panoramacrítico 06
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A Revista Panorama Crítico chega oficialmente ao fim do seu primeiro ano de existência com essa nova edição. O trabalho de consolidação realizado durante este primeiro ano já trouxe algumas frutos e novas perspectivas que se apresentam no horizonte. O comprometimento com a produção critica e teórica da revista trouxeram as possibilidade de nos lançarmos em novas possibilidades e buscarmos projetos. Nesse mesmo segundo ano de existência da publicação, traremos várias novidades, sendo que algumas já se encontram nessa edição de Jun/Jul.TRANSCRIPT
Revista Bimestral de Arte Panorama Crítico | ISSN 1984-624X | Edição #06 | Junho/Julho
Nesta edição: Dossiê:Vidas do fora
Ensaio Visual HPSP (por Lilian Gomes)
Foto: Lilian Gomes
#06 – Jun/Jul 2010
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Sumário da edição Nº06 - Jun | Jul 2010
1. Editorial
2. Panorama
> Brevíssimos apontamentos sobre a arte contemporânea – Paula Ramos
3. Artigos
> Dispositivos relacionais em processos coletivos e práticas artísticas em comunidades: hortas comunitárias e canteiros como possibilidade – Janice Martins Sitya Appel
> Comunicações indiretas entre León Ferrari e Mira Schendel, sob um alfabeto enfurecido - Bruno Dorneles da Silva e Bianca Knaak
> Os espaços em trânsito da Arte: In-situ e site-specific, algumas questões para discussão - Tiago Giora
4. Ensaios
> Crítica de Arte: Esfacelamento ou mudança de atitude frente aos processos artísticos contemporâneos? – Karine Gomes Perez
> Arte e sistema: onde está a arte? - Paula Frassinetti > Olhares múltiplos: conferências marcam início das atividades do recém-
inaugurado curso de História da Arte - Rosane Vargas -Dossiê Vidas do Fora: memória, vidas e obras
> Prefácio: Introduzir o que é em si – André Dornelles Pares
> Vidas do fora e a escrileitura de um mundo incontável - Tania Mara Galli Fonseca
> Ao som de uma cançãozinha Luiz sai de sua casa - Andresa Ribeiro Thomazoni
> Natália e o universo em uma casca cor-de-abóbora - Fábio Dal Molin
> Uma Vida em Acervo: experiência e escrita - Leonardo Martins Costa Garavelo
> C.RCP: uma vida - Sara Hartmann
5. Entrevista
> Maria Helena Bernardes – Horizonte Expandido
#06 – Jun/Jul 2010
Revista Bimestral de Arte Panorama Crítico | ISSN 1984-624X | Edição #06 | Junho/Julho
Editorial
Por Alexandre Nicolodi e Denis Nicola
A Revista Panorama Crítico chega oficialmente ao fim do seu primeiro
ano de existência com essa nova edição. O trabalho de consolidação realizado
durante este primeiro ano já trouxe algumas frutos e novas perspectivas que se
apresentam no horizonte.
O comprometimento com a produção critica e teórica da revista trouxe a
oportunidade de nos lançarmos em busca de novos projetos. Nesse segundo
ano de da revista, traremos várias novidades, sendo que algumas já se
encontram nessa edição de nº 06.
Ensaio Visual por enquanto é a primeira novidade da revista, trazendo
fotos sobre a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro e
do seu espaço do acervo. A fotógrafa e artista Lílian Gomes é a autora das
fotos dessa primeira edição.
Na seção Ensaios apresentamos o dossiê do grupo de pesquisa
Corpo, Arte e Clinica, também atuante no HPSP e que recentemente produziu
a exposição Eu sou, que vai até o dia 20 de Agosto no espaço da Oficina de
Criatividade. O dossiê traz um prefácio, elaborado pela revista, de autoria de
André Dornelles e textos de Andresa Ribeiro Thomazoni, Fábio Dal Molin,
Leonardo Martins Costa Garavelo, Sara Hartmann, e da organizadora do
grupo Tania Mara Galli Fonseca (organizadora deste Dossiê junto com Vitor
Butkus, nosso novo colaborador). Essa seção traz ainda textos de Karine
Gomes Perez, Paula Franssinetti e Rosane Vargas, onde são levantados
apontamentos sobre a crítica de arte hoje, os processos artísticos, o sistema da
arte e o papel do ensino em artes visuais hoje.
Em Artigos Janice Martins Sitya Appel, apresenta as relações e
possibilidades nos processos artísticos comunitários; Bruno Dorneles da Silva
e Bianca Knaak comentam a exposição instalada na Fundação Iberê
Camargo: Alfabeto Enfurecido de Leon Ferrari e Mira Schendel; e Tiago Giora
coloca em questão alguns pontos sobre site-specific e In-situ na arte
contemporânea.
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Lançada originalmente na edição experimental zero, em dezembro de
2008, o Panorama desta edição é o resgate deste texto de autoria de Paula
Ramos: Brevíssimos Apontamentos sobre Arte Contemporânea, onde a autora
coloca em questão os modos de funcionamento e atuação do sistema da arte e
da critica de arte hoje. Pontos de questionamento que serviram de motivação
para a criação desta revista.
Por fim, a Entrevista desta edição foi realizada com Maria Helena
Bernardes, curadora, junto com André Severo, da mostra Horizonte
Expandido, em cartaz no Santander Cultural, que trouxe a Porto Alegre
registros, vídeos, filmes, documentos e fotografias dos mais importantes
artistas da arte conceitual mundial das décadas de 1960 e 1970. A conversa
debruça-se sobre a mostra, suas dificuldades e expectativas, e as relações dos
artistas e trabalhos expostos com o Documento Areal.
Gostaríamos aqui de expressar nossos mai sinceros agradecimentos às
pessoas que nos apoiaram e incentivaram o projeto editorial da revista,
permitindo assim que conseguíssemos completar nosso primeiro ano frente à
desse projeto. Nossos agradecimentos vão para os membros do conselho
editorial, Paula Ramos, Paulo Gomes, Maria Ivone dos Santos e Neiva Bohns,
passando por nossos colaboradores mais “antigos” que acreditaram no projeto
e também pelos novos colaboradores. Não podemos nos esquecer de
agradecer a todos os entrevistados e aqueles que enviaram seus textos para
publicação. E lógico aos nossos leitores, eu a cada edição continua,
aumentando exponencialmente.
Com as próximas edições, novas mudanças virão! Sempre com o intuito
de buscar um aprimoramento e, se algumas coisas parecem mudar nas artes,
mesmo que pareçam permanecer as mesmas, o objetivo da revista é de
permanecer a mesma, com o seu papel de colocar em evidência a produção
textual critica e teórica de forma independente e consistente, mas sempre se
modificando, se transformando e aprimorando, buscando assim ultrapassar as
fronteiras já alçadas e lançar velas aos mares já vislumbrados por nós, mas
ainda desconhecidos.
Uma boa leitura e parabéns a todos!
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Panorama
Brevíssimos apontamentos sobre crítica de arte, mídia
e cultura contemporânea1
Por Paula Ramos
Falar da ausência de crítica no Brasil, sobretudo no que tange às artes
visuais, transformou-se em verdadeiro clichê. Há pelo menos 30 anos este
assunto é corrente no meio e, na esteira dele, como também não poderia
deixar de ser, a tão propalada “crise da arte”. Ambos os temas dão “pano paras
as mangas”, como indica a expressão popular, e não é meu objetivo, neste
rápido texto, discuti-los. Entretanto, permito-me fazer algumas breves reflexões
sobre o morno, para não dizer ausente panorama crítico na mídia
contemporânea. Para tanto, retomo algumas percepções gerais sobre o papel
comumente atribuído à crítica.
Mônica Zielinsky nos lembra que, quando a crítica moderna surge, com
Diderot, no século XVIII, os visitantes dos salões de arte e potenciais
compradores das obras buscavam nela um amparo para as suas escolhas. A
crítica de arte era, portanto, atividade de um especialista, que determinava a
circulação pública das obras, estabelecendo as relações entre a produção
artística e o espectador/colecionador (ZIELINSKY, 2006). Por outro lado, na
tradição em que se fundamenta, o trabalho desse mesmo especialista
funcionaria, como define Jacques Leenhardt, de modo semelhante a uma
pedagogia da sensibilidade. Aprendemos a ler e a escrever, mas não a olhar. E
o crítico de arte sabe, ou deveria saber, apreciar cores, formas e linhas. E ele
também deveria encontrar nessas mesmas cores, formas e linhas um
significado especial e saber comunicá-lo, por meio da linguagem verbal. Dessa
forma, o efeito visual seria acessível a todos, por meio do texto crítico, uma
espécie de escola do olhar (LEENHARDT, 2000).
1 N.E. Texto escrito originalmente para a ediçao #00 da PanoramaCritico, em dezembro de 2008. Sendo que na época, o site que foi ao ar ainda não possuía ISSN. Por isso o texto apresenta os editores ainda com alunos do Instituto de Artes da UFRGS.
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Esse papel de mediação, de ponte, manteve-se por muito tempo calcado
na concepção generalista de uma capacidade desse especialista, digamos
assim, de discernir, no universo das produções culturais – e, pontualmente, no
das artes visuais –, as de grande qualidade. Mas, se os acertos da crítica
acabam se diluindo no consenso comum, os erros são muitos, célebres e para
sempre lembrados, vide o antológico episódio envolvendo a primeira exposição
dos impressionistas, em 1874... A minha memória falha neste momento, mas
inclusive alguém já escreveu que residiria aí o gérmen da paralisia da crítica na
contemporaneidade: diante de uma avalanche de produções muitas vezes
desprovidas de sentido, ancoradas na banalidade, e com receio não somente
de errar, mas de passar à história como o crítico que não teve sensibilidade –
olho – discernimento ou qualquer outra coisa que o valha, muitos teriam
deixado de fazer textos mais analíticos, mais comentados, mais críticos, na sua
essência.
Os “motivos” da neutralização da crítica, de um lado, e do raro espaço
dedicado a ela nos meios de comunicação social, de outro, podem ser vários:
desde as linhas editoriais adotadas pelas empresas de comunicação, passando
pelo tamanho cada vez mais enxuto dos “cadernos de cultura”, bem como pelo
despreparo dos jornalistas e desinteresse do público, entre muitos outros.
Sendo, ou não, resultado dessa conjuntura, o quadro geral da crítica no Brasil
todos conhecemos: no lugar da reflexão, o texto de serviço, indicando
aberturas de exposições, horários de funcionamento, patrocinadores, quem fez
o quê; no lugar da reflexão, a efemeridade da notícia; no lugar da reflexão, a
coluna social, com direito a farto material fotográfico reproduzindo os sorrisos
dos convivas durante o vernissage...
É evidente que há exceções a essa fórmula que parece ter assumido a
condição de regra, mas o que temos vivenciado nos últimos anos é uma
perversa transformação dos espaços jornalísticos tradicionalmente reservados
aos assuntos “culturais e artísticos”. Tal território foi tomado pela volatilidade e
pelo extraordinário, num fenômeno que ultrapassa o campo da comunicação,
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mas que, ao mesmo tempo, é potencializado nele. Ora, provavelmente nunca
antes o homem viveu de modo tão espetaculoso e exibicionista. O estrondoso
sucesso internacional dos reality shows e blogs, que midiatizam tudo, até
mesmo os aspectos mais cotidianos e prosaicos da vida, reforça a percepção
de que a sociedade contemporânea vive uma grande representação de si
mesma. Nesse ambiente de aparências, de encenações e de fugacidades, a
reflexão crítica, de qualquer ordem, é absolutamente necessária. Contudo,
onde ela está?
A rede que se estabelece em torno das artes visuais não ficou imune a
esse câmbio de valores e de comportamentos. E as bienais e mega-exposições
nos mostram, cada vez mais, como o campo artístico encontrou na estética
videogame e na caprichada cenografia aliados imprescindíveis na sedução de
novos e jovens públicos. Nisso, pelo menos em princípio, não residiria qualquer
problema; a questão é que esses aspectos muitas vezes suplantam a própria
produção artística, tornando-se “o” fato artístico e desviando a já frágil atenção
do público. A obra, em muitas situações, é mera coadjuvante.
Processo semelhante tem ocorrido em relação ao papel do curador.
Quantas vezes a curadoria não se confunde com as obras... Isso porque talvez
a curadoria tenha assumido outro posto: de verdadeira criação. É como se as
obras estivessem ali para justificar uma idéia, um conceito, ou mesmo um
delírio do curador. Poderíamos listar diversas exposições realizadas nos
últimos anos, no Brasil, conhecidas, comentadas e fartamente citadas não
necessariamente por causa dos artistas e das obras que delas participam, mas
devido à proposta, ou ao nome do curador. Curador que, diga-se de passagem,
quase sempre emerge do universo da crítica (quando ele não é um artista que,
curiosamente, também participa da exposição, e em destaque! Mas esse já é
assunto para um outro texto...). Trata-se, de fato, de uma nova função,
articulada à lógica institucional das artes visuais na contemporaneidade e que
difere daquela do crítico de antigamente, respaldado no discurso, na mediação.
Nesse quadro, o curador muitas vezes se lança, como aponta Fernando
Cocchiarale, a produzir questões quase sempre extra-estéticas, temáticas, que
norteiem as exposições, que lhes emprestem sentido, ainda que provisório
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(COCCHIARALE, 2006). E aí podem surgir tanto propostas interessantes,
instigantes e pontuais, como constrangedoras falácias, verdadeiros “sambas do
crioulo doido”, sem contar os atentados visuais e intelectuais.
Uma vez mais, esse livre trânsito de personagens e funções não traria
grandes conseqüências se houvesse, efetivamente, crítica. Todavia, como os
atores são reduzidos, há não somente uma sobreposição de atuações, como
uma espécie de protecionismo entre os pares. O resultado é que não se diz,
não se escreve e não se comenta nada, até para preservar o colega e,
também, porque nunca se sabe que novo papel ele poderá assumir no campo!
E os interesses pessoais, nesse sentido, podem falar mais alto. Esse aspecto
nebuloso por trás da falta de crítica nos jornais e revistas indica que tal
dificuldade não decorre, apenas, de uma falta de interesse do publico ou das
empresas de comunicação. Pior: ela é endêmica.
Essa mesma linha de pensamento nos leva a refletir sobre o texto crítico
produzido para livros ou catálogos de exposições. Aliás, seria lícito chamá-lo
de crítico? A dúvida se justifica quando pensamos que, ao ser convidado e
pago a escrever, o profissional provavelmente não fará um artigo ou ensaio de
caráter realmente crítico, mas sim de apresentação, de contextualização e que
debata determinados aspectos da obra do artista, os que ele julgar mais
apropriados. Como, nos últimos tempos – inclusive devido aos investimentos
em cultura, decorrentes das leis de incentivo fiscal –, tem havido uma
expressiva produção editorial voltada a esse segmento, somos convidados a
acreditar que a crítica de arte não desvaneceu e que, pelo contrário, está até
mais fortalecida!!! O que não faz esse incrível mundo de aparências!!!
As híbridas e polêmicas relações entre curadoria, crítica, artistas,
instituições, mercado e, sim, público, têm fomentado profícuos debates,
sobretudo no meio acadêmico. Entre tantos, porque muitas coisas mudaram, a
começar pelo próprio conceito de arte... Nesse cenário em constante ebulição e
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carente de espaços de discussão, é admirável que um grupo de estudantes2
tenha se organizado e desenvolvido, de modo corajoso e independente, este
fórum público de diálogo em torno da arte contemporânea. Assuntos e temas
para discutir, como sabemos, não faltam...
2 A idéia partiu de Alexandre Nicolodi e Denis Nicola, do curso de Artes Visuais da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mobilizados, de um lado, pelas querelas
e polêmicas próprias do campo e, de outro, pelo total desconhecimento do que acontece em
outras instituições de ensino superior na área de artes, e mesmo em cidades vizinhas a Porto
Alegre (RS), Alexandre e Denis resolveram criar um site, esta revista. A proposta surgiu em
abril de 2008 e, com a parceria dos colegas Gabriel Gageiro, Letícia Lampert, e André Pares
em pouco tempo PANORAMA CRÍTICO ganhou forma.
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Referências
COCCHIARALE, Fernando. Crítica: a palavra em crise. In: FERREIRA, Glória
(Org.). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas.Rio de Janeiro:
Funarte, 2006.
LEENHARDT, Jacques. Crítica de arte e cultura no mundo contemporâneo. In:
MARTINS, Maria Helene (Org.). Rumos da Crítica. São Paulo: Itaú Cultural;
SENAC, 2000.
ZIELINSKY, Mônica. A arte e sua mediação na cultura contemporânea. In:
FERREIRA, Glória (Org.). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas
Contemporâneas.Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
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Artigos
Dispositivos relacionais em processos coletivos e
prática artística em comunidades: hortas comunitárias e
canteiros como possibilidade. Janice Martins Sitya Appel1
Resumo:
O processo artístico atende a uma série de indagações e propostas,
como sua contribuição para o campo de abrangência das atuais poéticas
contemporâneas, em relação aos deslocamentos e descontinuidades propostos
em arte relacional. Atende às incursões de possibilidades transdisciplinares em
metodologias da prática artística, como suas possibilidades de intervenção
urbana nas relações de convívio como produção de novas relações e suas de
formas estéticas ampliadas à realidade.
A partir do momento em que “a prática do artista, seu comportamento
enquanto produtor determina a relação que será estabelecida com sua obra:
em outros termos, o que ele produz, em primeiro lugar, são relações entre as
pessoas e o mundo por intermédio dos objetos estéticos” (BOURRIAUD, 2009:
59), o fazer de um projeto em arte para ser desenvolvido a partir de relações de
convívio em um coletivo comunitário promoverá um encontro crítico entre arte e
realidade. A crítica aqui se faz presente por ser o processo artístico coletivo
uma forma de representação que vai renegociar as relações entre a arte e a
vida. É através da participação do outro no coletivo comunitário, na instituição
Arte, ou nos termos e contexto de uma produção artística como objeto, que as
relações entre arte e vida vão mostrar-se como forças de ação do processo.
Para entender melhor a premissa é necessário crer que “a arte relacional
não é o revival de nenhum movimento, o retorno a nenhum estilo; ela nasce da
1 Bolsista CAPES/DS - Mestranda em Processo Artísticos – PPGAV/CEART/UDESC. Bacharel em Artes Plásticas – DAV/IA/UFRGS. Atuação como Coordenadora de Artes Plásticas no Fórum Social Mundial 2005(Porto Alegre,RS) e Consultora da UNESCO 2004 (Porto Alegre,RS). Desde 1994 atua como educadora social e oficineira de artes visuais em coletivos e comunidades.
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observação do presente e de uma reflexão sobre o destino da atividade
artística. Seu postulado básico – a esfera das relações humanas como lugar na
obra de arte – não tem precedentes na história da arte, mesmo que, a
posteriori, apareça como evidente pano de fundo de qualquer prática estética.”
(BOURRIAUD, 2009: 63). Ou seja, através de ações cotidianas, o artista
promove o seu espaço de convivência social, assim como as propostas
relacionais em sua forma complexa ocupam espaços convencionais da
instituição Arte ou se aproximam de acontecimentos e situações inseridos vida
cotidiana.
As valorizações do encontro e do convívio atuam como dispositivos
relacionais e como forma para entendimento de um projeto em arte
contemporânea, assim como a explanação de alguns conceitos, são lançados
pelos autores Nicolas Bourriaud, Reinaldo Laddaga, Suely Rolnik, Felix
Guattari e Gilles Deleuze, sobre projetos coletivos em arte desenvolvidos por
artistas e coletivos em comunidades específicas.
Palavras-chave: deslocamentos; dispositivo relacional; cotidiano,
comunidade, arte coletiva
No uso de dispositivos relacionais para um trabalho em arte coletiva na
comunidade, o grupo envolvido passa a atingir novas possibilidades de atuação
no real – seja uma horta comunitária e canteiros, ou qualquer outra produção
coletiva em arte relacional complexa- estes acabam por materializar novos
espaços de vida que geram sua participação direta, a constante reflexão e
diálogo permanente a partir do convívio. O resultado direto deste convívio são
as relações de descontinuidade onde a subjetividade dos sujeitos envolvidos
pode ser reconstruída. A investigação das possibilidades poéticas visuais e de
seus processos, através da interferência no urbano coletivo, deslocamento de
saberes e intervenção na comunidade, possibilitam novas trocas e experiências
em arte.
O processo artístico gerado a partir de um dispositivo relacional cria um
corte momentâneo sobre o contexto imediato e formal esperado pela instituição
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Arte, ampliando a visão de contexto e fazendo com que a realidade possa ser
vista e vivida de outras maneiras. Primeiramente, o fazer provoca uma
descontinuidade na própria realidade da comunidade, um encontro com novas
formas de representação que produzem realidade. Inseridos como agentes e
produtores desta descontinuidade, o grupo envolvido tem que agenciar novos
lugares de convivência. Desta forma, são deslocados de seu lugar de
reconhecimento principal (o lugar de membros e moradores de uma
comunidade, por exemplo) e estimulados a catalisar novos processos de
subjetividade em seu cotidiano (o lugar de produtores de arte em processos
coletivos).
Os objetos e as instituições, o emprego
do tempo e as obras são, ao mesmo tempo,
resultados das relações urbanas – pois
concretizam o trabalho social – e produtores de
relações, pois organizam modos de socialidade
e regulam os encontros humanos.
(BOURRIAUD, 2009: 66)
Movida pelo interesse em participar de encontros e de relações de
convívio com a comunidade da Barra da Lagoa e Lagoa da Conceição
(Florianópolis,SC) na retroalimentação da cultura local como na situação do
processo e fazer coletivo referente à horta de temperos, ervas medicinais e de
outras plantas - a horta comunitária e canteiros, surge como projeto de arte
coletiva - processo coletivo ou colaborativo e de produção do real, simbólico e
imaginário coletivo que reforça o reconhecimento da cura através das plantas e
do cultivo da horta como cultura local. O convívio estabelecido pelo cotidiano
das ações na horta comunitária e canteiros, promove um projeto de arte
coletiva, formado através das relações de vínculo e de colaboração na
comunidade.
Neste sentido, uso exemplos práticos como as experiências do coletivo
dinamarquês Superflex que desenvolveu projetos de arte coletiva chamados
Supergas2 (1996-97), a partir da realidade de uma comunidade específica em
2 SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.dk – “Supergas” (Camboja, 1996-97)
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Camboja (África) e na Tailândia (Ásia) e FreeBeer3. Sua preocupação com a
preservação do meio ambiente na produção de biogás e biocombustível, levou
ao projeto coletivo em arte, como uma forma de convívio e direcionamento às
necessidades e recursos econômicos que acreditamos existir em economias de
pequena escala. A cerveja FreeBeer foi criada pelo grupo como um modelo
econômico para financiar a produção artística no âmbito da galeria. FREE
BEER é uma cerveja, que é livre no sentido de liberdade, não no sentido de
cerveja grátis. O projeto, originalmente concebido por Superflex e estudantes
da Universidade de Copenhague IT, aplica-se ao software livre e métodos de
fonte aberta para um produto tradicional do mundo real – neste caso, a bebida
alcoólica cerveja.
FREE BEER é baseada nas tradições clássicas da cerveja ale, mas com a
adição de guaraná para um aumento de energia natural. A receita e os
elementos de marca do FREE BEER são publicados sob uma Creative
Commons (Attribution 2,5) de licença, o que significa que qualquer pessoa
pode usar a receita para fabricar cerveja sua cerveja FREE própria ou criar um
derivado da receita. Qualquer pessoa é livre para ganhar o dinheiro da FREE
BEER, mas eles devem publicar a receita sob a mesma licença de crédito e de
trabalho. Todos os elementos de design e branding estão disponíveis para
fabricantes de cerveja e pode ser modificado para atender, desde que as
alterações sejam publicadas sob a mesma licença. Todas as prerrogativas
lançadas pela proposta do grupo Superflex com a FREEBEER, lançam este
projeto a uma deriva sobre o reconhecimento e a possibilidade de uma prática
em arte relacional.
Outro exemplo é o do artista Rirkrit Tiravanija que fundou em 1998 junto
a outros artistas, o projeto The Land4, que reúne ações colaborativas e
coletivas para moradia e obtenção de energia natural para a comunidade.
Neste projeto, Tiravanija foi o autor de pequenas moradas com estética
sustentável já que as casas são pequenas estruturas sobre palafitas sobre
plantações de arroz. Tiravanija realiza uma proposta em arte que se alia ao
princípio holístico da permacultura para ações em comunidades. Suas 3 SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.dk – “FreeBeer” (Camboja, 2006) 4 http://www.thelandfoundation.org/?About_the_land
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instalações muitas vezes tomam a forma de estágios ou quartos para
compartilhar as refeições, cozinhar, ler ou tocar música, arquitetura ou
estruturas de vida e socialização são um elemento fundamental em sua obra.
Enfoques às questões de sustentabilidade dão vazão à discussão sobre
espaços bioconstruídos e a estética da permacultura foi um dos pontos fortes
de apresentação do Fórum Social Mundial 2005 (Porto Alegre/RS), onde
espaços bioconstruídos foram definidos como estrutura tanto para os auditórios
de conferência como para espaços expositivos ao ar livre, dispostos ao longo
da Orla do Guaíba. Os espaços bioconstruídos contavam com cisternas para
captação de água, fossas ecológicas e captação de energia solar em pequena
escala através de estruturas feitas a partir de garrafas peti e canos hidráulicos
reutilizáveis. Pensar espaços bioconstruídos e permacultura como forma e
possibilidade estética em arte, energia e meio ambiente amplia nosso olhar
para possibilidades de moradia e sobrevivência em escala humana, com
sentido não comercial e que valoriza a autonomia sobre a existência de um
sistema operativo de vida em harmonia com a natureza. A arte é uma
possibilidade que dá forma a este sentido desde que operada através de uma
proposta coletiva e colaborativa, intrínseca à vida e ao cotidiano, ampliando
assim seus limites de atuação e de comprometimento com outras áreas do
conhecimento humano, da expressão e criatividade. A estética da
permacultura e a discussão decorrente de projetos em arte coletiva para
espaços bioconstruídos ampliam nossa visão de trasndisciplinareidade entre
diferentes áreas e retomam nosso compromisso com a arte e a vida para
questões que apontam soluções para moradia e obtenção de energia. Neste
aspecto, o coletivo brasileiro Bijari5, entre outros trabalhos em arte relacional,
trabalha com a proposta de requalificar ambientalmente espaços urbanos,
como em Natureza Urbana#3 – Carro Verde (2008) em que jardins são
construídos em carros abandonados na cidade de São Paulo.
A partir da década de 90, o entendimento que abrange o contexto da
arte, aponta para um campo em constante expansão em diferentes grupos
5 COLETIVO BIJARI (Brasil). WWW.bijari.org – “Carro Abandonado” (SP 2008) /sustentabilidade urbana
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artísticos, zona de limites não claros e ampliados (atravessamento ou ausência
de limites) e que fazem da arte um campo em trânsito junto a diferentes
campos de atuação da vida cotidiana. Este cotidiano é marcado pelo próprio
cenário atual político, econômico e artístico, onde se mostra imprescindível o
entendimento da transversalidade da arte. Não apenas por contextualizar o
momento histórico vivido nos dias de hoje por grupos artísticos ou por
integrantes de uma comunidade, mas também para compreensão da
problemática urbana de uma cidade e suas intersemioses. No caso do projeto
em hortas comunitárias e canteiros, a incursão se faz presente na cidade de
Florianópolis, capital turística do estado de Santa Catarina e que preserva
espaços comunitários de expressão culturais nativos e ligados à preservação
da cultura local em interação e integração com espaços de produção em
projetos coletivos em arte. Um projeto de arte coletiva, parte do espaço de
convívio com a comunidade e da mobilização de diferentes representantes
para sua realização. O espaço do convívio é alicerce para um projeto de arte
coletiva que convive com a constante restauração do sistema – movimentos de
resistência - e que geram novas possibilidades dentro da micropolítica[6]
comunitária e nos sistemas econômicos locais, assim como com a preservação
da cultura local e atuação em um campo não específico que faz gerar a arte
Para Reinaldo Laddaga, “é a partir dos anos 90 que artistas, escritores e
músicos começavam a desenhar e executar projetos que supunham uma
mobilização de estratégias complexas. Estes projetos implicavam na
implementação de formas de colaboração que permitiram a associação entre
artistas e comunidades durante tempos prolongados (alguns meses no mínimo
ou alguns anos em geral) atingindo grandes números (dezenas, centenas) de
indivíduos de diferentes procedências, lugares, idades, classes, disciplinas.”
(LADDAGA, 2006: 15). Pensar uma horta comunitária e canteiros como
dispositivo dentro de uma realidade ou projeto artístico pode gerar certo
desconforto inicial se não conseguirmos estabelecer uma relação imediata
entre a ação e sua produção com projeto coletivo em arte. Neste sentido, o
entendimento da horta comunitária e canteiros como projeto artístico deve ser
pensado a partir da noção de uma arte relacional complexa, da valorização do
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encontro como gerador de convívio e produtor de novas subjetividades,
deslocamentos e de possibilidades de um projeto em arte que possa ser
coletivo e colaborativo.
Suely Rolnik nos aponta a definição de dispositivo descrita por Deleuze
como “uma meada, um conjunto multilinear, composto de linhas de diferentes
naturezas[...]Destrinchar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é traçar
um mapa, cartografar, agrimensar terras desconhecidas, e é o que Foucault
chama de ‘trabalho de campo [...] uma produção de subjetividade num
dispositivo: ela deve se fazer desde que o dispositivo o permita ou o torne
possível. [...] não é nem um saber nem um poder. É um processo de
individuação que incide sobre grupos ou pessoas, e se subtrai das relações de
forças estabelecidas como dos saberes constituídos: uma espécie de mais-
valia.” (ROLNIK) Sendo assim, é possível compreender a horta comunitária
como um dispositivo relacional no que diz respeito ao cultivo da arte como
processo de investigação e que envolve a participação do outro convocando
sua experiência de convívio como condição para a realização do projeto
coletivo. À exemplo, relatado por um morador da Barra da Lagoa, “o produtor
de uma horta escolhe as plantas a partir do desejo de cura do outro” (SIC).
Da mesma forma, para Laddaga, ao falar de projetos colaborativos,
afirma que “lo que se proponem los artistas que inician estos proyetos es,
sobre todo, desarollar, calibrar, intensificar la coperación misma, no tanto con el
objeto de materializar un objetivo particular com el de variar e intensificar la
cooperacion social en un determinado entorno”.(LADDAGA, 2006: 9). A crítica
se faz presente por ser o encontro, promotor das relações de convívio, uma
forma de renegociação entre a relação entre a arte e vida. É através da
participação do outro na instituição Arte, ou nos termos e contexto de um
projeto artístico como objeto relacional, que as relações entre arte e vida são
estabelecidas. Neste sentido, afirma Bourriaud que “uma obra pode funcionar
como dispositivo relacional com certo grau de aleatoriedade, máquina de
provocar e gerar encontros casuais, individuais ou coletivos.” (BOURRIAUD,
2009: 42). Ou seja, através de ações cotidianas, o artista promove o seu
espaço de convivência social, assim como as propostas relacionais em sua
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forma complexa ocupando espaços convencionais da instituição Arte ou se
aproximando de acontecimentos e situações inseridos vida cotidiana.
Ao pensar a horta comunitária e canteiros como uma situação da vida
cotidiana de uma comunidade e desta como projeto em arte é que a lógica do
encontro é descrita por uma arte relacional complexa. A horta comunitária e
canteiros geram o encontro, uma possibilidade de atuação no real em que são
materializados novos espaços de vida e que geram a participação direta do
outro, a constante reflexão e diálogo permanente a partir do convívio. O
resultado direto deste convívio são as relações de descontinuidade onde a
subjetividade dos sujeitos envolvidos pode ser reconstruída. No contexto
comunitário o projeto de arte coletiva convive junto às relações de saber entre
os usuários da horta: a troca de experiências é um espaço de troca de saberes
sobre interesses comuns.
A produção de um encontro tendo a horta comunitária e canteiros como
dispositivo em um projeto de arte coletiva cria um corte momentâneo sobre o
contexto imediato e formal esperado pela instituição Arte ampliando a visão de
contexto e fazendo com que a realidade possa ser vista e vivida de outras
maneiras. É no cruzamento da arte com o dia-a-dia e as questões pertinentes a
este convívio que surge um projeto de horta comunitária e canteiros como
projeto coletivo em arte. Primeiramente, o encontro provoca uma
descontinuidade na própria realidade da instituição Arte, um encontro como
nova forma de representação e que produz realidade. Inseridos como agentes
e produtores desta descontinuidade, os envolvidos no encontro gerados pela
horta comunitária e canteiros e seus usuários tem que agenciar novos lugares
de convivência. Desta forma, os envolvidos são deslocados de seu lugar de
reconhecimento principal e são estimulados a catalisar novos processos de
subjetividade em seu cotidiano como espaço de convívio. A horta comunitária e
canteiros como projeto artístico reúne pessoas e colaborações em torno de um
sistema de produção em comum, não orientados pelo objetivo de produzir um
“objeto artístico” como projeto a partir da horta, mas sim de produzir o
deslocamento deste objetivo para a produção de descontinuidades e de
subjetividades, através de um projeto coletivo e colaborativo para produção de
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“arte”. Para Bourriaud, é isso que podemos chamar de lei de deslocalização,
quando “a arte exerce seu dever crítico diante da técnica somente quando
desloca seus conteúdos{d}dessa maneira, a relação arte/técnica mostra-se
especialmente favorável a esse realismo operatório que estrutura muitas
práticas contemporâneas, e que pode ser definido como a oscilação da obra de
arte em sua função tradicional de objeto a ser contemplado.” (BOURRIAUD,
2009: 94-95).
As relações de convívio geradas pelo cotidiano, assim como na própria
arte contemporânea como noção de ruptura e repetição, nos recolocam e nos
deslocam constantemente de um espaço previamente estabelecido na relação
de convívio, permitindo assim, através da incerteza e da tentativa a produção
de novas subjetividades e de intersubjetividades. Ao colocarmo-nos diante de
um sistema operacional promovido pelo processo do encontro e do convívio
com o outro acabamos por fazer sentido a um circuito de idéias, muito mais do
que afazeres ou tarefas propriamente ditas. O circuito promove a alteridade de
cada parte embora permaneçam intercaladas umas às outras - cada parte não
funciona sem a outra. Assim opera o senso da coletividade, em que a
alteridade de cada um não faz com que cada parte possa trabalhar sozinha,
mas sim em função do grupo, ou melhor, do outro. O processo do encontro
inclui que cada um ocupe e desocupe um lugar no circuito e que funcionará
como engrenagem do sistema como um todo. Um sistema oscilante e
autônomo. Oscilante no sentido de que cada um pode substituir ao outro, assim
como pode permanecer em determinado ponto do sistema e sem colocar em
risco ou prejuízo a produção do encontro como objeto. As casas na
comunidade da Lagoa da Conceição e Barra da Lagoa são marcadas pela
disputa de espaços nativos contra a intensa ocupação turística. O espaço de
saber das “tarrafas”, das “rendas de bilro”, “contação de histórias”,
“benzedeiras” e dos “estaleiros” constituem movimento de resistência coletiva
frente ao constante desmanche da cultura local.
Quanto à alteridade, Suely Rolnik nos aponta, que “a política de relação
com a alteridade encontra-se na própria origem da colaboração entre os
artistas que se deu a partir do contágio em mão dupla{...}ambos querendo sair
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de si enquanto territórios geopolíticos, existenciais, subjetivos e
profissionais”(ROLNIK, 2003: 07). Desta forma, a alteridade seria aquilo que
promove um deslocamento do lugar de reconhecimento em que todo o homem
social interage e interdepende de outros indivíduos. Assim, a existência do
indivíduo só é permitida mediante um contato com o outro - que em uma visão
expandida torna-se o outro.
Do convívio como economia
O encontro e as relações de convívio gerado a partir de um projeto de
arte coletiva como da horta comunitária e canteiros, proporciona um espaço em
que uma nova economia é gerada. O emprego do termo economia baseia-se
naquilo que para Bourriaud é o que “caracteriza a obra de arte como produto
do trabalho humano, seu processo de fabricação e produção, sua posição no
jogo das trocas, o lugar - ou a função – que atribui ao espectador e, por fim (d)
do objeto da arte, não de sua prática; da obra tal como é tomada pela
economia geral, não de sua economia própria.” (BOURRIAUD, 2009: 58). Ou
seja, no circuito compartilhado e colaborativo que a horta comunitária e
canteiros instauram a partir das relações de convívio, novas economias são
geradas: economia de trocas reais e simbólicas como troca de experiências,
relatos ou a troca de saberes. Bourriaud define ainda, que a obra de arte
representa um interstício social, termo usado por Karl Marx (1818-83) para
designar comunidades de troca que escapavam ao quadro da economia
capitalista que não obedeciam à lei do lucro. O interstício seria ainda um
espaço de relações humanas que sugere outras possibilidades de troca, sendo
o convívio uma forma de economia. A produção de um projeto de arte coletiva
promove encontros que geram como produto uma série de relatos de
experiências que torna possível o deslocamento de um projeto em arte para a
horta comunitária e canteiros como produto para o convívio e de novas
subjetividades.
O cultivo da horta comunitária e de canteiros pode culminar em novas
propostas, fruto deste convívio, ou ainda da condição dos participantes como
produtores inseridos em seu contexto; porém, sempre surgem adversidades
quanto à finalidade dos encontros dentro de uma definição em arte ou em
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comunidade como realidades distintas. A forma do encontro como objeto fica
refém da discussão quanto aos limites dos espaços de abrangência da
instituição Arte ao questionarmos tais valores. Qual a condição do encontro, do
convívio como objeto-arte e de indivíduo-artista junto às engrenagens da crítica
do sistema de artes visuais? Qual seria a condição adquirida à horta
comunitária e canteiros se o registro de seu processo da mesma fosse lançado
em uma galeria ou espaço cultural, ocupando assim um espaço tradicional no
sistema das artes visuais? A relação de convívio além de tornar possível a
execução de um processo de produção do encontro, de um projeto coletivo em
arte, possibilita a reflexão de novas possibilidades para este convívio assim
como pensar soluções em arte e seus limites na esfera pública e privada
enquanto instituição Arte. A este exemplo é possível lembrar grupos coletivos
que atuam em projetos de arte colaborativa, como os coletivos Bijari6,
Superflex7 ou o trabalho de Rirkrit Tiravanija8 em que o espaço de convívio
gera projetos coletivos em arte junto á comunidades específicas ou grupo de
pessoas.
Muitos projetos institucionais desenvolvem propostas e eixos curatoriais
específicos que valorizem projetos coletivos em arte que desenvolvam projetos
coletivos destes artistas em comunidades.
A este respeito, Laddaga comenta que “un número cresciente de artistas
y escritores parecia comenzar a interesarse menos em construir obras que em
participar em La formación de ecologias culturais.” (LADDAGA, 2006: 29). A
definição de ecologia cultural remete do entendimento do conceito de
biorregionalismo em que se observa um local específico em termos de seus
sistemas naturais e sociais, cujas relações dinâmicas ajudam a criar um senso
de lugar, enraizado na história natural e cultural. Deste conceito nasce o
6 COLETIVO BIJARI (Brasil). WWW.bijari.org – “Sustain Yourself” (SP 2008) /sustentabilidade urbana 7 SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.org – “Supergas” (Camboja, 1996-97) 8 Rirkrit Tiravanija (Buenos Aires/Tailândia) http://br.video.yahoo.com/watch/3654873/10062562 - A este exemplo é possível lembrar-se de Rirkrit Tiravanija, no Aperto 93 da Bienal de Veneza, onde o artista mantém um fogão aceso com uma panela contendo água em ebulição para o preparo de sopas chinesas desidratadas, que o visitante pode servir à vontade durante a exposição.
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território cultural, apresentado por onde Laddaga ao apresentar a definição de
ecologia cultural - uma invenção de mecanismos que permitem articular
processos de modificação de estados de coisas locais e de produção de
ficções, fabulações e imagens, de maneira que ambos os aspectos se reforcem
mutuamente. Podem ser aleatórios e multidirecionais, trabalham na construção
do outro num espaço de convívio e de colaboração direta com diferentes
campos de saber dentro destes espaços de diferença. A descontinuidade
gerada pelos processos coletivos e em comunidades, como nos exemplos
citados anteriormente, culminam em acelerar e re-significar o processo de
convívio entre os membros das comunidades envolvidas a para uma prática
coletiva.
Como uma horta coletiva pode ser uma obra de arte?
Nicolas Bourriaud instiga-nos a pensar no espaço fora da instituição Arte
como forma ao falar da ordem comportamental da arte atual, remetendo-se a
Félix Guattari ao questionar “como uma aula pode ser uma obra de arte?”
(GUATTARI In: BOURRIAUD, 2009: 144). Pois, para Guattari, “a única
finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade
que auto-enriqueça continuamente sua relação com o mundo” (GUATTARI In:
BOURRIAUD, 2009: 145). Sendo assim, esta definição aplica-se às práticas
dos artistas contemporâneos ao criar e colocar em cena dispositivos de
existência que incluem métodos de trabalho e modos de ser ao invés de
objetos concretos que até agora delimitavam o campo da arte.
Desta forma, o espaço da horta é também um espaço de uso do
subjetivo, já que faz uso de parte do cotidiano da produção do saber, assim
como faz uso de parte do cotidiano daquilo que tange o universo íntimo das
pessoas. Na combinação entre arte e vida podemos encontrar, no ambiente
urbano, a possibilidade de uma arte que toma como direção a esfera das
interações humanas em seu contexto social mais do que a afirmação de um
espaço simbólico e privado. A permanente troca de posicionamentos entre o
binômio artista-comunidade culmina em intersubjetividades que se entrecruzam
em movimento aleatório e contínuo dentro do espaço da horta. A arte
contemporânea dentro deste espaço reflexivo passa a ser uma relação a ser
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experimentada, uma realidade a ser vivida. Para Bourriaud, “uma forma de arte
cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-
juntos, o encontro entre observador e quadro, a elaboração coletiva do sentido
(d) e da arte como lugar de produção de uma socialidade específica.”
(BOURRIAUD, 2006: 21-22). O espaço da horta passa a ser então, o
simultâneo espaço da arte e do convívio como objeto. A produção de uma horta
comunitária e de canteiros como espaço de produção em arte, reafirma a
condição da experiência de vida e do espaço do convívio como condição
presente para a produção de arte, assim como o potencial da arte para
transformar o espaço social e as relações humanas.
Bourriaud formulou a sua “estética relacional” a partir da convivência
com um grupo de artistas, entre os quais Rirkrit Tiravanija, Philippe Parreno,
Liam Gillick, Pierre Huyghe, Maurizio Cattelan, Vanessa Beecroft, Dominique
González-Foster. Apesar de terem uma produção bastante diferente entre si, os
artistas analisados por Bourriaud trabalham com freqüência de forma
colaborativa e partilham uma preocupação com a interatividade e com as
relações entre o artista, o espaço social e o espectador. Essa preocupação com
o contexto e com a interatividade seria, portanto, a especificidade da produção
contemporânea no início dos anos 90.
Ao pensarmos na horta comunitária e canteiros como experiências de
convívio no espaço da comunidade, acabamos por abrir outros canais de
conexão com outras estruturas existentes em nosso perímetro e campo de
atuação. Sem dúvida, o entendimento de uma estrutura rizomática é
procedente em um espaço que novas vivências são desencadeadoras de
novos e múltiplos olhares, incluindo o nosso próprio olhar sobre nós mesmos.
No que concerne à forma e o olhar do outro, Bourriaud afirma que “a forma só
assume sua consistência (e adquire uma existência real) quando coloca em
jogo interações humanas; a forma de uma obra de arte nasce de uma
negociação com o inteligível que nos coube. Através dela o artista começa um
diálogo.” (BOURRIAUD, 2006: 29).
O trabalho de inserção na comunidade tem como um dos referenciais
teóricos, o esquema metodológico em arte proposto por Suely Rolnik em
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Alteridade a céu aberto: o laboratório poético político de Maurício Dias & Walter
Riedweg. O processo metodológico apontado por Suely Rolnik refere-se ao
trabalho da dupla de artistas, que desenvolvem seus trabalhos artísticos em
comunidades específicas, marcadas pelas diferenças sociais surgidas a partir
do sistema capitalista e que modificaram as estruturas sociais originais de uma
comunidade. Suely analisa o trabalho em “arte pública” dos artistas, sendo esta
definida por eles como um trabalho em arte com comunidades através, ou não,
de instituições públicas e privadas interessadas em promover um trabalho de
arte em comunidades específicas. As etapas metodológicas propostas por
estes artistas em um trabalho junto às comunidades são: 1) ir ao encontro do
universo onde pretendem se inserir e deixar-se impregnar pelo convívio; 2)
selecionar os elementos que integrarão o dispositivo – pessoas, modos,
lugares, bem como as dimensões a serem mobilizadas; 3) estratégias de
interação com o grupo escolhido de modo a criar as condições de uma vivência
compartilhada; 4) invenção de meios de comunicação circunscritos ao público
da arte; 5) invenção de meios de comunicação para um público mais amplo e
variado, em expansão e em muitas direções ao mesmo tempo.
No sentido de trabalhos que apontem para o trabalho de certos artistas,
Suely Rolnik parte do pressuposto de que dispositivos utilizados por artistas em
comunidades “colocam o mundo em obra. Não qualquer mundo, nem qualquer
obra. Os mundos nos quais operam situam-se às margens do universo
supostamente garantido do capitalismo mundial integrado; são excrescências
produzidas pela própria lógica do regime” (ROLNIK 2003: 1). Atuações de
coletivos artísticos, assim como ações curatoriais em arte relacional têm
tomado frente no sistema internacional de artes visuais e contemporâneas,
provocando um deslizamento na compreensão dos paradigmas para
compreensão da arte contemporânea.
No uso de dispositivos relacionais para um trabalho em arte coletiva na
comunidade, o grupo envolvido passa a atingir novas possibilidades de atuação
no real – seja uma horta comunitária ou uma produção coletiva em arte - estes
acabam por materializar novos espaços de vida que geram sua participação
direta, a constante reflexão e diálogo permanente a partir do convívio. O
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resultado direto deste convívio são as relações de descontinuidade onde a
subjetividade dos sujeitos envolvidos pode ser reconstruída.
Referenciais Teóricos
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional; tradução Denise Bottmann - São
Paulo: Martins Fontes, 2009.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós Produção - Como a Arte Reprograma o Mundo
Contemporâneo; tradução Denise Bottmann - São Paulo: Martins Fontes, 2009
GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica - Cartografias do desejo –
2 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes,1986.
LADDAGA, Reinaldo; Estética de la emergência – 1 ed.; Buenos Aires: Adriana
Hidalgo Editora, 2006
ROLNIK, Suely. Alteridade a céu aberto - O laboratório poético-político de
Maurício Dias & Walter Riedweg In: Posiblemente hablemos de lo mismo,
catálogo da exposição da obra de Mauricio Dias e Walter Riedweg. Barcelona:
MacBa, Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2003.
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Artigos
Comunicações indiretas entre León Ferrari e Mira Schendel,
sob um alfabeto enfurecido Bruno Dorneles da Silva e Bianca Knaak1
O alfabeto enfurecido de Schendel2, apresentado na Fundação Iberê
Camargo entre abril e julho de 20103, funciona como uma brincadeira. Neste
espaço arquitetônico favorável9, explorando a grafia, a letra, suas semelhanças
e nossa familiaridade com elas, Ferrari4 e Schendel nos lançam obras que
questionam a linha entre o símbolo e o sentido.
Durante sua carreira, Mira sempre recebeu críticas que acusavam sua
obra de difícil compreensão para um público mais amplo. Pudera. Schendel
sempre foi discreta, não gostava de falar de si mesma ou de seu trabalho. Isso
tornava árdua a tarefa de compreender a obra da artista através de suas
próprias palavras. No entanto, como quem confia segredos, Mira Schendel faz
o espectador aproximar-se fisicamente de seus trabalhos, notar as
transparências e chegar perto de sua grafia.
Em muitas de suas obras, as escritas transparentes, não detectáveis
por fotografia, criam um elo íntimo entre o espectador e a artista, autora dessas
1 Bruno Dorneles da Silva é graduando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS, onde participa do Grupo de Pesquisa em Estudos Sistêmicos e Historiografia da Arte sob a coordenação dos professores Bianca Knaak e Luís Edegar Costa. Desenvolveu esse texto em parceria com a professora Bianca Knaak (Doutora em História) a partir da disciplina Fundamentos da Arte. 2 Mira Schendel nasceu na Suíça em 1919, mudou-se para Porto Alegre em 1949, onde morou por 4 anos, antes de se mudar para São Paulo, onde residiu por 35 anos, até seu falecimento, em 1988. 3 O Alfabeto enfurecido, exposição sob curadoria do venezuelano Luis Pérez-Oramas, curador de Arte Latino Americana para o MoMA (Museu de Arte de Moderna de Nova York). Porto Alegre, Fundação Iberê Camargo de 8 de abril a 11 de julho. 9 Antes de chegar à exposição, se chega à Fundação Iberê Camargo, primeira obra do arquiteto português Álvaro Siza no Brasil, projeto que lhe rendeu o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2002. Em todos os sentidos esta construção nos causa admiração, revelada principalmente, no confronto com as experiências que cada um tem com a arquitetura concebida com o intuito de servir. 4 León Ferrari nasceu na Argentina em 1920. Exilou-se em São Paulo em 1975, fugindo da ditadura na Argentina, e só voltou a Buenos Aires em 1991, onde reside até hoje.
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cartas. Em presença do trabalho e sob transparências, Mira entrega partes de
seus pensamentos (segredos?). Ela sabe que só aqueles que quase tocarem
o papel de arroz, com os olhos, serão capazes de apreciar e entender não só o
trabalho, mas também a sua versão em letra viva. Portanto, mais do que
tímida ou arredia, na própria fatura de seus trabalhos a artista se mostra
seletiva quanto à recepção de sua obra.
Mira Schendel – Uma brincadeira de se esconder
Já nas primeiras obras da exposição aprendemos como aceder ao
processo de trabalho da artista, num percurso que sugere fazer, olhar e depois
pensar. No texto-objeto que compõem seus trabalhos, vemos linhas que ora
se caracterizam como símbolos distorcidos, ora são símbolos formados por
linhas distorcidas. Sentam no papel, somem no papel, projetam o papel. Bi e
tridimensionalmente, lógica e conseqüentemente. Para acentuar a necessidade
de reciprocidade entre artista e espectador, Mira deixa em branco o título.
Quiçá para não entregar-se como um texto codificado àqueles que olham uma
obra atentamente só depois de entender seu nome.
Em sua série “Droguinhas”(1964-66) Mira usa o finíssimo papel arroz de
forma escultórica. Ao transformar sua função, negando-lhe a fragilidade
(característica mais comum desse papel), dá vida ao suporte de outra maneira.
Silenciadas no papel, projetadas noutro espaço, as palavras ali unidas se
tornam frases. Frases que pendem do teto, que formam esferas e
emaranhados. Vemos aqui uma oportunidade de evidenciar a problemática da
comunicação atual: um projeto embaralhando palavras – que se constroem
umas por cima das outras, que escondem o que foi dito antes –, deixando valer
o que foi dito por último, negando a linearidade construtiva do passado, da
palavra, do homem.
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Mira Schendel – S/ título, da série
Droguinhas (1964 – 1966)
Num momento posterior, com sua série “Toquinhos”(1970), Mira
demonstra o quanto “a linguagem é uma forma transparente que só se
completa por meio de uma interação pública” para o que “estes signos
indecifráveis aguardam um sentido ou voz que se aproprie deles”5. Suas
placas de acrílico, que funcionam como janelas, de acordo com a artista, dão
vida à letra, ao “signo indecifrável”.6
Sob diferentes visões, as letras, quadro a quadro coladas no fundo das
placas de sustentação, “chamam” o espectador. Brincam com o olhar, jogam
com itinerários dinâmicos, hora fixando-se no enquadramento áureo, hora
estando quase fora do bastidor acrílico. Também em “Toquinhos”, nos
deparamos com a reiterada necessidade de aproximação do olhar. E,
novamente, se afirma, nestes, a premissa básica para o observador de todo o
trabalho da artista: ver até sentir.
Ali, os símbolos, que se desligam de um sentido convencionado (signo),
por estarem livres, sem conexão com os demais ao redor, voltam ao devir
expressivo da linha, à abertura do sentido que Schendel também explora na
sua série de monotipias. Alguns signos maiores que outros, mais finos, mais
ondulados... Na atenção do observador, todos perdem seu poder de dar
sentido em favor de um valor mais dócil e potente, o de ganhar um sentido.
5 Texto explicativo retirado da exposição “León Ferrari / Mira Schendel – O Alfabeto Enfurecido”, ao lado da obra “s/ título” da série Toquinhos, de 1970, da artista Mira Schendel. 6 Idem.
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Mira Schendel – S/ titulo, da série Toquinhos (1970)
Ao final da exposição temos a nítida sensação de conhecer a artista
profundamente. Encaramos então não mais uma artista tímida de difícil
compreensão, mas ficamos diante uma grande artista que consegue, com
maestria invejável, lançar mão do individualismo para “contar coisas” a quem
estiver disposto a escutar/ver/sentir. Como uma brincadeira de esconder, que
só acaba de verdade quando se acha o que se procura.
León Ferrari – a verdade sobre a linha.
Na mesma exposição, o alfabeto enfurecido de León Ferrari é
impregnado de ímpeto, denúncia, braveza e arrebatamento. Sua obra é
carregada de verdades inconvenientes. León é apresentado como um artista
atuando por contornos marginais do sistema, com um trabalho que põe tudo
sob suspeita. Ferrari causa contrastes que gritam, que quase explodem, e que
o caracterizam como um artista não só de mão cheia, mas principalmente de
boca cheia. Boca cheia de razões, olhos bem abertos, mão muito ativas. A
cada momento seus trabalhos atordoam e questionam. Seja na forma, no
conteúdo, no texto sugestivo dos títulos, no conjunto ou no contexto de sua
realização.
Em uma de suas obras de maior destaque, “Cuadro Escrito” (1964), o
recurso caligráfico, a letra, as palavras, soam mais evidentes enquanto
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semelhanças que o aproximam do trabalho de Schendel. Neste quadro escrito,
preocupado com o movimento mais do que com a forma, Ferrari escreve na
tela o que a pintura representa. Com um gestual graciosamente arredondado,
Ferrari nos faz lembrar a Pedra de Roseta7, deixando clara a intenção de usar
o quadro como meio de comunicação não só com uma etnia, mas com outras
tantas, e também de colocá-lo como peça curinga de suas próprias obras,
manancial para decifrar outros enigmas.
León Ferrari - Cuadro escrito, 17 de dezembro, 1964
Ainda em “Cuadro escrito”, León coloca à luz um debate intermitente
também para a arte contemporânea: o que define o figurativo? Quando lemos
uma passagem com características literárias ou epistolares, nós acabamos
imaginando o que o texto nos propõe, nós figuramos o que está sendo narrado.
Assim, nesse trabalho em especial ( mas outros também), ao apresentar
símbolos seqüenciais (que dependem do seu seguinte e do seu anterior para
7 Que tornou possível a tradução dos hieróglifos por conter, em outra parte, o mesmo texto escrito em grego clássico.
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configurar sentido), existe algum meio coerente/convincente para que não
consideremos esta obra uma figuração, uma representação do que foi
pensamento, imagem mental?
Já na obra “Quisiera hacer una estatua” (1964), Ferrari propõe o meio-
dito, a mensagem que não se completa. O pensamento visual começa acima
de onde podemos continuar, como uma imagem que se afirma, mas que se
deixa ludibriar pelo que a segue. Em ambos os trabalhos (“Cuadro escrito” e
“Quisiera hacer una estatua”) Ferrari emprega a caligrafia confusa, criando
desenhos que se tornam textos. Mesmo nas suas modificações, com certas
letras maiores que outras (e palavras que parecem sobrepor-se), essas obras
são legíveis. São mensagens destinadas a quem quiser lê-las e se esforçar
para isso, pois Ferrari impõe obstáculos para que apenas os interessados
entendam. O mesmo jogo de esconde e aproxima que Mira faz, porém, com
roteiros distintos.
Desdobrando ainda mais sua linguagem, León constrói “Amad”(1996),
onde introduz a escrita braile sobre fotografias. Ali a mensagem não pode ser
lida com os olhos, por mais que se tente. A vitrine, que impossibilita o toque,
anula a comunicação entre a obra e o espectador, deixando-o desconfortável
e curioso diante de um escrito impossível de ler. Diferente oportunidade se
tem com outras obras, quando o artista usa o mesmo recurso do braile sobre
fotografia, porém sem vitrine, ou quando, noutro trabalho, entrega a fonte
inspiradora ao leitor. Com isso, acaba transformando, de maneiras variáveis e
em variados graus, a relação do espectador/observador com a obra. Nesse
encaminhamento poético, Ferrari impõe ao público a passividade da
observação sem registros, sem juízos. O artista cria um jogo onde ele é o
mestre supremo, um emissor de memorandos públicos, porém de difícil ou
impossível leitura.
As inconvenientes verdades de Ferrari.
O que povoa a cabeça de Ferrari? Seria sua memória ou sua
consciência que o impelem a “dizer” algumas coisas, da forma que as diz? Em
“Atado com alambre”(2006), León nos remete ao inferno católico e aos regimes
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políticos ditatoriais. Usa ossos possivelmente por sua associação com a morte
elegíaca, aquela que já pode ter sido esquecida pelos mortais. Com ossos ele
então nos lembra das mortes promovidas pela ditadura Argentina. Mortes que
habitam a alma do artista. Que alimentam sua gana por verdades, por
registros, por palavras justiceiras onde não cabe consolo. Ossos aglomerados,
apertados, corpos descarnados. Ossadas que cobram, indagam sobre o valor
humano, o silêncio e o lugar dos homens diante do governo ditador que ceifou
vidas, torturou corpos e sonegou cadáveres.
Os arames que costuram um osso ao outro podem remeter à culpa de
quem os costurou/fraturou/escondeu, ou lembrar a impotência de alguém que
viu um corpo e, condenado pelas circunstâncias, apenas cuidou para que seus
ossos ficassem juntos, para que no futuro, quando o medo fosse passado,
alguém os encontrasse para recontar essa história e outras verdades.
Na mesma forma de representação auto-invocada, implicada, indignada,
quando Ferrari cria suas “relecturas de la biblia” através de collages, faz
críticas pesadas à igreja católica. Leon cria collages com figuras sacras, e as
coloca em pose de adoração a armamentos, helicópteros de guerra e foguetes.
Invoca assim uma adoração à conquista desenfreada e ao imperialismo,
sempre apoiados pela igreja que, em momentos desumanos prefere manter-se
calada, para não precisar ficar de algum lado da guerra (talvez para manifestar
aí, sua fé na ordem divina). León ainda demonstra, em camadas coladas, a
natureza sobre-humana dos conflitos e descobre neles seus santos e armas de
destruição em massa.
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León Ferrari - Carta a un general
18 de junho, 1963
Passando da proclamação invocada às comunicações indiretas, Ferrari
cria “L’Osservatore”, “Declaración de le Academia Pontificia” e “Ciertamente la
vida vencerá”, outras collages onde pega manchetes de jornais e as ilustra com
novas figuras, dando outro contexto à obra pronta. Com essas obras Ferrari
deixa claro seu objetivo questionador e, ao mesmo tempo, infringe ao
espectador uma paralisia momentânea. Em cada trabalho o artista nos
questiona sobre o que sabemos a respeito, e quase nos obriga a escolher o
que tem nele de verdade e de mentira. Ambivalente, irônico, sagaz, a
mensagem se torna contrária à imagem, em uma produção onde então nos
perdemos, sem saber em que, de fato, acreditar: na mensagem escrita ou na
narrativa visual? Há um julgamento de valor entre o que se vê e o que se sabe
ou se pode saber, pedindo uma tomada de posição no tempo presente.
Universos que conversam.
Tanto Schendel quanto Ferrari trabalham de forma curiosa com a letra-
linha. Muitas vezes, usam letras que tem movimentos de linha perto de linhas,
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e linhas que poderiam ser letras se não estivessem tão perto de outras letras
mais evidentes. Esse jogo nos faz pensar “o que é feito de quem?”, pois já não
entendemos mais se é a linha sinuosa que forma a letra, ou se a letra
desfigurada é que forma a linha. Principalmente quando um exemplo está
intimamente ligado ao outro.
Mas o “alfabeto enfurecido” que reuniu os artistas é tanto metafórico
quanto polissêmico. Em cada caso, o que entendemos por alfabeto é, em
progressão, outra coisa. Outros signos que teimamos em assimilar como
alfabeto. Enfurecem em sua natureza e devir, enquanto continuamos a ver
apenas o que eles têm de evidente, sem nos atermos ao mais importante:
saber com quais textos/linhas/termos estamos lidando em cada trajetória. No
entanto, mesmo em seus momentos mais íntimos (e, portanto, distintos), esses
dois artistas permitem uma ligação poética forte, sob o apelo da linguagem
cognitiva.
Ambos exploram as codificações do alfabeto de maneira nada simples.
Enquanto Mira vê nas letras uma extensão da linha e a privilegiada conexão
de sentido entre elas, León foca a ambigüidade da comunicação. Ou seja: até
onde uma imagem/mensagem continua fazendo sentido da maneira que foi
feita para fazê-lo e, quando, em que momento, isso se perde ou modifica?
Ferrari pensa a síntese e o paradoxo do entendimento.
Os dois utilizam os elementos da linguagem não apenas com o sentido
de comunicar (ou comunicar-se), mas como um material físico, capaz de
construir ou alterar formas. Geram linguagens artísticas como regime de
imagens mundanas de comunicação e realidade estética. Através de línguas
(e talvez assuntos) diferentes, enquanto Léon Ferrari, berra, anuncia, explode,
Mira Schendel conversa, sussura, cutuca e cochicha. Dois artistas de
personalidades e temperamentos diferentes, mas igualmente afirmativos em
suas proposições artísticas.
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Artigos
Os espaços em trânsito da Arte: In-situ e site-specific,
algumas questões para discussão Tiago Giora
Se a escultura moderna absorveu o seu pedestal/base para romper a sua conexão ou expressar sua indiferença ao local (site), tornando-se mais autônoma e auto-referencial, e, portanto transportável, sem lugar e nômade. Então trabalhos site-specific, quando emergiram na onda do minimalismo no final da década de 60 e inicio da década de 70, forçaram uma reversão dramática nesse paradigma moderno1.
Neste trecho do artigo “Um olhar após o outro: anotações sobre Site-
Specificity”, escrito para a Revista October em 1997, a arquiteta e crítica de
arte Miwon Kwon parte analisando o desenvolvimento das propostas
esculturais que começaram nos anos '60 a atuar fora dos parâmetros do
Modernismo delineados por Clement Greemberg e Michael Fried. Suas teorias
contribuíram para um entendimento da arte como desenvolvimento histórico da
linguagem –sobretudo a pintura – apontando para a pureza dos meios e a
desconexão contemplativa do público diante de um objeto artístico
eminentemente transcendental e isolado no espaço e no tempo. Kwon
prossegue observando as mudanças fundamentais ocorridas na arte dos anos
'60 e '70 e as reverberações críticas geradas por esses cambiamentos em um
cenário que começava a aproximar a arte dos ambientes e ações da vida
cotidiana.
O desafio epistemológico de deslocar o significado de dentro do objeto artístico para as contingências do seu contexto. A reestruturação radical do sujeito do antigo modelo cartesiano para um modelo fenomenológico de experiência corporal vivenciada2.
1 KWON, Miwon. One place after another: site specific art and locational identity. Cambridge/London: MIT Press, 2002, p. 11. 2 IBID, p.12.
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O conceito de site-specific aliado à referência ao fenômeno físico da
percepção espacial no pensamento de Merleau-Ponty viriam a criar uma noção
de espaço, radicalmente diferente daquela forjada no período moderno. Este
novo território fenomenológico englobava a paisagem, entendida como a
presença concreta da arquitetura ou elementos naturais, e considerava o
indivíduo um participante ativo da obra, conectando-se a partir da apreensão
sensorial dos dados visuais e das sensações coletadas no lugar onde a
proposta artística se inseria.
Os tijolos dispostos sobre o piso em progressão aritmética, de Andre; os
perfis industriais soldados e posicionados em serie, um depois do outro, de
Judd; as tiras de feltro amontoadas casualmente no meio da sala, de Morris;
lâmpadas fluorescentes, de Flavin... Além das proposições volumétricas
instaladas na paisagem natural que seguiram na seqüência dos minimalistas. O
que havia mudado e como deveríamos olhar para o mundo que se integrava e
emprestava elementos para a obra de arte?
Miwon Kwon descreve esta modalidade de espaço como a antítese do
espaço virtual que o Modernismo havia criado para abrigar a obra de arte. Ela
vincula a concretude do espaço minimalista ao caráter tangível e presente do
ambiente habitado pelo espectador, que agora é intimado a atravessar as
molduras e movimentar-se dentro dos limites arquitetônicos destas novas
propostas.
O espaço idealizado, puro e incontaminado dos modernismos dominantes foi radicalmente substituído pela materialidade da paisagem natural ou do espaço impuro e ordinário do cotidiano.
(...) O trabalho site-specific em sua primeira formação focava no estabelecimento de uma relação inextricável, indivisível entre o trabalho e o site, e exigia a presença física do espectador para completar o trabalho3.
3 IBID, p. 11.
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Em Caminhos da escultura moderna, a crítica de arte Rosalind Krauss
cita o trabalho de Bruce Nauman; artista que transita no campo da
performance, instalação e vídeo ; como exemplo do novo paradigma que
começava, desde meados dos anos '60, a modificar as características das
práticas escultóricas desenvolvidas até o Modernismo. Segundo ela, sua
produção, assim como a de Morris, Oldemburg e outros artistas ligados ao
Minimalismo, às performances e à Pop art; traziam para o terreno da escultura
um nível de movimento e interação participativa com o público que foi, na
época, identificado pejorativamente como teatralidade4, e que afetaria a relação
entre obra e observador tal como era entendida até então.
A instalação de Bruce Nauman na Wilder Gallery (1970) exerce pressão sobre a idéia que o observador tem de si mesmo como "axiomaticamente coordenado" – como estável e imutável em si e para si mesmo5.
Em relação à obra Corridor (1969-70); de Nauman, Krauss analisa uma
mudança no centro de percepção e movimento que se reposicionara no corpo
do observador/ator em deslocamento ao longo do espaço proposto pelo
trabalho. O circuito fechado de câmeras e monitores instalados dentro de um
corredor estreito convidava o individuo a participar da proposta e inseria a
percepção de seu próprio corpo como um dos temas centrais da discussão. A
proposição artística, experienciada a partir de um ponto vista interno, móvel e
particular de cada individuo, abre as portas para situações de trabalho mais
abertas e inclusivas. O contexto que se agrega ao "espaço da obra" vem,
desde Nauman e os minimalistas até os dias de hoje, ganhando em
complexidade e incluindo universos que extrapolam o campo físico, chegando
aos terrenos da política, da psique do individuo em sociedade.
4 "A presença da arte literalista, a qual Clement Greemberg foi o primeiro a analizar, é basicamente um efeito
ou qualidade teatral – um tipo de presença de palco. É uma função não apenas de objetividade e, freqüentemente, até da agressividade dos trabalhos literalistas, mas da cumplicidade que o trabalho exige do observador". Michael Fried em Art and objecthood, 1967. Publicado em: The artist's body, themes and movements. London: Phaidon, 2000, p. 203. 5 KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: ed. Martins Fontes, 1998, p.288.
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Este movimento de saída das
galerias, sua repercussão nas
relações do público com a obra, assim
como as diferenças essenciais entre o
ambiente controlado das instituições e
o caos vivo das cidades, são aspectos
centrais dos escritos do artista e
crítico Francês, Daniel Buren,
expressos em seus Textos e
entrevistas escolhidos, 1967 – 2000:
Bruce Nauman: Corridor, 1968-70
A atenção do pedestre comum em relação ao que o cerca na rua, é muito menos viva que aquela possivelmente esperada de um atento visitante comum no museu. O pedestre em geral não está na rua para contemplar, mas sim para se encaminhar o mais rapidamente possível de um ponto ao outro6.
Buren considera que os museus ainda hoje tenham o poder de definir
como arte aquilo que o espectador encontra diante de seus olhos, enquadrado
no espaço pelo pano de fundo neutralizante do cubo branco7. Segundo ele o
mesmo não acontece na rua. O olhar ali é mais rapidamente desgastado pelo
constante bombardeio visual ao qual o pedestre é submetido, sendo este 6 Daniel Buren, “Textos e entrevistas escolhidos, (1967-2000)”. P. 194
7 Conceito cunhado pro Brian O´Doherty em No interior do cubo branco: a ideologia do Espaço da Arte. No livro O'Doherty argumenta que: “A galeria ideal subtrai da obra de arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela é ‘arte’. A obra isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma. Isso dá ao recinto uma presença característica de outros espaços onde as convenções são preservadas pela repetição de um sistema fechado de valores". (p.3).
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obrigado a fazer uma seleção dos elementos que irão lhe servir de referência
ao longo do seu percurso: muitos objetos, sinais arquitetônicos, mobiliário vão
se perder na edição da memória. O que fica? Como a arte pode revelar o
anônimo transformando-o em singular?
Tudo que se expõe ao ar livre depende desse ar, levando-se em conta que, no que concerne à cidade, trata-se de um ar extremamente poluído8.
Este retorno da arte ao contexto dos objetos cotidianos é visível no
Minimalismo principalmente pela utilização de materiais industriais ou objetos
encontrados no comércio, estranhos à tradição da arte produzida até aquela
época. No entanto, esta identificação com uma vida que acontece fora do
circuito da arte não vincula os trabalhos, necessariamente, aos espaços nos
quais esses se instalam, estejam esses dentro ou fora das galerias. Nessas
propostas o objeto de arte, frio e aparentemente vazio de carga expressiva,
continua isolado entre as paredes, que entram na proposta como um pano de
fundo ativo, mas sempre um pano de fundo.
Diferentes reflexões sobre o espaço minimalista passam a considerar a obra
dentro de um contexto físico complexo formado pelo corpo do observador e
pelos objetos que o cercam, incluindo os materiais e as formas retiradas do
próprio espaço. Toda a matéria presente no espaço faz parte de um conjunto
interconectado de fatores que atuam no ponto de contato entre o observador e
a experiência perceptiva diante da materialidade do mundo. Embora ampliado,
o campo do Minimalismo não chegava a incluir fatores psicológicos, sócio-
políticos ou, de maneira geral, aspectos que fugissem do raio de ação da obra
em sua dimensão física e presente.
Tal constatação revelava um componente idealista no movimento. Talvez
indesejado por estes artistas que haviam proposto inicialmente uma resposta a
um tipo semelhante de fechamento conceitual promovido durante o
Modernismo. A restrição da experiência perceptiva ao contexto físico em torno
às obras se relacionava, em minha opinião, a certo arraigamento a um tipo de
8 Buren, D. Op. Cit. P. 192.
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compreensão que definia a arte como fenômeno puramente visual. Dentro
deste universo dominado pelo olhar, os limites da obra se expandiram ao
máximo, até onde alcançava a percepção.
Procurando flexibilizar este ponto de rigidez, muitos artistas começaram
a trabalhar incorporando elementos que propositalmente extravasavam o
contexto espacial e assumiam uma potência mais crítica das instituições
artísticas. Artistas como Michael Asher, Marcel Broothaers, Daniel Buren Hans
Haacke e Robert Morris conceberam um lugar definido como uma estrutura
cultural influenciada pelas instituições de arte e um público que passava a ser
considerado como sujeito histórico.
Na análise das correntes de pensamento artístico que envolvem, dão
antecedentes e traçam possibilidades futuras para ações no campo da
escultura e das intervenções urbanas; volto a apoiar-me no pensamento de
Miwon Kwon para adentrar nas influências pós-minimalistas. Essas novas
vertentes enfocadas abandonam muito da identificação minimalista com o
vocabulário arquitetônico de formas e procedimentos, para aproximar-se de
uma compreensão mais crítica dos fatores políticos e institucionais envolvidos
na produção das propostas:
A transição do Minimalismo à Arte conceitual a partir dos processos de
desmaterialização do espaço teve a arquitetura dos museus e galerias como
ponto de partida para as primeiras formas de abordagem crítico-institucional da
arte, que procuravam expor o aparato burocrático no qual o artista estava preso
e seu impacto sobre o “valor” da arte. O espaço físico – literal – que já não
continha todos os aspectos da experiência e da relação publico/obra, agora se
esvaziara completamente, deixando de ser o elemento principal na concepção
de um trabalho. Concomitantemente a esse movimento de desmaterialização,
também uma desestetização do trabalho de arte começa a direcionar os
artistas para propostas imateriais ou agressivamente anti-visuais.
A escultura A liberdade agora vai simplesmente ser patrocinada – com a
verba da caixinha, proposta pelo artista alemão Hans Haacke em 1990 para a
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Potsdamerplatz no centro de Berlin; faz um comentário ácido a respeito da
força avassaladora com que o capital privado dominava o norte da Europa e da
Alemanha em reconstrução após a queda do muro de Berlin. Haacke colocou
um símbolo da Mercedes Benz no topo de uma das torres de observação que
ainda restavam do sistema de vigilância de fronteira. Em um dos lados da torre
ele fixou as palavras de Goethe "Kunst bleib Kunst" (arte permanece arte).
No caso de Haacke, o ambiente no qual o trabalho se instalava,
funcionava como um elemento motivador para a percepção e o conhecimento
do artista, que construía questionamentos e transmitia-os ao público por meio
de um elemento escultórico agregado a esses espaços. O trabalho criava um
engajamento com a dimensão histórica, política, e econômica do contexto, que
podia ser um espaço institucional da arte ou um ambiente urbano.
A arquitetura das cidades, na visão de Haacke ou Buren, seria
representativa de uma linguagem preparada e aplicada a partir de
determinações históricas; e seria abordada pela arte com o mesmo tipo de
conotação. O trabalho de arte representaria uma possibilidade de revelar ou
discutir as instâncias do pensamento humano que interferem na realidade na
qual as pessoas vivem. O espaço construído passa a ser analisado por seu
conteúdo simbólico, muito mais do que por seus contornos físicos.
Do anti-espaço arquitetônico até as novas possibilidades de diálogo com
os diversos lugares da arte, abertas na contemporaneidade, Kwon explica esse
retorno como uma conexão mais íntima com o cotidiano das cidades em
confronto à auto-referência de algumas propostas de teor conceitual – a arte
discutindo e criticando a si mesma.
(...) se a crítica do confinamento cultural da arte via suas instituições foi a “grande questão”, um impulso dominante de práticas orientadas para o site hoje é a busca de um engajamento maior com o mundo externo e a vida cotidiana – uma crítica da cultura que inclui os espaços não especializados, instituições não especializadas e questões não especializadas em arte (em realidade borrando a divisão entre
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arte e não-arte), preocupada em integrar a arte mais diretamente no âmbito social9.
Estas diferenças conceituais assumem contornos mais nítidos quando
comparamos dois trabalhos de Carl Andre e Gordon Matta-Clark. Nas obras: 37
Pieces of Work, de Andre (1969); e Office Baroque, de Matta-Clark (1977); os
artistas atuam sobre o piso da edificação onde as obras se inserem. A proposta
de Andre atrai o olhar do observador ao piso pelo fato de se colocar sobre ele.
Ao mesmo tempo em que observa e avalia as características visuais, a
disposição e o arranjo das lajotas, o visitante da galeria poderia investir-se de
um nível de consciência maior do que o usual em relação ao ato de caminhar.
Seus pés pisando um assoalho de madeira, evitando as lajotas metálicas...
Qual seria a sensação de andar sobre elas? E que sensação tenho agora?
Estabelece-se uma relação com o ambiente por meio da comparação entre
esses dois elementos bem distinguíveis: obra e piso.
Carl Andre: 37 Pieces of Work, 1969
9 KWON, Miwon. Op. cit. p. 24.
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Gordon Matta-Clark: Office Baroque, Antuérpia, Bélgica, 1977
De outro modo, nos deparamos com uma intervenção de Matta-Clark,
como Office Baroque, na qual o próprio piso é convertido em material de
trabalho e foco da experiência perceptiva. O público não tem um elemento
contrastante para guiar o olhar e o deslocamento. A arquitetura, de um
coadjuvante competente, passa a ser protagonista da visão e dos
deslocamentos. Sem separação entre obra e ambiente, a arte aqui é o próprio
ambiente modificado pelo artista.
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Desta maneira, o mais recente movimento de ampliação do campo da
arte, incorporando esse engajamento com a arquitetura e com a cultura
favorece o trabalho nos locais “públicos” fora dos confins tradicionais da arte
em termos físicos e intelectuais. Com esses novos contextos acrescentados à
experiência física do observador, o termo site-specific seria oportunamente
seguido pela noção de in-situ10,utilizada por Daniel Buren para descrever não
apenas a posição e os materiais, mas também os fatores históricos, políticos e
sociais presentes em uma determinada situação espaço-temporal na qual a
obra se insere. Os lugares participam das obras como fonte geradora de
formas e são o terreno final de construção crítica e debate.
Pode-se, a partir de Daniel Buren, considerar que a primeira característica de uma obra in-situ consiste em opacificar, e assim tornar visível, a circunstância em que ela é vista e não apenas seu lugar. (...) a noção de site-specificity caracteriza de maneira muito imperfeita as modalidades de referência, pois na maioria das vezes ela mantém a idéia de que a obra pertence ao lugar e não o contrario11.
A partir das considerações sobre o "espaço minimalista", tão bem
determinado em seus limites concretos, suas origens e reverberações teóricas;
chego a questionar se seria possível estabelecer parâmetros definidos para as
fronteiras conceituais de um novo "espaço contemporâneo". Este território que
foi prolongado nas brechas do discurso fenomenológico e que abrange um
número de variáveis capazes de reduzir a distância entre o pensamento
artístico e a vida, independente das referências à linguagem ou aos conceitos
da arte. Ocorre perguntar: de que maneira essa interação tão próxima entre a
10 "A escolha por trabalhar In-situ significa realizar uma obra em um lugar e de modo específico para aquele lugar. O primeiro passo – o mais difícil – é misturar-se com as características do local, levando em conta sua historia e procurando colher a natureza, o dialogo com a arquitetura e até com as pessoas que vivem ali. É indispensável tentar imaginar os modos nos quais o trabalho poderia interagir ou ser fruído, partindo exatamente do ponto onde é colocado. Uma obra perturba o ambiente no qual é inserida: além das "dinâmicas de reação" que ela poderia desencadear, contam as "dinâmicas de relação" e as "mutações na percepção". Em maior razão em um lugar familiar". FONTANA Sara; GIUSTACCHINI Enrico. Buren e l’utensile visivo. Revista virtual Oggi 7, 10 de agosto de 2008. Acessado em: http://www.oggi7.info/2008/08/21/1235-buren-e-l-utensile-visivo. Trecho traduzido por Tiago Giora. 11 POINSOT, Jean Marc. “L’in-situ et la circonstance de sa mise en vu [au] musée”. Les Cahiers du Musée National d’Art Moderne Centre Georges pompidou, n.28, 1989. Apud JUNQUEIRA, Fernanda. In: Revista Gávea n.14. Rio de Janeiro: PUC. Setembro de 1996, p.571.
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arte e o cotidiano contribui para a formação de um espaço comum? E quais são
as características peculiares deste espaço?
Em sua produção
textual, Daniel Buren dá
seqüência às considerações
sobre a arte na cidade e
expõe suas idéias a respeito
do papel dos museus e
galerias, sobre o lugar da
arte na sociedade e as
relações entre a intervenção
e o contexto humano e
espacial. Estes textos foram
sendo produzidos
paralelamente a uma serie
de intervenções urbanas nas
quais o artista investiga o
assunto à luz de sua
definição de in-situ e a partir
de suas próprias propostas
assim como das obras de
outros artistas. A instalação
Tilted Arc (1981) de Richard Serra12; constitui uma situação exemplar e nos
permite discutir essas questões sob os pontos de vista de mais de um dos
autores trabalhados nesta pesquisa.
Tilted arc foi concebido especificamente para o local em questão,
seguindo uma rotina de projeto que é comum para os trabalhos deste artista e
12 Richard Serra, escultor, desenhista e vídeo –maker americano. Nascido em São Francisco em 1939, estudou nas universidades da Califórnia e de Yale. Estabeleceu-se em Nova York onde conheceu Eva Hesse, Steve Reich, Judd, Nauman e outros. Trabalho inicialmente com borracha, incluindo peças penduradas ou emaranhados; a partir de 1969 passou a interessar-se primordialmente em cortar, apoiar ou empilhar placas de aço, madeira rústica, etc... Para criar estruturas, algumas muito grandes, suportadas apenas por seu próprio peso. Desde 1970-1, tem produzido varias peças em larga escala e peças "ambientais", assim como desenhos monumentais em carvão ou bastão de tinta. Fonte: http://www.tate.org.uk/servlet/ArtistWorks.
Richard Serra: Tilted Arc, Federal Plaza, NY, 1981
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que envolve medições, transporte de material e um complicado aparato técnico
posto em prática em nome de um resultado formal esperado. Nem mesmo o
grande impacto visual causado pela obra instalada na praça chega a ser uma
novidade, ao interno de uma produção que inclui muitas esculturas
monumentais em espaços públicos e privados. "O que é novo, em
compensação, é a recusa irrevogável de Serra em ceder aos pedidos de
transferência da obra, fato que em muitos casos similares jamais pareceu lhe
causar problemas muito sérios, nem uma posição intransigente e irreversível"
(Buren, 2001: 171).
Essa atitude prova que, pelo menos neste caso, ele não esgotou até o fim as exigências que uma obra in-situ requer de seus executores, uma vez que, tanto quanto o autor da encomenda, aparentemente não estudara os usos e costumes do lugar em questão. Sem essa negligencia, teria notado que sua obra obrigaria os habituais freqüentadores do lugar a fazer um desvio, e que esse fato seria matéria de discussão13.
Na visão de Buren, um campo de ação tão rico em referências como uma
praça comercial em meio a um grande centro urbano não poderia ser reduzido
a uma situação espacial, desconsiderando os percursos e os usos do espaço.
Sua posição sugere uma compreensão mais ampla da problemática envolvida
pelo trabalho do artista. E suas obras se valem mais de imagens e códigos
visuais para questionar justamente o funcionamento dessa interação entre arte
e sociedade, numa dinâmica que se conecta mais fortemente à cultura do que à
percepção, tratando antes de questionamentos do que de sensações. São
diferenças fundamentais que refletem caminhos diversos tomados desde a
formação desses artistas e a comparação de suas obras ou de seu
entendimento acerca do espaço, só poderia mesmo ser feita segundo um único
elemento comum: a cidade.
A identificação da obra de Serra com as estratégias Minimalistas e com a
fenomenologia da percepção possivelmente nunca seria confrontada com
13 Daniel Buren, ""Textos e entrevistas escolhidos", (1967-2000), p.170.
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noções voltadas à racionalidade e à história. Não fosse talvez o fato de que ela
ter sido instalada diretamente em uma passagem de pedestres e relacionando-
se com o espaço urbano. Esse terreno sem molduras, livre da mediação
institucional da arte promovida pelos museus, galerias e afins; tem sido um dos
ambientes preferenciais das correntes que visam tecer relações mais íntimas
com a vida cotidiana. É o território por excelência da contaminação dos meios
e, assim, torna-se difícil para muitos artistas e críticos tais como Buren, devolver
ao objeto artístico, a autonomia temporal e funcional já rejeitada pelas
propostas contextuais.
Quando se instala no espaço público um obstáculo de aço que obrigatoriamente precisa ser contornado, corre-se o risco de levantar um obstáculo – este sim, público – muito mais difícil, senão impossível de contornar. Se, em contrapartida, Richard Serra tivesse realmente observado esse fenômeno e, mesmo com conhecimento de causa, decidido ignorá-lo, poderíamos dizer que essa peça, por mais inteligente que fosse, constituía também pura provocação, e toda provocação tem resposta14.
Da perspectiva de Serra a questão parece ser enfrentada de um ponto de vista bem mais
formalista: os espaços são vistos como tabuleiros onde o artista atua livremente segundo sua
vontade criativa. O peso do aço, o modo de sustentação das placas, o recorte no espaço e a
presença maciça da gigante placa curvada são elementos importantes em muitos dos seus
trabalhos urbanos e atuam em conjunto para construir uma visualidade muito potente que
interage na paisagem de forma impactante. A própria escala da obra de Serra já sugere que a
convivência com o público seria dificilmente neutra e pacífica. Parece realmente claro que o
observador para ele é considerado enquanto um corpo que se move no espaço, matéria que
interage e se distorce enquanto percorre a obra com olhos e pernas.
Assim enquanto a crítica de Buren parece justificar-se de acordo com os parâmetros
hiper-contextuais da arte in-situ, o trabalho de Serra, vale-se da monumentalidade e da
modelagem do espaço de trânsito para manter uma relação muito forte com o individuo. Em
contato como obstáculo, ele é levado e reposicionar-se no momento espaço-temporal presente e
desenvolve a consciência de sua existência dentro do universo imediato. “Quero ver como as
14 IBID, p. 171.
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pessoas se estruturam em relação ao espaço enquanto elas caminham. Elas se tornam o sujeito
de sua própria experiência" (Serra, 2008. Declaração colhida em entrevista do artista no circuito
"Fronteiras do Pensamento", Porto Alegre, Brasil).
Considero que as questões aqui levantadas podem ir além da
comparação entre diferentes maneiras de trabalhar no espaço, saindo dos
museus e galeria e chegando às áreas públicas. Elas procuram delinear as
bases para a configuração de um olhar mais atento que aponta a arte em
direção à arquitetura e os objetos de uso cotidiano. Neste direcionamento que
tende a abarcar as formas, a história e os usos do espaço; as propostas
urbanas se constituem como uma possibilidade de atuação em meio ao
ambiente por excelência da vida nas sociedades contemporâneas organizadas
e suas reverberações podem também penetrar em um universo mais amplo de
análise.
A desaceleração do ritmo de percepção, numa proposta artística que
está intimamente ligada com a vida. A experimentação da concretude de um
mundo que tende cada vez mais ao virtual: que tipo de impacto o espaço físico
pode causar nas pessoas? E o que deve aspirar o artista que atua neste campo
em contínuo processo de ampliação? Alterar o desenho das estruturas tangíveis
da cidade como caminho para construir uma arquitetura menos funcional que se
inclina para o campo da arte... Ou ainda trazer da arte uma visão atenta e
crítica que coloca em questão os espaços definidos pela ação do artista e se
estende até os lugares percorridos e habitados pelos transeuntes no curso
normal de suas vidas?
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Imagens: Imagem 01
Bruce Nauman: Corridor, 1968-70. Corredor com circuito interno de TV. 518cm
x 1219cm x 91,44cm. Coleção Dr. Giuseppe Ponza. (Foto Rudolph Burckhardt).
Fonte: KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1998, p. 287.
Imagem 2
Carl Andre: 37 Pieces of Work, 1969.Alumínio, cobre, aço, chumbo, magnésio
e zinco. Dimensões totais 10,97m x 10,97m: 1296 unidades, 216 de cada
metal, cada unidade 30,5cm x 30,5cm x 1,9cm. Coleção Dwan Gallery, Nova
York. Como instalada para a exposição 'Carl Andre' no piso de rotunda do
Museu Salomon R. Guggenheim, Nova York. (Foto: Robert E. Mates e Paul
Katz).
Fonte: ARCHER, Michael. Art since 1960. London: Thames & Hudson, 2002, p.
57.
Imagem 3
Gordon Matta-Clark: Office Baroque, Antuérpia, Bélgica, 1977. Intervenção em
pisos e paredes de um edifício. Espolio de Gordon Matta-Clark.(Foto: Gordon
Matta-Clark).
Fonte: GORDON MATTA-CLARK. Londres: Phaidon, 2003, p.115.
Imagem 4
Richard Serra: Tilted Arc, Federal Plaza, Nova York 1981. Aço Cor-tem 3,66m x
36,60m x 6.25cm. Coleção The Place Gallery, Nova York.
Fonte: HUGHES, Robert. The shock of the new. Londres: Thames & Hudson,
1991, p. 370.
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REFERÊNCIAS:
Archer, Michael. Art since 1960. London: Thames & Hudson, 2002. Ardene, Paul. Un art contextuel. Paris: Flammarion, 2004. Batchelor, David. Minimalismo. São Paulo: Cossac&Naify, 1999. Buren, Daniel. Textos e entrevistas escolhidos [1967-2000]. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2001. Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. Ferreira, Glória; COTRIN, Cecília. Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2006. Hughes, Robert. The shock of the new. Londres: Thames & Hudson, 1991. Klabin, Mangia (Org.). Richard Serra. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1997. Krauss, Rosalind. A escultura no campo ampliado. The anti-aesthetic: essays on postmodern culture. Washington, D.C.: 1984. Krauss, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Kwon, Miwon. One place after another: site specific art and locational identity. Cambridge/London: MIT Press, 2002. Marc, Auge. Non-places: introduction to an athropology of supermodernity. Londres: Verso, 2006. Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006. O’Doherty, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Revista FACE: espaço, lugar e local. Disponível em: <http://www.pucsp.br/pos/cos/face/espaco.htm>. Acesso em: 8 mar. 2009.
Warr, Tracey; JONES, Amelia (Org.). The artist's body, themes and movements. London: Phaidon, 2000.
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Ensaios
Crítica de Arte:
Esfacelamento ou mudança de atitude frente aos processos
artísticos contemporâneos? Karine Gomes Perez1
Nos escritos sobre crítica de arte contemporânea, deparamo-nos,
freqüentemente, com afirmações acerca de sua crise. Fala-se do
emudecimento e da impotência da crítica frente às produções contemporâneas.
Tais afirmações não estariam sendo veiculadas em razão de sua menor
ocorrência na imprensa de grande circulação, como nos jornais, os quais lhe
reservam espaço reduzido para um sucinto comentário a propósito dos
acontecimentos do cenário artístico? Além disso, esse emudecimento da
crítica, principalmente no que se refere à aliança entre arte e tecnologia, não
estaria acontecendo em virtude de essas produções não se tratarem
necessariamente de objetos acabados?
Como a importância de grande parte das produções contemporâneas
não está centrada no resultado formal da obra acabada, Ane Cauquelin
(2005b) verifica que parte da crítica, ao abordar tais produções, tende a
discorrer em torno do contexto das obras, da biografia do artista e das relações
destas com determinados movimentos, não da obra em si.
Se considerarmos que estamos diante de um esfacelamento da crítica,
devemos refletir acerca de quais parâmetros estamos nos baseando para
pensá-la. Estaríamos apegando-nos num retorno à crítica de arte surgida com
Diderot, embasada num julgamento de gosto, evocado por Kant, com
comentários endereçados ao público? Em caso positivo, estes seriam
aplicáveis à pluralidade da arte contemporânea?
1 Artista e Mestre em Artes Visuais, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (bolsista CAPES 2008-2010). Bacharel e Licenciada em Desenho e Plástica pela UFSM. Membro do Grupo de Pesquisa Arte e tecnologia/CNPQ. Integra o LABART e a Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa.
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De acordo com Cauquelin (2005a), não podemos analisar as
manifestações artísticas atuais sob as seguintes concepções modernas:
continuidade marcada pela inovação; progressão histórica e tecnológica; arte
em ruptura com suas formas instituídas; compreensão de que o valor de uma
obra esteja contido nela própria; autonomia da arte, arte desinteressada e
idealista; comunicabilidade universal das obras, baseada na intuição sensível
(juízo de gosto); ideia do “sentido”, através da qual o artista expõe a verdadeira
natureza das coisas. Igualmente, não devemos nos deter, necessariamente,
nos valores modernos de originalidade, unicidade e autenticidade para avaliá-
las.
Talvez, seja em razão da decadência de critérios pré-estabelecidos para
avaliação da arte que a crítica pareça esfacelada. Nesse sentido, o que pode
estar acontecendo é uma mudança de atitude por parte da crítica, provocada
pelas transformações ocorridas na arte, pois, conforme Arthur Danto (2006), as
produções artísticas são pluralistas e, por essa razão, exigem uma crítica de
arte não excludente nem homogeneizadora. Isso vai ao encontro da
desconfiança em relação aos discursos totalizantes e homogêneos, presente
em nosso tempo. Assim, Mônica Zielinsky (2003) afirma que as obras exigem
uma visão da alteridade, da contextualização e do relativismo. Por isso,
numerosos autores propõem a ideia de debate crítico, que significa dar lugar a
uma pluralidade de pontos de vista, sendo ele fonte de divergências, cujo
objetivo consiste na aprendizagem de críticos junto a outros críticos.
O crescente enfraquecimento das fronteiras que separam as atividades
exercidas pelos diversos agentes do campo artístico também pode ser
desencadeador de mudança de atitude por parte da crítica. O artista, por
exemplo, já não assume apenas o papel de produtor de obras de arte,
adotando múltiplas funções no fomento de atividades de arte contemporânea,
como: crítico, membro de júri, curador, etc.
Esses fatores levam o artista a ingressar no terreno da crítica, por meio
do uso da palavra, o que, de acordo com Glória Ferreira e Cecília Cotrim
(2006), deve-se à crescente intelectualização desse profissional, com
tendência à formação universitária, e à sua participação nas definições e
maneiras de circulação da arte.
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No período da arte moderna, o artista produzia escritos, porém, eram
diferentes dos atuais, já que se tratavam de manifestos e textos teóricos,
anunciadores dos destinos da arte. Esses textos buscavam atingir o público em
geral, apresentando as justificativas e posicionamentos dos artistas com
relação à arte.
Os textos contemporâneos, por sua vez, não visam a estabelecer os
princípios de um futuro utópico, como os manifestos modernos; focalizam os
problemas correntes ao próprio processo artístico, sendo compostos em
sincronia com a experiência artística. Desse modo, os escritos de artista
diferem dos demais por sua flexibilidade estrutural, metodológica e teórica.
Essa tomada da palavra pelo artista leva-o a responsabilizar-se pela
interpretação de seu trabalho, incorporando a crítica e a história da arte como
matérias do processo operatório da obra. Isso pode transmitir a falsa ilusão de
que a atividade do crítico não seja importante, pois o próprio artista está
autorizado a falar de sua obra. Entretanto, não é uma verdade, já que são
modos diversos de abordagem crítica: uma fala de dentro do processo artístico
e outra, de fora. O crítico não precisa abordar as mesmas questões que o
artista, usando conceitos não pensados no momento da criação. Deve analisar
aspectos formais, técnicos, temáticos, estilísticos da obra e suas relações com
o contexto histórico e sociocultural.
O enfraquecimento das fronteiras que separam as atividades exercidas
pelos diversos agentes do campo artístico não ocorre somente no emprego da
crítica pelo artista. Conforme Zielinsky (2003), a crítica de arte recai em outras
atividades e procedimentos confundidos com ela, como no trabalho dos
curadores, nas notícias da mídia, em atividades didáticas ou na mediação
informativa sobre a arte.
Por outro lado, o crítico concebe sua atividade como artística, criativa,
em particular a curadoria. A subjetividade autoral do curador tem sido exercida
como a do artista, na esfera da visibilidade; desse modo, o formato da
exposição passa a instituir-se como obra autônoma.
Glória Ferreira (2006) observa que o trabalho curatorial tem
transformado o estatuto da crítica de arte, entre o conhecer e o julgar. Em sua
concepção, esse trabalho combina, em um frágil campo de associações, as
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obras e o discurso, operando como um mediador de intenções em prol do
contexto da apresentação, ao invés do objeto.
Para Fernando Cocchiarale (2006), a mediação crítica do curador
respalda-se no discurso, na esfera da visualidade, produzindo questões
extraestéticas, temáticas, que emprestem sentido à dispersão aparente em que
nos encontramos. Esse profissional deve escolher, selecionar, sustentar as
múltiplas produções artísticas a partir de vias que lhe parecem fecundas. Ao
invés de discernir, distinguir e julgar, ele passa a atuar pelos caminhos da
comunicação, da pedagogia e do comentário.
Uma alternativa para a crítica talvez esteja nas proposições de Ursula
Rosa da Silva, as quais sustentam que ela deve dar suporte à apreciação
estética, ser instigante, provocativa e, sob certos aspectos, didática, no sentido
de aproximar o público da arte. Para a autora, a crítica não deve dar
significados prontos ao espectador, pois é um espaço de ressignificação
constante. Portanto, cabe ao curador de exposições a construção de um
espaço de experiência, acompanhado de texto ensaístico, podendo ser
considerado, junto à própria exposição em si, um dos lugares do discurso
crítico, da produção de sentido e da vivência de experiências estéticas.
Outra possibilidade pode estar no pensamento do autor alemão Carl
Einstein, analisado por Didi-Huberman (2003), no livro Fronteiras: arte, crítica e
outros ensaios, em que propõe uma leitura genealógica da obra de arte
(condições de geração das obras) sob o ritmo de suas destruições e
sobrevivências, de seus anacronismos e regressões. Essa leitura genealógica
da obra de arte vai ao encontro do pensamento de Icleia Cattani, a qual
destaca a importância, na análise das poiéticas, dos processos de instauração
das obras. Essa questão é fundamental quando se trata de obras que parecem
similares, pois, ao pensarmos no processo de cada artista, percebemos suas
diferenças, importantes para a análise das obras contemporâneas.
Principalmente, para aquelas feitas às margens do sistema dominante das
artes, tendo em vista que, freqüentemente, são pensadas em termos de
influências de outras obras, as quais teriam servido de “modelo”. Assim, é
fundamental ao crítico centrar atenção nos processos e tomar cada obra em
seus próprios termos, porque, como não temos critérios de análise pré-
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estabelecidos para avaliar a arte contemporânea, eles são elaborados caso a
caso.
A crítica de arte, encarada como atividade judicativa, apoiada em um
consenso universal, apontado por Kant, perde essa função frente à diversidade
dos processos artísticos contemporâneos e da mistura de papéis
desempenhados pelos diversos atores da cena artística. Em sua atuação, a
crítica incorpora o debate e a análise dos processos dos artistas. Dessa forma,
ela não está banida do campo da arte, mas confunde-se com outras atividades,
passando a ser da alçada de variados agentes, como o curador, que deve
incorporá-lo ao seu discurso. Ela também está presente nos escritos de artista
e no interior de variadas obras, constituídas de conteúdo crítico, questionando
a própria noção de arte.
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Referências
CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea, uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005a. ______ . Teorias da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005b. COCCHIARALE, Fernando. Crítica: a palavra em crise. In: FERREIRA, Glória (org.) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006. (Col. Pensamento Crítico). DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. São Paulo: Odysseus/Edusp, 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl Einstein. In: ZIELINSKY, Mônica (org.) Fronteiras. Arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: UFRGS. 2003. FERREIRA, Glória (org.) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006. (Col. Pensamento Crítico). ______ e COTRIM, Cecília. (orgs.) Escritos de artistas 1960/1970. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. SILVA, Ursula Rosa da. Crítica, arte e estética: espaços para ressignificar. In: BERTOLI, Mariza; Stigger, Verônica (orgs.) Arte, Crítica e Mundialização. São Paulo: ABCA, 2008. (Col. Crítica de Arte).
ZIELINSKY, Mônica (org.) Fronteiras. Arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: UFRGS, 2003.
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Ensaios
Arte e sistema: onde está a arte? Paula Frassinetti
“Na era moderna, uma das mais ativas metáforas para o projeto espiritual é a
arte” (Susan Sontag)
A essência filosófica da modernidade é eurocêntrica, o que veio após a
revolução moderna se assenta na razão iluminista. Vive-se a intensificação das
mudanças ocorridas por meio das revoluções Francesa e Industrial e o
Iluminismo. Surge então a Racionalidade pautada nos interesses burgueses e
associada à noção de domínio do saber, uma especialização científica
característica do ocidente. Afirmar isto não significa dizer que a racionalidade
seja algo ausente em outras culturas, mas diferente da singularidade capitalista
eurocêntrica, na qual a razão é entendida como bem cultural. No universo
artístico não é diferente, pois a arte é integrante da cultura, não está acima da
sociedade. No decorrer histórico das mudanças artísticas é possível observar
uma racionalização cada vez maior, vide o surgimento da arte conceitual.
Houve um gradual abandono da realização artística em si, em nome das
discussões teóricas. O efeito de encantamento estético deixa de ser o
elemento principal na obra de arte.
A arte conceitual aparece como uma revisão da noção de obra de arte
arraigada no ocidente. Deixa de ser primordialmente visual e passa a ser
considerada como idéia e pensamento. Muitos trabalhos que se expressam
através da fotografia, filmes ou vídeo como registro de ações e exposição dos
processos, em oposição à noção tradicional de objeto e suporte de arte são
geralmente designados como arte conceitual. Além da crítica ao formalismo,
alguns artistas conceituais criticam as instituições, o sistema de seleção e
legitimação de obras e o mercado de arte.
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George Maciunas, um dos articuladores Fluxus, redige em 1963 um
manifesto que indicam os eixos norteadores deste movimento, que diz:
“[...] Purgar o mundo da doença burguesa, ‘intelectual’, cultura profissional e
comercializada. Purgar o mundo da arte morta, imitação, arte artificial, arte
abstrata, arte ilusionista, arte matemática, - purgar o mundo do ‘europanismo’!
[...] Promover uma enchente e uma maré revolucionária na arte, promover arte
viva, anti-arte, promover realidade não artística a ser entendida por todos, não
somente críticos, diletantes e profissionais.”1
Por meio de livros, periódicos e catálogos se tem hoje contato com
instruções Fluxus e é possível (re)fazê-las. Paradoxalmente, conhecem-se
materialmente alguns dos cartões originais por pertencerem a museus e
acervos. Quando exibidos em exposições nem sempre se pode lê-los
completamente, uma vez que os enunciados das partituras estão
freqüentemente cobertos quando os cartões são expostos sobrepostos,
protegidos por vitrines e legitimados por etiquetas de identificação. Ao
migrarem para coleções e instituições, serem consolidados como Arte e
historiados pertencendo ao passado, Fluxus (por seus objetos residuais ou os
cartões-partituras e respectivas caixas e publicações) seguiu àquilo que
negava em seu princípio tendo seu movimento e premissas congelados. Em
seu momento histórico, o movimento Fluxus foi revolucionário e contestador do
sistema, mas logo foi legitimado por este. Marcel Duchamp, ícone da arte
contemporânea que intencionou destruir o mito do fazer artístico, tornou-se ele
próprio um mito. O sistema capitalista absorve as próprias contradições para
agregar valor de mercado. O “novo” e “revolucionário” têm um espaço de vida
curto, pois logo será integrado ao sistema e se transforma em tradição. Logo,
vive-se à espera da próxima revolução. A contemporaneidade é marcada pelo
desencantamento do mundo, criação de novos mitos e desagregação de
antigos valores, pois o modo de produção capitalista não tem identificação com
o passado, há a constante ressignificação dos símbolos tradicionais para que
1 In: Manifesto Fluxus. Primeira distribuição durante apresentação de dois dias na Düsseldorf Kunstakademie chamada Festum Fluxorum Fluxus, Düsseldorf, 2 e 3 fev. 1963
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sejam transformados em bens mercantis. A busca permanente por identidades
singulares é reflexo da limitação das metanarrativas, que devem ser
redefinidas, pois há uma necessidade de autocrítica para que se possa
entender as micro-manifestações sociais. A hegemonia dissolve o indivíduo e
prioriza a massa já consolidada. A busca pelas singularidades sociais em
micro-realidades aponta para o desejo de integrar ao repertório hegemônico
novos signos de consumo. É desse processo que surge a figura do artista
como um pesquisador, trazendo à tona leituras e aspectos do social não
evidentes para o senso comum. A fotografia e videoarte são suportes
testemunhas da busca contemporânea pelo exotismo estético, o recente
direcionamento do olhar, em registros e intervenções, para a América do Sul e
culturas distantes do centro hegemônico de produção artística. O que
aconteceria se a América Latina se unisse e, convertida em potência
planetária, impusesse sua cultura e sua perspectiva ao resto do mundo? A
pergunta move a Trilogía Iberoamericana, saga épica futurista pop criada pelo
artista uruguaio Martín Sastre, entre 2001 e 2005. Irônica, a Trilogía conta
como, num futuro não muito distante, o império de Hollywood está morto e o
continente americano, unificado no império Bolívia 3, reinvidica o controle da
ficção mundial. Martín faz alusão a ícones ocidentais de todas as estaturas –
de Matthew Barney a Tom Cruise, de Nancy Reagan a Hello Kitty, de Britney
Spears aos Pokémons –, os três episódios são conduzidos pela figura-chave
do próprio Sastre, no papel do artista periférico que procura, encontra e desafia
seu lugar no circuito internacional da arte. No primeiro vídeo da trilogia,
Videoart – A Lenda Iberoamericana (13’, 2002) inicia-se a saga pelo controle
da ficção no mundo. Cruzando referências pessoais, com ícones da cultura pop
internacional, estereótipos latinos, gêneros de narrativas do audiovisual e
acontecimentos políticos, Sastre problematiza uma época em que ficção e
realidade já não trazem distinções.
Existe uma forma de pensar a arte como “desafiante da sociedade”, mas
o espaço social já não sofre impactos de pequenos desafios. O
ativismo/artivismo ‘’desafiador’’ da sociedade é vago e está ligado a contestar o
conceito de arte diante das pessoas que participam do cotidiano do sistema
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artístico contemporâneo, ou seja, arte para artista ver. A fruição da obra de arte
contemporânea pede uma precedente contextualização, pois hoje não há uma
leitura imediata do produto artístico, visto que o próprio processo de produção
faz parte da obra. O Neoísmo, vanguarda que emergiu da Rede da Mail Art no
final dos anos de 1970, tem Stewart Home como seu principal idealizador.
Entusiasta do plágio positivo, o autor sustenta que a grande vantagem do
plágio como método literário é que este descarta a necessidade do talento e
assim abre as portas da expressão artística não apenas para aqueles que
passaram por uma academia de belas artes, mas a qualquer indivíduo que
tenha algo a dizer. No livro “Manifestos Neoístas / Greve da Arte”, o próprio
autor estimula iniciantes no movimento a plagiarem seus textos. “Atacamos o
culto ao indivíduo, os ‘eu-mesmistas’, as tentativas de se apropriar de nomes e
palavras para um uso exclusivo. Rejeitamos a noção de copyright. Pegue o que
puder usar. Afirmamos que o plágio é o verdadeiro método artístico moderno.
O plágio é o crime artístico contra a propriedade. É roubo, e na sociedade
ocidental o roubo é um ato político”. (HOME, Stewart. Manifestos Neoístas /
Greve da Arte). O Neoísmo é uma filosofia prática que faz, tanto na forma
quanto no conteúdo, uma crítica estrutural à individualidade, às artes elitistas e
acadêmicas e ao capitalismo. O movimento se ambienta na divagação
filosófica e nos corações mais românticos em relação ao ser em sociedade,
mas enquanto não for legitimado como produto pelo sistema, não surte efeito
de mudança real (em massa) e proliferação da própria existência.
A arte como “sublimação do ser” talvez seja possível hoje somente no
contexto microestrutural, na tentativa de desconstruir padrões estereotipados
do próprio fazer artístico e do “exotismo estético” tão cultuado atualmente. A
arte tem o poder de fetichizar objetos e contextos culturais, pois colocando em
evidência as manifestações sociais, o detalhe despercebido pela massa no
cotidiano, o artista pode supervalorizar elementos antes invisíveis. É nessa
linha tênue que se esconde a arte? Arte e encantamento, juntos até que o
mercado hegemônico vos separe.
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Bibliografia HOME, Stewart. Greve da Arte / Manifestos Neoístas. São Paulo: Conrad, 1993.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 2006.
FREIRE, Cristina. Afasias na crítica de arte contemporânea. Os lugares da crítica de arte. São Paulo:ABCA/ Imprensa Oficial do Estado, 2005. p.63 a 75.______. Poéticas do Processo. São Paulo: Iluminuras, 1999. ZANINI, Walter. Catálogo da 17ª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1983. JAMESON, Frederic, Pós-Modernismo. São Paulo: Ática, 1997. HABERMAS, Jürgen, A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. _________________. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990.
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Ensaios
Olhares múltiplos: conferências marcam início das
atividades do recém-inaugurado curso de História da Arte Rosane Vargas
Nos dias 30 e 31 de março, o Instituto de Artes da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (Ufrgs) promoveu os eventos inaugurais do Bacharelado
em História da Arte. Os conferencistas, professores doutores Armindo Trevisan
e Tadeu Chiarelli, escolheram abordagens diferentes entre si, mas ambas
instigantes, sobre como, a partir da história da arte, de seus produtores,
contempladores e consumidores, podem ser traçados caminhos para que se
conheça mais daquilo que comumente se chama “essência humana” e
investigar relações que constituem ou podem vir a constituir uma identidade
nacional.
“Arte é uma forma privilegiada de amar algo ou alguém”1
(Armindo Trevisan)
Uma abordagem subliminal da história da arte (reflexões de um ex-
professor) foi o tema da conferência do professor aposentado Armindo
Trevisan, no dia 30. Doutor em Filosofia, poeta e historiador da arte, ele
lecionou História da Arte e Estética na Ufrgs e foi docente no Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais da universidade2. Contrariando o conhecido
currículo, Trevisan começou a conferência dizendo que nunca se considerou
um historiador da arte, mas um estudioso do fenômeno artístico. Para ele,
somente pode ser chamado de historiador quem se dedica à investigação das
fontes primárias, a análises técnicas e outras questões para as quais afirmou
não ter paciência ou formação.
1 Frase proferida durante a conferência inaugural do Bacharelado em História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 30 de março de 2010. 2 Armindo Trevisan é autor de vários livros sobre arte, como Escultores contemporâneos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ufrgs, 1983; Como apreciar a arte. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990; e O rosto de Cristo. Porto Alegre: AGE, 2003.
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Nas artes visuais, a palavra ficção adquire plausibilidade, afirmou o
conferencista. Isso porque a arte é resultado da imaginação somada ao
produto da mão do homem. O contemplador da obra de arte tem consciência
de estar vendo uma ilusão com sentido; nas palavras de Trevisan, uma
“alucinação domesticada”. A arte revela uma porção de coisas, disse o
professor, mas só a revela aos mais atentos. A partir dessas afirmações, pode-
se apreender que, para Trevisan, existe uma espécie de acordo ou convenção
entre espectador e artista no processo de produção e consumo da arte. Pode-
se perceber também um convite e uma provocação para que se tente ir além
de um simples olhar. Seria também uma sugestão/afirmação de que o
espectador não tem um papel passivo nessa relação?
Afinal, por que o homem faz arte, mesmo nas condições mais
precárias, se poderia produzir somente coisas práticas, utilitárias? Trevisan
convidou os presentes a imaginarem as condições em que foram produzidas as
pinturas na Pré-História. E repetiu as indagações do etnólogo e arqueólogo
André Leroi-Gourhan: o que revelariam, se existissem, os fósseis verbais? O
que nos contariam das motivações desses precursores da produção simbólica?
Falando sobre a “magia” dos animais pintados nas cavernas, Trevisan disse
acreditar que, mais que uma possibilidade de poder sobre os animais, os
caçadores pretendiam o poder da antecipação, da imaginação do futuro.
O homem também produz arte, disse Trevisan, citando a Bíblia,
porque não é bom que o fique só. E concluiu, poeticamente, “Eva poderia ter se
chamado arte”. O ser humano produz arte, afirmou o professor, porque deseja
transcender sua essencial solidão, porque precisa comunicar, revelar o que
existe em sua intangível psique.
Fazendo uma comparação entre amor e arte, o conferencista disse
que ambos buscam converter a solidão em comunhão. O espectador de uma
obra de arte e o leitor de uma obra literária, na concepção de Trevisan, podem
ser considerados amantes de quem as produziu. O professor disse que sempre
acreditou na dimensão subliminal da arte, que seria um “magnífico abraço no
semelhante”. Em vários momentos, ele falou dessa relação entre artista e
espectador, quase como uma troca amorosa. É possível perceber, também
pelo uso de metáforas comparando a arte à mulher amada, que, para Trevisan,
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a arte tem muito de carnal, físico. Por esse motivo, ele disse que considera um
dos males da arte contemporânea o fato de o artista deixar de usar as mãos
em seu fazer. Afinal, para o professor, não existe corpo sem visibilidade.
“O papel do historiador da arte tem que ser crítico,
problematizador das verdades instituídas”3
(Tadeu Chiarelli)
A repetição diferente: arte no Brasil nos séculos XX e XIX foi o tema
da conferência proferida pelo professor Tadeu Chiarelli4, dia 31. Docente da
Universidade de São Paulo, curador e crítico de arte, ele apresentou o que
chamou de tentativa de pensar as relações possíveis do modernismo brasileiro
com a produção artística do país no século XIX. Chiarelli disse que não traria
um assunto definido, mas algo em formulação, que ainda se amadurece e que
pode levantar a possibilidade de uma revisão da história da arte brasileira.
Em sua pesquisa, o professor busca estabelecer relações entre dois
diferentes tipos de obras produzidas entre a primeira metade do século XX e a
segunda metade do século XIX no Brasil. No primeiro grupo, ele analisou
quatro pinturas realizadas, respectivamente, por Lasar Segall, Anita Malfatti,
Tarsila do Amaral e Cândido Portinari. O segundo grupo é formado por retratos
de Dom Pedro II. A esses dois grupos foram contrapostas algumas pinturas de
Almeida Júnior, com a intenção de tornar mais complexos os problemas
levantados.
Na obra Bananal, de Lasar Segall, 1927, a composição é mais
convencional, descritiva. Um homem negro, figura angulosa, que lembra uma
máscara africana (Chiarelli supõe que possa haver uma referência ao cubismo
e à ancestralidade do retratado) está no centro, tendo ao fundo a densidade
das folhas de bananeira. Nesse quadro, o cubismo é usado apenas como
arranjo ornamental. Chiarelli chama a atenção para uma tentativa do pintor de
neutralizar a diferença de tratamento dada ao fundo e à figura do homem. Para
3 Frase proferida durante a conferência inaugural do Bacharelado em História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 30 de março de 2010. 4 Tadeu Chiarelli tem vários livros publicados, entre os quais se destacam Um jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 2004; e Pintura não é só beleza – A crítica da arte de Mario de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.
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Chiarelli, pode ter havido uma intenção de reforçar a relação entre o homem e
o bananal, este resultado do trabalho daquele. Talvez, afirmou o conferencista,
o olhar ainda não aclimatado de Segall ao Brasil tenha reproduzido uma cena
de estranhamento em que a luminosidade do sol, a exuberância da natureza e
a negritude do trabalhador façam parte de um emblema do Brasil.
Em Tropical, de Anita Malfatti, 1917, a figura feminina mostra um
balaio cheio de frutas, no que Chiarelli interpreta como uma alegoria à
fertilidade dos trópicos. Para ele, a artista oscila entre responder à demanda
naturalista latente e fazer uma obra de cunho moderno, de vanguarda. Mesmo
tentando estabelecer mudanças do ponto de vista formal, Anita lança mão da
tradição iconográfica, dos manuais de iconologia, e usa a deusa Ceres e
figuras alegóricas ligadas ao conceito de abundância. O balaio de frutas, disse
o professor, pode facilmente ser interpretado como a tradicional cornucópia.
O mesmo tom alegórico evocando o caráter pródigo da terra é visto
em Vendedor de frutas, de Tarsila do Amaral, 1925, no qual um homem
negro/mestiço está em um barco com um cesto com frutas variadas. Para
Chiarelli, embora o personagem seja masculino, revive tanto o mito de Ceres
quanto Vênus saindo das águas, de Boticelli. É o Brasil paradisíaco, onde os
frutos da terra são colhidos sem aparente trabalho. As características do
homem mestiço são realçadas pelos olhos azuis e pela boca de lábios
caricatos.
Lavrador de café, de Cândido Portinari, 1934, mostra um homem
altivo. A desproporção de pés e mãos reforça a ideia de ligação com o trabalho
e a terra. Tanto nesse quadro quanto em Bananal, a natureza é um lugar de
trabalho. O fruto da terra é resultado do trabalho do homem, ao contrário de
Malfatti e Tarsila, que mostram a natureza pródiga como uma dádiva a ser
recolhida sem esforço. Neste ponto, Chiarelli fez uma ligação entre Portinari e
Almeida Júnior e seu O derrubador brasileiro, 1875. A interpretação, que o
conferencista reconheceu não ser original, é que o derrubador de café tivesse
levantado para se tornar o homem que olha a terra brasileira, cuja imensidão é
reforçada com o recurso do fundo renascentista.
As pinturas do caipira, feitas por Almeida Júnior, na opinião de
Chiarelli, são estético-documentais do paulista, que deixa de ser um miserável
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e domestica a natureza. São, de acordo com o professor, as primeiras pinturas
a ressaltar o homem local em seu ambiente.
Como não há uma historiografia da arte mais aprofundada no Brasil,
Chiarelli valeu-se da obra de Antônio Cândido Formação da literatura brasileira.
Cândido observou que o romantismo brasileiro tinha se originado de uma
convergência de fatores locais e sugestões externas e se tornou algo, ao
mesmo tempo, nacional e universal. Para Chiarelli, pode-se usar essa assertiva
para falar do modernismo. As diferenças estéticas de cada período são
contrabalançadas pela sua unidade do ponto de vista histórico, disse Chiarelli,
citando Antonio Candido. Com base nisso, afirmou que, apesar das diferenças
visíveis entre parte da pintura modernista do século XX e as pinturas de Pedro
II no século XIX, é possível ver relações entre elas, como a demanda pela
constituição de uma arte nacional. Chiarelli não pensa no modernismo como
uma ruptura, mas como um elo de uma corrente maior.
A reprodução de imagens litográficas foi, na opinião de Chiarelli, um
dos grandes legados da família real. E aqui chegamos aos retratos de Dom
Pedro II. O imperador foi modelo de várias fotos e experimentos e fotografia.
Sua imagem era registrada em fotografia e distribuída litograficamente. O
primeiro retrato, de Debret, já mostrava diferenças entre os retratos do
imperador do Brasil e os das cortes europeias: havia muitos elementos da
paisagem local. Em diversos retratos, o imperador aparecia em meio a
folhagens, um símbolo do país. Chiarelli apontou a tensão constante entre a
vegetação e o imperador, entre a natureza e a cultura. Pedro é a civilização; a
natureza tropical e luxuriante, a barbárie. Uma síntese do Brasil da época?
Nas obras dissecadas pelo professor durante a conferência, ele
destacou as diferentes maneiras de interpretar o Brasil e seus problemas e
emblemas. Isso mostra, na opinião dele, que a arte produzida no período
compreendido entre 1850 e 1950 carece de estudos mais aprofundados. A
abordagem multidisciplinar das obras de arte mostrada por Chiarelli abre
caminhos interessantes e possibilidades para os atuais e futuros historiadores
da arte.
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Ensaios / Dossiê
Introduzir o que é em si André Dornelles Pares
A Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, é o que ela é. O princípio de não-contradição de Aristóteles diz que algo não pode ser
e, ao mesmo tempo, não ser, sob o mesmo aspecto.
Logo, tudo o que já ouvistes sobre oficinas de artes com doentes
mentais, tudo o que já vistes na televisão sobre trabalhos voluntários com
psicóticos, tudo o que imaginas que possa ser um programa de resocialização
de pessoas loucas através de atividades expressivas não é a Oficina de
Criatividade do Hospital São Pedro.
Ela é o que é em si.
É tanto ela mesma que é praticamente impossível descrevê-la, explicá-la
e/ou narrá-la.
Esta dificuldade está perfeitamente notada na leitura dos textos que
compõem o dossiê que o Panorama Crítico traz nesta edição.
Dos textos para explicar, descrever – expor seus estudos sobre o
trabalho na Oficina, surge de imediato a percepção de que o esforço da
explicação torna-se involuntariamente uma narrativa de envolvimento. Alguns
escritos levam páginas para chegar ao assunto ‘real’ (que seria a obra de
determinado interno-artista, por exemplo). Parágrafos e parágrafos que são a
tentativa de aproximação daquilo que os autores dos textos vivenciaram. Até
chegar ao objeto-objetivo do texto, estes parágrafos são camadas de
sensações, buscando uma entrada: uma compreensão para aquilo que tentam
apresentar ou explicar. Para a ‘objetividade’ jornalística, o nariz-de-cera; para o
trabalho afetivo-social do processo artístico com doentes mentais,
necessidade.
O em si da Oficina de Criatividade é composto dessa massa torcida,
meio escura.
* * *
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E também desta, plana e clara:
“Na oficina (de criatividade do hospital São Pedro), o indivíduo (paciente)
tem liberdade para se exprimir; é ele quem escolhe o material com o qual vai
trabalhar e o que quer expressar. Através de desenhos, pinturas, modelagem,
escritos e bordados, o sujeito catalisa o que através da linguagem verbal
muitas vezes lhe seria tão penoso” (NEUBARTH, 2005)15.
O Hospital Psiquiátrico São Pedro, localizado na Avenida Bento
Gonçalves, em Porto Alegre, foi fundado em 1884. O que se chama hoje de
Oficina de Criatividade, criado em 1990. Bárbara Neubarth, autora da frase
acima, e uma das fundadoras da oficina, diz que outros espaços para atividade
expressiva, antes de 1990, já haviam sido criados no hospital. Um destes,
sendo coordenado pelo escritor Dionélio Machado, na década de 1960, do
qual, assim como outros, não resta qualquer registro.
Ou seja, uma memória social perdida.
Ao contrário, a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São
Pedro passou a guardar os trabalhos de seus internos. Serviço que, serviu
para, entre outras coisas,Tânia Mara Fonseca, coordenadora da equipe que
passou a pesquisar e organizar o acervo da Oficina de Criatividade, perguntar:
“Qual valor para a vida poderia se desprender daquele aparente lixo
(todo o material artístico produzido pelos pacientes desde 1990), acumulado
por 19 anos num sótão cujas portas rangem e o vento nos corta quando passa
pelas janelas sem vidros?” (veja o texto no dossiê).
Tânia, calculadamente, faz parecer lixo aquilo que antes era pura falta: a
memória. Mas a aparência, segundo Kant, filósofo alemão, jamais é a coisa em
si.
Se nem a presença de Dionélio Machado impusera a necessidade de
arquivo que, exageradamente ou não, é o registro das manifestações de uma
sociedade – as obras plásticas dos psicóticos dessa sociedade! –, o que fazer,
agora, com a montanha de papéis em que se transformou a vontade de dar
valor a esta memória?
* * * 15 Ver o texto de Bárbara Neubarth em http://www.eusouvoce.com.br/pag_oficinahistoria.htm
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1
O em si da Oficina, além dessa vontade, se compõe ainda destes dois
paradoxos acima vistos. O primeiro, o de ser ela, Oficina, uma massa que tem
a sua parte densa na tentativa de explicar-narrar seus processos subjetivos, e
a sua parte aberta na liberdade dos internos em seu trabalho criativo. O
segundo (paradoxo da Oficina), o de dar valor inestimável ao ‘lixo’ – coisa de
louco, numa sociedade que, quando muito, só valoriza o lixo se ele vira capital
financeiro.
Mas então: o que fazer com esta montoeira de “lixo” em que se tornou
todos os trabalhos artísticos dos internos que foram sendo guardados,
empilhados, empacotados?
Talvez, ao se dispor a organizá-los, uma das coisas que se possa fazer
é se ficar sabendo, por exemplo, que Natália, aos treze anos, fugiu de casa, no
interior do estado do Rio Grande do Sul, e, 400 quilômetros depois, veio parar
num hospício, na capital, que na época, o ano de 1956, abrigava com sua
lotação máxima: cinco mil internos. E saber mais: que depois de tentativas de
saídas e voltas necessárias ao hospital como único lugar de abrigo, Natália
encontre hoje a serenidade possível numa cor de abóbora, que invariavelmente
invade seus bordados (detalhe acima) e desenhos.
Cor que se torna um pouco mais emocionantes quando se pode
observar sua ‘obra’ bem cuidada e valorizada, misturada com a sua biografia,
arquivada no hospital2.
O em si da Oficina, neste momento, se abre, se oferece, e se encontra
com um em si mais extenso; o social. Isto é: Natália é a interna doente mental
1 Recorte de bordado de Natália Leite, interna-artista da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Ver trabalho na íntegra na Exposição “Eu Sou Você”, no próprio hospital, ou em http://www.eusouvoce.com.br/natalia_18.htm 2 Veja mais detalhes em http://www.eusouvoce.com.br/pag_artistas.htm
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Natália Leite, que no belo trabalho do ex-estagiário Fábio dal Molin (veja o texto
no dossiê), tem sua vida explicada-narrada-sentida. Com sua memória de vida
e sua obra guardada e exposta, Natália é um pouco mais: parte da
identificação da mulher que viveu na segunda metade do século XX no sul do
Brasil, e que teve determinados percalços, encaminhamentos e possíveis
soluções na sua existência, nesta faixa temporal da existência humana, nesta
faixa territorial do planeta.
Ou seja; uma memória social achada.
* * *
Da liberdade de criação artística oferecida aos internos que se
transformam em artistas, surge na prática aquilo que poderia ficar só na
palavra: a resocialização de quem ‘não serve(ia)’ a sua sociedade.
Da vontade de se dispor a organizar-arquivar o material produzido por
estes loucos transformados em artistas, surge a transformação da memória
individual em história social.
No dia em que a equipe do Panorama Crítico andou pelos pavilhões
cheiamente vazios (pois o própria lugar, devido a sua história, constitui-se num
paradoxo) do semi-abandonado Hospital Psiquiátrico São Pedro, era Natália,
ciosa e concentrada, a única a estar iluminada pela amarela luz do sol que
entra na espaçosa colorida sala da Oficina.
Na sua frente, um desenho começado em cor de abóbora.
Por trás de Natália, e por causa dela e de Luiz Guides, Frontino e
Cenilda (os outros artista catalogados; leia sobre eles no dossiê), estão “mais
do que biografias e rumos de vidas extraviadas da retidão da normalidade”,
como diz Tânia (leia o texto no dossiê), “mas a sua capacidade de expressão,
sua resistência em se manterem dizendo algo quando todo o seu entorno lhes
impôs esquecimento e letargia”.
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Sãos, como somos, talvez o que todos nós também desejemos quando
nosso entorno de sociedade do consumo e por isso da efemeridade nos
oprime; oportunidade, e coragem, de dizer o que queremos.
O que a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro é em
si aponta para essa possibilidade.
Se este é teu caso, bem-vindo ao dossiê que o Panorama apresenta.
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Ensaios / Dossiê
Vidas do fora e a escrileitura de um mundo incontável1 Tania Mara Galli Fonseca
Para Bárbara, fundadora - aos meus olhos -, de uma ilha deserta e que sabe, como Arthur Bispo do
Rosário que: “Os doentes mentais
são como beija-flores. Nunca pousam. Ficam a
dois metros do chão”. As torneiras de sua casa sofrem avarias. Umas vazam outras emperram.
Você chama o hidráulico para o conserto. Verifica-se, na inspeção, controles impotentes, canos entupidos pela ferrugem que, insidiosa, vedou as aberturas e entranhou-se, ali, como obstáculo à passagem do fluído. Apenas pequenos veios abertos restaram na tubulação. Despencam-se e substituem-se canos, torneiras e registros para que tudo retorne à ordem. Você, então, pode pensar: que tempo invisível é este que transmuta em entupimento aquilo que foi feito para escorrer e lavar? Que faces pode adquirir a matéria ferro quando em longo encontro com a água? Que pode a água diante do ferro?
I
Em nosso pensamento, há ainda um outro lugar, em que ferro e água
celebram estranhas núpcias. Trata-se de um lugar que, mesmo de olhos
fechados, temos vivo em nossa mente. Nele, paisagens se compõem, em dias
secos ou molhados. Sob a luz da lua ou do sol. Dias e noites em ciclos
fechados enfileiram-se em relógios sem ponteiros. No alto dos edifícios,
podem-se ver papagaios empoleirados. Querem ganhar horizonte pelas
cumeeiras. No ar, mansas vacas coloridas flutuam junto a galinhas perdidas de
seus grãos. Evaporaram-se os gramados, A terra e as cercas se esconderam,
imaterializaram-se em poeiras finas e imperceptíveis. Restou apenas seu
cheiro. Os odores funcionam como pistas sensíveis de secretas secreções que
1 Texto originalmente publicado no livro Vidas do Fora – Habitantes do silêncio, organizado por Tania Mara Galli Fonseca e Luciano Bedin; Editora da UFRGS, 2010.
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não se deixam ver. Não se escuta riachos sussurrantes e tampouco se vê
montanhas verdes. No plano, paira o silêncio e uma incessante bruma envolve
telhados que se sobrepõem a outros telhados. Divisamos a paisagem como em
um duplo embaralhado. Estranhos elementos misturam-se ao prédio imponente
e de estilo e compõem, assim, uma bizarra arquitetura. Tem-se a impressão de
que as névoas de um interminável inverno encontraram finalmente um lugar
para sua existência insistente. Situamo-nos em um país profundo, feito de
gestos que se proliferam em câmara lenta, cada qual inapagável e que se
revelam como tentativas de uma construção titubeante após a catástrofe.
Também nós precisamos ultrapassar os limiares da percepção ordinária para
reconhecer que, nesse lugar, é preciso sustentar um eterno estado
convalescente que encena dramas de um combate para constituir uma morada
no mundo. Nesse país, reina um tempo em que épocas demoram a chegar e
saem sempre um pouco mais tarde. A obra do tempo, que se materializa em
corpos - cinzas e lentos -, desloca-se nas flutuações de sua forçada letargia.
Alimenta-se da erosão, mas, como viremos a saber, resiste frente ao que lhe é
adverso, entrega-se a serviço de um si que não cabe em explicações e que se
coloca em busca de um eterno retorno ao sentido. Neste secular ‘lugar ideal’ de
repouso – e de desterro-, os habitantes do ‘palácio’ da loucura andam a dois
metros de um chão inexistente. Habitam uma zona do ‘entre’, perguntando-se,
a cada instante, como Alice de Caroll: em que sentido? em que sentido?
Adormecidos de sua insônia, esquecidos de sua história, alguns desses
seres flutuadores exercem, contudo, uma função autoral: transformam a
infâmia que se abateu sobre sua existência em outros possíveis. Quando
andamos nos pátios e edifícios do palácio da loucura, construídos pela reta
razão, podemos identificar faixas paralelas do tempo no tempo de dois trilhos.
Como formula Bruno Shulz (1994) aqueles acontecimentos que não podem ser
enfileirados num tempo ordenado, dispostos em seqüência como numa fila e
que chegaram tarde demais, quando o tempo já tinha sido distribuído, dividido,
desmontado e que, agora, ficaram no ar. Quando nos equilibramos sobre os
trilhos do tempo ordenado por gonzos, podemos visitar locais onde se erguem
grandes vitrines que guardam descomunais livros de registro. Nosso olhar
torna-se escuta quando os folheamos e, neles, ainda podemos ouvir o ranger
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de antigas canetas à tinta molhada riscando o branco papel sob a mão de
alguns funcionários. Naquela escrita, vidas foram traçadas e decididas, foram
colocadas em jogo e sucumbiram na infâmia de sua inexpressão. Impiedoso, o
arquivo de registros oficiais, escrito por anônimos, parece subtraí-las para
sempre de uma possível apresentação. Desterradas pelos raios das palavras,
vidas devem permanecer silenciadas já que todos os esforços de cura de sua
insanidade foram fracassados. Vidas insanas e incuráveis, cuja presença
singular nos aparece exatamente através daquilo que as cala e as distorce
num esgar. Então, compreendemos o que pode o poder e que sua ação não se
reduz a reprimir. Admitimos que vidas reais foram postas em jogo e ocupam,
nesse arquivo infame, um lugar possível. Com certeza, para a maioria dos
sujeitos internados, esses lacônicos registros, enquanto marcavam os sujeitos
com o selo da infâmia, também traziam a certeza de terem se constituído no
único rastro de sua existência. Guardam curiosas histórias, testemunham
secretas práticas, denunciam costumes sociais que poderiam ainda ser nossos:
nesses álbuns de selos, diagnósticos e prognósticos descrevem a difícil
reconciliação do homem com o homem, do homem com os seus instintos, das
instituições que foram sacralizadas para expulsar a alteridade indigna de existir
e de conviver. A coleção de álbuns, instalada nas vitrines do memorial da
loucura, nos aparece como um livro da contabilidade do juízo. Nada passou
despercebido aos seus escrivães que, furiosamente, investiram sua antiga
caneta sobre o branco papel que ficará para a história. Não sabiam eles,
naqueles momentos de redação, que sua escrita iria explodir em estilhaços.
Seguiriam direções múltiplas, tantas quantas viessem a ser seus possíveis
leitores. Relançar-se-iam sobre toda a humanidade para confrontá-la com suas
injustas verdades moralizantes. Tornar-se-iam um inapagável relato dos
enlaces entre ciência e moral e dar-se-iam a ver, enfim, como mil espelhos
colocados nos crachás e lapelas de cada um dos funcionários do Estado.
Assim, ao examinar a colossal coleção de álbuns de selos infames, algo
diferente acontece em nós. Orientamo-nos em direção ao que nos leva Bruno
Schulz (1994, 11), no seu conto ‘Primavera’:
em todos os horizontes, em todas as esquinas, crescia, emergia este perfil onipresente e inevitável, fechando o
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mundo a chave como uma prisão. E, quando cheios de uma resignação amarga, já perdêramos a esperança, quando já nos conformáramos com a uniformidade do mundo, com aquela imutabilidade cujo fiador era Francisco José I – abriste inesperadamente diante de mim, como uma coisa sem importância, este álbum de selos, oh, Deus, permitindo-me ver de passagem este livro descascando-se com brilho, este álbum despindo-se, página após página, cada vez mais luminoso e mais apavorante ... Quem poderia me levar a mal por eu ficar deslumbrado naquela hora, exânime de tanta comoção, por derramar lágrimas dos olhos que transbordavam de luz. Que relativismo deslumbrante, que feito copernicano, que fluidez de todas as categorias e todos os conceitos. Quantas formas de existência nos deste, oh, Deus, quão incontável é o teu mundo! É mais do que pude imaginar nos meus sonhos mais ousados. Então era verdade esta antecipação prematura de minha alma, que, contrariando as evidências, insistia ser incontável o mundo!
Gostaríamos, pois, de asseverar e repetir com Schultz, nosso desejo de
primavera. Gostaríamos de ir em busca do perdido mundo incontável. Ir além e
também aquém das contabilidades fiscalizantes. Adoraríamos nos ultrapassar,
para vir a nos encontrar fora dos trilhos da história, deixar-nos levar apenas a
um dos braços laterais da história enfileirada. Tomaremos, pois, um desvio
cego e decidiremos andar fora dos trilhos daquele tempo parado e mumificado
da vitrine museológica, de onde ainda podemos ouvir e ver disparos e
relâmpagos. Nosso caminho nos conduzirá a um lugar antagônico ao dos
postos onde se deve pagar impostos e tarifas alfandegárias para a sustentação
da existência. Procuraremos um entreposto, vizinhante das edificações retas e
até mesmo situado em sua quadrada arquitetura. Algo como uma ilha deserta,
na qual desnudos habitantes tomam sol durante horas. Sonharemos com este
enclave de ar na cidade murada. Saberemos que sua ocupação é só em
aparência, e que essa ilha deserta que buscamos, retomará e prolongará seu
impulso apesar das codificações que a querem anexar ao continente.
Estaremos sempre nesse esforço contra a dominação das marés.
Procuraremos produzir, ao menos, um mínimo território, no qual se secam as
palavras e as injúrias, para conceder um solo aos habitantes errantes. Eles já
enxergaram as marés, foram suas vítimas e afogados e agora, tentaremos
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ressuscitá-los, mesmos que já tenham sido levados. De seu além, nada
poderão dizer ou usufruir, mas nós, através da sua tragédia, iremos em busca
de outro mundo do mundo, sonharemos, enfim, com uma ilha deserta da
história do homem. Ela própria seria tão-somente o sonho do homem e o
homem a sua pura consciência (Deleuze, 2006). Nela, a geografia se coligaria
ao imaginário e não se trataria de virmos a encontrá-la fisicamente. Seria um
território existencial, somente existente como pensamento: presença-ausência
de seres amnésicos que ali se situam além de sua precedência carnal e
histórica - seres que portam estandartes faiscantes enquanto criam e resistem
e que continuam a existir como despossuídos e sem qualidades, não nutrindo,
jamais, a gana da posse e do domínio. Pensaremos que tal lugar da
imaginação deveria, entretanto, continuar para sempre inabitado. Não poderá
jamais ser tomado pelo homem e por suas verdades ilusórias. Deve funcionar
como respiradouro, como um não- lugar, lugar de todos e de ninguém, lugar
coletivo, sede de possíveis utopias. Nele se cruzariam versões de toda a
espécie, haveria sempre um vazio e um silêncio para recebê-las e fazê-las
circular, lugar sem ocupantes, ocupantes sem lugar. Circundado que se
encontraria pelo mar de verdades e julgamentos proferidos pela razão científica
e governamental, este lugar - que iremos encontrar a seguir - mostrar-se-ia
como um ovo daquele próprio mar que o produziu. Tudo aconteceria como se ,
num passe de inversão, tal ilha deserta tivesse tornado deserto o próprio mar
que a circunda, abrindo nele infinitos veios de navegação que, já não caberiam
no olhar inspetor e unidirecionado da retidão.Talvez, daqui, se tornasse
possível colocar fora do jogo vidas minúsculas até então, exclusivamente,
marcadas por palavras que as subordinaram a fins práticos e corriqueiros, com
função meramente designativa. E, a seguir, talvez, então, nos seria possível a
experiência de apresentar o mundo ao invés de representá-lo, fundar, como
afirma Blanchot (1984), “o outro dos mundos”, que não se refere a um mundo
inexistente, mas sim aquele que é evocado em seu esplendor e realidade plena
e que, por ter se tornado possível avisaria à linguagem da sua insuficiência
frente à vida. Far-nos-ia também sair da dialética, repensar as noções de
sujeito e de história, verdade e origem. Significaria uma fuga do aprisionamento
posto pelos conceitos e o abandono das certezas de nossa cultura e dos
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princípios que regem nossa história. Tratar-se-ia de um esforço para
realização de uma irrealizada história, a qual só se efetuaria pela negação de
todas as suas realidades particulares, por sua negação e, ao mesmo tempo,
pela afirmação da mesma negação. Essa afirmação pela ausência nos levaria
a um fora da linguagem corrente, constituiria a condição de uma obra feita pelo
“desobramento” das palavras , sendo, enfim, o que nos permitiria chamá-la de
“experiência do Fora” que encenaria todos aqueles atos de escrileitura que
viríamos a empreender em nossa saga pelos caminhos do arquivo de vidas e
obras com o qual estamos implicados.
No arquivo, deveremos anular o tempo, neutralizá-lo, dissolver-lhe a
história, desbaratar-lhe as verdades, abolir-lhe os sujeitos, fazer soçobrar sua
ordem para jogar um pouco de estranhamento e de insólito no mundo
enfileirado. Esse, contudo, não desapareceria, Desdobrar-se-ia no outro dos
mundos, exteriorizado de suas profundezas, colocado em relação com o Fora,
possuindo outra versão, constituída de devires, espaço do deserto, do exílio e
da errância.Uma outra imagem de mundo ser-nos ia possível e ela seria
produzida por nossa capacidade de tornar as coisas inapreensíveis, inatuais,
impassíveis, ou seja, diferidas pela potência de nosso pensamento que torna
presente aquilo que se produz em sua ausência.
Desde esse modo de pensar, seria, então, possível retomar os álbuns de
selos contidos nas vitrines dos portfólios da loucura. Eles seriam lidos de
cabeça para baixo, e também em diagonal e nas entrelinhas, em partes e
fragmentos, enfim, de modos e posições que poderiam suspender o presente e
restituir ao passado aquilo que ainda nele permanece como grito abafado. No
não-lugar, sem nomes ou distinções, na imaginada ilha-imaginária repleta de
virtuais, desejaríamos ser capazes de nos fazer praticantes de revirações do
passado em futuro e de escrever a história a contrapelo. Tratar-se-ia, então, de
fazer nascer uma segunda origem, um recomeço? Tratar-se-ia de vir a
encontrar uma outra coleção de álbuns que, paralela àquela envidraçada,
renega a catástrofe registrada empertigadamente nos registros da história da
loucura? De dar, enfim, uma segunda chance para a apreciação da vida? Em
sua afirmação de que: “Não basta que tudo comece, é preciso que tudo se
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repita uma vez encerrado o ciclo das combinações possíveis”, Deleuze (2006,
22) nos auxilia a deter nossa arca do dilúvio.
Assim, na seqüencia de nossa navegação, vamos fazê-la pousar na
única porção que acreditamos não se encontrar totalmente submersa no país
profundo em que estamos circulando. Na ilha-deserta do Acervo da Oficina de
Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, cuja superfície
nos é também confiada, pareceu-nos ser esse lugar onde tudo pode recomeçar
num mundo que tarda a recomeçar. Recuemos, pois, no tempo, em direção ao
imemorial. Não nos iludamos, entretanto. Este espaço-tempo que existe perto
de nós, é vizinho das outroras encasteladas. Foi dotado de diversos dedos a
mais e que, ágeis, agora nos apontam para o insuspeito, ou seja, para aquilo
que ainda não tínhamos olhado e que está recomeçando. Devemos
problematizá-lo, pois.
II - O mal de arquivo
Desconfiamos que, com nosso desvio, talvez, quiséssemos mesmo estar
em companhia de ladrões para vir a sondar o acúmulo de seus tesouros
roubados, para vir, enfim, encontrar um depósito irregular do ilegítimo. Como
na caverna de Ali “Bárbara” e os quatrocentos ladrões -, vermos ainda fazer
brilhar o esplendor de vidas condenadas e fora da língua maior. Colocar-nos-
íamos, pela nova geografia desviante, em busca do homem perdido, a nos
abraçar com aquele monte de desenhos e pinturas suportados por mais de
cem mil velhos papéis reutilizados.
Qual valor para a vida poderia se desprender daquele aparente lixo,
acumulado por 19 anos num sótão cujas portas rangem e o vento nos corta
quando passa pelas janelas sem vidros? Poder-se-ia tomá-lo como uma
coleção de pistas, de rastros, enfim, vestígios das inúmeras setas disparadas
por ladrões desnorteados que, de sua desrazão, dia após dia, roubaram um
pouco de ar para viver de outro modo na cidade murada. Poder-se-ia observá-
lo como designações da forma vazia de onde provieram como exercícios do ser
que, longe da interioridade pessoal, emergiram na superfície. E, ainda, como
transgressões que abalam as verdades instituídas e nas quais desaparecem as
dicotomias e contradições entre interior e exterior, realidade e imaginário.
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Tais vidas, no labor diário de seu atletismo, contaram, é certo, com a
ajuda de outros que, ajuizados, abriram-lhes as portas de seus braços e
ouvidos, deram-lhes nome próprio e mantiveram os olhos faiscantes enquanto
acompanhavam aquelas mãos inábeis e enrijecidas a traçar, com tintas ,
canetinhas e lápis coloridos, uma outra escrita de si. Na caverna de Ali
“Bárbara”, tornou-se possível, àquelas vidas do Fora apresentarem-se e
dizerem de si, mesmo que através do enlouquecimento dos signos. Ali,
formara-se uma pequena multidão de técnicos, profissionais e estudantes que,
movente em sua composição, iam e vinham e viram, assim, os anos correrem
céleres através de cada manhã. Foram tantas as produções brotadas daqueles
instantes, que os anjos ajuizados que acompanhavam sua feitura resolveram
fundar um domicílio, um espaço de depósito, no qual se podia ver nascer um
arquivo informe. Nesse, transmutava-se o privado em público e tornava-se
possível reunir os signos enlouquecidos em um único lugar. Das precárias
instalações, arranjadas em uma espécie de sótão que outrora havia servido de
enfermaria e local de cirurgias, aproveitaram-se longas mesas grosseiras e
velhas macas. Estantes desengonçadas serviram também de apoio aos
magotes de papéis que continham os estranhos desenhos e pinturas. Não
havendo mais móveis suficientes, os papéis passaram a ser acumulados no
próprio piso e o seu volume, sempre aumentando, indicava que algo
continuava a latejar nas vidas de seus autores. Como as múltiplas cópias que o
gravurista imprime de sua matriz, repetiam-se as cenas, suas representações e
motivos que, após feitas, eram enroladas em séries de tiragem diária. Assim,
enrolados para dentro de si mesmos, com as costas voltadas para fora, os
papéis desse arquivo informe ficaram por muito tempo. Como folhas soltas de
um grande livro despedaçado, misturava nomes e datas e sua vista era
embrulhada e confusa. Desanimava aquele que dele quisesse se aproximar,
uma vez que, tendo tudo, mas em grande desordem, mais escondia do que
visibilizava. Avizinhava-se a necessidade de um novo trabalho dos ajuizados.
Alguns foram chamados e outros se autoconvocaram para o
enfrentamento com aquele caos de papel. Deu-se início à classificação por
nomes e datas e as obras começaram a ser distribuídas, divididas e
empacotadas por autor e data e recebiam, no invólucro pardo, uma inscrição
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frontal que as identificava. O arquivo tomava forma e passava a ocupar os
trilhos do tempo cronológico. Foram necessários anos até que o espaço ficasse
tomado pelas grandes pilhas de papel pardo. Muitos catalogadores vieram,
ficaram um pouco e desistiram quando sentiram os ardores da tarefa. Outros
ficam até agora e se entranham nas paredes. Constituem, então, outras
segmentações, formulam novas classificações, remanejam as pilhas de suas
antigas posições, compõem uma paisagem de aléias por onde circulam
seguros, sendo capazes de apontar, dentre as enfileiradas pilhas quietas e
mudas, onde se encontram as obras deste ou daquele que se lhes pergunte.
Erigem uma arquitetura contra o esquecimento e dizem-nos, exultantes, terem
conquistado a atualização do arquivo, ou seja, atingiram o tento de só
empacotarem e classificarem os atuais trabalhos que ainda são produzidos;
mas, também nos contam, surpresos, que volta e meia, ainda surgem, não se
sabe de quais esconderijos, outros maços de papéis enrolados ou em pastas,
com marcações de datas antigas e nomes de autores mortos, que estiveram
extraviados não se sabe bem por quê.
É através da observação dessa interminável lida arquivística que vamos
encontrar, no próprio arquivo, motivos para novas problematizações. Partimos
do ponto que o espaço do arquivo não é apenas um lugar de estocagem e de
conservação de um conteúdo arquivável passado. Nele entranha-se aquilo que
Derrida chama “mal de arquivo” e que o faz trabalhar contra si próprio.
Convocação silenciosa, este mal - de origem pulsional anárquica – “destrói seu
próprio o arquivo antecipadamente, como se ali estivesse, na verdade, a
motivação mesma de seu movimento característico”. (Derrida, 2001,21). Tal
pulsão de morte e destruição não deixa monumentos e documentos como um
legado que lhe seja próprio. Não possibilitará ao arquivo ser a memória nem a
anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Hipomnésico, este
arquivo trabalha contra si mesmo, sendo, paradoxalmente, conservador e
instituidor, tradicional e revolucionário. Criado como um suporte exterior à
memória interior e espontânea, o arquivo torna possível instituir como
acontecimento aquilo que é arquivável, Ele nos mostra que não haveria desejo
de arquivo não fossem a finitude e o esquecimento daquilo que se quer
arquivar, não fosse, enfim, a ameaça de sua destruição. “Ora, esta ameaça é
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in-finita: ela varre a lógica da finitude e os simples limites factuais, a estética
transcendental, ou seja, as condições espaço-temporais da conservação”
(Derrida, 2001,32). O mal de arquivo implica, pois, no in-finito, em tudo o que
está por vir, na sua abertura para o futuro sem a qual não haveria, para o
arquivo, nenhum desejo ou possibilidade. Mais do que uma coisa relativa ao
passado, “o arquivo deveria pôr em questão a chegada do futuro”, continua a
nos dizer Derrida (Derrida, 2001,48). Trata-se de uma resposta, de uma
promessa e de uma responsabilidade para o amanhã. Fazendo-se Um, o
arquivo compõe-se de uma estrutura espectral: nem presente nem ausente em
carne-e-osso, nem visível nem invisível; torna-se uma casa assombrada na
qual sempre há lugar para a verdade do delírio e da loucura trancafiada sob
sete chaves. Verdade que, mesmo recalcada, retorna como verdade espectral,
fantasmática e irredutível à explicação. Para acessar seu feitio espectral temos
de falar uma língua própria, pois não se fala com fantasmas em qualquer
língua. O rastro do fantasma está ali, mas tudo o que ele faz para nós é abrir
portas atrás de portas, desconstruindo sua aparência de substituto deformado
daquela primeira/última verdade que ainda respira no coração de seu delírio.
Nesse momento, os decifradores do arquivo já devem ter compreendido
a importância em conciliar certo espiritismo com a razão. Já se defrontam com
as reservas e esquivas trazidas pelo problema da tradução; já sentem que os
documentos, desde sua singularidade insubstituível, se ofertam e se furtam,
abrem-se e subtraem-se às leituras fáceis e interpretativas. Os leitores do
arquivo sofrem do “mal de arquivo”.Vivem agoniados com aquilo que os atrai
mas que não podem dominar. Seu mal, contudo, pode significar outra coisa do
que sofrer de um mal, no sentido comum. Nas palavras de Derrida (2001,118):
É arder de paixão. E não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. Nenhum desejo, nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma compulsão, nem compulsão à repetição, nenhum ‘mal-de’, nenhuma
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febre, surgirá para aquele que, de um modo ou outro, não está já com mal de arquivo.
Não estariam tais leitores - acometidos pelo “mal de arquivo” -, também
a experienciar o Fora, buscando sem cessar a presença de algo que insiste em
se ausentar? Não seriam os atuais decifradores das vidas e obras contidas no
arquivo aqueles que teimam em desdobrar o mundo no outro dos mundos?
Anunciadores das auroras ainda não vindas nos pátios do palácio da loucura?
Pensamos neles como Ricardo Piglia (2006) pensou o seu “último leitor”,
ou seja, aquele leitor essencial que empenha sua alma na tarefa de decifrar as
páginas desfolhadas do colossal livro da desrazão. Pretendemos, nesta
sequência, imaginar sua labuta de decifração. Em dias quentes ou mesmo
naqueles gélidos e de vento forte, escutam desprender-se das pilhas
empacotadas, um constante murmúrio, um interminável rumor que pressente
estar abafado por diversas portas que se fecham/abrem, umas atrás das
outras. Como se uma inquietude - rebelde e esconjurada -, ao sentir a
possibilidade de vir a ser liberta, venha pedir-lhes passagem, utilizando seus
corpos sensíveis para sair de sua quase-causa profunda, transformando-se,
então, em efeito de superfície e enunciação que pode ser falada. E, quando
finalmente se acostumam ao incessante rumor desprendido e passam a
desembaraçar as folhas daqueles pacotes murmurantes, quando as estendem
em mesas para folheá-las, apreciá-las e, sobretudo, para interrogar suas
inscrições, podem, então, escutar gritos, como se, com o calor de sua
proximidade, um elemento inarquivável e anárquico pulasse dali, para agarrar-
se a uma possível, ainda que frágil existência. Um elemento pulador é atraído
por aquele que observa e, em sua natureza de quase-causa, não pode tudo
sozinho. Necessita afetar outra natureza que, mesmo lhe sendo heterogênea,
carrega algo que lhes é comum. Necessita de uma relação de intimidade para
que possa agir como de assalto, na imediatez de um contágio, de uma
intrusão, que inverte um em outro e que suspende o presente ao evocar a
presença mesma daquela ausência que quer repetir-se e eternamente
recomeçar. Os leitores são tomados de arrepios quando isso lhes acontece.
Confrontam-se com uma repetição sempre diferencial que funda um tempo não
mais cronológico e no qual as coisas não conhecem mais começo nem fim,
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nem chegam a acontecer de fato e, justamente por isso, estão sempre
recomeçando. Parecem ter nas mãos, aquilo que Maurice Blanchot aponta em
seu “O livro por vir”: um porvir, um “ainda não” que marca a impossibilidade da
linguagem em deixar-nos cadastrar o mundo através de palavras. É Blanchot
(1984,88) que nos diz:
O deserto ainda não é o tempo nem o espaço, mas um espaço sem lugar e um tempo sem engendramento. Aí, apenas se pode errar, tempo sem passado, sem presente. Terra nua onde o homem nunca está presente, mas sempre fora. O deserto é esse fora onde não se pode permanecer, pois estar aí é sempre já estar fora.
Assim, nesses termos, ao mesmo tempo em que podemos pensar o
arquivo como um espaço literário, uma vez que ele contém “a perseverança
das coisas depois que o mundo desapareceu, a teimosia que resta quando
tudo desaparece e o estupor do que aparece quando não há nada” (Blanchot,
1997, 317), também podemos pensar seus “últimos leitores” como errantes e
exilados “que se deixam levar pelo imprevisível de um espaço sem lugar, pelo
inesperado de uma palavra que não começou, de um livro que está ainda e
sempre por vir” (Salem Levy, 2003,34) O arquivo como o lugar de exílio, não-
lugar, deserto - do mundo e do sujeito -, lugar em que o eu transforma-se em
ele, lugar do impessoal, do outro - este desconhecido e errante que libertou sua
interioridade, que se fez superfície e tornou-se a própria ausência e que, por
sua voz, possibilita um discurso sem autor, discurso de todos e de ninguém.
Escrever, pois, desde esse lugar, supõe que os leitores tenham se deixado
levar para além de si mesmos, para um fora-de-si e que tenham feito de sua
leitura uma escrita não sobre o mundo, mas com o mundo e que, em sua
enunciação não houvesse busca de sentido para uma unificação pessoal ou
para a cura de suas neuroses. Nada teria a ver com suas lembranças, e tudo
emanaria de visões, audições, devires e potências que circulam no Fora. Morre
o autor, no sentido de um eu pessoal, nasce um anonimato informe e obstinado
que tira o poder de dizer “Eu”, um plural da própria palavra e que, como diz
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Foucault (2001, 52), abre caminho para a linguagem como escoamento do
Fora:
Escrever, hoje, está infinitamente próximo de sua origem. Isso é, desse murmúrio inquietante que no fundo da linguagem anuncia, logo que se abre um pouco o ouvido, aquilo contra o qual se resguarda e ao mesmo tempo a quem nos endereçamos.
III - A escrileitura de um mundo incontável
Nesse ponto, somos levados a retomar aquela nossa decisão inicial de
seguir pelo desvio da história. Também nos vem à mente a imagem daquele
outro arquivo de registros de internamento, colocado, intocável, em vitrines
para a posteridade. Parece-nos que, vizinhos, os arquivos travam um combate
que não se situa, contudo, em uma natureza que lhes é própria. Ambos são
espectrais e nada, em nenhum deles, impediria a tarefa “do último leitor”, tal
como acima foi referida. Ambos carregam a condição de potências imanentes
que estão sob a condição de um tempo intempestivo e não-reconciliado com a
história. Essa constatação nos faz pensar que tudo o que pode diferenciar os
arquivos, é dito a partir do modo de lê-los e de enunciá-los, sendo, portanto,
eles próprios, destituídos de sentido ético e estético. Contudo, acreditamos que
desse outro modo de escrileitura, do qual se produz uma ontologia, também se
desprende uma ética e uma estética que suportam uma nova maneira de
relação com o real, restabelecem o vínculo do homem com o outro homem.
Modo de ler, modo de escrever e de enunciar como experiência do Fora, como
despersonalização do sujeito que, em seus atos de criação e resistência, age
contra a história, contra os saberes e os poderes que a sustentam como
infâmia e injúria, como o intolerável.
Assim, passam-se os dias. De catalogação e leituras. Pelas mãos dos
“últimos leitores”, desfiam-se cada uma das 100.000 páginas espalhadas do
possível álbum que está por vir, mas tarda a chegar. Reunido e unificado, o
arquivo do desvio transforma-se em labirinto e seus leitores aprendem a ler por
linhas tortas e nas lacunas. Não se mostram preocupados em selar ou
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carimbar com rótulos aquela escritura. Tampouco buscam encaixá-la na
gramática do conhecimento arbitrado. Assumem sua ignorância diante do que
vêem nascer, agem como os famintos e sedentos que, quando têm em mãos
uma fruta que não acabou de amadurecer, a afagam e aquecem - e mesmo a
apertam suavemente entre os dedos -, para fazer movimentar seus sumos e
trazê-los à superfície. Não se trata, então, de ir à profundidade. Todo o artifício
consiste em produzir superfície, um plano comum que sustente as vidas
errantes de todos.
Sabem que, por sua obra de escrileitores, algo difere nesse arquivo
diferentemente do que acontece no arquivo oficial, situado nos trilhos da
história. Encontram, nele, múltiplas traduções para as vidas silenciadas.
Sentem como elas lhes escapam e como insistem em sua expressão, que se
traduz em linguagens que muito diferem daquela depositada nos registros
manicomiais. Fundam um plano de vozes e rumores, frente ao qual de início se
perguntam se estão descendo a uma maior profundidade ou se estão flutuando
naquelas inscrições produzidas por um modo que não procura sentido, mas
que se deixa levar pelos signos que insistem em brotar e se repetir.
Encontram-se com tais vidas e suas obras no Acervo da Oficina de Criatividade
do Hospital Psiquiátrico São Pedro e, nessa ilha-deserta, como náufragos, os
pesquisadores-leitores-decifradores-ressuscitadores navegam na massa
daqueles dos papéis-vidas. Parece-lhes estarem em um mar que, na
horizontal, abre múltiplas entradas. Sabem que estão a serviço de um resgate
para que as águas das marés do esquecimento não destruam aquele legado.
Dentre desenhos, pinturas e bordados situam-se, em um primeiro lance, pelo
que os atrai sua visão. Estabelecem, assim, um encontro cujas razões lhes são
desconhecidas. São, então, tomados por cores, por séries fantásticas, por
escrituras que nunca imaginaram restar ali, como gritos do interminável delírio
ao qual ainda resta uma lucidez. Tudo se lhes torna surpreendente, pois, ali,
naquele fim de mundo, seria o último lugar onde poderiam supor encontrar
alguma beleza e, ainda, algumas vozes emitidas de corpos que não mais
existem. Sabem que, como editores de um livro sempre inacabado, estão
confrontados com uma espécie de diários da loucura - diários daqueles
momentos em que a loucura pôde falar, pôde dizer, colhendo, então o direito
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de ser escutada. Tal como arqueiros, os artistas-autores-loucos lançaram suas
flechas para todos os possíveis passantes. Escreveram a longa carta de seus
instantes, destinaram-na a quem se deixasse afetar por suas fincadas. O
Acervo de Obras torna-se, então, o sótão silencioso de murmúrios dos
instantes que essas vidas tiveram oportunidade de expressão. Com seu
espaço quase todo ocupado, as inúmeras pilhas de papéis tornam-se também
(p) ilhas que, como bancos de corais em meio ao mar, permitem um sossego,
quem sabe para deter a velocidade das correntezas da desrazão. E, ainda, se
as obras empacotadas viessem a ser estendidas, formariam um imenso tapete
enfeitado a encobrir de ponta a ponta, na horizontal e na vertical, o espaço
arruinado que se tornaria, assim, uma espécie de templo da memória feito da
mistura de cores, nomes e datas, sem homens e sem deuses, apenas
inscrições acumuladas e guardadoras de segredos inconfessáveis. Os leitores,
diante dessa imagem, podem então também se perguntar: em que sentido? em
que sentido? sentem que não há como não se deixarem arrastar pelas
subterrâneas correntes de silêncio daquele plano sem precipitações abruptas.
Ali, um tesouro conspira em direção ao sussuro e ao ainda apor vir. Nessa
coleção de indícios, têm de afinarem o ouvido e conversar em voz baixa sob
pena de prejudicarem as ressurreições. Sabem que se encontram em um não-
lugar que, entretanto, se tornou um lugar para aqueles que não tiveram sequer
um digno lugar na existência e que, como natimortos, jazem inertes à espera
que sejam tocados para receberem o lugar do sentido. Os milhares de papéis
desenhados e pintados podem ser assemelhados a membranas sensíveis nas
quais foram inscritos a desmesura e o non-sense. Os leitores supreendem-se
quando os sentem ainda quentes após tantos anos de terem sido feitos,
quando percebem quanto eles ainda reverberam e ressoam a ponto de se
inverterem as posições: aquilo de aparência antiga, velha e decaída, feito por já
mortos, parece investir-se de uma saúde que salta e age como a melhor das
medicinas e das psicologias. Ali, pula um elemento paradoxal que não encontra
posição fixa, que evapora as significações, os nomes próprios e as tipificações,
que apaga os corpos que produziram e daqueles que, agora, os lêem. Os
encontros íntimos com vidas ausentes, com seres cujas costas encontram-se
sempre voltadas, com vidas que, tendo sido jogadas, nunca foram possuídas,
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representadas e ditas, fundam agora, por sua estilística, a possibilidade de uma
reviravolta da história. Mesmo que por instantes, naqueles papéis pintados,
brilha uma luz ofuscante. Neles, fixou-se um gesto que ultrapassa a bizarra
dinâmica de seus autores e se torna indiferente vir a saber quem falou e quem
disse. Considera-se mesmo ser preciso alcançar um certo apagamento do
indivíduo de carne e osso, para ficar com seu sopro. Então, os leitores também
compreendem que o depósito de obras é, enfim, um depósito de vestígios e
que a operação enunciativa de traduzi-los somente será possível quando
ocuparem o lugar de um morto, quando afirmarem sua própria ausência diante
daquilo que se ausenta, mas que pode devir presença.
Entendem que se encontram em um mundo diferente que os força a
pensar de outra maneira e pode, então, escutar Cecília Meireles (1976, 173) a
lhes dizer o poema:
Escreverás meu nome com todas as letras,
Com todas as datas,
- e não serei eu.
Repetirás o que me ouviste,
O que leste de mim, e mostrarás o meu retrato,
- e nada disso serei eu.
Dirás coisas imaginárias,
Invenções sutis, engenhosas,
- e continuarei ausente.
Somos uma difícil unidade,
De muitos instantes mínimos,
-isso seria eu.
IV - Um manifesto, ou ao menos o tom de um, antes de concluir
Alçar à última potência cada recomeço das vidas infames. Derramar o
azeite quente que verte de suas obras expressivas sobre o gelo dos saberes
que as condenou. Pensar em salvá-las e ao mesmo tempo recuar, pois
chegamos tarde demais e já não mais podemos fazê-lo. Vidas perdidas, mas
que não seja em vão. Teriam chances de alguma revanche? Teriam
consciência do poder que as produziu? Teriam possibilidade de se saberem
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testemunhas de uma longa história, da qual transformaram-se em planos de
inscrição do biopoder que as dominou? Seus corpos carregam as marcas de
um estado de exceção, onde os direitos lhes foram negados e, acreditamos
que, uma das razões para impulsioná-los à sobrevivência, foi a de
converterem-se em testemunho. Como sobreviventes de uma guerra,
posicionam-se como transgressores de uma ordem contínua e estabelecida.
Buscam mostrar que o mundo é incontável, apesar das forças que querem
unificá-lo e fechá-lo. Em suas vozes, ecoam os murmúrios de uma conversa
infinita, abundante, múltipla, inesgotável, que nos contam de um mundo
tomado por todos os lados e do qual não tiveram como sair. Em seu mundo de
papel, desenham paisagens em que tudo se desprega do solo. Fazem voar
casas, árvores, animais e a própria gente. Trazem para a cidade os campos, as
lavouras e os pomares de sua infância interiorana. Abstraem-nos em
impressionantes traços, deixando a ver somente fugidios rastros que se
assemelham aos de grandes pintores. Embaralham formas, desfazem-nas e as
parcializam. Produzem veladuras naquilo que já foi; instauram silêncios
brancos e pausas sobre o sangue já derramado; explodem em letras e
números sem gramática e matemática; plantam, em velhos papéis, imensas
árvores de todos os matizes, querem uma coleção delas ao modo de um pomar
extravagante e fecundo. Formatam buquês de uma estranha flora; fazem
nascer gentes de todas as cores, com muitos dedos nos pés e nas mãos,
grandes olhos observadores e bocas carnudas. Amarram-nas em sofás e
cadeiras, ornam-lhes com condecorações enquanto descalçam-lhes os pés e
deixam à vista, sob a roupagem, um corpo desnudo. Tudo o que oferecem
força ao embaralhamento da visão e apresenta-se como expressão do
momento em que a vida se traduz na arte e arte se produz da vida.
Nós os denominamos de artistas da margem e, quando neles falamos
referimo-nos, então, não a sujeitos que se situam nas extremidades,
delimitando um dentro e um fora da cultura. Referimo-nos à margem que marca
um intermezzo, a algo que se desloca entre lógicas duras, sem pertencer a
qualquer uma. Trata-se, a nosso ver, de um lugar que é, a um só tempo,
absolutamente interior e exterior à máquina sócio-cultural e que é forjado no
próprio contexto no qual habitam os sujeitos que, então, delas escavam novas
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possibilidades de linguagem. Desde esta perspectiva, de nosso ponto de vista,
torna-se artista aquele que trabalha na direção de um “pode ser”, na
atualização das virtualidades imanentes ao seu próprio território existencial, o
qual se transmuta por seu ato criador e por suas possíveis proliferações.
Consideramos que essa produção artística - criada no próprio seio daquilo que
a pode aprisionar -, é dotada de um caráter de resistência ativa que a torna
peculiar, ética e politicamente significativa. Trata-se de uma produção
relevante, tanto por sua extensão quanto por seus significados, podendo ser
tomada como um breve clarão que testemunha a existência de homens e
mulheres, os quais , apesar da impotência de suas existências, resistem em
sua vontade de expressão e de relação viva com a realidade. Trata-se, enfim,
de uma manifestação coletiva, que nos leva a perguntar sobre a força que
ainda reside na impotência, e sobre como esses corpos , assujeitados a tantos
desígnios de um poder que os quis normalizar e negar, ainda dizem não ao seu
silenciamento e apagamento sócio-afetivo e cultural.
Como já foi dito, suas obras constituem o Acervo da Oficina de
Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro que consideramos um arquivo
da memória social; o qual, ao ultrapassar o sentido de indícios registrados de
biografias individuais, torna-se documentação que nos remete à necessidade
de fazer a história do nosso presente, retomando os liames rompidos dos
diálogos entre loucura e razão, cultura, ciência e vida. Mais do que as
biografias e rumos de vidas individuais extraviadas da retidão da normalidade,
o que nos surpreende e interessa é a sua capacidade de expressão, sua
resistência em se manterem dizendo algo quando todo o seu entorno lhes
impôs esquecimento e letargia. Não nos interessa tomar as obras de arte para
desentranhar-lhes possíveis interpretações inconscientes que viriam a auxiliar
em processos terapêuticos. Nosso enfoque, neste momento, recai na obra
como incessante manifestação vital dos rumores de forças que habitam ou
habitaram os corpos de seus autores. Encorajamo-nos a encontrar, em tais
obras, coleções de traços, gestos e cores, um lugar valorizado e visível na
cultura e no mundo das artes, da filosofia e das ciências. Aqui, não importa
classificar e denominar segundo critérios marcados pelas dicotomias e
separações entre o que pode ser considerado como parte da cultura ou dela
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excluído. Nosso olhar recai para um longo horizonte e não encontra
demarcação de beiras: como se as obras e seus artistas vivessem em meio a
um grande rio que, de tão largo, não dá a ver suas beiradas. Artistas da
margem e do meio, que não atracam nem se enrijecem nos lugares da moda
cultural, uma vez que o seu ditame de produção não corresponde a nenhum
outro impera o do seu próprio desejo, sem finalidade mercadológica ou
escolástica. Obras e vidas dos afectos e das singularidades, ditadas pela força
de expressão de seus corpos.
Neste lugar da loucura institucionalizada, somos tomados pela vertigem.
O reto olhar de nossa razão revira-se. Vemo-nos mergulhados em um
acontecimento no qual os fatos já não são mais ordenados em sua seqüência
lógica. Eles saem dos trilhos da continuidade e da sucessão e fazem-nos
pensar que o tempo cronos que conhecemos é estreito demais para abrigar os
sentidos que são ali produzidos. Neste país, torna-se escancarado aquilo que,
na verdade, se faz presente em qualquer outro mundo: um elemento extra-
numerário existente nunca encontra seu definitivo lugar; torna-se o assaltante
rebelde que rouba e transgride o curso esperado e previsível das séries em
que os fatos se enfileiram. Nesta cidade dos loucos, instaura-se uma luta
constante contra aquilo que não pode ser enfileirado nas séries dos
significados familiares. Ocupando as pontas de uma linha sem fim,
contrabalançam-se razão e desrazão, saúde e loucura, agentes do poder e
sujeitos ao poder, os quais, apesar da forçada contraposição, se descobrem,
ao final, ocupantes do mesmo plano. Ferro e água numa composição que pode
gerar múltiplos efeitos. Neste país da clausura do Fora, a energia circulante
seria traduzida como de alta tensão, caso não tivessem sido engolidas e
enclausuradas as forças do Fora. Mesmo tendo tido seus corpos travados e
assemelhados a grandes frascos de remédios, alguns desses sujeitos
enclausurados pelo regime da longa internação, denotam uma estranha força,
uma certa teimosia em viver, parecem mesmo retirar alguma alegria de certos
momentos de sua existência. Celebram, sem consciência alguma, a passagem
das águas e sua potência para transformar o duro em mole, o ferro em
ferrugem, o sólido em poeira. Sentam-se nos bancos de coral e desaceleram o
corpo para dar vazão ao seu delírio. Parecem poder ter tido acesso ao que
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Nietzsche chama esquecimento. E isso nos toma de contentamento. Estaria aí
mais uma razão para se insistir ser o mundo incontável?
Agora que estamos conectados a esse país e à sua (p)ilha deserta,
podemos sentir a existência de dois mundos em tensão, como faces de uma
mesma moeda. Razão ou desrazão, poder ou impoder, dentro ou fora
emergem como tendência de um perverso ritmo binário cuja aberrante
monotonia e falta de invenção coloca-se a serviço de aberrações por ele
mesmo produzidas. Gostaríamos de nos dedicar a estabelecer a conjunção
e+e+e entre os termos para que se nos torne difícil e mesmo impossível
problematizar onde efetivamente se localizam cada um destes termos que
compõem esse estado de coisas em suspensão. Seria certo supor, até mesmo,
que tal atribuição individualizada e hierarquizada de predicados, corresponderia
a uma tentativa inútil e a um falso caminho para o pensamento. Tudo o que
podemos, nesse momento saber, é que sendo indissociáveis, cada termo gera
o outro e que não há uma essência natural que lhes garanta independência. Os
termos em relação retroalimentam-se, havendo entre eles uma espécie de casa
vazia, um intervalo branco, ainda não marcado mas marcável, do qual poderão
emergir outros possíveis sentidos e devires. Não há mais aqui uma natureza
senão aquela que já se entranhou com a cultura e com os artifícios. E, ainda
uma vez mais, dizemos que se torna embaraçador quando podemos
reconhecer que o que está, supostamente, situado no lado de uma
interioridade condenada e tida como impotente, ainda resista e queira fazer
uma obra de sua vida. Nestes momentos de afecção, sabemos que estamos
certos em buscar situar nosso pensamento naquele desvio cego, pois, está
sendo dali que temos podido mais do que reclamar e denunciar. Aqui estamos
juntos e buscamos a intimidade com os segredos da desmedida, de cuja
explosão vemos apenas efeitos de devastação. Se adentramos a paisagem,
recolhendo as cortinas de nosso olhar marcado, podemos nos sentir em meio a
cenas de um thriller, nas quais cadáveres ressurgem de tumbas imemoriais
para forjarem núpcias entre vida e morte. Há algo neste horror, contudo, que
nos fascina e passeamos nossa sensibilidade sempre num “entre”, nos
contagiamos com esses corpos informes e, quando os visitamos em suas
moradas, vemos que ainda aquecem as esquálidas camas enfileiradas em
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quartos coletivos. Quando recém despertados, esses corpos, sem consciência
e sem memória, servem-se de café e pão, colocados em longas mesas
providas de bules de alumínio. Em bandejas, comprimidos azuis são
distribuídos, como hóstias, em sua boca. Estes garantirão que se mantenham
plácidos, libertos das convulsões possíveis de seus delírios. Cigarros feitos de
papel-jornal e fumo barato passam a ocupar seus dedos. Uma televisão
encena programações histéricas e promoções baratas. Teria quem lhe
prestasse atenção? Que vidas habitam essas casas, dormem em suas camas,
alimentam-se em longas mesas de todos e de ninguém? A quem pertencem
esses corpos, encurvados e com pés desnudos, cuja visão nos aproxima de
anjos caídos? Quem são esses seres que, sobreviventes de uma catástrofe,
erigem seu testemunho de um modo estético, fazem falar mais além das
palavras e das imagens, convertem suas dores em possibilidade de arte? Anjos
caídos que “conservam seu pathos, uma dignidade e um singular glamour”
(Bloom, 2008, 22), diferenciam-se da figura do demônio e fundam-se
exatamente na invenção do humano, para nos remeter a algo que perdemos e
que temos o potencial de nos tornar de novo. Desta perspectiva, todos nós
somos, pois, anjos caídos, desterrados que fomos do paraíso e da imortalidade
e portadores dessa falha que é ao mesmo tempo nossa condição de grandeza
e miséria.
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Referências Bibliográficas
Blanchot, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio d’Água,1984.
_______. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
Bloom, Harold. Anjos caídos. Rio de janeiro: Objetiva, 2008.
Deleuze, Gilles. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.
Derrida, Jacques. Mal de Arquivo. Uma impressão Freudiana. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
Foucault, Michel. Estética: Literatura e pintura, música e cinema.
Coleção Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
Levy, Tatiana Salem. A experiência do Fora. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 2003.
Meireles, Cecília. Poesias Completas. V.7 I/Poemas II. Ed. Civilização
Brasileira, 1976.
Piglia, Ricardo. O último leitor. São Paulo: Cia. Das Letras, 2006.
Shulz, Bruno. Sanatório. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
Sobre a autora
Tania Mara Galli Fonseca é psicóloga, professora titular do Instituto de
Psicologia da UFRGS, professora dos programas de pós-graduação em
Psicologia Social e Institucional e de Informática Educativa/UFRGS,
coordenadora da equipe de pesquisa e extensão/UFRGS do Acervo da Oficina
de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre,
coordenadora do grupo de pesquisas e do diretório CNPQ Corpo, Arte e
Clínica (www.ufrgs.br/corpoarteclinica).
E-mail: [email protected]
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Ensaios / Dossiê
Ao som de uma cançãozinha Luiz sai de sua casa Andresa Ribeiro Thomazoni1
Resumo: Buscamos neste artigo percorrer algumas linhas de nossa pesquisa
cartográfica sobre vida e obra de Luiz Guides, sobre o rumor expressivo de
uma vida. Entendemos a Oficina de Criatividade, como um dispositivo
maquínico, que possibilitou a sustentação para a poiesis de si e de mundos;
assim sua pintura, tornou-se capaz de ultrapassar o caos-catástrofe e eclodir
em planos expressivos que germinam, o diagrama nasce apontando-nos os
agenciamentos que ali operam. Compreendemos então, a pintura como um
território existencial possível em meio à adversidade do Hospital Psiquiátrico,
vida e obra em imagem-tempo, que nos lançam a vertigem de um intempestivo,
que nos visibiliza a resistência e criação.
Palavras-chave: cartografia, diagrama, vida-obra
Ao som de uma cançãozinha Luiz Guides sai de sua casa, em direção
ao mundo, num encontro com as forças do futuro, forças cósmicas, onde se
improvisa, onde confunde-se com o próprio mundo.
Assim a pintura torna-se agenciamento, percorre a folha pendurada no
cavalete, mergulha nas tintas oferecidas, sussurra aos pincéis à disposição,
dança com as cores que se aderem a superfície, instaura a criação de um outro
tempo.
Num lugar cinza que se constitui o Hospital Psiquiátrico, Luiz se torna o
cinza que salta por cima de si mesmo, cinza colorante, no paradoxo da
1 Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional UFRGS. Integrante do grupo de pesquisa Corpo, Arte e Clínica.
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clausura, seu corpo agencia-se com a Oficina de forma a criar, instaurando um
outro território existencial em meio à loucura.
O diagrama pictórico mistura-se ao diagrama que nos diz sobre um
agenciamento. Nosso olhar-cartográfico é, então, capturado por camadas em
que esses diagramas reverberam.
Num primeiro plano, a pesquisa torna-se diagrama, nosso olhar-vibrátil
agencia-se com a vida e obra de Luiz; num segundo plano, a Oficina instaura
um diagrama, como um meio associado que sustenta a criação agencia-se com
os corpos do Hospital; num terceiro plano, Luiz constrói seu diagrama pictórico,
a possibilidade da pintura agencia-se com as forças que o atravessam,
resultando na criação, na instauração de sua arte.
Nossa escrita cartográfica, então, nos impele em direção à captura de um
campo de intensidades, onde também traçamos-desenhamos um diagrama,
que fale sobre nosso processo, nosso encontro, nosso próprio devir.
A pintura diagramática de Luiz agencia elementos dispersos, de um
extremo a outro faz pontes, como uma imagem-tempo, a massa plástica é
dobrada, redobrada, estirada. Instaura proposições não-lineares, não-
dialéticas, não-conclusivas.
A função diagramática possibilita um arranjo de relações, passagens,
encadeamento de séries, desterritorialização, experiência disjuntiva, de
metamorfoses recíprocas entre as matérias, possibilitando produção de devir.
A pintura compreende em si mesma um abismo, passa por um abismo,
instaura um abismo. Mas algo deve sair desse abismo para que o diagrama
possa nascer desse caos-germén.
Assim, a modulação das tintas sobre o papel, a sobreposição de traços, a
vibração do gesto é capaz de produzir uma trama visual, uma geometria do
sensível.
Luiz ultrapassa sua catástrofe, atravessa o deserto caótico da loucura e
instaura a criação de um novo mundo pela pintura.
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Figura 1: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm,
03/08/1994, nº cat. 001158. Acervo: Oficina de Criatividade
Figura 2: Luiz Guides. Guache s/ papel,
61x30cm, 03/08/1994, nº cat. 001159. Acervo: Oficina de Criatividade
De um ponto cinza banal, de linhas verticais e horizontais cujo
cruzamento denunciavam uma espécie de grade, de círculos convulsionantes,
de espirais ascendentes e descendentes, de números saltitantes, de todos
esses elementos o corpo opera um outro movimento, instaura um outro ritmo,
seu estilo.
Assim nasce o diagrama, um ultrapassamento dos blocos de linhas e
cores em direção aos traços e manchas. Uma entrega do corpo para a vibração
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que o atravessa, uma liberação da mão em relação ao olho, a liberdade para
se borrar, para se varrer, para esfregar a tela, ultrapassando regiões e zonas.
Figura 3: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, 06/12/1994, nº cat. 001177. Acervo: Oficina de Criatividade
A mão conduzirá essa germinação, somente uma mão desencadeada é
capaz de traçar o diagrama, rompendo com a subordinação à coordenadas
visuais. Trata-se então, de um caos-germen manual.
A mudança de medida do gesto, que ora é milimétrico, ora é cósmico,
amarrotamento da tela em outras dimensões, estiramento em outros sentidos.
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São traços assignificantes que vibram, traços de sensação. Marcas manuais
quase cegas a serviço se outras forças.
Figura 4: Luiz Guides. Guache s/ papel, 48x33cm, 08/11/1993, nº cat. 001338. Acervo: Oficina de Criatividade
Deleuze (2007), define o diagrama como o conjunto operatório dos
traços e manchas, das linhas e zonas. Assim, o diagrama se transforma em um
gérmen de ordem e ritmo abrindo a pintura a domínios sensíveis.
Cores pictóricas e linhas pictóricas, a dupla gama pictórica de cor e luz.
O ponto cinza que salta por cima de si mesmo, o cinza matriz da cor. O traço
com sua liberação, uma linha que não possui direção constante e que pode
mudar a cada ponto.
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Figura 5: Luiz Guides. Guache s/ papel, 48x33cm, 08/11/1993, nº cat. 001339. Acervo: Oficina de Criatividade
A pintura, assim, não busca nenhuma figuração, ao contrário atua na
direção de um desmanchamento de semelhanças, para que a presença surja.
Não se pinta na direção de um dado, ou um feito, mas de algo que espera a ser
produzido, de um devir.
Cada pintura torna-se, então, um fragmento de seu território existencial,
cujo fascínio e encanto nos captura, pois também queremos habitar esse
pedaço de terra. Não há totalidade possível na pintura, quando o artista quer
pintar o que não tem fim, a sua própria vida.
A pintura-traço de Luiz, cujo gesto motor-sensível materializa o tempo e
o silêncio que o rodeiam, pintura agenciamento que reúne fragmentos de vida
em suspensão, que lhes dá uma terra fértil em meio à infertilidade do hospício.
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Figura 6: Luiz Guides. Guache s/ papel, 62x30cm,
05/11/1995, nº cat. 001457. Acervo: Oficina de Criatividade
A expressividade mais forte de Luiz, instaura-se sobre a tinta guache.
Nela seu corpo se entrega a uma modulação da cor encantadora. Extrai de
uma matéria simples e barata como o guache, toda luz que ela encerra, por
intermédio da cor e pela cor. Mais que modelar, mais que moldar, Luiz
experiência a modulação da cor.
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Figura 7: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, s/d, nº cat. 001394. Acervo: Oficina de Criatividade
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Figura 8: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, s/d, nº cat. 001395. Acervo: Oficina de Criatividade
Com o surgimento do diagrama, sua pintura, então, continua a avançar,
sobre a folha em seu verso. Duplo movimento cuja imagem embaralha os olhos
que pousam sobre a superfície. Justaposição de manchas coloridas, de
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relevos, de planos, assim a cor é arrastada a pontos que culminam e a séries
que descendem.
Liberação da cor, de seus próprios aprisionamentos, ultrapassamento
em direção à potência da matéria expressiva, do guache sobre papel, do corpo
na clausura.
Figura 9: Luiz Guides.
Guache s/ papel, 62x30cm, 16/01/1995, nº cat. 001465.
Acervo: Oficina de Criatividade
Figura 10: Luiz Guides. Guache s/ papel, 47x32cm, 04/05/1995, nº cat.
001525. Acervo: Oficina de Criatividade
Figura 11: Luiz Guides.
Guache s/ papel, 62x30cm, 19/05/1995, nº cat. 001530. Acervo: Oficina de Criatividade
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Figura 13: detalhe em zoom de 94% da figura 12
Figura 12: Luiz Guides. Guache s/ papel, 65x47cm, s/d, nº cat. 001540. Acervo:
Oficina de Criatividade
Nesse detalhe podemos ver a precisão de Luiz em pintar todos
elementos que compõem a imagem. Há linhas de cor vermelha e cor azul para
traçar os círculos, as retas, e os pontos.
Por mais que a tinta escura esconda o trabalho de composição que está
por trás, em outras partes da tela podemos visualizar o detalhismo de seus
gestos, a sutileza dos traços, tal qual um mosaico.
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Figura 14: Luiz Guides. Guache s/ papel, 47x66cm, 20/03/1997.
Acervo: Oficina de Criatividade
Luiz revela-se como um arquiteto das cores, extraindo delas um ritmo
colorante.
A partir dos regimes das cores existentes, divididas em luminosidade
(claro/escuro) e pureza (saturado/ diluído), podemos pensar que jogo Luiz
instaura em suas pinturas.
Uma pintura que busca a luz, a cor clara para seus jogos de
transparências e veladuras e que, ao mesmo tempo. se gera de uma fusão
com outras cores. Movimentos de clarear e mesclar, muito mais que um
escurecer e purificar.
Assim podemos pensar o teatro de sua vida e obra no São Pedro, o
quanto a potência de vida que ele carrega em seu corpo é velada para certos
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olhos pautados num discurso da razão, o quanto seu corpo frágil e silencioso
mesclou-se à paisagem que o circunda, à clausura que lhe foi imposta.
Luiz é capaz de criar uma música inaudita para nossos olhos, música
colorida pela vertigem de tons claros e mesclados.
Figura 15: Luiz Guides. Guache s/ papel, 45x60cm, s/d. Acervo: Oficina de
Criatividade
Figura 16: Luiz Guides. Guache s/ papel, 52x63cm, 09/05/00. Acervo: Oficina de
Criatividade
Referências Bibliográficas DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 183p.
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Ensaios / Dossiê
Vidas do fora e a es Natália e o universo em uma casca cor-
de-abóbora Fábio Dal Molin
Este texto é dedicado aos intrépidos leitores desta revista que
experimentarão, pela primeira vez, a aventura de transpor as águas do tempo e
espaço entre a arte e a loucura no imenso e caudaloso rio do Hospício São
Pedro, tendo como generosos barqueiros os quatro artistas e suas Vidas do
Fora. Conta o grande físico John Osterman, o Dr. Manhattan, que seu pai era
um relojoeiro que largou a profissão quando Einstein formulou a teoria da
relatividade. Pois os acontecimentos de junho de 2010 nos convidarão a todos
a sair fora de nossas vidas e habitarmos os espaços intersticiais do tempo, da
arte e da insanidade.
Diz Paul Veyne que a história é contada pelo reverso de suas lacunas, e
a física quântica alerta que, entre os elétrons de um átomo há espaços
infinitamente vazios. Quando escrevemos, falamos ou contamos, aquilo que é
dito repousa em camadas e camadas de indizível. O que será contado aqui de
Natália, por mais registros e informações que se disponha, será sempre
incompleto.
Esta é a necessidade do corpo1 que escreve. Nesta história que será
contada, incorpórea e vazia da loucura, o quadro-negro é o colossal Hospital
Psiquiátrico São Pedro, os instrumentos são alguns fragmentos da vida e da
obra de uma das artistas mais antigas e marcantes: Natália. A fluidez será
nosso estilo, como a tinta que, misturada na palheta, escorre pelo movimento
do pincel, como uma flor, um arbusto, um papagaio.
Escrever sobre Natália é...
1 Diz o quarto postulado da ética, que trata da natureza e da origem da mente: “O corpo humano tem necessidade, para conservar-se, de muitos outros corpos, pelos quais ele é continuamente regenerado” (SPINOZA, 2007, p. 105). A esta relação entre os corpos, Spinoza chama de afecção.
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Natália Leite, habitando o planeta terra, girando em torno do sol em um
sistema solar que gira ao redor da galáxia que se afasta cada vez mais do
centro do universo, há vinte anos, ao misturar elementos quimicos faz com que
estes produzam cores vivas e intensas, dando formas a seres fantásticos,
animais, árvores, pessoas e casas...
A luz do sol é branca, e, ao passar por um prisma, se difunde e é
decomposta nas múltiplas cores que compõe o espectro luminoso. A essência
de cada cor é definida por seus atributos, ou freqüências luminosas. Se
estudarmos um pouco de mitologia comparada, especialmente a monstruosa
obra do Antropólogo Joseph Campbell “O poder do Mito”, saberemos que, na
maioria dos mitos (inclusive nos que originam o Deus cristão) a divindade é
representada pelo Sol. Não seria difícil entender o pensamento dos antigos,
afinal, quando o sol está presente, o mundo (que era praticamente tudo o que
se conhecia, ou seja, o Universo) aparece em todos os seus atributos e
essências, e à noite, tudo desaparece e fica obscuro. Desta forma, através
das lentes do intelecto, da atmosfera terrestre temos acesso aos distintos
atributos da luz divina. Tudo começou com o sol. Talvez o cineasta soviético
Andrei Tarkovski tenha colocado estas idéias em sua película mais famosa
“Solaris”, na qual os cientistas da terra criam, em algum canto isolado do nosso
sistema solar, uma massa rósea semelhante ao sol, capaz de converter
energia em matéria . No filme, os astronautas que trabalham no projeto
descobrem que a influência do que Tarkovski chama de campo solarístico
utiliza das suas memórias (intelecto) afetadas pelos anos de isolamento no
vácuo como molde. O encontro do intelecto com a imanência produz a
matéria.Natália, ao pintar e bordar, faz da luz o seu pensamento, suas
memórias, seus fluxos.
Em uma camiseta com uma estampa de uma de suas obras Natalícia
serigrafada, na radiante cor de abóbora, há uma árvore frondosa com a forma
da cauda de um pavão. A figura perturbadora surpreende e invade os sentidos
pela intensidade da cor e pela exuberância da forma. Cor de abóbora. Para
determinadas mentes pouco afetadas pela potência das cores, a abóbora tem a
mesma cor da laranja, e todos os marrons são iguais. Não para ela. Natália
pensa, e Natalia é um intelecto que diferencia as qualidades dos corpos,
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expressa os infinitos atributos dos que perturbam outros corpos, exprimindo a
substância divina em cores que ela mesma cria.
Natália também viaja na substância do tecido e, da mesma forma que
uma nave espacial viaja de uma estrela a outra da constelação da Ursa maior,
com linha e agulha une e sobrepõe imagens de uma perdida e bucólica
paisagem interiorana: a imagem de um porco, uma flor, um sol, uma chaleira,
uma casa, uma pequena igreja ou uma lua. Sua agulha dá potência de
movimento a uma linha que produz a forma. A arte de Natália bifurca a loucura
à maneira de como Foucault reinventou sua História de prisões, tortura e
saberes: na forma de espirais caóticas, acontecimentos e retratos, que
produzem um plano onde se inscrevem palavras de ordem, discursos,
diagramas de uma dança sem fim, embaralhada e fascinante. Como se, ao
produzir, todo um mundo de memórias lhe viesse à mente, preenchendo o
espaço com uma superfície povoada e colorida e tudo viesse, entre a agulha,
a linha, o buraco e o tecido, o pincel e a folha de papel, misturando as palavras
como pingos de tinta.
Há quinze anos, um estagiário de psicologia entrou pela primeira vez no
São Pedro, na Oficina de Criatividade. Em uma das paredes, estava pendurado
um pano de algodão bege e dali pululavam pequenos javalis em fila indiana
bordados com linha cor-de-laranja. Aliás, cor de abóbora, como sua criadora
mesma diz. Ela entra em cena: uma capa de chuva acaba de chegar em
passinhos curtos, e do cinza molhado brota um cabelo negro cortado com
franjinha, olhos negros levemente estrábicos, exageradamente pintados, como
o resto do rosto, que combina com o vestido florido. No pescoço há um colar,
que adorna uma espécie de abscesso semelhante ao que aprendemos, no
colégio, como sintoma de bócio endêmico. Natália.
Tanto tempo...
E o que é o tempo no Hospital Psiquiátrico São Pedro? Quando dizemos
que o HPSP foi fundado em 1874 e que em 1974 ele completou 100 anos, ou
que uma mulher chamada Natália Leite vive ali desde 1956, o que realmente
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queremos dizer, ou melhor, de que ciclos estamos falando, quando eles são
inaugurados ou quando eles terminam?
Natália ainda vive no HPSP. Seus pequenos olhos negros se
acostumaram com muros, tijolos, paredes, rebocos velhos e embolorados,
goteiras, torneiras pingando.... Mas estas coisas todas estão jogadas nos
cantos do hospital ou são destruídas pela ação entrópica do tempo. Entulhos e
quinquilharias, que observamos em portas entreabertas, continuam na
duradoura e sólida existência das coisas mortas, porém em tranquila
imobilidade. Natália continua viva, testemunhando a multiplicidade dos modos
de tratar a loucura, e ciclos de loucura, história, política, lei, ciência. Natália
cumpre o seu ciclo vital com uma sua colorida existência. Está internada há 54
anos, entre tristezas, paixões, encontros e alegrias e sabe-se lá o quê na
infinitude inimaginável da vida cotidiana.
Por vinte anos, no âmbito da Oficina de Criatividade, Natália cumpre seu
ciclo vital pinta e borda a cada dia. Sua produção já alcança cerca de quatro
mil obras. Torna-se, ao nosso olhar, portadora de uma vida que se sobrepõe à
decomposição. Diante dela, a linha de morte parece cair e, como para deixar
passar outras linhas compostas por terra diante da linha de fuga. Como uma
divindade hindu, produz a dança da vida; do intelecto de Natália brota a
matéria do Universo. Ela é vida que se autoproduz e expande. gera mais vida.
Dizem os prontuários que sua entrada no hospital foi em 1956, aos 13
anos, vinda de Santo Ângelo, cidade distante a quase 400 km de Porto Alegre,
nas antigas Missões. Teria vindo de uma família em conflito.
Natália fora internada em uma época em que o São Pedro atingira sua
máxima lotação, abrigando cerca de cinco mil internos. Eu soube de lendas de
estrangeiros clandestinos em navios que, por não se entender o que falavam,
eram internados no hospital, assim como toda sorte de enjeitados e rejeitados.
Natália, conforme alguns relatos, sofrera violência doméstica por parte
do pai e teria resistido em voltar para sua terra natal. Após tentativas de
trabalhar como doméstica, Natália retorna para sua cidade, onde sua situação
familiar torna a piorar, até que em 1959 volta ao hospital São Pedro para ficar.
Pelos minguados registros, teve algumas complicações relativas ao uso de
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medicação e chegou a apresentar alucinações visuais, teve que fazer uma
cirurgia no joelho. Pelo que tudo indica, perdeu o contato com a família. A casa
dos loucos é, por necessidade, a moradia de Natália2.
O grande Hospício, uma vez mais em sua história, serviu de porto
seguro, local de moradia, comida, linha de fuga.
2010
O estagiário, já evelhecido, visita novamente o hospício. Agora o espaço
é maior - onde anteriormente eram enfermarias e salas de cirurgias
abandonadas. Em sua época de estagiário, servia como esconderijos e mocós.
A própria reunião da qual participa faz parte de um novo espaço instituído, a da
catalogação das obras e criação de um museu. É tomado de uma alegria
canceriana saudosista ao vislumbrar logo abaixo de uma escada o retrato do
Sorriso. Natália estaria doente; a causa da doença seria o fato de ela ter
trocado de medicação com outra moradora, por esta ser de cor laranja... Não
contém o riso, pois ele vem da explosão elétrica de suas memórias.. isso é
típico da Natália, a primazia da estética. Lembra muito bem dela escolhendo as
cores das linhas e das tintas, com extremo rigor e apuro...
Apêndice e o texto desaparece
Estamos novamente no ano de 2010, e trezentos e poucos pessoas
habitam o HPSP. É quarta-feira, nove da manhã. Sentada o seu canto,
operando o incansável pincel como faz há vinte anos, está Natália, com cabelo
curto, mais gordinha e sem o caroço na garganta. É na minha garganta que
sinto o nó, que parece amarrar as pregas do tempo. Como Calvino amarra as
suas Cidades Invisíveis, no diálogo entre Kublai Khan e Marco Pólo:
Agora, desse passado real ou hipotético, ele será excluído;
não pode parar; deve prosseguir até uma outra cidade em que
outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez posse
possível futuro e que agora é presente de outra pessoa. Os
2 “O asilo construído pelo escrúpulo de Pinel não serviu para nada e não protegeu o mundo contemporâneo contra a grande maré da loucura. Ou melhor, serviu, serviu muito bem. Se libertou o louco da desumanidade de suas correntes, acorrentou ao louco um homem e sua verdade. Com isso, o homem tem acesso a si mesmo como ser verdadeiro, mas esse ser verdadeiro lhe é dado na forma de alienação” (Foucault, 2008)
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futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos
secos.
-Você viaja para reviver seu passado?-era a esta altura a
pergunta do Khan, que também poderia ser reformulada da
seguinte maneira - você viaja para reencontrar seu futuro?
E a resposta de Marco:
-Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante
reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não
teve e o que não terá”. (Calvino, 1994, p.19)
Hoje, Natália tem 67 anos. No seu prontuário consta que, lá pelos anos
90, desistiu de pedir pela família ou mesmo a esqueceu. O Hospital tornou-se
sua casa e tudo o que tem.
Agora, imaginem aquela menina de 13 anos, provavelmente com pouca
ou nenhuma instrução formal, exposta a espancamentos, brigas e bebedeiras,
obrigada a viajar por uma longa e tortuosa estrada até uma cidade
absolutamente desconhecida; conduzida pela polícia, que era quem fazia as
remoções naqueles dias. Chegando no grande hospício lotado, haveria que
passar por uma longa fila de espera, e por uma triagem que provavelmente não
era muito meticulosa. E lá estava alguém de jaleco branco, lhe fazendo
perguntas que talvez ela não entendesse, por estar nervosa, assustada,
angustiada; ou mesmo aliviada e esperançosa
E agora? Como ela se reterritorializou em sua arte e chegou aqui, no fim
do texto? Diagnóstico, internação e medicação, cura. Quem a teria contratado
como doméstica? E por que teria sido demitida? O que suas fugazes patroas
teriam imaginado daquela louca que saiu do hospício? Conseguiria ela limpar
uma casa impregnada de medicamentos, saudades, tristeza e abandono?
Como Natália voltou para Santo Ângelo, quem a buscou? Como e onde estava
sua família, seu pai, que agora não recebiam mais a filha Natália, e sim, a
louca que fugiu de casa e foi parar no hospício. Natália se desterritorializou
enquanto filha problemática e se reterritorializou na figura de louca. Quem é
Natália?
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Os antigos pacientes estão adoecendo, definhando e morrendo. E o
estagiário Fábio desapareceu, assim como todas as pessoas que estavam
vivas há 300 anos morreram e as que vivem hoje estarão mortas daqui a 200
anos. Os budistas chamam isso de temporalidade. Neste momento, enquanto
não morremos, nas mãos tenazes e empoeiradas de pesquisadores
cartógrafos, alguns escrevem também nesta revista, o museu que está
nascendo guarda o paradoxo de, ao invés de trazer o passado, o reencontra e
reterritorializa. Natália vislumbra uma vez mais casas, papagaios, árvores,
florestas e igrejas.
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Referências Bibliográficas
Bauman, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999
Calvino, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1994
Foucault, Michel. A história da Loucura na idade clássica. São Paulo, Perspectiva, 2008.
Foucault, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro, Forense universitária, 2008
Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. O que é a filosofia. Rio de janeiro, Ed 34, 1992.
Godoy, Jacintho. Psiquiatria no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1955. Mariotti, Humberto. O conhecimento do conhecimento: a filosofia de
Baruch de Espinosa e o pensamento complexo. Disponível em www.geocities.com/pluriversu.
Spinoza, Benedictus de. Ética. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007.
Sobre o autor
Psicólogo, mestre em Psicologia Social, doutor em Sociologia e pós-
doutorado em Educação (UFRGS). Integrante do grupo Corpo, Arte, Clínica.
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Ensaios / Dossiê
uma Vida em Acervo: experiência e escrita
Leonardo Martins Costa Garavelo
.Breve escrita no suspiro do vento
Sou livre
para o silêncio das formas
e das cores.1
Estranho minha mão frente à folha branca como o aperto no peito do
viajante no instante da partida. Toco a folha e fecho os olhos ouvindo o som de
chuva nas telhas cerâmicas de estilo francês – na escuridão brilhante de
minhas pálpebras, pontos de luz, vultos e memórias de mundo vão se
agrupando transformando-se numa atmosfera marcada pela coexistência de
tempos e instantes. Um estado de sobreposição de fluxos onde cada molécula
de ar gera uma cor diferente produzindo uma espécie de realidade etérea. Sem
compreender ainda, me vejo parado frente à uma estação de trem
abandonada, estou na margem dos trilhos e atrás de mim um prédio em ruínas.
Transfigura-se a imagem e agora estou dentro de um olhar para o horizonte.
Vê-se um lago cinza metálico espelhando um céu igualmente cinza que
prenuncia tempestade. Algum trem passará? Existem embarcações por estas
bandas? Ainda sem nada entender vejo meu corpo se dissolver num
emaranhado de cor e luz – Abro os olhos e me atiro à escrita porvir num salto.
Caio estatelado, morto, perdido. Lentamente um pequeno bando vem
chegando e me recolhe. Sou colocado num barco por um povo estranho: um
me diz com sua voz rouca que chegara de uma longa hibernação com cheiro
de pedra e seus olhos são da cor da terra. Outro só se faz sentir quando coloco
o ouvido na superfície da madeira, sua voz é mínima e sua boca é muito
pequena, além do mais está ocupada moendo a madeira lentamente. Com o
ouvido colado no toco antigo que dá forma ao barco, ouço o som de um corpo
1 Manoel de Barros. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Record: RJ, 2001. p.55.
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se arrastando entre madeiras. É preciso orelhas pequenas e olhos atentos aos
tênues detalhes. No leme, um homem vestindo uma camiseta azul surrada
expressa no rosto a marca do sol e do vento, tem os cabelos desgrenhados.
Minha respiração conduz estes encontros e suspiramos esta escrita no sentido
do vento...
..Traçar um plano
Atento a não deixar o possível leitor confuso e desavisado, traçarei
abaixo algumas linhas visíveis que atravessam o texto, bem como, abordarei
levemente um pouco de seu contexto. O breve escrito que se inicia deseja
conduzir o leitor por um ensaio experimental que flerta com uma escrita na
espreita daquilo que não se vê. Uma viagem sem lógica, verdade, moral ou
juízo. Trata-se nada mais nada menos de uma mísera produção textual como
afirmação de uma vontade. Um exercício entre os descaminhos da escrita
tendo como horizonte um desejo que sopra no sentido da produção de uma
narrativa que envolva a experiência tal como foi vivida e a experiência de
escrevê-la, compondo um texto como passagem, uma paisagem ao vento.
Efetuando uma operação sensível do pensamento a narrativa torna-se a
própria experiência. Escrever tateando, suspendendo a avidez. Experimentar ir
perambulando, de posse de um instinto réptil que vá sulcando o pensamento,
enfeitiçando-o com seu modo coleante de existir2. O pobre narrador reconhece
seus limites, sabe que a experiência da escrita não é fácil, tem algo de ilusório
e impossível. Sempre que se vai tocar o instante este já não é mais. O narrador
conjuga os verbos em primeira pessoa, porém, de forma alguma está se
referindo a um ‘eu’ pessoal e individual. O narrador é múltiplo, composição de
vozes, vidas, e ações coletivas. Ao narrar, rouba frases alheias, cochichos
escutados ao pé do ouvido, conversas e leituras. Narrador-ladrão, narrador-
leitor, narrador-viajante, narrador-multidão. O que o faz escrever é um profundo
desejo de escrita, uma vontade deliberada de se confrontar com o novo e o
inesperado. O desejo de escrever é o prazer, o sentimento de alegria, júbilo, de
satisfação que me dá a leitura de certos textos, escritos por outros (...) para 2 Rosane Preciosa. Rumores Discretos da Subjetividade: sujeito e escritura em processo. Sulina: RS. 2010. p.25.
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passar do prazer de ler ao desejo de escrever, é necessário a intervenção de
um diferencial de intensidades (...) a alegria produtora de escrita é uma
jubilação, um êxtase, uma mutação, um abalo, uma conversão 3.
Como um meio de manter a atenção nos trilhos de um pensamento
possível, traço quatro movimentos no texto: breve escrita no suspiro do vento –
refere-se ao plano do insano na escrita, algo como um transe que produz, de
maneira metafórica, os elementos e sentidos do texto; devirar ossos –
problematiza a escrita de uma vida, enfocando sua concepção ética-estética-
política; impregnações em tempo e espaço – distende a escrita ao
tempo/espaço do Acervo, da Oficina e do hospício; e por fim, incidentes onde a
experiência é levar a escrita ao limiar do instante. Cada ponto está costurado
por uma linha tênue que tem em comum a pesquisa no Acervo da Oficina de
Criatividade no Hospital Psiquiátrico São Pedro4. (Quando escrevo este nome,
percebo que um bloco pesado cai no corpo do texto, um peso histórico e
surpreendentemente atual.) Cada sopro da experiência aqui narrada tem como
dispositivo alguma impressão, vivência, devaneio, pensamento, afecto ou
combate ocorrido entre as fronteiras sutis do hospital psiquiátrico. Entende-se
por combate uma poderosa vitalidade não-orgânica que completa a força com
a força e enriquece aquilo que se apossa (...) somando-se a ela num devir.5
A pele tece os sentidos entre corpo e mundo. Batucadas no peito vibram
vontades de viajar. A viagem aqui é uma imersão numa breve experiência com
a escrita e leitura. No começo, bem antes de todo gesto, de toda iniciativa e de
toda vontade deliberada de viajar, o corpo trabalha, à maneira dos metais, sob
a ação do sol6. Os olhos atentos ao detalhe, ao mísero, à poeira. As mãos
recolhem fragmentos, trapos que resistem alojados nos cantos. O fragmento
recolhe com simpatia nossas ninharias, falhas, contradições, disparates. Enfim,
tudo que de residual a vida emana.7 Na composição de fragmentos ganhamos
3 Roland Barthes. A Preparação do Romance II: a obra como vontade. Martins Fontes: SP, 2005. p.11. 4 Integra o projeto A Potência Clínica das Memórias da Loucura com orientação da Profa. Dra. Tania Mara Galli Fonseca, 2009. PPGPSI – UFRGS. 5 Gilles Deleuze. Para acabar com o juízo de Deus. Em: Crítica e Clínica. Editora 34: SP, 1997. p.150. 6 Michel Onfray. Teoria da Viagem: poéticas da geografia. 2009. p.11. 7 Rosane Preciosa. Rumores Discretos da Subjetividade: sujeito e escritura em processo. Sulina: RS. 2010. p.24.
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fôlego para expressar ressonâncias que tocam a borda do que devém no
instante. Uma narrativa que suspira nos entretempos de uma vida, nas curvas
de um caminho estrangeiro cujos percursos inesperados provocam uma
viagem louca. Diz Onfray que somente a escrita circunscreve os cinco sentidos,
e mais. O trajeto conduz das coisas às palavras, da vida ao texto, da viagem ao
verbo, de si a si8. Como narrar uma experiência bem como ela acontece?
Como folhas que caem, as palavras vão compondo o texto. Com o ajustamento
do passo no ritmo dos encontros, do acaso emerge um espaço, um plano de
composição possível onde podemos tecer um corpo: uma escrita entre
incidências de Vida e Morte.
...Devirar Ossos
A Morte é a única conselheira
sábia que possuímos. 9
Experimente tocar suas mãos na terra. A palma da mão transmite a
respiração do planeta até as zonas infinitesimais das células. Acessa, assim,
memórias ancestrais que se misturam às camadas de pedra líquida, rochas,
minerais do interior do globo terrestre. Palma da mão entre poros de terra e
húmus: cheiro de fertilidade. O que há de mais fértil do que a Terra, o grande
ventre da Vida. Com as mãos na terra, dedico esta escrita à uma pequena
ação micropolítica: escrever no encontro com uma vida infame, vidas ínfimas
que se tornaram cinzas nas poucas frases que as abateram10. Algo como dar
voz a uma voz apagada, irmã da miséria e do pó. Com isso, investigar a
insanidade para compreender a sanidade, para compreender as relações de
8 Michel Onfray. Teoria da Viagem: poéticas da geografia. 2009. p.100. 9 Carlos Castañeda. Viagem a Ixtlan. Record: RJ. 1997. p. 53. 10 Michel Foucault. A vida dos homens infames. Em: Ditos e Escritos IV. Ed. Forense Universitária: RJ, 2001 p.204.
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poder, talvez devêssemos investigar as formas de resistência e as tentativas de
dissociar as relações.11 Investigar os registros deixados por uma vida, suspeitar
seus possíveis e compor uma escrita que afete o leitor ao ponto de fazê-lo
pensar sobre a condição que o louco vive. Revirar ossos, no sentido de mexer
nas entranhas dessas histórias praticamente esquecidas e jogá-las no plano
dos sentidos do leitor. O osso seria a matéria que resiste à decomposição, que
carrega de volta para o interior da terra infinitas memórias impessoais somadas
a um pequeno punhado de novas experiências vividas por aquela vida contida
no osso que um dia habitou uma carne e seus sentidos. Poderia o texto ser
a terra nas mãos do leitor? O que pode o narrador ao revirar os ossos? Quem
ele pensa que é? O que devém dessa experiência?
Percorrer os rastros deixados por uma vida não é uma experiência fácil e
simples, mais complicado fica quando os caminhos percorridos pelo
pesquisador conduzem à indizível presença da morte. Respiro fundo, inalando
o divino que está entre a vida e a morte, bem ali onde vida e morte estão
juntas, se entrelaçando como num acasalamento de serpentes. A serpente que
não pode mudar de pele perece. Assim também os espíritos aos quais se
impede que mudem de opinião; eles deixam de ser espírito12. Respirando
fundo, inalo desconhecidas vidas que impregnadas nas paredes através dos
tempos ecoam murmúrios, ecos restos de expressão, coagulações de mundos,
cismas, dores e histórias. Medito mansamente desde um corpo intuitivo,
ouvindo pequenos rumores e rasas notícias que praticamente não foram ditas.
Revirar os ossos nas terras desconhecidas de uma vida marcada com a
insígnia da loucura com a intenção de ouvir o que não foi dito ou repetir o
mesmo mantra sempre pronunciado, porém compô-lo diferente. Atentar às
pistas, acolher os rastros e vestígios. Encorajar a dúvida e incerteza. Em quais
territórios estão enterrados estes ossos? Que espécie de cemitério se construiu
para a loucura ao longo dos séculos?
(Devo esclarecer: primeiro – escrevo no sentido da vida e para a vida;
segundo - não há transcendência; terceiro – isto não é uma psicografia; quarto
11 Michel Foucault. O Sujeito e o Poder. Em: Hubert Dreyfus, Paul Rabinow. Michel Foucault: uma trajetória para além do estruturalismo e da hermenêutica. Forense Universitária: RJ, 1995. p. 234. 12 Friedrich Nietzsche. Aurora. Companhia das Letras: SP, 2004. p. 283.
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– o acervo não é túmulo, nem cemitério, há sim, intensidades da morte
imanentes a vida; quinto - ...).
Um pequeno poema em prosa de Charles Baudelaire intitulado O Tiro e
o Cemitério13, conta história de um homem que atraído por um singular letreiro:
‘à vista do cemitério bar’, deixa-se levar pela fantasia, após tomar uma cerveja
e fumar um charuto, e entra no cemitério onde um imenso rumor de vida enchia
o ar – a vida dos infinitamente pequenos – era cortado por intervalos de tiros de
um estande vizinho. O homem, que desfrutava um belo sol e um verde jardim
numa atmosfera de ardentes perfume de morte, ouviu um cochichar sob a
sepultura que estava sentado: ‘malditos sejam seu alvos e suas carabinas,
turbulentos seres vivos, que se preocupam tão pouco com os defuntos e seu
divino repouso. Malditas sejam suas ambições, malditos seus cálculos, mortais
impacientes que vem estudar a arte de matar perto do santuário da Morte! Se
vocês soubessem quanto tudo é nada exceto a Morte, vocês não cansariam
tanto, laboriosos viventes (...). Tal poema, compõe com o parágrafo acima, a
medida que nos leva a pensar sobre o quanto fazer viver uma vida através de
escritos e pesquisas pode ser um barulho ruim para quem já faleceu, ou se
encontra falecido, embora vivo. Digo isso, pois me questiono sobre os limites
entre falar uma vida e estabelecer discursos de verdade sobre ela. Escrever
sussurrando possíveis e não gritando verdades. Aqui, temos uma linha
importante neste pensamento: o que se escreve é apenas uma versão sobre
determinada vida, apenas um jeito de contar e compor os fatos inventivos e
reais. Pode-se dizer que praticamente não importa distinguir o real e o ficcional,
assim como não se procura polarizar o que é vida e o que é morte. Diferente de
desejar compor uma biografia, cujos padrões de verdade, cronologia e história
são fixos, a vertente intensiva de uma escrita com uma vida conflui para o
conceito de biografema14 de Roland Barthes, cujo campo de possibilidades
narrativas provoca justamente a escrita de uma vida a partir de suas
imprecisões, seus fragmentos, seus detalhes aparentemente insignificantes,
suas intensidades e afectos. Como narrar expressões de morte sempre
13 Charles Baudelaire. Pequenos Poemas em Prosa. Record: RJ, 2006. p. 249. 14 Roland Barthes. O Rumor da Língua. Martins Fontes: SP, 2004; Roland Barthes por Roland Barthes. Cultirx: SP, 1977; Sade, Fourier, Loyola. Martins Fontes: SP, 2005.
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afirmando a vida? O que pode a escrita de uma vida? O biografema torna-se
um importante dispositivo nesse exercício da vontade, de escrita e
pensamento. Pensar como descobrir, inventar e compor novas possibilidades
de vida. Um pensamento que vá até o limite daquilo que à vida pode. Ao invés
de um conhecimento que se opõe a vida, um pensamento que afirmaria a vida.
A vida seria a força ativa do pensamento e o pensamento o poder afirmativo da
vida15.
Antonin Artaud, Friedrich Nietzsche, Charles Baudelaire, Gilles Deleuze,
Michel Foucault, Maurice Blanchot e Roland Barthes são alguns escritores e
pensadores que povoam esta intenção de compor escritos de uma Vida. A
presença dos autores citados acima, assim como outros bandos de parceiros
de pesquisa, amigos e professores, criam, aquilo que podemos chamar de uma
inventada amizade estelar16. Uma companhia que ondula feito maré,
possibilitando o estranhamento entre amigos, que permite viagens solitárias e
ao mesmo tempo, afirma uma amizade por sua potência afectiva, pelas forças
que se tensionam com a presença do outro, pela intensidade produtiva desses
estranhamentos. Os afectos efetuam a potência da expressão, a potência é o
que está efetuado e são os afectos que a efetuam. Os afectos podem ser
sentimentos, pensamentos ou percepções, também os conceitos podem
efetuar a potencia de um modo de ser na escrita17.
Do encontro com uma vida e seus modos de dizê-la, cria-se uma
atmosfera semelhante a uma navegação em águas de nevoeiro. Vidas que se
deixam expressar, mortes que se fazem expressar criam uma neblina espessa,
uma névoa baixa que seguidamente faz o navegador se perder. Talvez, se
perder não seja assim tão ruim como se diz. O sábio compositor carioca
Paulinho da Viola já nos ensinava: faça como o velho marinheiro, que durante o
nevoeiro leva o barco devagar18.
15 Gilles Deleuze. Nietzsche e a Filosofia. Rés: Portugal. S/d. p.152. 16 Friedrich, Nietzsche. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.189. 17 Gilles Deleuze. La distinción ética de los existentes: potencia e afecto. En Medio de Spinoza. Cactus: Buenos Aires, 2008. p. 94-95. 18 Paulinho da Viola. Argumento. Em: Nova História da Música Popular Brasileira, 1976.
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Encontros com uma vida: traço, cor e música na obra de Frontino
Vieira
Um canto de vida e morte,
cantado por potências imaginárias,
indicando a direção de um lugar que,
uma vez atingido, só poderá
desaparecer. Lugar sempre por vir no
espaço infinito de uma navegação ao
acaso.19
22/04/2009
A tela branca no meio da sala impõe um poder estranho ao corpo. Reluz
uma soberana brancura fria que contrasta com a enorme variedade de tons
desgastados nas paredes, chão, portas e janelas. O retângulo branco sobre o
cavalete solitário convoca o corpo ao traço e à cor, enquanto um rumor de
ruína produz uma mansa textura entre ele, a tela e a sala. O afecto, que
parece ter o dom de absorver o instante, toca uma espécie de silêncio
povoado que aumenta na justa medida em que o corpo encontra o espaço e
se deixa absorver por ele. Sem se dar conta, o corpo traz um bando consigo e
esta pequena multidão invisível entrelaça-se com o silêncio povoado pintando
uma conversa doida, sem início, destino, meta ou moral. Embriagados de
desconhecido, uma música atravessa o ar girando o caleidoscópico
movimento dos encontros. Agora, além de uma tela branca e fria, de um
corpo em pleno tornar-se e de um espaço cujo rumor de suas ruínas contorna
os espíritos, há uma música tecendo núpcias entre as sombras e as cores,
entre os silêncios e rumores. A conversa imaginária dissolve-se se tornando
uma dança. Até então o corpo mal respirava absorvido pelo instante, porém,
19 Maria Flávia Drummond Dantas. O Canto das Sereias. Em : Maurice Blanchot. Lúcia Castello Branco; Márcio Venício Barbosa e Sérgio Antônio Silva (Orgs). Annablume: SP, 2004. p.25.
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com a entrada da música vinda sabe-se lá donde, o corpo volta a respirar
compassado e no segundo longo suspiro percebe que se encontra justamente
em frente à tela crua. O poder de estranhamento repete-se diferente, não
passa pelo corpo a atração quase magnética que a tela gerava quando da
entrada na sala. Outras forças entram em jogo. Para espanto do corpo além
da tela limpa há, no espaço, outra pintura rica em cores e traços. O corpo
ouve a dança pintada na tela colorida, ela é puro movimento, ela é. A luz do
raio de sol que corta a sala é entrepassada pelo movimento de outras
sombras e uma voz baixa, grossa e pigarreante vinda de um senhor bem
magro e de cabelos brancos diz: - a música cor traça.
Impregnados de sutilezas nossa conversa é puro Sim. A música que
toca o ar entrelaçando-se com os espíritos é verde. Toda cor que tinge o
espaço é viva e baila com a morte que insiste em presentificar-se. Estranho
movimento que torna nossa voz xucra e inconstante. Notas de um primeiro
encontro pulsadas pelo ruído de uma agulha tocando o disco. Como se
pudéssemos ouvir o som dos pincéis que de longe nos observa, a solidão
dissolve-se no ritmo da cor no entre tempo de vozes vermelhas.
Infinitos corpos que miram o agora à espreita de um nome ou rosto que
não chega. Por que cismamos em apresentações? Que cisma por um rosto é
essa que nos aflige? Se tivéssemos uma dose de cachaça brindaríamos e
permaneceríamos em silêncio. Mas aqui não podemos beber, então
silenciamos na embriaguez da cor, do traço, da palavra e do encontro.
Estonteados não percebemos a chegada do azul nem do amarelo. Talvez se o
víssemos não brindaríamos o acaso. Um ruído infinito rompe qualquer plano, a
agulha tocando o fim do LP rasga os tempos. Por que o sol baixou tão rápido?
Para onde foram as sombras que aqui bailavam?
27/05/2010
Percorrer os traços da obra de Frontino tem sido uma experiência
intensa e desafiadora. Li há pouco, os registros falando sobre ele nos diário da
oficina de criatividade, onde encontrei datas e depoimentos sobre seu
cotidiano. Também reli textos que abordam sopros de sua vida e obra como
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por exemplo, o belo texto de Vera Lúcia Inácio20 onde descobri que Frontino
nasceu, assim como eu, numa cidade à margem de um rio, o Jacuí; ou os
escritos de Paola Zordan21 onde encontrei uma afirmação e inspiração para um
modo de escrita; e ainda, as palavras de Bárbara Neubarth22 faces do cotidiano
de Frontino. Também revi suas pinturas, desenhos e escrita. Enfim, tenho
mergulhado em rios de cores e dançado num baile traços.
11/02/1914
Como se vivia na cidade de São Jerônimo em 1914, ano de seu
nascimento?
O que faz Frontino ser internado no hospício em 1938?
Como passam os 55 anos de internação?
20 Vera Lúcia Inácio de Sousa. Vida Incidental. Em: FONSECA, Tania Galli; COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da UFRGS: RS, 2010. 21 Paola Zordan. Notas sobre uma vida frontal. Catálogo da exposição “Eu sou Você”. No prelo. 22 Bárbara Neubarth. Entre vassouras e pincéis. Em: FONSECA, Tania Galli; COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da UFRGS: RS, 2010.
s/t, 15/10/1991 s/t, 05/11/1990 s/t, 03/01/1992 Frontino Vieira dos Santos
A obra em Acervo de Frontino Vieira dos Santos, conta com 784 pinturas e desenhos já catalogados. Tais obras foram produzidas entre agosto de 1990 e agosto de 1993, data de seu falecimento.
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....Impregnações em tempo e espaço
Exatamente, e, de fato,não se entra
jamais pela mesma porta.23
Suspirei profundamente antes de girar o trinco da porta que me levaria
ao espaço esquecido da loucura. Munido de uma intuição ousada e um intenso
sentido de transvaloração, encaro minha insanidade como quem monta num
cavalo xucro ou encara um tigre siberiano. Naquele instante, o suspiro era a
chave quase silenciosa para entrar no corredor flutuante da existência, onde
23 Paul Valéry. Eupalinos ou O Arquiteto. Editora 34: RJ, 1996. p.77
Pavilhão 4
s/t, 01/11/1990 s/t, 07/11/1990 s/t, 08/11/1990 Frontino Vieira dos Santos
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corpo e espírito, morte e vida se entrelaçam incessantemente. Corpo-espírito.
Morte-vida. Sem separação. O suspiro gerou uma breve suspensão no tempo
marcando um entre-tempo característico do acontecimento: pausa de dois
compassos que antecedeu a entrada no universo das ruínas intensivas, antigo
templo onde confinava-se loucos. O silêncio oceânico do prédio histórico foi
rasgado pelo barulho agudo da porta. Logo no primeiro saguão meu corpo foi
inundado por um cheiro de morte viva, e, balançando como uma maré de lua
nova, minha respiração tornou-se lenta e profunda. Diferente da visão comum
de morte, sempre associada a algo sombrio, fúnebre, macabro e assustador, o
odor que arrepiava meu pêlo e me fazia pensar sussurrado tinha uma vibração
próxima da luz e da cor. As ruínas recebiam os raios de sol como que livrando
a morte de um peso que não necessariamente ela carrega. Depois, quando
consegui formular pensamentos, entendi que o peso e o horror que se atribui à
morte são mais uma faceta humana do que algo transcendente. Tem mais cara
de caveira com uma foice e manto preto o ser humano que resolve tirar de
circulação o indivíduo dito louco colocando-o numa sala fechada do que uma
idéia de morte propriamente dita.
Sempre atento a ativar a vida onde quer que ela esteja, ingressei nas
ruínas de uma memória que se quer esquecer. Tolice, pois não há como
esquecer a loucura que está sempre em nós, em cada um, múltipla e singular.
Pois foi na tentativa de se fazer esquecer a loucura que se fundaram os
hospícios e hospitais psiquiátricos. Posso então, começar a colher no ar
algumas pistas daquele cheiro de morte viva que ocupava o espaço. Quando
se tenta conter a vastidão infinita do corpo-espírito sob a imposição da clausura
o que fica nas paredes é a marca do sofrimento. A vastidão do espírito, quando
enclausurada, provoca no corpo a marca da dor. No intuito de manter-se livre,
o corpo-espírito não cessa de investir contra as paredes que o enclausura,
movimento que marca também no espaço as notas do sofrimento. O que sentia
era a reverberação de anos e anos de dor que ficaram incrustados nas
paredes, solo e teto. Não há tinta que apague, não há reforma que transforme.
Suspirei outra vez tentando encontrar um mínimo de superfície neste rio
de intensidades loucas e respirar alguma condição ou palavra que permita criar
algum território possível para expressar algum pensamento. Nunca é tranqüilo
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falar da nossa loucura. Do desespero de desejar matar a sede com água sendo
que no único bebedor possível só há pó e teia de aranha. Uma escada que
leva a lugar nenhum e uma porta que liga dois vazios. Imagine um corpo que
rasteja, arrasta, berra. Some a isso um organismo encharcado de químicos
variados que não trazem viagem, só torpor e apatia culminando num total
impedimento da expressão e voz.
O que você sente?
Textura e Vazio
O exercício de composição destes escritos faz habitar algo que podemos
chamar de vazio povoado de invisibilidades. Pouco ou quase nada consigo
expressar deste tempo dissolvido no ar. O que se expressa são faíscas
resultantes de encontros de corpo, espaço e tempo. Tento apalpar uma
imprecisão, isso é um risco tremendo. O que se faz expressar é uma sensação
de vazio repleto, algo que anuncia um sopro antes do é. Como escrever uma
experiência que ainda não é? Um corpo que se torna no encontro com
qualquer possível, um espectro andante, um modo de ser que de tão lento
torna-se quase imóvel como uma mesa de madeira encostada num canto de
uma sala vazia.. Na margem entre um vazio transbordante e um estado de
coisa, coexistem diferentes tempos e velocidades. O decanto do tempo
incidindo sobre o espaço gera uma textura seca e craquelante, espécie de
resíduo que produz uma forma para a pele...
Gilles Deleuze, ao comentar o livro sobre o poeta Raymond Roussel, de
Michel Foucault, nos faz pensar sobre o vazio que se abre no interior de uma
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palavra e que a repetição de uma palavra deixa escancarada a diferença de
seus sentidos. Podemos pensar que entre cada palavra permanece um vazio?
É isso que chamamos de entrelinhas da escrita? Um modo de pesquisar e
escrever entre os planos da loucura, talvez seja isso: percorrer as entrelinhas
do tempo e do espaço. Repetir as palavras, repetir os trajetos, provocar
diferenças, permitir um vazio entre as palavras. O enlace da diferença com a
repetição contém também a vida, a morte e a loucura. Pois parece que o vazio
interior às coisas e às palavras é um signo de morte e aquilo que preenche é
presença da loucura.24 Uma experiência de escrita implicada com
espaço/tempo do São Pedro, é, talvez, uma imersão entre vazios de
esquecimento, vazios de morte e vazios de existência: como se as coisas se
sucedessem num vazio, onde são suspensas entre um suporte esquecido e
uma borda que ainda não está à vista. A cada instante, as palavras nascem
numa ausência de ser, surgindo uma junto às outras, sós, (...,) ou agrupadas
segundo aproximações incongruentes, semelhanças ilusórias (...)25
.....Incidentes26
A imaginação da rosa
Imagine uma rosa exuberante, cujas grandes pétalas de coloração
radicalmente rosa lembram um tecido de veludo escorrido em uma onda
espiralada sem fim ou começo. O veludo da pétala disfarça o bruto e
aconchega o vazio. As pétalas ativas em sua formação de língua ou onda
estendem um duplo convite para quem as olha: afirmação de potência e
ressentimento, admiração e constrangimento. A rosa mais linda do mundo, a
rosa viva, a rosa cantante, a rosa das rosas. Um ramo verde e espinhento com
um vestido de cetim ondulado e solto. Uma rosa imponente e viva, caprichosa
e exagerada de tão bela. Pétalas como lábios carnudos na boca de uma
mulher vaidosa. Essa seria uma história romântica se não fosse trágica. A flor
pomposa ousou invadir um território opaco e sombrio com seu susto colorido e
24 Gilles Deleuze. Raymond Roussel ou o horror do vazio. A Ilha Deserta: e outros textos. Iluminuras:SP, 2006. p. 100. 25Michel Foucault. Raymond Roussel. Forense Universitária: RJ, 1999. p.121. 26 Inspirado em: Roland Barthes. Incidentes. Martins Fontes: SP, 2004.
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predestinadamente contrastante. A flor fora colocada na pia de porcelana num
vaso formado por uma garrafa de plástico cortada ao meio. Imagine essa rosa,
brilhante e festiva, uma rainha entre as flores começando a ruborizar sua pele
se sentindo deslocada. Com a despedida do último raio de sol, a cor viva da
rosa começa a mergulhar no negrume informe da noite. A escuridão e a brisa
noturna despertam na flor uma magia só sentida por aqueles que ousam
perder-se de si mesmos, a flor deslocada começa a exalar seu mais profundo
perfume. Cada espírito que habita o local procura o encanto do seu cheiro
como uma ternura esquecida, como um afago para sua mísera condição de
invisibilidade vagante. O invisível perfume da flor, por ser tão cheio de vida,
atrai seu próprio fim. Naquele território de desrazão onde a flor fora colocada,
está aplicada a mais crua selvageria natural das relações. As formigas
aprenderam a rastrear os mais tênues aromas da terra e também elas, seres
que estão habituadas a viver e se alimentar no campo do rejeito, do dejeto
indesejado, sentiram o perfume da rosa. No tempo de uma noite, as grandes
pétalas da rosa imaginada foram completamente recortadas pelas garras das
formicideas.
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Lagartixa seca na gaveta
Um gato e a suspensão do instante
Linhas de som vindas de diferentes direções
constroem uma direção imprecisa no corredor vazio.
Caminho ao sabor do acaso, sem destino, com a
mente desocupada. O som dos pés tocando o chão e
os barulhos do vento mexendo as portas, rangendo
dobraduras e afinando janelas marca o compasso de
uma existência. Estou sozinho no segundo andar do
quarto pavilhão. Pressinto outra vida diferente da
minha. A abertura de uma porta à minha esquerda
propõe um encontro imprevisto: um gato imóvel na
janela. A materialização de uma vida marcou uma
ruptura no tempo, senti meus pés fora do chão e por
um instante experimentei uma suspensão do corpo. É
o gato que me olha com instinto de felino na espreita
do ocaso. Eu, na espreita dos meus pensamentos.
Você nunca sabe onde se encontram as chaves. Alguém sempre indica seu lugar. Alguém disse: - a chave está na gaveta da
escrivaninha do corredor! Ali estava o corpo seco de uma lagartixa, um
parafuso solto e uma chave de bronze.
Entre mofos
O mofo está entre. Sempre e em tudo.
Entre a cerâmica e o esmalte do azulejo, os minúsculos seres vivos, amigos
íntimos do ar e amantes da umidade, construíram seus mapas.
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....... Referências
Bibliográficas:
BARROS, Manoel de. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Record: RJ,
2001.
BARTHES, Roland. A Preparação do Romance II: a obra como vontade.
Martins Fontes: SP, 2005.
__________. Incidentes. Martins Fontes: SP, 2004.
__________. O Rumor da Língua. Martins Fontes: SP, 2004.
__________. Roland Barthes por Roland Barthes. Cultirx: SP, 1977.
__________. Sade, Fourier, Loyola. Martins Fontes: SP, 2005.
BAUDELAIRE, Charles. Pequenos Poemas em Prosa. Record: RJ, 2006.
CASTAÑEDA, Carlos. Viagem a Ixtlan. Record: RJ. 1997.
DANTAS, Maria Flávia Drummond. O Canto das Sereias. Em: Maurice
Blanchot. Lúcia Castello Branco; Márcio Venício Barbosa e Sérgio Antônio
Silva (Orgs). Annablume: SP, 2004.
DELEUZE, Gilles. Raymond Roussel ou o horror do vazio. Em: A Ilha Deserta:
e outros textos. Iluminuras:SP, 2006.DELEUZE, Gilles La distinción ética de
los existentes: potencia e afecto. En Medio de Spinoza. Cactus: Buenos
Aires, 2008.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rés: Portugal. S/d.
DELEUZE, Gilles. Para acabar com o juízo de Deus. Em: Crítica e Clínica.
Editora 34: SP, 1997.
FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. Em: Ditos e Escritos IV.
Ed. Forense Universitária: RJ, 2001.
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Em: Hubert Dreyfus, Paul Rabinow.
Michel Foucault: uma trajetória para além do estruturalismo e da hermenêutica.
Forense Universitária: RJ, 1995.
FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Forense Universitária: RJ, 1999.
NEUBARTH, Bárbara. Entre vassouras e pincéis. . Em: FONSECA, Tania Galli;
COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da
UFRGS: RS, 2010.
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NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Companhia das Letras: SP, 2004.
ONFRAY, Michel. Teoria da Viagem: poéticas da geografia. 2009.
PRECIOSA, Rosane. Rumores Discretos da Subjetividade: sujeito e
escritura em processo. Sulina: RS. 2010.
SOUSA, Vera Lúcia Inácio. Vida Incidental. Em: FONSECA, Tania Galli;
COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da
UFRGS: RS, 2010.
VALÉRY, Paul. Eupalinos ou O Arquiteto. Editora 34: RJ, 1996.
VIOLA, Paulinho. Argumento. Em: Nova História da Música Popular Brasileira,
1976.
ZORDAN, Paola. Notas sobre uma vida frontal. Catálogo da exposição “Eu
sou Você”, promovida pelo Acervo da Oficina de Criatividade junto com o
Museu da UFRGS. No prelo.
Imagens:
(por ordem de aparição no texto)
- Folhas que caem. Série de fotografias. Pátio do quarto pavilhão do
Hospital Psiquiátrico São Pedro; 2010.
- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 15/10/1991.
- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel e giz de cera, s/t,
05/11/1990.
- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 03/01/1992.
- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 01/11/1990.
- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 07/11/1990.
- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 08/11/1990.
- Luz Cirúrgica. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP,
2010.
- Porta. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP, 2010.
- O gato na janela. Composição de fotografias. Acervo da Oficina de
Criatividade do HPSP. 2009.
- Lagartixa seca na gaveta. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade
do HPSP, 2010.
- Mofo. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP, 2009.
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Aulas
Por sua fundamental importância para a produção deste texto, torna-se
necessário referir também as aulas com as professoras: Tania Galli (PPGPSI),
Juliane Farina, Débora Coelho e Patrícia Kisrt (Curso de Especialização:
Instituições em Análise), e Paola Zordan (PPGEdu); e com o professor Luis
Artur Costa (Instituições em Análise).
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Ensaios / Dossiê
C.RCP: uma vida Sara Hartmann1
Ele se chamava girorino e tinha as pernas bambas. O caminho
de quarto à sala era lento e lhe faziam o certo. Não era pra ficar
aleijado, cladizem. Ia de olhos grandes vendo as chaves na
cintura dela. Passar de pés sem sapato e era vermelho como o
sofá, era alemão de cabelo fogo, era de olhos azuis cada vez
maiores. A polícia não vinha como eu pensava, não pode fazer
errado. Não é de fazer errado, sujeitinho.
O que se pode dizer de uma vida, ocupada por muitas outras, senão
através de uma procura pela medida justa nas palavras? É como nos aparece
certa existência e suas redondezas. A ela chamaremos, a princípio, C. Não
conhecemos sua pele nem seu cheiro, quiçá uma imagem de corpo inteiro.
Suspeitamos sua presença em desenhos, pinturas e escritos; é ela nos diários,
ao canto da foto; alguém e algo dela dizem. Sabemos estar longe, e cada vez
mais perto, dessa vida que vai nos tomando a imaginação, sempre prenhe de
outras. Quem sabe não sejam todas as vidas diferentes, e sim alguns possíveis
de uma.
Temos, aqui, certa vida de arquivo. Entre altas paredes, impregnadas de
sabe-se lá quantos rostos, C. é uma interna de sombras inexploradas.
Investigá-la nos lança em espaços em branco, procurando povoar aquilo que
resta como dado sem importância. São efeitos de real a que nos dedicamos,
quando “é uma cena pintada que a linguagem assume” (Barthes, 2004). A
realidade sendo “aquilo que é” não passaria de resistência ao sentido, como se
o que vive não pudesse significar, somente existir.
1 Sara Hartmann, psicóloga, mestranda do Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, membro da equipe do Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro. [email protected]
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Toda vida que se quer escrever precisa ser inflada a partir do que deixa.
São traços com os quais se escolhe inscrever, organizar, justificar, ilustrar,
irromper ou reviver uma vida. A maneira de proceder vem responder à
pergunta: o que caberá aos idos? Questão mais espinhenta, quanto o que se
vai fazer com ela não conta com uma voz de retorno toda sua, toda C. Sequer
se sabe se ela mesma se reconhecia uma. Sua vida servirá, assim espera-se,
para abrir caminho entre aquelas de um jeito ou de outro escarnecidas. Vamos
desde um agenciamento amoroso até um agenciamento histórico2. O primeiro
passo, portanto, é o desejo. Escreve-se para contentá-lo, o que não é pouco.
Nesse caso, satisfazemos o ímpeto de falar com algo que provoca eriçamento
dos sentidos, uma atenção perturbada, alegria sem riso.
Nessa vida e neste trabalho, a escrita quer ser uma plataforma de
produção. Para quem escreve, para quem lê, para quem virá. Em um sentido
radical, que a vida apareça passível de ser vivida e revivida, já que estar nela é
buscar produzir-se em um plano mais que factual. Essa vida carrega-nos
através de seus possíveis e já não somos os mesmos, até porque, dificilmente,
assim permaneceríamos. É uma vida rigorosa, entretanto, que exige um
pedaço a ser entregue, um bocado de espaço-tempo até que se escute.
Não fosse pelos criadores de arquivos, seriam caminhos desérticos de
encontros, impossível o acaso fora do esbarrão na rua, do instante de cruzar
olhares. Quantas finezas jamais teriam subsistido... Não que o lugar ao vento
signifique o fim de um gesto, mas uma outra existência. Para Foucault (2006),
a escrita de vidas infames formava cristais de acesso a mundos. Dizia ele que,
sob palavras lisas como pedra, algo insiste. Aqui, escolhemos fustigar uma
tranqüilidade tacitamente assumida, segundo a qual o que está dito fica sem
pronunciação póstuma. São agitações demais em um encontro para que se
possa passar os olhos e seguir, sem parada. Dali não se pode sair incólume, já
que não é de se esperar pés sem marcas após uma caminhada sobre
pedregulhos. Ou escolhe-se fazer outra coisa.
2 Cf. Bedin, 2008.
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Proibido machuca.
O aparecimento se dá, portanto, pela decantação de diversas camadas,
entre papéis, fotos de longe, nossas histórias. Então, como escrevê-la?
Seqüência de datas, endereços, registros civis, um riso incontrolável. São
elementos que explicitam o desafio de transpor uma vida para a escrita. Logo
percebe-se que não há transposição, a bem dizer, mas uma criação arejada
pelos espíritos ou sopros implicados, quando “todo verdadeiro pensamento é
uma agressão” (Deleuze, 2007, p. 306).
Em uma espécie de prenúncio, encontra-se a figura de C. escapando das
fotografias, perdendo ou multiplicando seu nome. Não se deixa de tentar
espreitá-la, procurando retornos. Mas nenhuma descoberta é primeira. Escuta-
se, assim, uma proximidade, sem saber bem o que acontece nas linhas
escritas ou por vir, guardando um futuro que é colocar tais coisas em papéis.
O que se atribui a ela, certamente, mistura prazer e esforço por um rosto.
Procurando não olhar em seus olhos, ou para seus olhos, e sim nadar através
deles, como nos diz Miller (2008). Desfazer a face esquadrinhada assim como
os começos se perdem no texto que deles extirpa os motivos. A fim de dizer,
no que acontece, a porção de mundo em transformação.
Desejada, essa escrita faz da vida uma aparição amada, e logo não se
pode reconhecê-la. Ela parte de onde estava, habitando mundos que lhe são
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possíveis. Uma escrita à direita do texto que escreve e repete Cê nas vidas
ditas doentes para sempre. Ela segue reunindo nomes. Não é próprio do
homem pretender resolver enigmas?
Ma vie, ta vie, tra-la-lá vi
Eu nasci em três mais dez de onze de oitenta mais seu quatro,
e menos este. Mesmo mês e ano em que nasce no hospital, um.
Unidade impossível,
“transfira-se”
para ti de lá
no dia menos cinco.
Este o número que não tens nos teus.
Cinco entre-nós.
É isso,
teu prontuário
0 1 4 2 1 3 3:
mil novecentos e cinqüenta e dois
cidade perto d’eu
antes de mim.
Quando nascia
meu pai era tu
no planalto plaino.
Soledades conjuradas,
talvez consegui.
Vir antes de ti no mesmo
ano e mês,
talvez
pra te
encont
.
Não quero
diminuir
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de nós
até zer/cen/sar -ar
Vou des-cor-dar.
Uma vida não se encontra. Ela é um compósito de signos soltos. Esta ou
aquela, uma vida qualquer acontece nas cores de flores, nas pegadas feitas
por lobos, nos objetos de um baú, sempre beirando o limite de seu próprio
desaparecimento. Uma vida é certa incidência no transcendental. Por isso, ela
aponta para a impessoalidade, algo que se reúne singularmente naquele
momento, encarna fragilmente um corpo, sem colar-se a nada. Não é a vida
deste ou daquele, e sim vida sem dono, vida-alguma-coisa. A energia do último
suspiro de um vivente, quando os acontecimentos passados não têm
importância. Algo resiste ali, força que implica a mudança constante, a
continuidade do mundo. É o que deixa, de cada existência, rastros capazes de
atingir corpos futuros. Uma vida invoca planos de vida compartilhados, tocantes
em algum ponto das suas distâncias.
Tal vida é produzida ao se exprimir. Assim como certa secreção e seu
odor demarcam territórios existenciais, por onde uma significação é possível,
criação e experiência são virtualmente simultâneas. Cor, calor e postura criam
para um animal um mundo. Ele mesmo é criado ao traçar seu território, espécie
de arte em estado puro, quando a própria vida engendra as linhas e os campos
de sua existência possível. Vida e obra são vidobra, vidarbo, indiscerníveis e
em ambas se fazendo, uma através da outra (Corazza, no prelo).
Na extremidade da morte de C., anunciada e ritualizada em diários, há a
abertura de uma região de sentido. Fala-se de “um vácuo no lugar em que
antes tínhamos as cores, o caos carregado de tinta” (Diário da Oficina de
Criatividade, 1999). Aparecem aos poucos cadernos, é momento em que algo
agarra as palavras. Tomando da morte sua finura e peso, o encontro estende
uma linha de tempo povoada de intensidades. Passam a aparecer junto aos
olhos traços de Cida, e as palavras estão levemente bagunçadas.
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No fim fiquei cega
É desde o fim de outro que se quer sair de casa, ganhar pedaço de rua,
mostrar ao mundo o que já vinha alimentando o corpo, a fim de estendê-lo. Há
no acontecimento algo mais que toma lugar, sem necessariamente efetuar-se,
ou seja, sem adquirir um estado de corpo. É justamente para além dos fatos
que um tal acontecimento3 instaura desvio no tempo regular. Como os eventos
de uma vida que não se ajustam à cronologia, em que é impossível delimitar
começos e fins. Pode-se imaginar uma espécie de bolsa de eventos errantes,
que habitam a margem paralela à organização em etapas.
Névoa a guardar “uma parte sombria e secreta, que não pára de se
subtrair ou de se acrescentar a sua atualização” (Deleuze, 1992, p.202). Essa
pura reserva que não encarna, linha abstrata apontando ao que mais está no
que acontece, dá sinal a uma reserva. O que é incapturável, espécie de núcleo
duro do acontecimento, espera-nos em direção ao que quer da vida o mais
potente. Como será o algo apontado? Ultrapassar a efetuação é fazer corpo
com a reserva do acontecimento, fundado em mim, e muito grande para mim,
já que não se efetua de todo. O inacabado retorna em nova realização,
trabalha e dissolve o mundo atualizado.
Impossível desfazer-se da ambigüidade de um crescimento em mão
dupla, em que o acontecimento se efetua e indica mais. Remontá-lo envolveria,
primeiro, não restringir seu alcance. Vislumbre da necessidade de uma
linguagem hesitante e fragmentada.
Em outras palavras: lançar-se à caça do que dizer do acontecimento, não
será a alçada aos incorporais, abertura às vidas possíveis de um encontro, ou
seja, ao que o acontecimento teria de mais revolucionário? Em direção à vida
3 É com Gilles Deleuze, em especial em Lógica do Sentido (2007), que tomamos o acontecimento como conceito que opera sentido, enquanto lança um incorporal a cada efetuação em estado de coisas.
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desalojada, desembrulhada em possíveis, liberada da forma individual. De
modo que passado e futuro acompanhem o presente como uma membrana.
Algo, assim, vislumbra diversos mundos. Cani morta e viva, desenhando
e acamada, toda a vida uma convergência ou divergência de fatores,
responsáveis pela possibilidade. Buscar onde está, o que fala, como
desaparece uma vida que deixa vácuo e atrai palavras, relançando-a a partir do
que aponta sem efetuar. Desvia-se então do saber que se pretende supra-
humano, do eu que sintetiza todo o mundo, da arte como reflexo. Toma-se um
ar à frente e se está na poeira. Com Celda viva e próxima, ida e outra, Celda
que virá.
O encontro é então um roubo duplo. O que se segue nos diários e
desenhos não mais coincide, e não deixa de se encontrar. Ela é dita artista e
suas escolhas precisam ser caçadas a lupa, deixando ver as linhas frágeis de
uma procura expressiva. Lá onde os fatos são fiapos, percebe-se que cada
vida é um esboço, de múltiplas possibilidades.
Escrevinhança
"Eu não escrevo / não escreverei / para pessoas que não podem
dar-me uma quantidade de tempo e qualidade de atenção
comparáveis às que lhes dou”27
Querer ser o leitor de alguém, desejo mais píndaro e primevo deste
lampejo de olhar. Ser o outro corpo, aquele que é atingido, responsável pela
reação, qualquer que seja, à produção lançada. Sempre aturdido, doravante.
Como ser justo ao que nos acontece desde o surgimento de uma vidarbo,
seguindo as trilhas de arquivo até os tempos do desenrolar de ouvido? Como
tomar C. sem desmerecer a distância?
Pois se não basta que tudo comece, é preciso que tudo se repita, uma
vez encerrado o ciclo das combinações possíveis. Uma segunda origem não
seria aquela que sucede a primeira, mas seu reaparecimento28. Sobrevivência
27 Valéry, 1973-1974. "Je n’écris/n’écrirais/pas p[ou]r des gens qui ne peuvent pas me donner une quantité de temps et qualité d’attention comparable à ceux que je leur donne”. 28 Cf. Deleuze, 2006.
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em um mundo que tarda para recomeçar: no ideal do recomeço há algo que
precede o próprio começo, que o retoma para aprofundá-lo e recuá-lo no
tempo. Um mínimo insiste e subsiste no que vem mover a terra de tempos em
tempos. Se é possível habitar o rio dos acontecimentos, mergulhar em seu
fluxo, é de onde se sai com pedaços de vivência, fragmentos de estória.
Impossível sobrevir sem esquecer e transmutar. Imagina-se uma abertura que
mantenha a vibração, uma espécie de língua estrangeira, tênue desligamento.
Quando se procura ferramentas para contar uma vida, Roland Barthes
surge como uma escrita ao acaso, do prazer e do estilo que fazem de seus
textos tentativas incansáveis de vidobra. Para ele, os fragmentos são “pedras
sobre o contorno do círculo (...) cada peça se basta, e no entanto ela nunca é
mais do que o interstício de suas vizinhas” (Barthes, 2003 p.108-110).
Opacidade e beatitude de um sorriso, de uma flexão, de um dia, uma estação.
O artigo indefinido é uma espécie de índice de singularidades, no caminho de
uma vida que está em toda parte, que é potência completa.
Transporta-nos ao corpo surgido no contato com os documentos, à
experiência com arquivos e ritmos de uma vida. Interna no fora e, assim,
enclausurada. Incidências que são justamente indizíveis como todo, e que
escapam à história encerrada. Tocada pelo contorno do acontecimento, uma
vida não é dizível, aspirando ao incorporal, se não provoca uma linguagem a se
abalar em seu caráter explicativo.
Será uma caminhada das almas ao ar livre, estrangeiridade como borda
para vida, obra e pensamento. Riscar, resmungar, chorar, correr Celina. São
infinitivos destacados da linha que o encontro efetua, e para a qual aponta.
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Gosto de nomes, chaves, facas. Adereços.
No lugar, portanto, de uma biografia completa, fragmentos cuja finalidade
última é música. Combinação singular de sons e silêncio, linguagem arejada
para a formação de outros rostos. Que as leituras por vir possam ser infiéis ao
corpo proposto, justas apenas com a potencialização da vida. Fragmentos
biografemáticos, assim, “cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de
qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicuristas, algum corpo
futuro, prometido à mesma dispersão” (Barthes, 2005, p.172). É o desejo
convidativo desse escritor de pormenores, o qual transladamos para o retorno
de uma vida em novas efetuações, sendo o sentido o possível expresso dos
encontros.
Vida, assim, não pode ser um jogo de errância em torno do que lhe falta.
Aquela que é contada, apreende-nos como os animais que povoam quem se
ama. Não são eles amados através de alguém? Ou como se poderia separar
tais coisas? Ligar às minhas, as multiplicidades que este ser encerra, fazê-las
encontrarem-se. Não quaisquer, nem qualquer. Mas da vida aquilo impessoal e
íntimo, isto.
Aforismo do pensamento e anedota de vida são então de uma mesma
distribuição de singularidades. Uma anedota trabalhada, esticada, é desejada
em seu incorporal, quanto ao que pode liberar, desde cada estado de vida,
uma depuração de pensamento. Viver Cinara atravessando as salas, as
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fotografias, as horas. É preciso este amigo insinuante, a dizer “vê comigo, lê
comigo” essa vida e seus povos. O biografema enquanto companhia tangível,
que puxa linhas de alguém para abaixo do nariz (Bedin, 2008). Seu critério, a
paixão que abre o corpo, assim como um amigo ou amante ensinam sem
anunciar. Ceni, de quem apenas metade da face está à mostra em fotos de
arquivo, é meiamada, através dos afetos que retornam ativos do encontro.
Quiçá. Que Cilda senão a que se debate, ressuscitada nas batalhas de
expressão? São cem ildas longas, retornadas, nilcadas, enimescidas, na
esteira de um corpo em pedaços como as estrofes da poesia sustentam
palavras pesadas. Já que “o biografema nada mais é do que uma anamnese
factícia: aquela que eu atribuo ao autor que amo” (Barthes 2003, p.126).
Sendo o incompatível possível apenas quanto a pessoas e mundos em
que os acontecimentos se efetuam, a comunicação se dá no que passa de um
a outro acontecimento, em termos de singularidades acósmicas, impessoais e
pré-individuais. Ser um indivíduo envolve uma prega de efetuações. Lançar-se
além, por sua vida, traz caos e algum perigo. Mais ou menos como a
personagem do romance “Palmeiras Selvagens” descreve o amor, como
aquele que abandona quem não é forte o bastante. Se alguém morre, nesse
caso, é quem não pode permanecer: “É como o oceano: se você não presta, se
começa a empesteá-lo, ele te cospe fora em alguma parte para morrer”
(Faulkner, 2003, p. 77).
Que dizer de desejar a ferida que se nasce para encarnar? Querer o
indizível da paixão que certa existência movimenta, até dizer um mínimo. A
escrita fragmentária é rumorosa se pode abalar a construção de uma vida
estagnada, invadida, apaziguada, seguindo uma linha incorporal, que não dá
garantias. Seremos só uma existência, ou seremosd
Sê
É noite. Ela deixa o quarto nu em direção ao corredor que se
retorce. Suas mãos pressionam a parede maciça, ali onde as
palavras são ditas em qualquer ouvido. Pergunta-se como estar
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acompanhada quando não há silêncio. Depois da oitava porta
ela se vira sobre o pé gelado, tenta escutar sono detrás.
Suspende a respiração. Nem um fiapo.
Surgem linhas, suspeita-se alguém. Em toda pausa transparece:
escrever dá medo. Escrever com as pontas dos dedos, uma expressão
mendiga, a vontade de apagar-se. Logo que um rosto aparece, não se vê a
hora de encontrar seu fim. De fato, acompanha-se uma decomposição desde
dentro, experimentando traçá-lo. Não é do rosto concreto de uma vida que nos
ocupamos. No máximo, partimos dele, e a ele retornamos outros. Uma vida
liberada na decomposição e reformulação. Há um plano diabólico de inscrição,
quando um rosto se destaca. Uma seleção ao longo de um campo de
rebatimento ou de significação. A força atrativa inevitável de uma linha
partindo, traindo a órbita.
Atravessar os olhos, borrar a boca, diagramar bochechas. A caminho do
a-significante, desfazendo o rosto, mesmo se a tentativa fracassa. Gostar-se-ia
que fossem linhas moles, indolentes, que se espalhassem, encontrassem
duras e, assim sendo, que entre si houvesse roubo. Que as duas séries
fizessem desvio, elas que não coincidem, mas que se deslocam uma em
relação a outra. Que sejam noturnos, que cheguem.
Sua camisola se arrasta carregando fios de cabelo. As
maçanetas das portas, já quis arrancá-las em dias furiosos.
Desenha-as nas manhãs quando lhe pedem cartões de natal.
Sim, seus cartões são pequenas portas para abrir, com janelas
ainda menores. Será impossível que se aquietem? A cada ano
nova cor, esquece da anterior como deixa acumular feridas nas
pernas. Já não há espaço para cada abertura.
Fazer-se até que não haja mais nada de estranho entre nós. Só assim
algo se passa, "somos sempre loucos em dupla, ambos se tornam loucos no
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dia em que ‘massacraram o tempo', isto é, destruíram a medida" (Deleuze 2007,
p.82). A comunicação dos acontecimentos se dá percorrendo distâncias,
entendidas não como espaços vazios onde repentinamente surge outra coisa.
Mas uma faixa que leva de um a outro, em que se dá a diferenciação. Faixa a
ser desenrolada topologicamente.
Chega agora a uma bifurcação, a primeira, e distende o passo
quando uma luz fracamente corta o caminho. Como uma
memória antiga, seu estômago dá sinal e em seguida
desaparece.
De onde vim, pensou, tinha a cara cheia e as horas contadas.
Aos poucos um corpo de baixo deixou minha pele mais fina,
quase imperceptível. Não me saem da cabeça, de dia, as linhas
das roupas de cada um. Sua camisola gruda.
O corredor continua no escuro, agora mais denso. Quando eu
ando, eu ando. Lembra-se das duplas, entre dois era capaz de
ver. Na verdade, isso a forçava, com a possibilidade de esmagar
a ambos. Nada mais à frente, a não ser seus gestos.
Quand la nuit tombe, je tombe aussi. 4
É na medida de uma vida que pede mais, e que, portanto, decompõe em
si qualquer medição, que se escreve procurando insistir sobre o plano de
significação. Sem querer agarrar nada, já que o prazer do texto não é seguro, e
movimenta.
4 Quando a noite cai, eu caio também. Cf. Camille, 2005.
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“aconteceu aconteceu teve livrinho pra salva”
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Referências
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Liberdade, 2003.
BARTHES, Roland. O efeito de real. Em: Rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BEDIN, Luciano. A vida em escrileitura: biografemas e o problema da biografia.
Projeto de Doutorado no PPGEdu/ UFRGS, 2008.
CAMILLE. Quand je marche. Em: Le Fil [CD]. Londres: Virgin Records, 2005.
CORAZZA, Sandra Mara. Introdução ao método biografemático. In: Vidas do Fora
FONSECA, Tania Mara Galli & BEDIN, Luciano (Orgs.) Porto Alegre: Editora
UFRGS, (no prelo).
DELEUZE, Gilles. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Ano zero – rostidade; Como criar para si um
corpo sem órgãos Em: Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1996.
DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida... Educação & Realidade 27(2):10-18, 2002.
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. Em: A ilha deserta – e outros textos. São Paulo:
Iluminuras, 2006.
DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007.
FAULKNER, William. Palmeiras selvagens. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
FONSECA, Tania Mara Galli et al. Pesquisa e acontecimento: o toque no impensado.
Psicol. estud., Dez 2006, vol.11, no.3, p.655-660. ISSN 1413-7372
FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. Em: Manoel Barros da Motta
(Org.). Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
MILLER, Henry. The time of the assassins: a study of Rimbaud. Nova Iorque: New
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VALERY, Paul. Cahiers. Edição estabelecida por Judith Robinson, Bibliothèque de la
Pléiade. Paris: Gallimard, 1973-1974.
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Coleção C. Ribeiro. Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São
Pedro, Porto Alegre.
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Entrevista
Maria Helena Bernardes
Entrevista: Alexandre Nicolodi e Denis Nicola
Horizonte Expandido – Santander Cultural Entrevista realizada em 10/06/2010
Enquanto Maria Helena Bernardes terminava uma entrevista à uma
emissora de televisão local, fazíamos os nossos últimos ajustes nas questões
roteirizadas para a entrevista com a curadora da exposição Horizonte
Expandido, localizada no Santander Cultural. Entre um café e outro, as
perguntas e respostas que vinham a tona no espaço educativo/biblioteca
instalado logo na entrada da exposição, ‘viajavam’ entre a exposição e o
Projeto Areal. Porém, o sentido de trânsito na qual a entrevista decorria,
mostrava como muita das coisas que estavam sendo colocada e apresentada
na mostra de registros fotográficos e vídeos, principalmente, são parte também
da proposta do Areal a praticamente 10 anos. Como isto tudo se relaciona, o
leitor pode conferir abaixo, na entrevista.
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“... é como a Karen Lambrecht diz: “esse artista vai
ter que saber viver no deserto quando aquilo que ele
acredita estar fazendo de importante pra ele não vai
ser solicitado, vai ficar na prateleira do sistema e ele
vai atravessar o deserto, mas sairá do deserto
fortalecido como artista.”
Panorama – Fale sobre a mostra Horizonte Expandido, ou seja, como surgiu a
proposta para esta exposição, como foi o processo de criação e
desenvolvimento da mesma?
Maria Helena Bernardes – Essa foi uma exposição organizada em muito
pouco tempo. Foram apenas 4 meses, desde o “nascimento” até a abertura da
exposição... foi um trabalho super intenso! Mas de maneira geral Horizonte
Expandindo tem uma relação direta com o projeto Areal, que mantenho com o
André Severo, que é meu parceiro aqui nessa curadoria, que é um projeto em
arte contemporânea que tem por característica produzir trabalhos artísticos que
são criados na esfera do Areal. São trabalhos que excluem, digamos assim,
uma necessidade de uma mediação já dada para sua apresentação. Desde
2000, ano em que iniciamos o projeto, propusemos para nós mesmos uma
espécie de “espaço de respiração”, ou seja, um espaço de liberdade em
relação a um formato de apresentação de obras de arte, no caso das artes
visuais, que se apresentava cada vez mais especializado. Porque da metade
dos anos 90 em diante, momento em que sentimos isso, os espaços, as
instituições culturais, começam a ganhar um porte no mundo inteiro, até
mesmo aqui no Brasil mesmo não tendo na época uma estabilidade econômica
como temos hoje, o mundo da arte estava se profissionalizando rapidamente.
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“Esses artistas agiam de maneira diferente, fizeram o que
fizeram porque queriam dizer certas coisas e tocar alguém.,
(...) tem essa pulsão por tocar o outro, tocar o seu
contemporâneo de uma forma tão apaixonada e intensa...”
Todas essas categorias profissionais, desde curadores, mediadores, críticos,
administradores e produtores culturais em todas suas especificações,
rapidamente se montaram; e para nós isso foi uma estrutura sufocante porque
quanto mais especializada a estrutura de apresentação mais específica é o
objeto que ela demanda e as condições que ela oferece para apresentação do
mesmo. O Areal foi a criação de um espaço de liberdade para que nós
pudéssemos pensar livremente as formas que nós traríamos nosso
pensamento à público fora dessas condições tão delimitadas. O Areal faz 10
anos esse ano, em função disso, houve um entendimento, por assim dizer,
entre a coordenação de projetos do Santander Cultural que vinha conversando
com a NAU produtora em busca de um projeto local que traduzisse, de certo
modo, uma visão de arte contemporânea que pudesse promover um evento
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consistente, que acompanhasse o mesmo nível das exposições usuais do
Santander, e que pudesse ser feito em espaço curto de tempo para aproveitar
essa agenda. Como o André e eu tínhamos vontade de ver certos trabalhos
que serviram de referência para que nós tomássemos certas decisões no
Areal, nos ajudassem a construir uma reflexão sobre esses meios de
apresentação, sobre a relação artista, sistema de arte e público, ou também
artista e o público diretamente. Como nós tínhamos uma série de artistas a
quem nos sentíamos devendo uma “homenagem pessoal”, mesmo que fosse
íntima, e que gostaríamos de ver e compartilhar com nossa cidade algumas
obras fundamentais.
“... descobrimos que nesse lugar nenhum, onde
existisse gente, paisagem ou algo que reagisse, é
possível um artista agir. E não é preciso que ele
anuncie que é um artista e nem omitir, para se poder
produzir conhecimento, relações...”
A NAU produtora conversou comigo e com o André sobre uma exposição do
Areal, uma exposição reflexiva já que o Areal não propõe trabalhos para serem
expostos. Onde nós oferecêssemos uma leitura, do ponto de vista do Areal, de
artistas e obras que sido referencias para comemorar esses dez anos. Uma
“curadoria Areal”... foi assim que surgiu a exposição. Então, de certa forma, nós
pensamos nessa curadoria como nós costumamos pensar um livro. Nós temos
a nossa série Documento Areal que é através da forma de livros comunicar
pensamentos que vem das artes visuais, da produção contemporânea.
Pensamos que essa exposição é uma espécie de Documento Areal sob a
forma de uma exposição. Mostrar o trabalho de outros da melhor forma
possível, tentando não formatá-los de modo a subjugá-los numa leitura muito
autoral nossa que costura isso com aquilo. Pretendemos dar autonomia a cada
trabalho e não construir roteiros de visitação. Pensar quase com a cabeça de
um artista em seu atelier. Uma obra para ser mostrada por vez, nesse caso
teria que ser uma coletiva, e felizmente é, um grande apanhado de trabalhos.
Existe uma função pública aí, de informar, compartilhar, trazer o maior número
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de coisas que pudéssemos trazer dentro de boas condições museográficas.
Mas tentamos manter a cabeça como artistas, pensamos, por exemplo: Como
o Smithson pediu para que fosse mostrada a Spiral Jety? Então é assim que
será mostrada... Sem a interferencia de outro trabalho. Cada vídeo desses que
deve ser mostrado em monitor, está sendo mostrado em monitor, o que é
vídeo-instalação está como vídeo-instalação, nos monitores foram criadas
cabines com uma arquitetura e uma acústica que permitem um maior
isolamento e intimidade com aquele trabalho. Procuramos montar a instalação
de maneira que uma obra não interferisse na outra, e principalmente, que nós
não interferíssemos nas obras, seja com textos ou com mediação em frente à
obra e etc. Então foi assim que pensamos a exposição, com cabeça de artista!
“O Areal foi a criação de um espaço de liberdade
para que nós pudéssemos pensar livremente as
formas que nós traríamos nosso pensamento à
público fora dessas condições tão delimitadas.”
Panorama – Já que você citou o Projeto Areal, talvez tu possas falar um pouco
mais, especificamente, sobre este projeto e da sua história, tendo em vista que
foi daí que surgiu essa parceria com o Santander e essa exposição.
M.H – Para deixar um pouco mais claro a natureza da concepção artística do
Areal pode ter em relação à natureza dos trabalhos aqui presentes nessa
mostra. Porque, com estes trabalhos aqui expostos, a gente vê alguns “links”
também, não só de reflexão, mas também de realização artísticas, guardadas
as devidas proporções. Então aqui estão presentes todos os “heróis”, não só
nossos, mas como de todas as pessoas que apreciam a arte contemporânea.
Não seremos nós que nos colocaremos ao lado deles na história nem nada
disso, simplesmente sentimos certa afinidade com a maneira que estes artistas
tiveram de ver a arte e ver a vida. Bom, então o que é o Projeto Areal? No
início, em 2000, eu e o André Severo éramos amigos, mas ainda não tão
próximos quanto depois da criação do Areal. Nós identificamos como inicio
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dessa amizade uma mesma angústia, pois é um projeto que nasce da crise, da
angústia.
Estávamos num momento de nossa trajetória como artistas emergentes, eu
sempre brinco que artista emergente é que nem país com economia
emergente, pois só deixa de ser emergente se outros quiserem (risos). Então
como estávamos na malfadada categoria de emergentes, e eu uma emergente
mais velha já com 33 anos, o André um emergente novinho com seus 25, 26
anos, e participando de um programa nacional que se chamava Rumos
Visuais, do Instituto Itaú Cultural, era a primeira edição do Rumos. Na época
nos deixaram muito claro que era um programa que, em primeiro lugar dava
visibilidade para a produção nacional fazendo com que artistas de diferentes
regiões circulassem pelo país. E também, internamente, o que nos era dito era
que nós iríamos, na qualidade de artistas emergente, experimentar o tipo de
situação profissional que os artistas já estabelecidos experimentam, que é ver
de perto a organização de uma exposição, conhecer curadores profissionais,
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viver uma rotina de montagens em instituições importantes... Enfim, havia uma
série de coisas ali que davam a entender que se tudo desse certo depois dessa
grande sabatina que era o Rumos e os que passassem para a etapa posterior
iriam desfrutar desse “Olimpo” que são as artes visuais profissionais. Enquanto
uma parte de nossos colegas estivessem funcionando de maneira harmônica
dentro disso tudo sem sentir nenhuma contradição nem nada, o André e eu nos
identificamos numa angústia. Nós nos demos conta que aquilo que o Rumos
nos apresentava como um futuro era algo que para nós não servia, pois aquilo
nos angustiava, nos deprimia - falando francamente. Percebíamos que
havíamos trabalhado duramente para chegarmos até ali, pois na época éramos
artistas que mantinham atelier, ambos éramos fanáticos, daqueles de trabalhar
em suas obras 24h por dia de Segunda a Segunda. Ou seja, trabalhávamos
tanto para chegar num lugar que nós não queríamos, que era ter um tipo de
atividade profissional como artista que consistia em produzir situações dentro
de uma caixa, que é o atelier, colocá-las dentro de uma caixa de madeira
revestida com plástico bolha e enviá-las para outra caixa que seria o espaço
expositivo. Então, de caixa em caixa nós iríamos passar nossas vidas, e
distantes de uma realidade mais viva, de uma troca mais intensa, mais
experimental que de algum jeito nós queríamos proporcionar.
“... aqui estão presentes todos os “heróis”, não só
nossos, mas como de todas as pessoas que apreciam
a arte contemporânea (...), simplesmente sentimos
certa afinidade com a maneira que estes artistas
tiveram de ver a arte e ver a vida.” Criar o Areal foi buscar essa outra condição, uma condição de autonomia, de
tentar descobrir que outros trabalhos nós saberíamos fazer fora das nossas
caixas... e também para sustentar aquele ritmo do Rumos que cada vez foi
ficando mais insustentável e angustiante, saímos a viajar apenas para
conversar, para desabafar sobre essa angústia. Íamos de ônibus para qualquer
lugar longe de Porto Alegre e que não tivesse nenhuma instituição cultural
funcionando. Lugares estes mais isolados como Mostardas, São José do
Norte... e voltada sempre no mesmo dia. Aproveitando também para pensar em
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uma situação em que não exista a estrutura profissional da arte
conseguiríamos nos sustentar como artistas, se isso estava dentro de nós
ainda. Onde não teríamos nenhuma confirmação externa da nossa condição de
artistas, sem a confirmação do sistema de arte para nos dizer que éramos
artistas ou não. Tentávamos responder àquela velha pergunta, do inicio do
romantismo ainda, “existe uma necessidade em mim de fazer isso? O que acho
que posso contribuir sendo um artista? A quem interessaria isso? Com quem
posso trocar idéias? Quem são os interlocutores fora da estrutura pré-
estabelecida na arte?”
Então, fizemos esses exercícios de viagem durante um ano e as praias eram
angustiantes também, assim como o Rumos, pois nos víamos sem saber o que
fazer, o que ser! Não nos encontrávamos nem num lugar nem no outro! E foi
nessa falta de identidade, nesse meio, que aprendemos a pensar as cosias em
transito, fazer estas coisas em transito. Por exemplo Vaga em campo de
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rejeito1 que é uma situação casual, onde fui parar lá em Arroio dos Ratos e
deixo que uma série de situações se apresentem e vão se realizando
coletivamente em solidariedade que recebi de vários moradores do local; e daí
a situação vai se montando na minha frente e eu vou aprendendo e as pessoas
vão me ensinando. Então juntos criamos uma situação sem prazo para
terminar, que não resultou numa exposição, mas é comunicada num livro que
já é outra coisa, não é apenas o resultado da experiência, é outra coisa, outra
etapa do mesmo trabalho que se caracteriza quase como um conto. E o André
desenvolveu um trabalho também em viajem que está relacionado no
Documento Areal: consciência errante2. Ou seja, descobrimos que nesse lugar
nenhum, onde existisse gente, paisagem ou algo que reagisse, é possível um
artista agir. E não é preciso que ele anuncie que é um artista e nem omitir, para
se poder produzir conhecimento, relações... Enfim, eu acho que a idéia é essa,
ente o artista que conhece alguma coisa e o outro não artista mas que tem sua
vida, tem uma experiência rica e conhece outras coisas, produz um atrito e
desse atrito se gera conhecimento e troca. O Areal é isso, é proporcionar que
esses encontros aconteçam. Pra isso criamos a Arena, onde são dados cursos,
mas que tem duas camadas: é uma associação sem fins lucrativos para o
desenvolvimento dos nossos projetos. E a outra é uma empresa, onde as duas
estão na mesma sede e estão relacionadas, que é onde eu dou os cursos e
outros professores também. A NAU produtora, que o André é sócio, também
produz, além de ir atrás de recursos para algumas ações do Areal, sobretudo
filmes. Então lentamente, ao longo de 10 anos, instituir alguns suportes para
esta autonomia. E esse é um trabalho incondicional, que não cede a nenhuma
condição que não do seu próprio desejo, de seu movimento espontâneo. Isso é
o Areal!
“As vezes você pode ser demandado por outros, que
te convidam para uma situação, e você arregaça as
mangas e vai trabalhar, mas em algo que te convença
1 BERNADES, Maria Helena; Vaga em Campo de Rejeito; São Paulo: Ed. Escrituras, 2003 (Documento Areal 2) 2 SEVERO, André; Consciência Errante. São Paulo: Ed. Escrituras, 2004 (Documento Areal 5)
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no sentido moral, ético, espiritual, humano, lúdico.
Mas não por outros interesses.” Panorama – É uma relação direta com os trabalhos da mostra....
M.H – Temos uma dívida para com a arte contemporânea que busca rever as
relações entre a arte e as pessoas fora dessa categoria inerte que é púbico,
abstrata; fora do evento cultural. Todos nós temos uma dívida, colocamos um
pequeno passinho, senão à frente, talvez, um pouquinho mais ao lado ou
fazemos um “puxadinho” desse grande pensamento que encontramos aqui no
Santander Cultural. Quando lemos nos livros temos a sensação de que está
tudo resolvido, pois os autores possuem esse dom de nos apresentar tudo já
resolvido. Mas diante do trabalho eles reviram do avesso, pois são muitos
frescos. Tem um grau de intensidade, experimentação, de inquietação viva e
de forma aberta.
Panorama – De modo em geral, como é feito o trabalho do projeto
pedagógico? Afinal a mostra abrange também um publico que busca e que
espera uma obra mais formal, materializada, quase que “entregue”, tendo em
vista que esta exposição evidencia muito mais o conceito do processo, as
idéias e as questões das transformações do espaço/tempo. E, além disso,
como se percebe essa relação do vídeo, que na maioria dessa exposição,
serve mais como documento/registro dos trabalhos expostos com esse mesmo
público visitante?
M.H – Um dos pontos de apoio ao público que não é familiarizado a esta
exposição foi criar uma das portas de entrada, que nós pensamos e que
poderia facilitar o acesso a esse tipo de obras a cada trabalho desses, a cada
um dos artistas aqui representados, e em cada trabalho também, o artista está,
de alguma forma, presente como sujeito. Talvez isso tenha sido o único critério
que tivemos, após termos escolhidos os artistas, assim como este leque de
obras destes mesmos artistas, foi a escolha de trabalhos nas quais o artista
tivesse uma participação, uma presença direta. Que ele estivesse falando
diretamente ao público, ou que o corpo, a imagem do corpo do artista estivesse
presente, ou que ele se dirigisse ao público diretamente através de um texto ou
através de uma ação, representada por uma fotografia, como exemplos. Então
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queríamos que essa exposição fosse um pouco como o Areal: uma plataforma
de encontro entre o visitante e o artista, mesmo o artista não estando de corpo
presente. Isso porque no nosso entender esses artistas tinham uma
necessidade verdadeira, que foge ao sentido de produzir profissionalmente um
trabalho de arte “porque sou um artista” , então eu produzo obras. Esses
artistas agiam de maneira diferente, fizeram o que fizeram porque queriam
dizer certas coisas e tocar alguém. Então se essas pessoas tem essa pulsão
por tocar o outro, tocar o seu contemporâneo de uma forma tão apaixonada e
intensa, isso já é um ponto de comunicação legal. Acredito que qualquer
pessoa possa se sentar em frente ao trabalho falado do (Joseph) Beuys, que é
uma conversa quase como um debate entre ele e interlocutores de uma platéia,
e acompanhar o que está sendo dito. Agora é claro que referencias específicas
existem ali como existem em diversas outras áreas de atuação profissional.
Mas ainda assim existe um canal de contato, tenho certeza, por serem pessoas
que faziam, falavam, agiam por uma necessidade real e autêntica de tocar o
outro. Ou seja, o fato de não serem “burocratas” da arte, mas sim pensadores e
artistas inquietos, apaixonados e com uma visão humanista que de fato implica
ao outro, com uma compreensão solidária o outro precisa alcançar para
funcionar. Então, em princípio, com alguns destes trabalhos, as pessoas que
vem aqui visitar a exposição, com algum desses trabalhos, ela irá se relacionar.
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Então não vemos, nessa exposição, um daqueles exemplos dolorosos de
exposições da arte conceitual dos anos 70, digo experiência dolorosa no
sentido de você sair “moído” com todas aquelas coisas pra ler, com todas as
relações, por vezes cientificas, que são estabelecidas e etc., que possuem seu
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mérito, na qual eu concordo absolutamente, mas que precisam de um
mergulho no contexto, contexto este que é referencial, de leitura, filosófico. E
isso não faz com que a arte conceitual seja menos importante ou menos
relevante. Mas não é o caso dessa exposição. É também dos anos 70 mas
está fora, digamos assim, daquela produção. Então as atividades pedagógicas
estão considerando isso! Além dos mediadores que estão aqui presentes para
ajudar, temos esse espaço de encontro que é a biblioteca, onde as pessoas
podem vir, sentar ler livros, conversar, pesquisar sobre os artistas da mostra.
Os mediadores, alguns voluntários do Arena, estão preparados e a disposição
para recomendar leituras, conversar sobre as obras, dar sugestões, trocar
idéias. Além disso temos também visitas guiadas que semanalmente o André e
eu fazemos com o público visitante. ...
Panorama – Sem desmerecer os que aqui estão presentes, nesta exposição,
há algum artista ou obra que vocês sentem por não ter conseguido trazer par a
mostra?
M.H – Acredito que as coisas mais importantes estão aqui. Coisas que
chegaram a ser cogitadas de serem trazidas, mas devido ao curto tempo de
produção tivemos que deixar de lado... Queríamos muito mais um trabalho do
Smithson, Hotel Palenque3, que é uma projeção de slides com a voz dele, já
tínhamos até a tradução do texto. Mas trabalhos como esse, que exigem a
realização com projetor de slides e não data show, pois ele precisa do som da
troca dos fotogramas... é necessária uma antecedência muitíssimo maior, o
que não era possível. Havia outro com slides do Dan Grahan, Homes for
America4, um trabalho que circulou primeiro como publicação numa revista em
1967. Esses dois trabalhos queríamos muito! Desistimos também de alguns
trabalhos “mais materiais”, como os múltiplos do Joseph Beuys ou alguns
objetos do Gordon Matta-Clark, pois queríamos mostra o lado escultor social
dele entre outros objetos por entendermos que não se tratava de uma
exposição que devesse ter uma presença material forte e sim uma vivência, o
3 T¨rabalho de Robert Smithson realizado em 1969 em um hotel abandonado no Novo México, Nos Estados unidos . Mais Informações em http://www.robertsmithson.com/photoworks/hotel-palenque_300.htm ou http://www.guggenheimcollection.org/site/artist_work_md_146E_1.html 4 Fotografias de Graham realizadas em 1966-67 sobre a arquitetura das casas das famílias norte-americanas.
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tempo pensado... e o filme dá conta disso. Nós pensamos que as pessoas, no
caso do Beuys, por exemplo, precisavam esquecer um pouco este lado dele
escultor, unicamente, e fazer ver o lado dele “escultor social”, que é fazendo
aquele vídeo/filme que vemos na exposição, das conversas com o público, dos
debates, etc. Mas de modo geral não tivemos nenhuma grande frustração!
Uma surpresa que tivemos, foi quando nós incluímos o Chris Burden, que num
primeiro momento não estava na exposição, pois tínhamos outros trabalhos em
mente. E de repente demos uma virada num determinado momento nesta idéia
de presença, e assistimos o vídeo completo do Burden, e o modo como ele
conta o seu trabalho é realmente muito especial para todos aqueles que
estudam performance, ou a relação artista-público.
“... descobrimos que nesse lugar nenhum, onde
existisse gente, paisagem ou algo que reagisse, é
possível um artista agir. E não é preciso que ele
anuncie que é um artista e nem omitir, para se poder
produzir conhecimento, relações...”
Panorama – Parte da produção contemporânea apresenta um resultado, por
vezes, muito parecido ao que se fazia na época dos trabalhos/registros aqui
presentes na mostra Horizonte Expandido. Em muitos casos, nessa nova
produção, temos uma sensação de “vazio” diante dos trabalhos. Seria talvez,
por essa mesma produção de hoje pensar mais na obra como uma coisa
pronta e não ter os mesmo impulsos geradores da mesma época. Afinal, os
trabalhos aqui expostos tem cerca de 40, 50 anos. O mundo era outro, as
questões, tanto sociais como as da própria arte, eram diferentes. Não te parece
que hoje, não são todos os casos, alguns trabalhos se apresentam como
meras cópias esvaziadas? E dessa repetição, ao nosso ver, cria-se um certo
“vazio” na arte contemporânea... mas esse questionamento, que não é
exclusivamente nosso, as vezes passa por um discurso ressentido com o
mercado, com as instituições, entre outros sujeitos atuantes do sistema, e que,
por isso, não é realizado. Porém, quando é realizado, é taxado dentro deste
discurso ou passa desapercebido. Como você vê isso acontecendo hoje?
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M.H – Bem.. .eu também tenho o mesmo cuidado que vocês estão tendo nesta
questão ao falar disso, pois muitas vezes, como tu disse, acaba parecendo um
discurso muito ressentido, muito facilmente até. Acredito que quem escolhe ser
artista, não quero dizer que isso seja uma verdade absoluta, escolhe não
assumir um compromisso com suprir demandas, produzir mercadorias, produzir
atrativos... ou seja, não ter compromissos com niguém.
Panorama – A não ser suprir nossas próprias demandas pessoais.
M.H – Exato! Uma demanda que sintamos ser legítima, seja do nosso tempo
ou dos nossos sentimentos e percepções. As vezes você pode ser demandado
por outros, que te convidam para uma situação, e você arregaça as mangas e
vai trabalhar, mas em algo que te convença no sentido moral, ético, espiritual,
humano, lúdico. Mas não por outros interesses. Isso estamos falando da
minha, ou da nossa visão, que abandonamos esse modelo institucionalizado
por acreditar em algo mais. Cada um deve fazer o que gosta e Let it be! Não se
trata aqui de discriminar, mas de opção de vida. Mas posso dizer que uma das
coisas que mais nos chocou ali naquele início de profissionalização do meio
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artístico, na segunda metade dos anos 90, foi ver como rapidamente jovens
artistas aderiam de forma acrítica à essa vitrine, e as demandas dessa vitrine.
E também como todo mundo começou de repente a falar em carreira e não
mais em trajetória artística. Artista tem trajetória, porque trajetória significa ter
tentativa e erro, muitos erros, muitas tentativas e alguns acertos.
Mas carreira é uma coisa em que se soma pontos e se ascende. Então quando
começou a se falar num profissionalismo que implicava em carreira, se falava
em competitividade e eficiência, e cada um apresentava portfólios muito bem
apresentados antes mesmo de ver a obra! E isso nos provocou uma aversão,
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pois não é só isso que compõe o mundo da arte e dos movimentos da arte
jovem. Tem aí uma corte e tem os prêmios, e tem também uma roda viva
comendo, engolindo e pedindo novas mercadorias. Existem modos de ser um
artista integro e correto dentro desse sistema vigente, mas, é como a Karen
Lambrecht diz: “esse artista vai ter que saber viver no deserto quando aquilo
que ele acredita estar fazendo de importante pra ele não vai ser solicitado, vai
ficar na prateleira do sistema e ele vai atravessar o deserto, mas sairá do
deserto fortalecido como artista”.
“Uma ‘curadoria Areal’... foi assim que surgiu a
exposição. Então, de certa forma, nós pensamos
nessa curadoria como nós costumamos pensar um
livro.”
Eu particularmente acredito haver modos de ser um artista sério tanto dentro
como fora do sistema, fora eu quero dizer da lógica dele, porque ninguém está
fora, o sistema é todo o circuito onde gira a palavra arte, pelo menos eu
entendo assim. Até porque hoje o sistema absorve praticamente tudo... em
diferentes níveis, nas suas estratégias e corporações... mas eu acho que nós
podemos ser um artista sério em qualquer lugar, mas o importante e encontrar
este lugar. Mas a gente percebe esses funcionamentos e tem coisas que nos
chocam as vezes. São assuntos, são coisas que incomodam a gente e que nós
devemos discutir. Por exemplo, as obras desta exposição, os filmes e vídeos,
não eram nem exibidos ou mostrados, a não ser entre os próprios artistas.
Tudo isso não era um sucesso garantido... muito pelo contrário: as pessoas
que fizeram essas ações, abandonaram o que eram garantido... abandonaram
o terreno seguro... e isso aqui (a obras da exposição) é o terreno inseguro, isto
daqui é o deserto, pois os artistas saíram da zona de conforto. Mas o sistema é
muito grande, e ele absorve tudo muito rapidamente, sendo legitimado e usado
pelo entretenimento, pelo evento cultural, pois são muitos espaços para se
preencher. O sistema de artes hoje é uma máquina muito grande. Mas ao
pensar sobre os artistas desta exposição, os seus anseios quanto a estes
trabalhos era utilizar o vídeo para registrar a experiência no sentido de
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duração, no registro de uma vivência intensa, ou seja, processual. Era gravar e
comunicar essa intensidade, pois não se pensava em produto, em mercado, se
pensava nessa vivencia, nessa experiência, em abertura, em desmonte de
coisas e ao mesmo tempo no registro de coisas acontecendo, no registro de
um entendimento, de um processo. Diferente de hoje que é um tiro muito
certeiro fazer um vídeo ou uma foto.
“São trabalhos que excluem, digamos assim, uma
necessidade de uma mediação já dada para sua
apresentação”
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Expediente
Editores
Alexandre Nicolodi
Artista Plástico graduado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em Escultura. Vive em Porto Alegre.
Denis Nicola
Artista Plástico, Publicitário e Fotógrafo. Graduado em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCRS e em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em fotografia. Vive em Porto Alegre.
Jornalista
André Dornelles Pares
Jornalista e Filósofo licenciado. Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Unisinos e Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vive em Porto Alegre.
Conselho Editorial
Paula Viviane Ramos
Jornalista e crítica de arte. Mestre (2002) e Doutora (2007) em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (UFRGS). Professora Adjunta do Instituto de Artes da UFRGS. Desenvolve pesquisa sobre arte moderna, arte contemporânea e artes gráficas. Vive em Porto Alegre.
Maria Ivone dos Santos
Artista, Doutora em Artes Plásticas na Universidade de Paris I, Panthéon Sorbonne em 2003. É professora da área de escultura do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Coordena com Helio Fervenza o Grupo de Pesquisa: Veículos da Arte (CNPq) e o Programa Formas de Pensar a escultura – Perdidos no espaço (www.ufrgs.br/artes/escultura/). Vive em Porto Alegre.
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Paulo Gomes
Artista plástico, curador independente e professor na UFRGS. Mestre e Doutor em Artes Visuais – Poéticas Visuais, pela UFRGS. Desenvolve pesquisa na área de Poéticas Visuais, sobre arte contemporânea e arte no Rio Grande do Sul. Tem textos publicados em livros, revistas e jornais. Vive em Porto Alegre.
Neiva Maria Fonseca Bohns
Professora adjunta do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas. Mestre e Doutora em Artes Visuais - História, Teoria e Crítica de arte pela UFRGS. Professora de Arte Contemporânea, História da Arte no Brasil, História da Arte no Rio Grande do Sul e Metodologia da Pesquisa em Artes Visuais. Desenvolve pesquisa sobre arte contemporânea no Brasil e arte no Rio Grande do Sul. Atua como crítica de arte e curadora de exposições de arte contemporânea. Membro do Conselho Curatorial da Fundação Vera Chaves Barcellos. Tem textos publicados em livros, revistas e outros veículos especializados.
Design Gráfico – versão online
Adreson Vilson Vita de Sá
Artista e designer. Formado pela UFSM, atualmente graduando no Instituto de Artes (UFRGS), trabalha com design gráfico e projetos de arte (Bienal B). Atualmente está na diretoria da Associação Chico Lisboa. http://adreson.com Design Editorial
Natália Correa
Artista e Colaboradores
Gabriel Karasek
Artista plástico e web designer de Porto Alegre. Graduando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente morando em São Paulo onde trabalha na www.cubo.cc. Mais informações em www.gkarasek.com.
Letícia Lampert
Artista plástica, designer gráfica, web designer e fotógrafa, Vive e trabalha em Porto Alegre. Formada em Desenho Industrial/Programação Visual, pela Ulbra, é graduada em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade federal do
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Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em fotografia. Mais informações e portfólio em www.leticialampert.com.br.
Angela Cagliari
Artista plástica graduada pelo Instituto de Artes da UFRGS com ênfase em Fotografia. Vive e Atua em porto Alegre. Recebeu prêmio do British Council para intercâmbio acadêmico na Inglaterra em 2007.
Roberto Muniz
Graduado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ênfase em desenho. Há muitos anos trabalha com desenvolvimento web e publicidade on-line.
Vitor Butkus
Artista visual. Graduando em Artes Visuais, habilitação em História, Teoria e Crítica, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa transdisciplinar Corpo, Arte, Clínica.
... E todos aqueles que contribuíram, e contribuem das mais diversas maneiras, para a publicação dessa revista.
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“Um espaço público para o intercâmbio de idéias e ações, por meio de textos críticos e reflexivos acerca da produção artística contemporânea..."
Mesmo com a produção artística contemporânea vivendo um período de
grandes realizações, são muitos os teóricos que analisam o período a partir da
óptica de uma "crise da arte", ou mesmo do "fim da arte". Esses mesmos
intelectuais reconhecem que, se existe crise, parte importante dela deve-se à
escassez de material crítico. De fato, foi-se o tempo em que se podia encontrar
crítica de arte em jornais e revistas, os meios tradicionais para esse e outros
tipos semelhantes de manifestação... Hoje, o exercício da crítica, notadamente
da crítica de arte, parece ter encontrado lugar nos ambientes acadêmicos. No
entanto, será que essa estratégia não estaria restringindo ainda mais a reflexão
sobre arte, sobretudo sobre arte contemporânea, a círculos de iniciados no
assunto?
Foi pensando nessas e em tantas outras questões que criamos a revista
PanoramaCrítico. O nosso objetivo é disponibilizar um espaço público para o
intercâmbio de idéias e ações, por meio de textos críticos e reflexivos acerca
da produção artística contemporânea, brasileira e internacional.
PanoramaCrítico também tem como objetivo possibilitar a troca entre
instituições, acadêmicas ou não, que tem algum tipo de atuação voltada ao
campo. Assim, o site se coloca como um espaço para a divulgação de
atividades, eventos, cursos e palestras na área. Isso significa que estão todos
convidados a participar!
PanoramaCrítico é uma publicação bimestral.
Acesse: www.panoramacritico.com