Eu não tenho dinheiro para roupas novas.— Então e eu? — A minha voz saiu mais fraca do que

eu pretendia. — Também vou? E eu?A mãe continuou sem olhar para mim.— Claro que não vais. Vão mandar os miúdos para

casa de pessoas decentes. Quem haveria de te querer? Ninguém. As pessoas decentes não querem olhar para esse pé.

— Podia ficar com pessoas más — afirmei. — Não seria muito diferente de viver aqui.

Vi a bofetada aproximar-se, mas não fui suficiente-mente rápida a desviar-me.

— Não quero cá insolências — ralhou ela. A sua boca retorceu -se naquele sorriso que fazia as minhas entra-nhas contraírem-se. — Não te podes ir embora. Nunca sairás daqui. Estás presa nesta sala, com ou sem bombas.

O Jamie ficou pálido. Abriu a boca para dizer qual-quer coisa, mas eu abanei a cabeça, e ele voltou a fechá--la. Assim que a mãe saiu ele lançou-se para os meus braços.

— Não te preocupes — disse-lhe, embalando-o. Não sentia medo. Sentia-me grata por ter passado o verão da maneira como o fizera. — Trata de saber para onde temos de ir e a que horas teremos de lá estar — pedi. — Vamos partir juntos, podes ter a certeza.

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Capítulo 3

Nas primeiras horas da madrugada de sábado, roubei os sapatos da minha mãe.

Tive de o fazer. Eram o único calçado existente no apartamento, para além dos sapatos de lona do Jamie, demasiado pequenos para mim, até para o pé torto. Na verdade, os sapatos da mãe ficavam-me grandes, mas eu enchi a biqueira com papel e enrolei um trapo em volta do pé retorcido. No final, atei os atacadores. A sensação era estranha, mas calculei que não me saíssem dos pés.

O Jamie mirou-me, pasmado.— Tenho de os levar — sussurrei. — Caso contrário,

as pessoas vão reparar no meu pé.— Estás de pé. Estás a andar — disse ele.Aquele era o momento pelo qual tanto esperara e

nem o podia apreciar. Tinha tanto em que pensar.— Sim — confirmei. — É verdade. — Olhei para a

mãe, deitada na cama, de costas para nós, a ressonar. Ela, orgulhosa de mim? Pois sim!

Desci as escadas a arrastar o traseiro. Quando cheguei ao último degrau, o Jamie ajudou-me a levantar e partimos juntos pelas ruas silenciosas naquelas primeiras horas da manhã. Um passo, pensei. Um passo de cada vez.

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* * *

Era interessante estar ao nível do solo. A luz era rosada, e uma vaga neblina azul parecia elevar-se dos edifícios, fazendo tudo parecer mais bonito do que ao fim do dia. Um gato virou uma esquina a grande velocidade, quiçá atrás de um rato. Para além do gato, não se via vivalma na rua.

Dei a mão direita ao Jamie, para ter onde me apoiar. Na esquerda levava um saco de papel com comida, para o pequeno-almoço. O Jamie explicara que tínhamos de estar na escola às 9 horas, ainda faltavam várias horas, mas eu calculei que quanto mais cedo nos fizéssemos ao caminho, melhor. Não sabia quanto tempo iria demorar a chegar à escola e não queria que as pessoas se puses-sem a olhar para mim.

A rua era irregular, pormenor que nunca conseguira distinguir da janela. Caminhar ali era bem mais difícil do que no nosso apartamento. O sapato ajudava, mas quando cheguei ao final da rua já me doía tanto o pé que não acreditei que fosse capaz de avançar nem mais um centímetro. Mas prossegui.

— Vira aqui — sussurrou o Jamie. — Já não estamos longe.

Dei outro passo, e torci o pé torto. Caí, exausta. O Jamie ajoelhou-se ao meu lado.

— Podias gatinhar — sugeriu ele. — Não está nin-guém a ver.

— Ainda falta muito? — perguntei-lhe.— Três quarteirões — respondeu ele. E acrescentou:

— Os quarteirões são os edifícios entre as ruas. Temos de atravessar mais três ruas.

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Medi a distância com o olhar. Três ruas. Podiam muito bem ser três quilómetros ou trezentos.

— Então talvez gatinhe um pouco — declarei.Contudo, gatinhar na rua não era como gatinhar em

casa. Já tinha os joelhos calejados, era um facto, mas as pedras magoavam, e o lixo e a lama também não eram coisas agradáveis. Depois de percorrermos um quartei-rão, dei a mão ao Jamie e levantei-me.

— Porque é que não andavas, se sabias andar? — inquiriu o Jamie.

— É uma coisa recente — expliquei. — Aprendi este verão, enquanto não estavas em casa.

Ele fez que sim com a cabeça.— Eu não conto a ninguém — garantiu.— Não importa — argumentei. O mundo já me

parecia gigantesco. Se olhasse para os telhados dos pré-dios ficava tonta. — Vamos para o campo. Lá ninguém se importa se eu ando ou não. — Claro que era men-tira. Nada sabia do lugar para onde íamos. Nem sequer conhecia muito bem o significado da palavra campo. Mas o Jamie apertou-me a mão com força e sorriu.

A escola era um edifício de tijolo com um pátio vazio rodeado por uma vedação de metal. Assim que entrá-mos, eu sucumbi ao cansaço. Comemos pão mergulhado em açúcar. Era bom.

— Trouxeste o açúcar da mãe? — perguntou o meu irmão, de olhos arregalados.

Assenti.— Todo — confessei, e rimos ambos às gargalhadas.Por estarmos parados, o ar parecia mais fresco, e sen-

tia a humidade do chão. A dor quase incapacitante no

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tornozelo foi-se transformando aos poucos num latejar constante. Observei os desconhecidos edifícios que me rodeavam, as espirais e a alvenaria, as telhas, as moldu-ras das janelas, as aves. Estava tão concentrada na minha observação que nem dei pela mulher que atravessava o pátio, até que o Jamie me deu uma cotovelada.

A mulher sorriu-nos.— Chegaram cedo — disse ela.Supus que fosse uma das professoras. Anuí e mostrei -

-lhe um enorme sorriso.— O nosso pai veio trazer-nos antes de seguir para

o trabalho — esclareci. — Ele garantiu-nos que tomaria conta de nós.

A mulher fez que sim com a cabeça.— E é isso mesmo que farei — afiançou ela. — Querem

um chá quente?Claro que quando nos levantámos ela reparou que eu

mancava. Qual mancar, eu estava praticamente a camba-lear, e a sorte era ter o Jamie para me equilibrar.

— Pobrezinha — lamentou ela. — O que se passa?— Magoei-o — redargui. — Esta manhã. — O que

não era propriamente mentira.— Deixas-me ver como está? — pediu a professora.— Oh, não é grave — argumentei, obrigando-me a

prosseguir. — Já quase não dói.

Depois daquilo foi fácil. Era a coisa mais difícil que alguma vez tinha feito em toda a minha vida, mas estra-nhamente pareceu-me fácil. Agarrei-me ao Jamie e continuei a andar. O pátio encheu-se de crianças e de professores que nos organizaram em filas. Não teria sido capaz de percorrer os 500 metros até à estação de

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comboio — estava praticamente sem forças — mas, de súbito, à minha frente apareceu um rosto familiar.

— És tu, Ada? — perguntou o Stephen White.Era o mais velho das crianças White; havia três rapa-

rigas entre o Stephen e o Billy. Estavam todos pasmados a olhar para mim. Nunca me tinham visto que não fosse através da janela.

— Sou eu — respondi.O Stephen parecia admirado.— Não pensei que viesses — declarou ele — Quero

dizer, claro que tinhas de sair de Londres, mas a nossa mãe disse que havia lugares especiais para pessoas como tu.

A minha mãe nunca mencionara nenhum lugar especial. Indaguei:

— Como assim, «pessoas como eu»?O Stephen baixou a cabeça. Era mais alto do que eu,

presumi que mais velho, mas não muito mais.— Tu sabes — disse ele.Eu sabia.— Aleijadas — afirmei.Ele levantou a cabeça, perplexo.— Não. — Contrapôs: — Que não são boas da cabeça.

É o que toda a gente diz. — Acrescentou: — Pensava que nem sabias falar.

Pensei em todo o tempo passado à janela e declarei:— Mas eu estou sempre a falar contigo.— Eu sei que acenas e tagarelas, mas… — Parecia

bastante envergonhado. — A verdade é que lá em baixo, na rua, nunca conseguimos ouvir-te. Não percebemos o que dizes. Achava que nem saberias falar normalmente. E a tua mãe está sempre a dizer que tens de ficar fechada

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para o teu próprio bem. — Pela primeira vez, olhou para os meus pés. — És aleijada?

Fiz que sim com a cabeça.— Como foi que chegaste até aqui?— Caminhei — respondi. — Não podia deixar que o

Jamie viesse sozinho.— Foi difícil? — quis saber ele.— Foi — confessei.Uma estranha expressão, que não fui capaz de inter-

pretar, tomou conta do rosto do Stephen.— Todos sentem pena da tua mãe — revelou ele.Para essa declaração eu não tinha resposta.O Stephen perguntou logo de seguida:— E ela sabe que te vieste embora?Eu teria mentido, mas o Jamie apressou-se a replicar:— Não. Ela disse que a Ada ia ser bombardeada.O Stephen anuiu.— Não te preocupes com a distância até à estação —

disse ele. — Eu dou-te boleia.Não sabia o que ele queria dizer, mas uma das suas

irmãs mostrou-me um sorriso e informou:— Ele também me dá boleias.Sorri-lhe de volta. Ela lembrava-me o Jamie.— Então está bem — concordei.E, dito isso, o Stephen White carregou-me às cava-

litas até à estação. A professora que nos oferecera o chá agradeceu-lhe o gesto. Avançámos numa inter-minável fila indiana e as professoras puseram-nos a entoar uma canção patriótica. Às tantas, lá chegámos à estação. A plataforma parecia transbordar de crian-ças, mais do que aquelas que acreditei existirem no mundo.

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— Consegues entrar sozinha no comboio? — per-guntou o Stephen, colocando-me no chão.

Agarrei o ombro do Jamie.— Claro que sim.O Stephen fez um aceno de cabeça e começou a jun-

tar o Billy e as irmãs, mas depois voltou-se para mim.— Mas por que razão ela te mantinha fechada, se não

tens nenhum problema na cabeça?— Por causa do pé — expliquei.Ele abanou a cabeça.— Mas isso é uma loucura — comentou.— É por causa… por causa do que quer que eu tenha

feito para que o meu pé ficasse assim…Abanou a cabeça outra vez.— Que loucura.Fitei-o. Loucura?Nessa altura, as professoras começaram a gritar para

que embarcássemos, e assim fizemos. Antes de os sinos da igreja anunciarem o meio-dia, o comboio começou a andar.

Tínhamos escapado. À mãe, às bombas de Hitler, à minha prisão de uma assoalhada. A tudo. Loucura ou não, eu estava livre.

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Capítulo 4

Como seria de esperar, os outros ocupantes do com-boio estavam descontentes. Ao contrário de mim,

a maioria das crianças não se sentia feliz por partir. Algumas choravam, e uma vomitou a um canto da car-ruagem. A professora destacada para o nosso vagão corria de um lado para o outro, tentando limpar a porcaria, impedindo os rapazes de lutar e explicando pela terceira ou pela décima ou pela milésima vez que não existiam casas de banho no comboio, teríamos de aguentar, e não, também não sabia quanto tempo faltava para chegarmos, ninguém fazia ideia do des-tino daquela viagem e muito menos quantas horas demoraria.

Não havia casas de banho, não havia nada para beber, e já tínhamos comido todo o nosso pão. Deitei açúcar para as mãos do Jamie e ele lambeu-o, como um gato. Entretanto, o mundo avançava do outro lado da janela, cada vez mais rápido. Se permitisse que o meu olhar se desfocasse, a paisagem esbatia-se e passava a correr. Se fixava os olhos num objeto, este permanecia imóvel; se movia a cabeça, tornava-se óbvio que era o comboio que se deslocava, e não o mundo.

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Os edifícios foram substituídos por um verde res-plandecente, vibrante, extraordinário, que se estendia por todo o lado e se elevava em direção ao céu azul. Olhei fixamente, como que hipnotizada.

— O que é aquilo?— Erva — respondeu o Jamie.— Erva? — Ele conhecia aquele verde? Não havia erva

na nossa rua, nem nada que se parecesse. Eu conhecia o verde das roupas ou das couves, não dos campos.

O Jamie assentiu.— Está no chão. É uma coisa assim espigada, mas

macia. Há erva no cemitério. Em redor das lápides. E árvores, como aquela além. — Apontou para fora da janela.

As árvores eram altas e delgadas, como os caules do aipo, mas em tamanho gigante. Com explosões de verde no cimo.

— Quando foi que estiveste num cemitério? — inda-guei. O que é um cemitério?, era o que devia ter pergun-tado em seguida. Parecia não haver fim para as coisas que eu desconhecia.

O Jamie encolheu os ombros.— Na igreja de St. Mary, a jogar ao eixo nas lápides.

O pastor correu connosco.Observei o verde até começar a transformar-se num

borrão. Passara boa parte da noite acordada, para me assegurar de que não nos deixávamos dormir, e naquele momento as minhas pálpebras queriam fechar-se, deva-garinho, até que o Jamie sussurrou:

— Ada. Ada, olha.Uma rapariga perseguia o comboio montada num

pónei. A sério, ela estava em cima do pónei, sentada no

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seu lombo, com uma perna para cada lado. Segurava o que pareciam ser cordas, ou qualquer coisa semelhante, e essas cordas estavam amarradas à cabeça do animal. A rapariga ria, com uma expressão de alegria pura no seu rosto, e era evidente, até para mim, que ela desejava estar a montar o pónei. Era ela que o dirigia, que lhe dizia o que fazer. E o pónei corria a toda a velocidade.

Conhecia animais como aquele lá da rua, mas só os vira a puxar carroças. Não fazia ideia que era possível montá-los. Não imaginava que corressem tão depressa.

A rapariga inclinou-se para a frente, aproximando o rosto da crina esvoaçante do pónei. Os seus lábios mexiam-se como se estivesse a gritar qualquer coisa. As pernas batiam no flanco do animal, e o pónei lan-çou-se para a frente, mais depressa, pernas castanhas a voar, olhos brilhantes. Correram ao lado do comboio ao mesmo tempo que este contornava a propriedade.

Vi um muro de pedra à frente deles. Arquejei. Iam embater contra ele. Iam magoar-se. Porque é que ela não travava o pónei?

Saltaram. Transpuseram o muro de pedra e continua-ram a correr, enquanto a linha de comboio se afastava da propriedade.

Repentinamente, consegui sentir tudo: a corrida, o salto. A suavidade do voo — reconheci-a com todo o meu corpo, como se fosse uma coisa que eu tivesse feito umas cem vezes. Uma coisa que adorasse fazer. Bati no vidro.

— Vou fazer aquilo — anunciei.O Jamie riu.— Porque não? — perguntei-lhe.— E vais no bom caminho — elogiou ele.

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Não lhe disse que me doía tanto o pé que não fazia ideia se alguma vez voltaria a andar.

— Sim — concordei. — Isso é verdade.

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Capítulo 5

O dia piorou. Só podia ser assim. O comboio parou e recomeçou a andar e voltou a parar. O calor atra-

vessava os vidros parecendo cozer o ar. As crianças mais pequenas choravam. As mais velhas andavam à bulha.

Por fim, parámos num apeadeiro, mas uma mulher autoritária que lá se encontrava não nos queria deixar sair. Discutiu com a diretora e depois com as professoras e até com o maquinista. As professoras argumentaram que ela tinha de nos deixar sair, pelo amor de Deus, mas a mulher, que tinha um rosto duro como o ferro e uma farda como a de um soldado, mas com saia, bateu na prancheta e recusou.

— Estou à espera de 70 mães com os seus bebés — resmungou. — Não de 200 crianças em idade escolar. É o que diz aqui.

— Pouco me importa o que está escrito no seu papel — atirou a diretora.

A professora responsável pela nossa carruagem aba-nou a cabeça e abriu a porta.

— Saiam, todos — ordenou. — As casas de banho são na estação. Já vos arranjamos qualquer coisa para comerem e beberem. Toca a andar.

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E lá saímos, num tumultuoso rebanho. As outras pro-fessoras não demoraram a fazer o mesmo, abrindo tam-bém as portas das suas carruagens. A mulher da cara de ferro enrugou o sobrolho e gritou ordens que ninguém acatou.

Havia mais ruído e agitação do que eu alguma vez presenciara. Era bem melhor do que fogo de artifício.

O Jamie ajudou-me a sair do comboio. Sentia o corpo rígido e uma vontade imensa de fazer chichi.

— Ensina-me a usar a casa de banho — pedi-lhe. Podia parecer estranho, mas era a primeira vez que entrava numa casa de banho de verdade. Em casa, o nosso apartamento partilhava a que existia ao fundo do corredor, mas eu fazia num balde e a mãe ou o Jamie despejavam-no.

— Eu tenho de usar a dos rapazes — explicou o Jamie.— Como assim, a dos rapazes?— Estás a ver? — Ele apontou para as duas portas.

Tinha razão, os rapazes entravam por uma porta, e as raparigas pela outra. Havia uma fila enorme em ambas.

— Então diz-me o que tenho de fazer.— Fazes chichi na sanita, e depois puxas o autoclismo

— esclareceu ele.— O que é um autoclismo? Como se faz?— Vais ver uma pega, e é só puxares.Esperei pela minha vez e depois entrei e percebi o

que tinha de fazer, até a parte de puxar o autoclismo. Havia lavatórios e aproveitei para salpicar o rosto quente com um pouco de água. Uma rapariga à minha frente — a rapariga de roupas mais esfarrapadas e com pior aspeto que alguma vez vira — estava a utilizar um lavató-rio mesmo à frente do meu, o que me pareceu estranho.

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Mostrei-lhe um semblante severo, e ela respondeu na mesma moeda.

De súbito, percebi que estava a olhar para um espelho.A mãe tinha um espelho. Estava pendurado bem

alto na parede lá de casa e eu nunca me preocupei com a sua existência. Olhei fixamente para aquele, horrori-zada. Presumira que era igual a todas as outras rapari-gas. Mas a verdade é que o meu cabelo era cerdoso, e não sedoso. A pele parecia mais pálida do que a delas, branca como o leite, mas também um pouco acinzen-tada, especialmente em redor do pescoço. Os calos encardidos dos meus joelhos destacavam-se por baixo da saia desbotada, que de súbito me pareceu suja e demasiado curta.

O que podia eu fazer? Respirei fundo e saí a cam-balear. O Jamie esperava-me. Examinei-o com um novo olhar, mais crítico. Também ele estava mais sujo do que os outros rapazes. A camisa desbotara até atingir uma cor indeterminada e as unhas estavam negras.

— Devíamos ter tomado banho — disse-lhe.O Jamie encolheu os ombros.— Não importa.Mas claro que importava.

Em casa, quando olhava para a rua através da janela, do outro lado da estrada, três edifícios para a esquerda, na esquina, conseguia ver a peixaria. O peixe fresco era aí entregue todas as manhãs e disposto para venda sobre uma pedra grossa. Com o calor do verão, o peixe estragava -se depressa, por isso as mulheres escolhiam cautelosamente por entre a seleção exposta, certificando--se que levavam apenas o mais fresco e o melhor.

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Era precisamente isso que nós éramos: peixes em exi-bição. As professoras conduziram-nos rua abaixo, mete-ram-nos num enorme edifício e alinharam-nos contra a parede. Os homens e as mulheres da aldeia foram desfi-lando e olhando para nós, tentando perceber se éramos bem-comportados, bonitos e saudáveis o suficiente para nos levarem para as suas casas.

As expressões dos seus rostos deixavam claro que muitos de nós não éramos de grande valor. E, se dúvidas houvesse, bastava escutar os seus comentários.

— Credo — exclamou uma das mulheres, recuando depois de cheirar o cabelo de uma das crianças. — Estão imundos!

— Só precisam de um banho — disse a mulher da cara de ferro. Com a prancheta ainda na mão, era ela quem conduzia as operações a partir do centro da sala. — Temos de ser generosos. Não esperávamos tantos. Temos de fazer a nossa parte.

— A minha parte não se aplica a um bando de rataza-nas — replicou um homem idoso. — Parecem capazes de nos assassinar enquanto dormimos.

— São crianças — lembrou a mulher com a cara de ferro. — Não têm culpa de ter o aspeto que têm.

Olhei em redor. As raparigas da aldeia que distri-buíam canecas de chá luziam radiantes com fitas no cabelo. De certeza que cheiravam bem.

— Talvez não — disse outra mulher. — Mas não são nada como as nossas crianças, pois não?

A mulher com a cara de ferro abriu a boca para argu-mentar, mas logo depois fechou-a sem dizer palavra. O que quer que fôssemos, não éramos como as suas crianças, isso parecia evidente.

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— Ada — sussurrou o Jamie —, ninguém nos quer.Era verdade. A multidão começava a rarear. Restavam

cada vez menos crianças. As professoras encostaram-nos um ao outro e elogiaram-nos. A mulher com a cara de ferro tentou convencer os restantes aldeões.

Uma mulher já velha e com o cabelo azul colocou a mão no braço do Jamie.

— Não fico com a rapariga — declarou —, mas acho que posso levar o rapaz.

— Não o recomendo — alertei eu. — Rouba e morde. E sem a minha presença de certeza que lhe voltam a dar os ataques.

A boca da mulher formou um «O» mudo. Retirou a mão apressadamente e saiu com o irmão de outra criança.

E a sala não demorou muito a ficar vazia, com exceção das professoras, da mulher com a cara de ferro, do Jamie e da minha pessoa. A nossa mãe tinha razão. Ninguém nos queria. Éramos os únicos que ninguém escolhera.

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