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Revista Bimestral de Arte Panorama Crítico | ISSN 1984-624X | Edição #06 | Junho/Julho Nesta edição: Dossiê:Vidas do fora Ensaio Visual HPSP (por Lilian Gomes) Foto: Lilian Gomes

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A Revista Panorama Crítico chega oficialmente ao fim do seu primeiro ano de existência com essa nova edição. O trabalho de consolidação realizado durante este primeiro ano já trouxe algumas frutos e novas perspectivas que se apresentam no horizonte. O comprometimento com a produção critica e teórica da revista trouxeram as possibilidade de nos lançarmos em novas possibilidades e buscarmos projetos. Nesse mesmo segundo ano de existência da publicação, traremos várias novidades, sendo que algumas já se encontram nessa edição de Jun/Jul.

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Revista Bimestral de Arte Panorama Crítico | ISSN 1984-624X | Edição #06 | Junho/Julho

Nesta edição: Dossiê:Vidas do fora

Ensaio Visual HPSP (por Lilian Gomes)

Foto: Lilian Gomes

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#06 – Jun/Jul 2010

Revista Bimestral de Arte Panorama Crítico | ISSN 1984-624X | Edição #06 | Junho/Julho

Sumário da edição Nº06 - Jun | Jul 2010

1. Editorial

2. Panorama

> Brevíssimos apontamentos sobre a arte contemporânea – Paula Ramos

3. Artigos

> Dispositivos relacionais em processos coletivos e práticas artísticas em comunidades: hortas comunitárias e canteiros como possibilidade – Janice Martins Sitya Appel

> Comunicações indiretas entre León Ferrari e Mira Schendel, sob um alfabeto enfurecido - Bruno Dorneles da Silva e Bianca Knaak

> Os espaços em trânsito da Arte: In-situ e site-specific, algumas questões para discussão - Tiago Giora

4. Ensaios

> Crítica de Arte: Esfacelamento ou mudança de atitude frente aos processos artísticos contemporâneos? – Karine Gomes Perez

> Arte e sistema: onde está a arte? - Paula Frassinetti > Olhares múltiplos: conferências marcam início das atividades do recém-

inaugurado curso de História da Arte - Rosane Vargas -Dossiê Vidas do Fora: memória, vidas e obras

> Prefácio: Introduzir o que é em si – André Dornelles Pares

> Vidas do fora e a escrileitura de um mundo incontável - Tania Mara Galli Fonseca

> Ao som de uma cançãozinha Luiz sai de sua casa - Andresa Ribeiro Thomazoni

> Natália e o universo em uma casca cor-de-abóbora - Fábio Dal Molin

> Uma Vida em Acervo: experiência e escrita - Leonardo Martins Costa Garavelo

> C.RCP: uma vida - Sara Hartmann

5. Entrevista

> Maria Helena Bernardes – Horizonte Expandido

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Revista Bimestral de Arte Panorama Crítico | ISSN 1984-624X | Edição #06 | Junho/Julho

Editorial

Por Alexandre Nicolodi e Denis Nicola

A Revista Panorama Crítico chega oficialmente ao fim do seu primeiro

ano de existência com essa nova edição. O trabalho de consolidação realizado

durante este primeiro ano já trouxe algumas frutos e novas perspectivas que se

apresentam no horizonte.

O comprometimento com a produção critica e teórica da revista trouxe a

oportunidade de nos lançarmos em busca de novos projetos. Nesse segundo

ano de da revista, traremos várias novidades, sendo que algumas já se

encontram nessa edição de nº 06.

Ensaio Visual por enquanto é a primeira novidade da revista, trazendo

fotos sobre a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro e

do seu espaço do acervo. A fotógrafa e artista Lílian Gomes é a autora das

fotos dessa primeira edição.

Na seção Ensaios apresentamos o dossiê do grupo de pesquisa

Corpo, Arte e Clinica, também atuante no HPSP e que recentemente produziu

a exposição Eu sou, que vai até o dia 20 de Agosto no espaço da Oficina de

Criatividade. O dossiê traz um prefácio, elaborado pela revista, de autoria de

André Dornelles e textos de Andresa Ribeiro Thomazoni, Fábio Dal Molin,

Leonardo Martins Costa Garavelo, Sara Hartmann, e da organizadora do

grupo Tania Mara Galli Fonseca (organizadora deste Dossiê junto com Vitor

Butkus, nosso novo colaborador). Essa seção traz ainda textos de Karine

Gomes Perez, Paula Franssinetti e Rosane Vargas, onde são levantados

apontamentos sobre a crítica de arte hoje, os processos artísticos, o sistema da

arte e o papel do ensino em artes visuais hoje.

Em Artigos Janice Martins Sitya Appel, apresenta as relações e

possibilidades nos processos artísticos comunitários; Bruno Dorneles da Silva

e Bianca Knaak comentam a exposição instalada na Fundação Iberê

Camargo: Alfabeto Enfurecido de Leon Ferrari e Mira Schendel; e Tiago Giora

coloca em questão alguns pontos sobre site-specific e In-situ na arte

contemporânea.

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Lançada originalmente na edição experimental zero, em dezembro de

2008, o Panorama desta edição é o resgate deste texto de autoria de Paula

Ramos: Brevíssimos Apontamentos sobre Arte Contemporânea, onde a autora

coloca em questão os modos de funcionamento e atuação do sistema da arte e

da critica de arte hoje. Pontos de questionamento que serviram de motivação

para a criação desta revista.

Por fim, a Entrevista desta edição foi realizada com Maria Helena

Bernardes, curadora, junto com André Severo, da mostra Horizonte

Expandido, em cartaz no Santander Cultural, que trouxe a Porto Alegre

registros, vídeos, filmes, documentos e fotografias dos mais importantes

artistas da arte conceitual mundial das décadas de 1960 e 1970. A conversa

debruça-se sobre a mostra, suas dificuldades e expectativas, e as relações dos

artistas e trabalhos expostos com o Documento Areal.

Gostaríamos aqui de expressar nossos mai sinceros agradecimentos às

pessoas que nos apoiaram e incentivaram o projeto editorial da revista,

permitindo assim que conseguíssemos completar nosso primeiro ano frente à

desse projeto. Nossos agradecimentos vão para os membros do conselho

editorial, Paula Ramos, Paulo Gomes, Maria Ivone dos Santos e Neiva Bohns,

passando por nossos colaboradores mais “antigos” que acreditaram no projeto

e também pelos novos colaboradores. Não podemos nos esquecer de

agradecer a todos os entrevistados e aqueles que enviaram seus textos para

publicação. E lógico aos nossos leitores, eu a cada edição continua,

aumentando exponencialmente.

Com as próximas edições, novas mudanças virão! Sempre com o intuito

de buscar um aprimoramento e, se algumas coisas parecem mudar nas artes,

mesmo que pareçam permanecer as mesmas, o objetivo da revista é de

permanecer a mesma, com o seu papel de colocar em evidência a produção

textual critica e teórica de forma independente e consistente, mas sempre se

modificando, se transformando e aprimorando, buscando assim ultrapassar as

fronteiras já alçadas e lançar velas aos mares já vislumbrados por nós, mas

ainda desconhecidos.

Uma boa leitura e parabéns a todos!

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Panorama

Brevíssimos apontamentos sobre crítica de arte, mídia

e cultura contemporânea1

Por Paula Ramos

Falar da ausência de crítica no Brasil, sobretudo no que tange às artes

visuais, transformou-se em verdadeiro clichê. Há pelo menos 30 anos este

assunto é corrente no meio e, na esteira dele, como também não poderia

deixar de ser, a tão propalada “crise da arte”. Ambos os temas dão “pano paras

as mangas”, como indica a expressão popular, e não é meu objetivo, neste

rápido texto, discuti-los. Entretanto, permito-me fazer algumas breves reflexões

sobre o morno, para não dizer ausente panorama crítico na mídia

contemporânea. Para tanto, retomo algumas percepções gerais sobre o papel

comumente atribuído à crítica.

Mônica Zielinsky nos lembra que, quando a crítica moderna surge, com

Diderot, no século XVIII, os visitantes dos salões de arte e potenciais

compradores das obras buscavam nela um amparo para as suas escolhas. A

crítica de arte era, portanto, atividade de um especialista, que determinava a

circulação pública das obras, estabelecendo as relações entre a produção

artística e o espectador/colecionador (ZIELINSKY, 2006). Por outro lado, na

tradição em que se fundamenta, o trabalho desse mesmo especialista

funcionaria, como define Jacques Leenhardt, de modo semelhante a uma

pedagogia da sensibilidade. Aprendemos a ler e a escrever, mas não a olhar. E

o crítico de arte sabe, ou deveria saber, apreciar cores, formas e linhas. E ele

também deveria encontrar nessas mesmas cores, formas e linhas um

significado especial e saber comunicá-lo, por meio da linguagem verbal. Dessa

forma, o efeito visual seria acessível a todos, por meio do texto crítico, uma

espécie de escola do olhar (LEENHARDT, 2000).

1 N.E. Texto escrito originalmente para a ediçao #00 da PanoramaCritico, em dezembro de 2008. Sendo que na época, o site que foi ao ar ainda não possuía ISSN. Por isso o texto apresenta os editores ainda com alunos do Instituto de Artes da UFRGS.

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Esse papel de mediação, de ponte, manteve-se por muito tempo calcado

na concepção generalista de uma capacidade desse especialista, digamos

assim, de discernir, no universo das produções culturais – e, pontualmente, no

das artes visuais –, as de grande qualidade. Mas, se os acertos da crítica

acabam se diluindo no consenso comum, os erros são muitos, célebres e para

sempre lembrados, vide o antológico episódio envolvendo a primeira exposição

dos impressionistas, em 1874... A minha memória falha neste momento, mas

inclusive alguém já escreveu que residiria aí o gérmen da paralisia da crítica na

contemporaneidade: diante de uma avalanche de produções muitas vezes

desprovidas de sentido, ancoradas na banalidade, e com receio não somente

de errar, mas de passar à história como o crítico que não teve sensibilidade –

olho – discernimento ou qualquer outra coisa que o valha, muitos teriam

deixado de fazer textos mais analíticos, mais comentados, mais críticos, na sua

essência.

Os “motivos” da neutralização da crítica, de um lado, e do raro espaço

dedicado a ela nos meios de comunicação social, de outro, podem ser vários:

desde as linhas editoriais adotadas pelas empresas de comunicação, passando

pelo tamanho cada vez mais enxuto dos “cadernos de cultura”, bem como pelo

despreparo dos jornalistas e desinteresse do público, entre muitos outros.

Sendo, ou não, resultado dessa conjuntura, o quadro geral da crítica no Brasil

todos conhecemos: no lugar da reflexão, o texto de serviço, indicando

aberturas de exposições, horários de funcionamento, patrocinadores, quem fez

o quê; no lugar da reflexão, a efemeridade da notícia; no lugar da reflexão, a

coluna social, com direito a farto material fotográfico reproduzindo os sorrisos

dos convivas durante o vernissage...

É evidente que há exceções a essa fórmula que parece ter assumido a

condição de regra, mas o que temos vivenciado nos últimos anos é uma

perversa transformação dos espaços jornalísticos tradicionalmente reservados

aos assuntos “culturais e artísticos”. Tal território foi tomado pela volatilidade e

pelo extraordinário, num fenômeno que ultrapassa o campo da comunicação,

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mas que, ao mesmo tempo, é potencializado nele. Ora, provavelmente nunca

antes o homem viveu de modo tão espetaculoso e exibicionista. O estrondoso

sucesso internacional dos reality shows e blogs, que midiatizam tudo, até

mesmo os aspectos mais cotidianos e prosaicos da vida, reforça a percepção

de que a sociedade contemporânea vive uma grande representação de si

mesma. Nesse ambiente de aparências, de encenações e de fugacidades, a

reflexão crítica, de qualquer ordem, é absolutamente necessária. Contudo,

onde ela está?

A rede que se estabelece em torno das artes visuais não ficou imune a

esse câmbio de valores e de comportamentos. E as bienais e mega-exposições

nos mostram, cada vez mais, como o campo artístico encontrou na estética

videogame e na caprichada cenografia aliados imprescindíveis na sedução de

novos e jovens públicos. Nisso, pelo menos em princípio, não residiria qualquer

problema; a questão é que esses aspectos muitas vezes suplantam a própria

produção artística, tornando-se “o” fato artístico e desviando a já frágil atenção

do público. A obra, em muitas situações, é mera coadjuvante.

Processo semelhante tem ocorrido em relação ao papel do curador.

Quantas vezes a curadoria não se confunde com as obras... Isso porque talvez

a curadoria tenha assumido outro posto: de verdadeira criação. É como se as

obras estivessem ali para justificar uma idéia, um conceito, ou mesmo um

delírio do curador. Poderíamos listar diversas exposições realizadas nos

últimos anos, no Brasil, conhecidas, comentadas e fartamente citadas não

necessariamente por causa dos artistas e das obras que delas participam, mas

devido à proposta, ou ao nome do curador. Curador que, diga-se de passagem,

quase sempre emerge do universo da crítica (quando ele não é um artista que,

curiosamente, também participa da exposição, e em destaque! Mas esse já é

assunto para um outro texto...). Trata-se, de fato, de uma nova função,

articulada à lógica institucional das artes visuais na contemporaneidade e que

difere daquela do crítico de antigamente, respaldado no discurso, na mediação.

Nesse quadro, o curador muitas vezes se lança, como aponta Fernando

Cocchiarale, a produzir questões quase sempre extra-estéticas, temáticas, que

norteiem as exposições, que lhes emprestem sentido, ainda que provisório

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(COCCHIARALE, 2006). E aí podem surgir tanto propostas interessantes,

instigantes e pontuais, como constrangedoras falácias, verdadeiros “sambas do

crioulo doido”, sem contar os atentados visuais e intelectuais.

Uma vez mais, esse livre trânsito de personagens e funções não traria

grandes conseqüências se houvesse, efetivamente, crítica. Todavia, como os

atores são reduzidos, há não somente uma sobreposição de atuações, como

uma espécie de protecionismo entre os pares. O resultado é que não se diz,

não se escreve e não se comenta nada, até para preservar o colega e,

também, porque nunca se sabe que novo papel ele poderá assumir no campo!

E os interesses pessoais, nesse sentido, podem falar mais alto. Esse aspecto

nebuloso por trás da falta de crítica nos jornais e revistas indica que tal

dificuldade não decorre, apenas, de uma falta de interesse do publico ou das

empresas de comunicação. Pior: ela é endêmica.

Essa mesma linha de pensamento nos leva a refletir sobre o texto crítico

produzido para livros ou catálogos de exposições. Aliás, seria lícito chamá-lo

de crítico? A dúvida se justifica quando pensamos que, ao ser convidado e

pago a escrever, o profissional provavelmente não fará um artigo ou ensaio de

caráter realmente crítico, mas sim de apresentação, de contextualização e que

debata determinados aspectos da obra do artista, os que ele julgar mais

apropriados. Como, nos últimos tempos – inclusive devido aos investimentos

em cultura, decorrentes das leis de incentivo fiscal –, tem havido uma

expressiva produção editorial voltada a esse segmento, somos convidados a

acreditar que a crítica de arte não desvaneceu e que, pelo contrário, está até

mais fortalecida!!! O que não faz esse incrível mundo de aparências!!!

As híbridas e polêmicas relações entre curadoria, crítica, artistas,

instituições, mercado e, sim, público, têm fomentado profícuos debates,

sobretudo no meio acadêmico. Entre tantos, porque muitas coisas mudaram, a

começar pelo próprio conceito de arte... Nesse cenário em constante ebulição e

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carente de espaços de discussão, é admirável que um grupo de estudantes2

tenha se organizado e desenvolvido, de modo corajoso e independente, este

fórum público de diálogo em torno da arte contemporânea. Assuntos e temas

para discutir, como sabemos, não faltam...

2 A idéia partiu de Alexandre Nicolodi e Denis Nicola, do curso de Artes Visuais da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mobilizados, de um lado, pelas querelas

e polêmicas próprias do campo e, de outro, pelo total desconhecimento do que acontece em

outras instituições de ensino superior na área de artes, e mesmo em cidades vizinhas a Porto

Alegre (RS), Alexandre e Denis resolveram criar um site, esta revista. A proposta surgiu em

abril de 2008 e, com a parceria dos colegas Gabriel Gageiro, Letícia Lampert, e André Pares

em pouco tempo PANORAMA CRÍTICO ganhou forma.

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Referências

COCCHIARALE, Fernando. Crítica: a palavra em crise. In: FERREIRA, Glória

(Org.). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas.Rio de Janeiro:

Funarte, 2006.

LEENHARDT, Jacques. Crítica de arte e cultura no mundo contemporâneo. In:

MARTINS, Maria Helene (Org.). Rumos da Crítica. São Paulo: Itaú Cultural;

SENAC, 2000.

ZIELINSKY, Mônica. A arte e sua mediação na cultura contemporânea. In:

FERREIRA, Glória (Org.). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas

Contemporâneas.Rio de Janeiro: Funarte, 2006.

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Artigos

Dispositivos relacionais em processos coletivos e

prática artística em comunidades: hortas comunitárias e

canteiros como possibilidade. Janice Martins Sitya Appel1

Resumo:

O processo artístico atende a uma série de indagações e propostas,

como sua contribuição para o campo de abrangência das atuais poéticas

contemporâneas, em relação aos deslocamentos e descontinuidades propostos

em arte relacional. Atende às incursões de possibilidades transdisciplinares em

metodologias da prática artística, como suas possibilidades de intervenção

urbana nas relações de convívio como produção de novas relações e suas de

formas estéticas ampliadas à realidade.

A partir do momento em que “a prática do artista, seu comportamento

enquanto produtor determina a relação que será estabelecida com sua obra:

em outros termos, o que ele produz, em primeiro lugar, são relações entre as

pessoas e o mundo por intermédio dos objetos estéticos” (BOURRIAUD, 2009:

59), o fazer de um projeto em arte para ser desenvolvido a partir de relações de

convívio em um coletivo comunitário promoverá um encontro crítico entre arte e

realidade. A crítica aqui se faz presente por ser o processo artístico coletivo

uma forma de representação que vai renegociar as relações entre a arte e a

vida. É através da participação do outro no coletivo comunitário, na instituição

Arte, ou nos termos e contexto de uma produção artística como objeto, que as

relações entre arte e vida vão mostrar-se como forças de ação do processo.

Para entender melhor a premissa é necessário crer que “a arte relacional

não é o revival de nenhum movimento, o retorno a nenhum estilo; ela nasce da

1 Bolsista CAPES/DS - Mestranda em Processo Artísticos – PPGAV/CEART/UDESC. Bacharel em Artes Plásticas – DAV/IA/UFRGS. Atuação como Coordenadora de Artes Plásticas no Fórum Social Mundial 2005(Porto Alegre,RS) e Consultora da UNESCO 2004 (Porto Alegre,RS). Desde 1994 atua como educadora social e oficineira de artes visuais em coletivos e comunidades.

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observação do presente e de uma reflexão sobre o destino da atividade

artística. Seu postulado básico – a esfera das relações humanas como lugar na

obra de arte – não tem precedentes na história da arte, mesmo que, a

posteriori, apareça como evidente pano de fundo de qualquer prática estética.”

(BOURRIAUD, 2009: 63). Ou seja, através de ações cotidianas, o artista

promove o seu espaço de convivência social, assim como as propostas

relacionais em sua forma complexa ocupam espaços convencionais da

instituição Arte ou se aproximam de acontecimentos e situações inseridos vida

cotidiana.

As valorizações do encontro e do convívio atuam como dispositivos

relacionais e como forma para entendimento de um projeto em arte

contemporânea, assim como a explanação de alguns conceitos, são lançados

pelos autores Nicolas Bourriaud, Reinaldo Laddaga, Suely Rolnik, Felix

Guattari e Gilles Deleuze, sobre projetos coletivos em arte desenvolvidos por

artistas e coletivos em comunidades específicas.

Palavras-chave: deslocamentos; dispositivo relacional; cotidiano,

comunidade, arte coletiva

No uso de dispositivos relacionais para um trabalho em arte coletiva na

comunidade, o grupo envolvido passa a atingir novas possibilidades de atuação

no real – seja uma horta comunitária e canteiros, ou qualquer outra produção

coletiva em arte relacional complexa- estes acabam por materializar novos

espaços de vida que geram sua participação direta, a constante reflexão e

diálogo permanente a partir do convívio. O resultado direto deste convívio são

as relações de descontinuidade onde a subjetividade dos sujeitos envolvidos

pode ser reconstruída. A investigação das possibilidades poéticas visuais e de

seus processos, através da interferência no urbano coletivo, deslocamento de

saberes e intervenção na comunidade, possibilitam novas trocas e experiências

em arte.

O processo artístico gerado a partir de um dispositivo relacional cria um

corte momentâneo sobre o contexto imediato e formal esperado pela instituição

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Arte, ampliando a visão de contexto e fazendo com que a realidade possa ser

vista e vivida de outras maneiras. Primeiramente, o fazer provoca uma

descontinuidade na própria realidade da comunidade, um encontro com novas

formas de representação que produzem realidade. Inseridos como agentes e

produtores desta descontinuidade, o grupo envolvido tem que agenciar novos

lugares de convivência. Desta forma, são deslocados de seu lugar de

reconhecimento principal (o lugar de membros e moradores de uma

comunidade, por exemplo) e estimulados a catalisar novos processos de

subjetividade em seu cotidiano (o lugar de produtores de arte em processos

coletivos).

Os objetos e as instituições, o emprego

do tempo e as obras são, ao mesmo tempo,

resultados das relações urbanas – pois

concretizam o trabalho social – e produtores de

relações, pois organizam modos de socialidade

e regulam os encontros humanos.

(BOURRIAUD, 2009: 66)

Movida pelo interesse em participar de encontros e de relações de

convívio com a comunidade da Barra da Lagoa e Lagoa da Conceição

(Florianópolis,SC) na retroalimentação da cultura local como na situação do

processo e fazer coletivo referente à horta de temperos, ervas medicinais e de

outras plantas - a horta comunitária e canteiros, surge como projeto de arte

coletiva - processo coletivo ou colaborativo e de produção do real, simbólico e

imaginário coletivo que reforça o reconhecimento da cura através das plantas e

do cultivo da horta como cultura local. O convívio estabelecido pelo cotidiano

das ações na horta comunitária e canteiros, promove um projeto de arte

coletiva, formado através das relações de vínculo e de colaboração na

comunidade.

Neste sentido, uso exemplos práticos como as experiências do coletivo

dinamarquês Superflex que desenvolveu projetos de arte coletiva chamados

Supergas2 (1996-97), a partir da realidade de uma comunidade específica em

2 SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.dk – “Supergas” (Camboja, 1996-97)

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Camboja (África) e na Tailândia (Ásia) e FreeBeer3. Sua preocupação com a

preservação do meio ambiente na produção de biogás e biocombustível, levou

ao projeto coletivo em arte, como uma forma de convívio e direcionamento às

necessidades e recursos econômicos que acreditamos existir em economias de

pequena escala. A cerveja FreeBeer foi criada pelo grupo como um modelo

econômico para financiar a produção artística no âmbito da galeria. FREE

BEER é uma cerveja, que é livre no sentido de liberdade, não no sentido de

cerveja grátis. O projeto, originalmente concebido por Superflex e estudantes

da Universidade de Copenhague IT, aplica-se ao software livre e métodos de

fonte aberta para um produto tradicional do mundo real – neste caso, a bebida

alcoólica cerveja.

FREE BEER é baseada nas tradições clássicas da cerveja ale, mas com a

adição de guaraná para um aumento de energia natural. A receita e os

elementos de marca do FREE BEER são publicados sob uma Creative

Commons (Attribution 2,5) de licença, o que significa que qualquer pessoa

pode usar a receita para fabricar cerveja sua cerveja FREE própria ou criar um

derivado da receita. Qualquer pessoa é livre para ganhar o dinheiro da FREE

BEER, mas eles devem publicar a receita sob a mesma licença de crédito e de

trabalho. Todos os elementos de design e branding estão disponíveis para

fabricantes de cerveja e pode ser modificado para atender, desde que as

alterações sejam publicadas sob a mesma licença. Todas as prerrogativas

lançadas pela proposta do grupo Superflex com a FREEBEER, lançam este

projeto a uma deriva sobre o reconhecimento e a possibilidade de uma prática

em arte relacional.

Outro exemplo é o do artista Rirkrit Tiravanija que fundou em 1998 junto

a outros artistas, o projeto The Land4, que reúne ações colaborativas e

coletivas para moradia e obtenção de energia natural para a comunidade.

Neste projeto, Tiravanija foi o autor de pequenas moradas com estética

sustentável já que as casas são pequenas estruturas sobre palafitas sobre

plantações de arroz. Tiravanija realiza uma proposta em arte que se alia ao

princípio holístico da permacultura para ações em comunidades. Suas 3 SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.dk – “FreeBeer” (Camboja, 2006) 4 http://www.thelandfoundation.org/?About_the_land

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instalações muitas vezes tomam a forma de estágios ou quartos para

compartilhar as refeições, cozinhar, ler ou tocar música, arquitetura ou

estruturas de vida e socialização são um elemento fundamental em sua obra.

Enfoques às questões de sustentabilidade dão vazão à discussão sobre

espaços bioconstruídos e a estética da permacultura foi um dos pontos fortes

de apresentação do Fórum Social Mundial 2005 (Porto Alegre/RS), onde

espaços bioconstruídos foram definidos como estrutura tanto para os auditórios

de conferência como para espaços expositivos ao ar livre, dispostos ao longo

da Orla do Guaíba. Os espaços bioconstruídos contavam com cisternas para

captação de água, fossas ecológicas e captação de energia solar em pequena

escala através de estruturas feitas a partir de garrafas peti e canos hidráulicos

reutilizáveis. Pensar espaços bioconstruídos e permacultura como forma e

possibilidade estética em arte, energia e meio ambiente amplia nosso olhar

para possibilidades de moradia e sobrevivência em escala humana, com

sentido não comercial e que valoriza a autonomia sobre a existência de um

sistema operativo de vida em harmonia com a natureza. A arte é uma

possibilidade que dá forma a este sentido desde que operada através de uma

proposta coletiva e colaborativa, intrínseca à vida e ao cotidiano, ampliando

assim seus limites de atuação e de comprometimento com outras áreas do

conhecimento humano, da expressão e criatividade. A estética da

permacultura e a discussão decorrente de projetos em arte coletiva para

espaços bioconstruídos ampliam nossa visão de trasndisciplinareidade entre

diferentes áreas e retomam nosso compromisso com a arte e a vida para

questões que apontam soluções para moradia e obtenção de energia. Neste

aspecto, o coletivo brasileiro Bijari5, entre outros trabalhos em arte relacional,

trabalha com a proposta de requalificar ambientalmente espaços urbanos,

como em Natureza Urbana#3 – Carro Verde (2008) em que jardins são

construídos em carros abandonados na cidade de São Paulo.

A partir da década de 90, o entendimento que abrange o contexto da

arte, aponta para um campo em constante expansão em diferentes grupos

5 COLETIVO BIJARI (Brasil). WWW.bijari.org – “Carro Abandonado” (SP 2008) /sustentabilidade urbana

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artísticos, zona de limites não claros e ampliados (atravessamento ou ausência

de limites) e que fazem da arte um campo em trânsito junto a diferentes

campos de atuação da vida cotidiana. Este cotidiano é marcado pelo próprio

cenário atual político, econômico e artístico, onde se mostra imprescindível o

entendimento da transversalidade da arte. Não apenas por contextualizar o

momento histórico vivido nos dias de hoje por grupos artísticos ou por

integrantes de uma comunidade, mas também para compreensão da

problemática urbana de uma cidade e suas intersemioses. No caso do projeto

em hortas comunitárias e canteiros, a incursão se faz presente na cidade de

Florianópolis, capital turística do estado de Santa Catarina e que preserva

espaços comunitários de expressão culturais nativos e ligados à preservação

da cultura local em interação e integração com espaços de produção em

projetos coletivos em arte. Um projeto de arte coletiva, parte do espaço de

convívio com a comunidade e da mobilização de diferentes representantes

para sua realização. O espaço do convívio é alicerce para um projeto de arte

coletiva que convive com a constante restauração do sistema – movimentos de

resistência - e que geram novas possibilidades dentro da micropolítica[6]

comunitária e nos sistemas econômicos locais, assim como com a preservação

da cultura local e atuação em um campo não específico que faz gerar a arte

Para Reinaldo Laddaga, “é a partir dos anos 90 que artistas, escritores e

músicos começavam a desenhar e executar projetos que supunham uma

mobilização de estratégias complexas. Estes projetos implicavam na

implementação de formas de colaboração que permitiram a associação entre

artistas e comunidades durante tempos prolongados (alguns meses no mínimo

ou alguns anos em geral) atingindo grandes números (dezenas, centenas) de

indivíduos de diferentes procedências, lugares, idades, classes, disciplinas.”

(LADDAGA, 2006: 15). Pensar uma horta comunitária e canteiros como

dispositivo dentro de uma realidade ou projeto artístico pode gerar certo

desconforto inicial se não conseguirmos estabelecer uma relação imediata

entre a ação e sua produção com projeto coletivo em arte. Neste sentido, o

entendimento da horta comunitária e canteiros como projeto artístico deve ser

pensado a partir da noção de uma arte relacional complexa, da valorização do

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encontro como gerador de convívio e produtor de novas subjetividades,

deslocamentos e de possibilidades de um projeto em arte que possa ser

coletivo e colaborativo.

Suely Rolnik nos aponta a definição de dispositivo descrita por Deleuze

como “uma meada, um conjunto multilinear, composto de linhas de diferentes

naturezas[...]Destrinchar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é traçar

um mapa, cartografar, agrimensar terras desconhecidas, e é o que Foucault

chama de ‘trabalho de campo [...] uma produção de subjetividade num

dispositivo: ela deve se fazer desde que o dispositivo o permita ou o torne

possível. [...] não é nem um saber nem um poder. É um processo de

individuação que incide sobre grupos ou pessoas, e se subtrai das relações de

forças estabelecidas como dos saberes constituídos: uma espécie de mais-

valia.” (ROLNIK) Sendo assim, é possível compreender a horta comunitária

como um dispositivo relacional no que diz respeito ao cultivo da arte como

processo de investigação e que envolve a participação do outro convocando

sua experiência de convívio como condição para a realização do projeto

coletivo. À exemplo, relatado por um morador da Barra da Lagoa, “o produtor

de uma horta escolhe as plantas a partir do desejo de cura do outro” (SIC).

Da mesma forma, para Laddaga, ao falar de projetos colaborativos,

afirma que “lo que se proponem los artistas que inician estos proyetos es,

sobre todo, desarollar, calibrar, intensificar la coperación misma, no tanto con el

objeto de materializar un objetivo particular com el de variar e intensificar la

cooperacion social en un determinado entorno”.(LADDAGA, 2006: 9). A crítica

se faz presente por ser o encontro, promotor das relações de convívio, uma

forma de renegociação entre a relação entre a arte e vida. É através da

participação do outro na instituição Arte, ou nos termos e contexto de um

projeto artístico como objeto relacional, que as relações entre arte e vida são

estabelecidas. Neste sentido, afirma Bourriaud que “uma obra pode funcionar

como dispositivo relacional com certo grau de aleatoriedade, máquina de

provocar e gerar encontros casuais, individuais ou coletivos.” (BOURRIAUD,

2009: 42). Ou seja, através de ações cotidianas, o artista promove o seu

espaço de convivência social, assim como as propostas relacionais em sua

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forma complexa ocupando espaços convencionais da instituição Arte ou se

aproximando de acontecimentos e situações inseridos vida cotidiana.

Ao pensar a horta comunitária e canteiros como uma situação da vida

cotidiana de uma comunidade e desta como projeto em arte é que a lógica do

encontro é descrita por uma arte relacional complexa. A horta comunitária e

canteiros geram o encontro, uma possibilidade de atuação no real em que são

materializados novos espaços de vida e que geram a participação direta do

outro, a constante reflexão e diálogo permanente a partir do convívio. O

resultado direto deste convívio são as relações de descontinuidade onde a

subjetividade dos sujeitos envolvidos pode ser reconstruída. No contexto

comunitário o projeto de arte coletiva convive junto às relações de saber entre

os usuários da horta: a troca de experiências é um espaço de troca de saberes

sobre interesses comuns.

A produção de um encontro tendo a horta comunitária e canteiros como

dispositivo em um projeto de arte coletiva cria um corte momentâneo sobre o

contexto imediato e formal esperado pela instituição Arte ampliando a visão de

contexto e fazendo com que a realidade possa ser vista e vivida de outras

maneiras. É no cruzamento da arte com o dia-a-dia e as questões pertinentes a

este convívio que surge um projeto de horta comunitária e canteiros como

projeto coletivo em arte. Primeiramente, o encontro provoca uma

descontinuidade na própria realidade da instituição Arte, um encontro como

nova forma de representação e que produz realidade. Inseridos como agentes

e produtores desta descontinuidade, os envolvidos no encontro gerados pela

horta comunitária e canteiros e seus usuários tem que agenciar novos lugares

de convivência. Desta forma, os envolvidos são deslocados de seu lugar de

reconhecimento principal e são estimulados a catalisar novos processos de

subjetividade em seu cotidiano como espaço de convívio. A horta comunitária e

canteiros como projeto artístico reúne pessoas e colaborações em torno de um

sistema de produção em comum, não orientados pelo objetivo de produzir um

“objeto artístico” como projeto a partir da horta, mas sim de produzir o

deslocamento deste objetivo para a produção de descontinuidades e de

subjetividades, através de um projeto coletivo e colaborativo para produção de

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“arte”. Para Bourriaud, é isso que podemos chamar de lei de deslocalização,

quando “a arte exerce seu dever crítico diante da técnica somente quando

desloca seus conteúdos{d}dessa maneira, a relação arte/técnica mostra-se

especialmente favorável a esse realismo operatório que estrutura muitas

práticas contemporâneas, e que pode ser definido como a oscilação da obra de

arte em sua função tradicional de objeto a ser contemplado.” (BOURRIAUD,

2009: 94-95).

As relações de convívio geradas pelo cotidiano, assim como na própria

arte contemporânea como noção de ruptura e repetição, nos recolocam e nos

deslocam constantemente de um espaço previamente estabelecido na relação

de convívio, permitindo assim, através da incerteza e da tentativa a produção

de novas subjetividades e de intersubjetividades. Ao colocarmo-nos diante de

um sistema operacional promovido pelo processo do encontro e do convívio

com o outro acabamos por fazer sentido a um circuito de idéias, muito mais do

que afazeres ou tarefas propriamente ditas. O circuito promove a alteridade de

cada parte embora permaneçam intercaladas umas às outras - cada parte não

funciona sem a outra. Assim opera o senso da coletividade, em que a

alteridade de cada um não faz com que cada parte possa trabalhar sozinha,

mas sim em função do grupo, ou melhor, do outro. O processo do encontro

inclui que cada um ocupe e desocupe um lugar no circuito e que funcionará

como engrenagem do sistema como um todo. Um sistema oscilante e

autônomo. Oscilante no sentido de que cada um pode substituir ao outro, assim

como pode permanecer em determinado ponto do sistema e sem colocar em

risco ou prejuízo a produção do encontro como objeto. As casas na

comunidade da Lagoa da Conceição e Barra da Lagoa são marcadas pela

disputa de espaços nativos contra a intensa ocupação turística. O espaço de

saber das “tarrafas”, das “rendas de bilro”, “contação de histórias”,

“benzedeiras” e dos “estaleiros” constituem movimento de resistência coletiva

frente ao constante desmanche da cultura local.

Quanto à alteridade, Suely Rolnik nos aponta, que “a política de relação

com a alteridade encontra-se na própria origem da colaboração entre os

artistas que se deu a partir do contágio em mão dupla{...}ambos querendo sair

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de si enquanto territórios geopolíticos, existenciais, subjetivos e

profissionais”(ROLNIK, 2003: 07). Desta forma, a alteridade seria aquilo que

promove um deslocamento do lugar de reconhecimento em que todo o homem

social interage e interdepende de outros indivíduos. Assim, a existência do

indivíduo só é permitida mediante um contato com o outro - que em uma visão

expandida torna-se o outro.

Do convívio como economia

O encontro e as relações de convívio gerado a partir de um projeto de

arte coletiva como da horta comunitária e canteiros, proporciona um espaço em

que uma nova economia é gerada. O emprego do termo economia baseia-se

naquilo que para Bourriaud é o que “caracteriza a obra de arte como produto

do trabalho humano, seu processo de fabricação e produção, sua posição no

jogo das trocas, o lugar - ou a função – que atribui ao espectador e, por fim (d)

do objeto da arte, não de sua prática; da obra tal como é tomada pela

economia geral, não de sua economia própria.” (BOURRIAUD, 2009: 58). Ou

seja, no circuito compartilhado e colaborativo que a horta comunitária e

canteiros instauram a partir das relações de convívio, novas economias são

geradas: economia de trocas reais e simbólicas como troca de experiências,

relatos ou a troca de saberes. Bourriaud define ainda, que a obra de arte

representa um interstício social, termo usado por Karl Marx (1818-83) para

designar comunidades de troca que escapavam ao quadro da economia

capitalista que não obedeciam à lei do lucro. O interstício seria ainda um

espaço de relações humanas que sugere outras possibilidades de troca, sendo

o convívio uma forma de economia. A produção de um projeto de arte coletiva

promove encontros que geram como produto uma série de relatos de

experiências que torna possível o deslocamento de um projeto em arte para a

horta comunitária e canteiros como produto para o convívio e de novas

subjetividades.

O cultivo da horta comunitária e de canteiros pode culminar em novas

propostas, fruto deste convívio, ou ainda da condição dos participantes como

produtores inseridos em seu contexto; porém, sempre surgem adversidades

quanto à finalidade dos encontros dentro de uma definição em arte ou em

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comunidade como realidades distintas. A forma do encontro como objeto fica

refém da discussão quanto aos limites dos espaços de abrangência da

instituição Arte ao questionarmos tais valores. Qual a condição do encontro, do

convívio como objeto-arte e de indivíduo-artista junto às engrenagens da crítica

do sistema de artes visuais? Qual seria a condição adquirida à horta

comunitária e canteiros se o registro de seu processo da mesma fosse lançado

em uma galeria ou espaço cultural, ocupando assim um espaço tradicional no

sistema das artes visuais? A relação de convívio além de tornar possível a

execução de um processo de produção do encontro, de um projeto coletivo em

arte, possibilita a reflexão de novas possibilidades para este convívio assim

como pensar soluções em arte e seus limites na esfera pública e privada

enquanto instituição Arte. A este exemplo é possível lembrar grupos coletivos

que atuam em projetos de arte colaborativa, como os coletivos Bijari6,

Superflex7 ou o trabalho de Rirkrit Tiravanija8 em que o espaço de convívio

gera projetos coletivos em arte junto á comunidades específicas ou grupo de

pessoas.

Muitos projetos institucionais desenvolvem propostas e eixos curatoriais

específicos que valorizem projetos coletivos em arte que desenvolvam projetos

coletivos destes artistas em comunidades.

A este respeito, Laddaga comenta que “un número cresciente de artistas

y escritores parecia comenzar a interesarse menos em construir obras que em

participar em La formación de ecologias culturais.” (LADDAGA, 2006: 29). A

definição de ecologia cultural remete do entendimento do conceito de

biorregionalismo em que se observa um local específico em termos de seus

sistemas naturais e sociais, cujas relações dinâmicas ajudam a criar um senso

de lugar, enraizado na história natural e cultural. Deste conceito nasce o

6 COLETIVO BIJARI (Brasil). WWW.bijari.org – “Sustain Yourself” (SP 2008) /sustentabilidade urbana 7 SUPERFLEX (Dinamarca) WWW.superflex.org – “Supergas” (Camboja, 1996-97) 8 Rirkrit Tiravanija (Buenos Aires/Tailândia) http://br.video.yahoo.com/watch/3654873/10062562 - A este exemplo é possível lembrar-se de Rirkrit Tiravanija, no Aperto 93 da Bienal de Veneza, onde o artista mantém um fogão aceso com uma panela contendo água em ebulição para o preparo de sopas chinesas desidratadas, que o visitante pode servir à vontade durante a exposição.

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território cultural, apresentado por onde Laddaga ao apresentar a definição de

ecologia cultural - uma invenção de mecanismos que permitem articular

processos de modificação de estados de coisas locais e de produção de

ficções, fabulações e imagens, de maneira que ambos os aspectos se reforcem

mutuamente. Podem ser aleatórios e multidirecionais, trabalham na construção

do outro num espaço de convívio e de colaboração direta com diferentes

campos de saber dentro destes espaços de diferença. A descontinuidade

gerada pelos processos coletivos e em comunidades, como nos exemplos

citados anteriormente, culminam em acelerar e re-significar o processo de

convívio entre os membros das comunidades envolvidas a para uma prática

coletiva.

Como uma horta coletiva pode ser uma obra de arte?

Nicolas Bourriaud instiga-nos a pensar no espaço fora da instituição Arte

como forma ao falar da ordem comportamental da arte atual, remetendo-se a

Félix Guattari ao questionar “como uma aula pode ser uma obra de arte?”

(GUATTARI In: BOURRIAUD, 2009: 144). Pois, para Guattari, “a única

finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade

que auto-enriqueça continuamente sua relação com o mundo” (GUATTARI In:

BOURRIAUD, 2009: 145). Sendo assim, esta definição aplica-se às práticas

dos artistas contemporâneos ao criar e colocar em cena dispositivos de

existência que incluem métodos de trabalho e modos de ser ao invés de

objetos concretos que até agora delimitavam o campo da arte.

Desta forma, o espaço da horta é também um espaço de uso do

subjetivo, já que faz uso de parte do cotidiano da produção do saber, assim

como faz uso de parte do cotidiano daquilo que tange o universo íntimo das

pessoas. Na combinação entre arte e vida podemos encontrar, no ambiente

urbano, a possibilidade de uma arte que toma como direção a esfera das

interações humanas em seu contexto social mais do que a afirmação de um

espaço simbólico e privado. A permanente troca de posicionamentos entre o

binômio artista-comunidade culmina em intersubjetividades que se entrecruzam

em movimento aleatório e contínuo dentro do espaço da horta. A arte

contemporânea dentro deste espaço reflexivo passa a ser uma relação a ser

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experimentada, uma realidade a ser vivida. Para Bourriaud, “uma forma de arte

cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-

juntos, o encontro entre observador e quadro, a elaboração coletiva do sentido

(d) e da arte como lugar de produção de uma socialidade específica.”

(BOURRIAUD, 2006: 21-22). O espaço da horta passa a ser então, o

simultâneo espaço da arte e do convívio como objeto. A produção de uma horta

comunitária e de canteiros como espaço de produção em arte, reafirma a

condição da experiência de vida e do espaço do convívio como condição

presente para a produção de arte, assim como o potencial da arte para

transformar o espaço social e as relações humanas.

Bourriaud formulou a sua “estética relacional” a partir da convivência

com um grupo de artistas, entre os quais Rirkrit Tiravanija, Philippe Parreno,

Liam Gillick, Pierre Huyghe, Maurizio Cattelan, Vanessa Beecroft, Dominique

González-Foster. Apesar de terem uma produção bastante diferente entre si, os

artistas analisados por Bourriaud trabalham com freqüência de forma

colaborativa e partilham uma preocupação com a interatividade e com as

relações entre o artista, o espaço social e o espectador. Essa preocupação com

o contexto e com a interatividade seria, portanto, a especificidade da produção

contemporânea no início dos anos 90.

Ao pensarmos na horta comunitária e canteiros como experiências de

convívio no espaço da comunidade, acabamos por abrir outros canais de

conexão com outras estruturas existentes em nosso perímetro e campo de

atuação. Sem dúvida, o entendimento de uma estrutura rizomática é

procedente em um espaço que novas vivências são desencadeadoras de

novos e múltiplos olhares, incluindo o nosso próprio olhar sobre nós mesmos.

No que concerne à forma e o olhar do outro, Bourriaud afirma que “a forma só

assume sua consistência (e adquire uma existência real) quando coloca em

jogo interações humanas; a forma de uma obra de arte nasce de uma

negociação com o inteligível que nos coube. Através dela o artista começa um

diálogo.” (BOURRIAUD, 2006: 29).

O trabalho de inserção na comunidade tem como um dos referenciais

teóricos, o esquema metodológico em arte proposto por Suely Rolnik em

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Alteridade a céu aberto: o laboratório poético político de Maurício Dias & Walter

Riedweg. O processo metodológico apontado por Suely Rolnik refere-se ao

trabalho da dupla de artistas, que desenvolvem seus trabalhos artísticos em

comunidades específicas, marcadas pelas diferenças sociais surgidas a partir

do sistema capitalista e que modificaram as estruturas sociais originais de uma

comunidade. Suely analisa o trabalho em “arte pública” dos artistas, sendo esta

definida por eles como um trabalho em arte com comunidades através, ou não,

de instituições públicas e privadas interessadas em promover um trabalho de

arte em comunidades específicas. As etapas metodológicas propostas por

estes artistas em um trabalho junto às comunidades são: 1) ir ao encontro do

universo onde pretendem se inserir e deixar-se impregnar pelo convívio; 2)

selecionar os elementos que integrarão o dispositivo – pessoas, modos,

lugares, bem como as dimensões a serem mobilizadas; 3) estratégias de

interação com o grupo escolhido de modo a criar as condições de uma vivência

compartilhada; 4) invenção de meios de comunicação circunscritos ao público

da arte; 5) invenção de meios de comunicação para um público mais amplo e

variado, em expansão e em muitas direções ao mesmo tempo.

No sentido de trabalhos que apontem para o trabalho de certos artistas,

Suely Rolnik parte do pressuposto de que dispositivos utilizados por artistas em

comunidades “colocam o mundo em obra. Não qualquer mundo, nem qualquer

obra. Os mundos nos quais operam situam-se às margens do universo

supostamente garantido do capitalismo mundial integrado; são excrescências

produzidas pela própria lógica do regime” (ROLNIK 2003: 1). Atuações de

coletivos artísticos, assim como ações curatoriais em arte relacional têm

tomado frente no sistema internacional de artes visuais e contemporâneas,

provocando um deslizamento na compreensão dos paradigmas para

compreensão da arte contemporânea.

No uso de dispositivos relacionais para um trabalho em arte coletiva na

comunidade, o grupo envolvido passa a atingir novas possibilidades de atuação

no real – seja uma horta comunitária ou uma produção coletiva em arte - estes

acabam por materializar novos espaços de vida que geram sua participação

direta, a constante reflexão e diálogo permanente a partir do convívio. O

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resultado direto deste convívio são as relações de descontinuidade onde a

subjetividade dos sujeitos envolvidos pode ser reconstruída.

Referenciais Teóricos

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional; tradução Denise Bottmann - São

Paulo: Martins Fontes, 2009.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós Produção - Como a Arte Reprograma o Mundo

Contemporâneo; tradução Denise Bottmann - São Paulo: Martins Fontes, 2009

GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica - Cartografias do desejo –

2 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes,1986.

LADDAGA, Reinaldo; Estética de la emergência – 1 ed.; Buenos Aires: Adriana

Hidalgo Editora, 2006

ROLNIK, Suely. Alteridade a céu aberto - O laboratório poético-político de

Maurício Dias & Walter Riedweg In: Posiblemente hablemos de lo mismo,

catálogo da exposição da obra de Mauricio Dias e Walter Riedweg. Barcelona:

MacBa, Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2003.

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Artigos

Comunicações indiretas entre León Ferrari e Mira Schendel,

sob um alfabeto enfurecido Bruno Dorneles da Silva e Bianca Knaak1

O alfabeto enfurecido de Schendel2, apresentado na Fundação Iberê

Camargo entre abril e julho de 20103, funciona como uma brincadeira. Neste

espaço arquitetônico favorável9, explorando a grafia, a letra, suas semelhanças

e nossa familiaridade com elas, Ferrari4 e Schendel nos lançam obras que

questionam a linha entre o símbolo e o sentido.

Durante sua carreira, Mira sempre recebeu críticas que acusavam sua

obra de difícil compreensão para um público mais amplo. Pudera. Schendel

sempre foi discreta, não gostava de falar de si mesma ou de seu trabalho. Isso

tornava árdua a tarefa de compreender a obra da artista através de suas

próprias palavras. No entanto, como quem confia segredos, Mira Schendel faz

o espectador aproximar-se fisicamente de seus trabalhos, notar as

transparências e chegar perto de sua grafia.

Em muitas de suas obras, as escritas transparentes, não detectáveis

por fotografia, criam um elo íntimo entre o espectador e a artista, autora dessas

1 Bruno Dorneles da Silva é graduando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS, onde participa do Grupo de Pesquisa em Estudos Sistêmicos e Historiografia da Arte sob a coordenação dos professores Bianca Knaak e Luís Edegar Costa. Desenvolveu esse texto em parceria com a professora Bianca Knaak (Doutora em História) a partir da disciplina Fundamentos da Arte. 2 Mira Schendel nasceu na Suíça em 1919, mudou-se para Porto Alegre em 1949, onde morou por 4 anos, antes de se mudar para São Paulo, onde residiu por 35 anos, até seu falecimento, em 1988. 3 O Alfabeto enfurecido, exposição sob curadoria do venezuelano Luis Pérez-Oramas, curador de Arte Latino Americana para o MoMA (Museu de Arte de Moderna de Nova York). Porto Alegre, Fundação Iberê Camargo de 8 de abril a 11 de julho. 9 Antes de chegar à exposição, se chega à Fundação Iberê Camargo, primeira obra do arquiteto português Álvaro Siza no Brasil, projeto que lhe rendeu o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2002. Em todos os sentidos esta construção nos causa admiração, revelada principalmente, no confronto com as experiências que cada um tem com a arquitetura concebida com o intuito de servir. 4 León Ferrari nasceu na Argentina em 1920. Exilou-se em São Paulo em 1975, fugindo da ditadura na Argentina, e só voltou a Buenos Aires em 1991, onde reside até hoje.

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cartas. Em presença do trabalho e sob transparências, Mira entrega partes de

seus pensamentos (segredos?). Ela sabe que só aqueles que quase tocarem

o papel de arroz, com os olhos, serão capazes de apreciar e entender não só o

trabalho, mas também a sua versão em letra viva. Portanto, mais do que

tímida ou arredia, na própria fatura de seus trabalhos a artista se mostra

seletiva quanto à recepção de sua obra.

Mira Schendel – Uma brincadeira de se esconder

Já nas primeiras obras da exposição aprendemos como aceder ao

processo de trabalho da artista, num percurso que sugere fazer, olhar e depois

pensar. No texto-objeto que compõem seus trabalhos, vemos linhas que ora

se caracterizam como símbolos distorcidos, ora são símbolos formados por

linhas distorcidas. Sentam no papel, somem no papel, projetam o papel. Bi e

tridimensionalmente, lógica e conseqüentemente. Para acentuar a necessidade

de reciprocidade entre artista e espectador, Mira deixa em branco o título.

Quiçá para não entregar-se como um texto codificado àqueles que olham uma

obra atentamente só depois de entender seu nome.

Em sua série “Droguinhas”(1964-66) Mira usa o finíssimo papel arroz de

forma escultórica. Ao transformar sua função, negando-lhe a fragilidade

(característica mais comum desse papel), dá vida ao suporte de outra maneira.

Silenciadas no papel, projetadas noutro espaço, as palavras ali unidas se

tornam frases. Frases que pendem do teto, que formam esferas e

emaranhados. Vemos aqui uma oportunidade de evidenciar a problemática da

comunicação atual: um projeto embaralhando palavras – que se constroem

umas por cima das outras, que escondem o que foi dito antes –, deixando valer

o que foi dito por último, negando a linearidade construtiva do passado, da

palavra, do homem.

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Mira Schendel – S/ título, da série

Droguinhas (1964 – 1966)

Num momento posterior, com sua série “Toquinhos”(1970), Mira

demonstra o quanto “a linguagem é uma forma transparente que só se

completa por meio de uma interação pública” para o que “estes signos

indecifráveis aguardam um sentido ou voz que se aproprie deles”5. Suas

placas de acrílico, que funcionam como janelas, de acordo com a artista, dão

vida à letra, ao “signo indecifrável”.6

Sob diferentes visões, as letras, quadro a quadro coladas no fundo das

placas de sustentação, “chamam” o espectador. Brincam com o olhar, jogam

com itinerários dinâmicos, hora fixando-se no enquadramento áureo, hora

estando quase fora do bastidor acrílico. Também em “Toquinhos”, nos

deparamos com a reiterada necessidade de aproximação do olhar. E,

novamente, se afirma, nestes, a premissa básica para o observador de todo o

trabalho da artista: ver até sentir.

Ali, os símbolos, que se desligam de um sentido convencionado (signo),

por estarem livres, sem conexão com os demais ao redor, voltam ao devir

expressivo da linha, à abertura do sentido que Schendel também explora na

sua série de monotipias. Alguns signos maiores que outros, mais finos, mais

ondulados... Na atenção do observador, todos perdem seu poder de dar

sentido em favor de um valor mais dócil e potente, o de ganhar um sentido.

5 Texto explicativo retirado da exposição “León Ferrari / Mira Schendel – O Alfabeto Enfurecido”, ao lado da obra “s/ título” da série Toquinhos, de 1970, da artista Mira Schendel. 6 Idem.

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Mira Schendel – S/ titulo, da série Toquinhos (1970)

Ao final da exposição temos a nítida sensação de conhecer a artista

profundamente. Encaramos então não mais uma artista tímida de difícil

compreensão, mas ficamos diante uma grande artista que consegue, com

maestria invejável, lançar mão do individualismo para “contar coisas” a quem

estiver disposto a escutar/ver/sentir. Como uma brincadeira de esconder, que

só acaba de verdade quando se acha o que se procura.

León Ferrari – a verdade sobre a linha.

Na mesma exposição, o alfabeto enfurecido de León Ferrari é

impregnado de ímpeto, denúncia, braveza e arrebatamento. Sua obra é

carregada de verdades inconvenientes. León é apresentado como um artista

atuando por contornos marginais do sistema, com um trabalho que põe tudo

sob suspeita. Ferrari causa contrastes que gritam, que quase explodem, e que

o caracterizam como um artista não só de mão cheia, mas principalmente de

boca cheia. Boca cheia de razões, olhos bem abertos, mão muito ativas. A

cada momento seus trabalhos atordoam e questionam. Seja na forma, no

conteúdo, no texto sugestivo dos títulos, no conjunto ou no contexto de sua

realização.

Em uma de suas obras de maior destaque, “Cuadro Escrito” (1964), o

recurso caligráfico, a letra, as palavras, soam mais evidentes enquanto

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semelhanças que o aproximam do trabalho de Schendel. Neste quadro escrito,

preocupado com o movimento mais do que com a forma, Ferrari escreve na

tela o que a pintura representa. Com um gestual graciosamente arredondado,

Ferrari nos faz lembrar a Pedra de Roseta7, deixando clara a intenção de usar

o quadro como meio de comunicação não só com uma etnia, mas com outras

tantas, e também de colocá-lo como peça curinga de suas próprias obras,

manancial para decifrar outros enigmas.

León Ferrari - Cuadro escrito, 17 de dezembro, 1964

Ainda em “Cuadro escrito”, León coloca à luz um debate intermitente

também para a arte contemporânea: o que define o figurativo? Quando lemos

uma passagem com características literárias ou epistolares, nós acabamos

imaginando o que o texto nos propõe, nós figuramos o que está sendo narrado.

Assim, nesse trabalho em especial ( mas outros também), ao apresentar

símbolos seqüenciais (que dependem do seu seguinte e do seu anterior para

7 Que tornou possível a tradução dos hieróglifos por conter, em outra parte, o mesmo texto escrito em grego clássico.

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configurar sentido), existe algum meio coerente/convincente para que não

consideremos esta obra uma figuração, uma representação do que foi

pensamento, imagem mental?

Já na obra “Quisiera hacer una estatua” (1964), Ferrari propõe o meio-

dito, a mensagem que não se completa. O pensamento visual começa acima

de onde podemos continuar, como uma imagem que se afirma, mas que se

deixa ludibriar pelo que a segue. Em ambos os trabalhos (“Cuadro escrito” e

“Quisiera hacer una estatua”) Ferrari emprega a caligrafia confusa, criando

desenhos que se tornam textos. Mesmo nas suas modificações, com certas

letras maiores que outras (e palavras que parecem sobrepor-se), essas obras

são legíveis. São mensagens destinadas a quem quiser lê-las e se esforçar

para isso, pois Ferrari impõe obstáculos para que apenas os interessados

entendam. O mesmo jogo de esconde e aproxima que Mira faz, porém, com

roteiros distintos.

Desdobrando ainda mais sua linguagem, León constrói “Amad”(1996),

onde introduz a escrita braile sobre fotografias. Ali a mensagem não pode ser

lida com os olhos, por mais que se tente. A vitrine, que impossibilita o toque,

anula a comunicação entre a obra e o espectador, deixando-o desconfortável

e curioso diante de um escrito impossível de ler. Diferente oportunidade se

tem com outras obras, quando o artista usa o mesmo recurso do braile sobre

fotografia, porém sem vitrine, ou quando, noutro trabalho, entrega a fonte

inspiradora ao leitor. Com isso, acaba transformando, de maneiras variáveis e

em variados graus, a relação do espectador/observador com a obra. Nesse

encaminhamento poético, Ferrari impõe ao público a passividade da

observação sem registros, sem juízos. O artista cria um jogo onde ele é o

mestre supremo, um emissor de memorandos públicos, porém de difícil ou

impossível leitura.

As inconvenientes verdades de Ferrari.

O que povoa a cabeça de Ferrari? Seria sua memória ou sua

consciência que o impelem a “dizer” algumas coisas, da forma que as diz? Em

“Atado com alambre”(2006), León nos remete ao inferno católico e aos regimes

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políticos ditatoriais. Usa ossos possivelmente por sua associação com a morte

elegíaca, aquela que já pode ter sido esquecida pelos mortais. Com ossos ele

então nos lembra das mortes promovidas pela ditadura Argentina. Mortes que

habitam a alma do artista. Que alimentam sua gana por verdades, por

registros, por palavras justiceiras onde não cabe consolo. Ossos aglomerados,

apertados, corpos descarnados. Ossadas que cobram, indagam sobre o valor

humano, o silêncio e o lugar dos homens diante do governo ditador que ceifou

vidas, torturou corpos e sonegou cadáveres.

Os arames que costuram um osso ao outro podem remeter à culpa de

quem os costurou/fraturou/escondeu, ou lembrar a impotência de alguém que

viu um corpo e, condenado pelas circunstâncias, apenas cuidou para que seus

ossos ficassem juntos, para que no futuro, quando o medo fosse passado,

alguém os encontrasse para recontar essa história e outras verdades.

Na mesma forma de representação auto-invocada, implicada, indignada,

quando Ferrari cria suas “relecturas de la biblia” através de collages, faz

críticas pesadas à igreja católica. Leon cria collages com figuras sacras, e as

coloca em pose de adoração a armamentos, helicópteros de guerra e foguetes.

Invoca assim uma adoração à conquista desenfreada e ao imperialismo,

sempre apoiados pela igreja que, em momentos desumanos prefere manter-se

calada, para não precisar ficar de algum lado da guerra (talvez para manifestar

aí, sua fé na ordem divina). León ainda demonstra, em camadas coladas, a

natureza sobre-humana dos conflitos e descobre neles seus santos e armas de

destruição em massa.

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León Ferrari - Carta a un general

18 de junho, 1963

Passando da proclamação invocada às comunicações indiretas, Ferrari

cria “L’Osservatore”, “Declaración de le Academia Pontificia” e “Ciertamente la

vida vencerá”, outras collages onde pega manchetes de jornais e as ilustra com

novas figuras, dando outro contexto à obra pronta. Com essas obras Ferrari

deixa claro seu objetivo questionador e, ao mesmo tempo, infringe ao

espectador uma paralisia momentânea. Em cada trabalho o artista nos

questiona sobre o que sabemos a respeito, e quase nos obriga a escolher o

que tem nele de verdade e de mentira. Ambivalente, irônico, sagaz, a

mensagem se torna contrária à imagem, em uma produção onde então nos

perdemos, sem saber em que, de fato, acreditar: na mensagem escrita ou na

narrativa visual? Há um julgamento de valor entre o que se vê e o que se sabe

ou se pode saber, pedindo uma tomada de posição no tempo presente.

Universos que conversam.

Tanto Schendel quanto Ferrari trabalham de forma curiosa com a letra-

linha. Muitas vezes, usam letras que tem movimentos de linha perto de linhas,

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e linhas que poderiam ser letras se não estivessem tão perto de outras letras

mais evidentes. Esse jogo nos faz pensar “o que é feito de quem?”, pois já não

entendemos mais se é a linha sinuosa que forma a letra, ou se a letra

desfigurada é que forma a linha. Principalmente quando um exemplo está

intimamente ligado ao outro.

Mas o “alfabeto enfurecido” que reuniu os artistas é tanto metafórico

quanto polissêmico. Em cada caso, o que entendemos por alfabeto é, em

progressão, outra coisa. Outros signos que teimamos em assimilar como

alfabeto. Enfurecem em sua natureza e devir, enquanto continuamos a ver

apenas o que eles têm de evidente, sem nos atermos ao mais importante:

saber com quais textos/linhas/termos estamos lidando em cada trajetória. No

entanto, mesmo em seus momentos mais íntimos (e, portanto, distintos), esses

dois artistas permitem uma ligação poética forte, sob o apelo da linguagem

cognitiva.

Ambos exploram as codificações do alfabeto de maneira nada simples.

Enquanto Mira vê nas letras uma extensão da linha e a privilegiada conexão

de sentido entre elas, León foca a ambigüidade da comunicação. Ou seja: até

onde uma imagem/mensagem continua fazendo sentido da maneira que foi

feita para fazê-lo e, quando, em que momento, isso se perde ou modifica?

Ferrari pensa a síntese e o paradoxo do entendimento.

Os dois utilizam os elementos da linguagem não apenas com o sentido

de comunicar (ou comunicar-se), mas como um material físico, capaz de

construir ou alterar formas. Geram linguagens artísticas como regime de

imagens mundanas de comunicação e realidade estética. Através de línguas

(e talvez assuntos) diferentes, enquanto Léon Ferrari, berra, anuncia, explode,

Mira Schendel conversa, sussura, cutuca e cochicha. Dois artistas de

personalidades e temperamentos diferentes, mas igualmente afirmativos em

suas proposições artísticas.

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Artigos

Os espaços em trânsito da Arte: In-situ e site-specific,

algumas questões para discussão Tiago Giora

Se a escultura moderna absorveu o seu pedestal/base para romper a sua conexão ou expressar sua indiferença ao local (site), tornando-se mais autônoma e auto-referencial, e, portanto transportável, sem lugar e nômade. Então trabalhos site-specific, quando emergiram na onda do minimalismo no final da década de 60 e inicio da década de 70, forçaram uma reversão dramática nesse paradigma moderno1.

Neste trecho do artigo “Um olhar após o outro: anotações sobre Site-

Specificity”, escrito para a Revista October em 1997, a arquiteta e crítica de

arte Miwon Kwon parte analisando o desenvolvimento das propostas

esculturais que começaram nos anos '60 a atuar fora dos parâmetros do

Modernismo delineados por Clement Greemberg e Michael Fried. Suas teorias

contribuíram para um entendimento da arte como desenvolvimento histórico da

linguagem –sobretudo a pintura – apontando para a pureza dos meios e a

desconexão contemplativa do público diante de um objeto artístico

eminentemente transcendental e isolado no espaço e no tempo. Kwon

prossegue observando as mudanças fundamentais ocorridas na arte dos anos

'60 e '70 e as reverberações críticas geradas por esses cambiamentos em um

cenário que começava a aproximar a arte dos ambientes e ações da vida

cotidiana.

O desafio epistemológico de deslocar o significado de dentro do objeto artístico para as contingências do seu contexto. A reestruturação radical do sujeito do antigo modelo cartesiano para um modelo fenomenológico de experiência corporal vivenciada2.

1 KWON, Miwon. One place after another: site specific art and locational identity. Cambridge/London: MIT Press, 2002, p. 11. 2 IBID, p.12.

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O conceito de site-specific aliado à referência ao fenômeno físico da

percepção espacial no pensamento de Merleau-Ponty viriam a criar uma noção

de espaço, radicalmente diferente daquela forjada no período moderno. Este

novo território fenomenológico englobava a paisagem, entendida como a

presença concreta da arquitetura ou elementos naturais, e considerava o

indivíduo um participante ativo da obra, conectando-se a partir da apreensão

sensorial dos dados visuais e das sensações coletadas no lugar onde a

proposta artística se inseria.

Os tijolos dispostos sobre o piso em progressão aritmética, de Andre; os

perfis industriais soldados e posicionados em serie, um depois do outro, de

Judd; as tiras de feltro amontoadas casualmente no meio da sala, de Morris;

lâmpadas fluorescentes, de Flavin... Além das proposições volumétricas

instaladas na paisagem natural que seguiram na seqüência dos minimalistas. O

que havia mudado e como deveríamos olhar para o mundo que se integrava e

emprestava elementos para a obra de arte?

Miwon Kwon descreve esta modalidade de espaço como a antítese do

espaço virtual que o Modernismo havia criado para abrigar a obra de arte. Ela

vincula a concretude do espaço minimalista ao caráter tangível e presente do

ambiente habitado pelo espectador, que agora é intimado a atravessar as

molduras e movimentar-se dentro dos limites arquitetônicos destas novas

propostas.

O espaço idealizado, puro e incontaminado dos modernismos dominantes foi radicalmente substituído pela materialidade da paisagem natural ou do espaço impuro e ordinário do cotidiano.

(...) O trabalho site-specific em sua primeira formação focava no estabelecimento de uma relação inextricável, indivisível entre o trabalho e o site, e exigia a presença física do espectador para completar o trabalho3.

3 IBID, p. 11.

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Em Caminhos da escultura moderna, a crítica de arte Rosalind Krauss

cita o trabalho de Bruce Nauman; artista que transita no campo da

performance, instalação e vídeo ; como exemplo do novo paradigma que

começava, desde meados dos anos '60, a modificar as características das

práticas escultóricas desenvolvidas até o Modernismo. Segundo ela, sua

produção, assim como a de Morris, Oldemburg e outros artistas ligados ao

Minimalismo, às performances e à Pop art; traziam para o terreno da escultura

um nível de movimento e interação participativa com o público que foi, na

época, identificado pejorativamente como teatralidade4, e que afetaria a relação

entre obra e observador tal como era entendida até então.

A instalação de Bruce Nauman na Wilder Gallery (1970) exerce pressão sobre a idéia que o observador tem de si mesmo como "axiomaticamente coordenado" – como estável e imutável em si e para si mesmo5.

Em relação à obra Corridor (1969-70); de Nauman, Krauss analisa uma

mudança no centro de percepção e movimento que se reposicionara no corpo

do observador/ator em deslocamento ao longo do espaço proposto pelo

trabalho. O circuito fechado de câmeras e monitores instalados dentro de um

corredor estreito convidava o individuo a participar da proposta e inseria a

percepção de seu próprio corpo como um dos temas centrais da discussão. A

proposição artística, experienciada a partir de um ponto vista interno, móvel e

particular de cada individuo, abre as portas para situações de trabalho mais

abertas e inclusivas. O contexto que se agrega ao "espaço da obra" vem,

desde Nauman e os minimalistas até os dias de hoje, ganhando em

complexidade e incluindo universos que extrapolam o campo físico, chegando

aos terrenos da política, da psique do individuo em sociedade.

4 "A presença da arte literalista, a qual Clement Greemberg foi o primeiro a analizar, é basicamente um efeito

ou qualidade teatral – um tipo de presença de palco. É uma função não apenas de objetividade e, freqüentemente, até da agressividade dos trabalhos literalistas, mas da cumplicidade que o trabalho exige do observador". Michael Fried em Art and objecthood, 1967. Publicado em: The artist's body, themes and movements. London: Phaidon, 2000, p. 203. 5 KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: ed. Martins Fontes, 1998, p.288.

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Este movimento de saída das

galerias, sua repercussão nas

relações do público com a obra, assim

como as diferenças essenciais entre o

ambiente controlado das instituições e

o caos vivo das cidades, são aspectos

centrais dos escritos do artista e

crítico Francês, Daniel Buren,

expressos em seus Textos e

entrevistas escolhidos, 1967 – 2000:

Bruce Nauman: Corridor, 1968-70

A atenção do pedestre comum em relação ao que o cerca na rua, é muito menos viva que aquela possivelmente esperada de um atento visitante comum no museu. O pedestre em geral não está na rua para contemplar, mas sim para se encaminhar o mais rapidamente possível de um ponto ao outro6.

Buren considera que os museus ainda hoje tenham o poder de definir

como arte aquilo que o espectador encontra diante de seus olhos, enquadrado

no espaço pelo pano de fundo neutralizante do cubo branco7. Segundo ele o

mesmo não acontece na rua. O olhar ali é mais rapidamente desgastado pelo

constante bombardeio visual ao qual o pedestre é submetido, sendo este 6 Daniel Buren, “Textos e entrevistas escolhidos, (1967-2000)”. P. 194

7 Conceito cunhado pro Brian O´Doherty em No interior do cubo branco: a ideologia do Espaço da Arte. No livro O'Doherty argumenta que: “A galeria ideal subtrai da obra de arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela é ‘arte’. A obra isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma. Isso dá ao recinto uma presença característica de outros espaços onde as convenções são preservadas pela repetição de um sistema fechado de valores". (p.3).

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obrigado a fazer uma seleção dos elementos que irão lhe servir de referência

ao longo do seu percurso: muitos objetos, sinais arquitetônicos, mobiliário vão

se perder na edição da memória. O que fica? Como a arte pode revelar o

anônimo transformando-o em singular?

Tudo que se expõe ao ar livre depende desse ar, levando-se em conta que, no que concerne à cidade, trata-se de um ar extremamente poluído8.

Este retorno da arte ao contexto dos objetos cotidianos é visível no

Minimalismo principalmente pela utilização de materiais industriais ou objetos

encontrados no comércio, estranhos à tradição da arte produzida até aquela

época. No entanto, esta identificação com uma vida que acontece fora do

circuito da arte não vincula os trabalhos, necessariamente, aos espaços nos

quais esses se instalam, estejam esses dentro ou fora das galerias. Nessas

propostas o objeto de arte, frio e aparentemente vazio de carga expressiva,

continua isolado entre as paredes, que entram na proposta como um pano de

fundo ativo, mas sempre um pano de fundo.

Diferentes reflexões sobre o espaço minimalista passam a considerar a obra

dentro de um contexto físico complexo formado pelo corpo do observador e

pelos objetos que o cercam, incluindo os materiais e as formas retiradas do

próprio espaço. Toda a matéria presente no espaço faz parte de um conjunto

interconectado de fatores que atuam no ponto de contato entre o observador e

a experiência perceptiva diante da materialidade do mundo. Embora ampliado,

o campo do Minimalismo não chegava a incluir fatores psicológicos, sócio-

políticos ou, de maneira geral, aspectos que fugissem do raio de ação da obra

em sua dimensão física e presente.

Tal constatação revelava um componente idealista no movimento. Talvez

indesejado por estes artistas que haviam proposto inicialmente uma resposta a

um tipo semelhante de fechamento conceitual promovido durante o

Modernismo. A restrição da experiência perceptiva ao contexto físico em torno

às obras se relacionava, em minha opinião, a certo arraigamento a um tipo de

8 Buren, D. Op. Cit. P. 192.

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compreensão que definia a arte como fenômeno puramente visual. Dentro

deste universo dominado pelo olhar, os limites da obra se expandiram ao

máximo, até onde alcançava a percepção.

Procurando flexibilizar este ponto de rigidez, muitos artistas começaram

a trabalhar incorporando elementos que propositalmente extravasavam o

contexto espacial e assumiam uma potência mais crítica das instituições

artísticas. Artistas como Michael Asher, Marcel Broothaers, Daniel Buren Hans

Haacke e Robert Morris conceberam um lugar definido como uma estrutura

cultural influenciada pelas instituições de arte e um público que passava a ser

considerado como sujeito histórico.

Na análise das correntes de pensamento artístico que envolvem, dão

antecedentes e traçam possibilidades futuras para ações no campo da

escultura e das intervenções urbanas; volto a apoiar-me no pensamento de

Miwon Kwon para adentrar nas influências pós-minimalistas. Essas novas

vertentes enfocadas abandonam muito da identificação minimalista com o

vocabulário arquitetônico de formas e procedimentos, para aproximar-se de

uma compreensão mais crítica dos fatores políticos e institucionais envolvidos

na produção das propostas:

A transição do Minimalismo à Arte conceitual a partir dos processos de

desmaterialização do espaço teve a arquitetura dos museus e galerias como

ponto de partida para as primeiras formas de abordagem crítico-institucional da

arte, que procuravam expor o aparato burocrático no qual o artista estava preso

e seu impacto sobre o “valor” da arte. O espaço físico – literal – que já não

continha todos os aspectos da experiência e da relação publico/obra, agora se

esvaziara completamente, deixando de ser o elemento principal na concepção

de um trabalho. Concomitantemente a esse movimento de desmaterialização,

também uma desestetização do trabalho de arte começa a direcionar os

artistas para propostas imateriais ou agressivamente anti-visuais.

A escultura A liberdade agora vai simplesmente ser patrocinada – com a

verba da caixinha, proposta pelo artista alemão Hans Haacke em 1990 para a

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Potsdamerplatz no centro de Berlin; faz um comentário ácido a respeito da

força avassaladora com que o capital privado dominava o norte da Europa e da

Alemanha em reconstrução após a queda do muro de Berlin. Haacke colocou

um símbolo da Mercedes Benz no topo de uma das torres de observação que

ainda restavam do sistema de vigilância de fronteira. Em um dos lados da torre

ele fixou as palavras de Goethe "Kunst bleib Kunst" (arte permanece arte).

No caso de Haacke, o ambiente no qual o trabalho se instalava,

funcionava como um elemento motivador para a percepção e o conhecimento

do artista, que construía questionamentos e transmitia-os ao público por meio

de um elemento escultórico agregado a esses espaços. O trabalho criava um

engajamento com a dimensão histórica, política, e econômica do contexto, que

podia ser um espaço institucional da arte ou um ambiente urbano.

A arquitetura das cidades, na visão de Haacke ou Buren, seria

representativa de uma linguagem preparada e aplicada a partir de

determinações históricas; e seria abordada pela arte com o mesmo tipo de

conotação. O trabalho de arte representaria uma possibilidade de revelar ou

discutir as instâncias do pensamento humano que interferem na realidade na

qual as pessoas vivem. O espaço construído passa a ser analisado por seu

conteúdo simbólico, muito mais do que por seus contornos físicos.

Do anti-espaço arquitetônico até as novas possibilidades de diálogo com

os diversos lugares da arte, abertas na contemporaneidade, Kwon explica esse

retorno como uma conexão mais íntima com o cotidiano das cidades em

confronto à auto-referência de algumas propostas de teor conceitual – a arte

discutindo e criticando a si mesma.

(...) se a crítica do confinamento cultural da arte via suas instituições foi a “grande questão”, um impulso dominante de práticas orientadas para o site hoje é a busca de um engajamento maior com o mundo externo e a vida cotidiana – uma crítica da cultura que inclui os espaços não especializados, instituições não especializadas e questões não especializadas em arte (em realidade borrando a divisão entre

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arte e não-arte), preocupada em integrar a arte mais diretamente no âmbito social9.

Estas diferenças conceituais assumem contornos mais nítidos quando

comparamos dois trabalhos de Carl Andre e Gordon Matta-Clark. Nas obras: 37

Pieces of Work, de Andre (1969); e Office Baroque, de Matta-Clark (1977); os

artistas atuam sobre o piso da edificação onde as obras se inserem. A proposta

de Andre atrai o olhar do observador ao piso pelo fato de se colocar sobre ele.

Ao mesmo tempo em que observa e avalia as características visuais, a

disposição e o arranjo das lajotas, o visitante da galeria poderia investir-se de

um nível de consciência maior do que o usual em relação ao ato de caminhar.

Seus pés pisando um assoalho de madeira, evitando as lajotas metálicas...

Qual seria a sensação de andar sobre elas? E que sensação tenho agora?

Estabelece-se uma relação com o ambiente por meio da comparação entre

esses dois elementos bem distinguíveis: obra e piso.

Carl Andre: 37 Pieces of Work, 1969

9 KWON, Miwon. Op. cit. p. 24.

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Gordon Matta-Clark: Office Baroque, Antuérpia, Bélgica, 1977

De outro modo, nos deparamos com uma intervenção de Matta-Clark,

como Office Baroque, na qual o próprio piso é convertido em material de

trabalho e foco da experiência perceptiva. O público não tem um elemento

contrastante para guiar o olhar e o deslocamento. A arquitetura, de um

coadjuvante competente, passa a ser protagonista da visão e dos

deslocamentos. Sem separação entre obra e ambiente, a arte aqui é o próprio

ambiente modificado pelo artista.

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Desta maneira, o mais recente movimento de ampliação do campo da

arte, incorporando esse engajamento com a arquitetura e com a cultura

favorece o trabalho nos locais “públicos” fora dos confins tradicionais da arte

em termos físicos e intelectuais. Com esses novos contextos acrescentados à

experiência física do observador, o termo site-specific seria oportunamente

seguido pela noção de in-situ10,utilizada por Daniel Buren para descrever não

apenas a posição e os materiais, mas também os fatores históricos, políticos e

sociais presentes em uma determinada situação espaço-temporal na qual a

obra se insere. Os lugares participam das obras como fonte geradora de

formas e são o terreno final de construção crítica e debate.

Pode-se, a partir de Daniel Buren, considerar que a primeira característica de uma obra in-situ consiste em opacificar, e assim tornar visível, a circunstância em que ela é vista e não apenas seu lugar. (...) a noção de site-specificity caracteriza de maneira muito imperfeita as modalidades de referência, pois na maioria das vezes ela mantém a idéia de que a obra pertence ao lugar e não o contrario11.

A partir das considerações sobre o "espaço minimalista", tão bem

determinado em seus limites concretos, suas origens e reverberações teóricas;

chego a questionar se seria possível estabelecer parâmetros definidos para as

fronteiras conceituais de um novo "espaço contemporâneo". Este território que

foi prolongado nas brechas do discurso fenomenológico e que abrange um

número de variáveis capazes de reduzir a distância entre o pensamento

artístico e a vida, independente das referências à linguagem ou aos conceitos

da arte. Ocorre perguntar: de que maneira essa interação tão próxima entre a

10 "A escolha por trabalhar In-situ significa realizar uma obra em um lugar e de modo específico para aquele lugar. O primeiro passo – o mais difícil – é misturar-se com as características do local, levando em conta sua historia e procurando colher a natureza, o dialogo com a arquitetura e até com as pessoas que vivem ali. É indispensável tentar imaginar os modos nos quais o trabalho poderia interagir ou ser fruído, partindo exatamente do ponto onde é colocado. Uma obra perturba o ambiente no qual é inserida: além das "dinâmicas de reação" que ela poderia desencadear, contam as "dinâmicas de relação" e as "mutações na percepção". Em maior razão em um lugar familiar". FONTANA Sara; GIUSTACCHINI Enrico. Buren e l’utensile visivo. Revista virtual Oggi 7, 10 de agosto de 2008. Acessado em: http://www.oggi7.info/2008/08/21/1235-buren-e-l-utensile-visivo. Trecho traduzido por Tiago Giora. 11 POINSOT, Jean Marc. “L’in-situ et la circonstance de sa mise en vu [au] musée”. Les Cahiers du Musée National d’Art Moderne Centre Georges pompidou, n.28, 1989. Apud JUNQUEIRA, Fernanda. In: Revista Gávea n.14. Rio de Janeiro: PUC. Setembro de 1996, p.571.

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arte e o cotidiano contribui para a formação de um espaço comum? E quais são

as características peculiares deste espaço?

Em sua produção

textual, Daniel Buren dá

seqüência às considerações

sobre a arte na cidade e

expõe suas idéias a respeito

do papel dos museus e

galerias, sobre o lugar da

arte na sociedade e as

relações entre a intervenção

e o contexto humano e

espacial. Estes textos foram

sendo produzidos

paralelamente a uma serie

de intervenções urbanas nas

quais o artista investiga o

assunto à luz de sua

definição de in-situ e a partir

de suas próprias propostas

assim como das obras de

outros artistas. A instalação

Tilted Arc (1981) de Richard Serra12; constitui uma situação exemplar e nos

permite discutir essas questões sob os pontos de vista de mais de um dos

autores trabalhados nesta pesquisa.

Tilted arc foi concebido especificamente para o local em questão,

seguindo uma rotina de projeto que é comum para os trabalhos deste artista e

12 Richard Serra, escultor, desenhista e vídeo –maker americano. Nascido em São Francisco em 1939, estudou nas universidades da Califórnia e de Yale. Estabeleceu-se em Nova York onde conheceu Eva Hesse, Steve Reich, Judd, Nauman e outros. Trabalho inicialmente com borracha, incluindo peças penduradas ou emaranhados; a partir de 1969 passou a interessar-se primordialmente em cortar, apoiar ou empilhar placas de aço, madeira rústica, etc... Para criar estruturas, algumas muito grandes, suportadas apenas por seu próprio peso. Desde 1970-1, tem produzido varias peças em larga escala e peças "ambientais", assim como desenhos monumentais em carvão ou bastão de tinta. Fonte: http://www.tate.org.uk/servlet/ArtistWorks.

Richard Serra: Tilted Arc, Federal Plaza, NY, 1981

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que envolve medições, transporte de material e um complicado aparato técnico

posto em prática em nome de um resultado formal esperado. Nem mesmo o

grande impacto visual causado pela obra instalada na praça chega a ser uma

novidade, ao interno de uma produção que inclui muitas esculturas

monumentais em espaços públicos e privados. "O que é novo, em

compensação, é a recusa irrevogável de Serra em ceder aos pedidos de

transferência da obra, fato que em muitos casos similares jamais pareceu lhe

causar problemas muito sérios, nem uma posição intransigente e irreversível"

(Buren, 2001: 171).

Essa atitude prova que, pelo menos neste caso, ele não esgotou até o fim as exigências que uma obra in-situ requer de seus executores, uma vez que, tanto quanto o autor da encomenda, aparentemente não estudara os usos e costumes do lugar em questão. Sem essa negligencia, teria notado que sua obra obrigaria os habituais freqüentadores do lugar a fazer um desvio, e que esse fato seria matéria de discussão13.

Na visão de Buren, um campo de ação tão rico em referências como uma

praça comercial em meio a um grande centro urbano não poderia ser reduzido

a uma situação espacial, desconsiderando os percursos e os usos do espaço.

Sua posição sugere uma compreensão mais ampla da problemática envolvida

pelo trabalho do artista. E suas obras se valem mais de imagens e códigos

visuais para questionar justamente o funcionamento dessa interação entre arte

e sociedade, numa dinâmica que se conecta mais fortemente à cultura do que à

percepção, tratando antes de questionamentos do que de sensações. São

diferenças fundamentais que refletem caminhos diversos tomados desde a

formação desses artistas e a comparação de suas obras ou de seu

entendimento acerca do espaço, só poderia mesmo ser feita segundo um único

elemento comum: a cidade.

A identificação da obra de Serra com as estratégias Minimalistas e com a

fenomenologia da percepção possivelmente nunca seria confrontada com

13 Daniel Buren, ""Textos e entrevistas escolhidos", (1967-2000), p.170.

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noções voltadas à racionalidade e à história. Não fosse talvez o fato de que ela

ter sido instalada diretamente em uma passagem de pedestres e relacionando-

se com o espaço urbano. Esse terreno sem molduras, livre da mediação

institucional da arte promovida pelos museus, galerias e afins; tem sido um dos

ambientes preferenciais das correntes que visam tecer relações mais íntimas

com a vida cotidiana. É o território por excelência da contaminação dos meios

e, assim, torna-se difícil para muitos artistas e críticos tais como Buren, devolver

ao objeto artístico, a autonomia temporal e funcional já rejeitada pelas

propostas contextuais.

Quando se instala no espaço público um obstáculo de aço que obrigatoriamente precisa ser contornado, corre-se o risco de levantar um obstáculo – este sim, público – muito mais difícil, senão impossível de contornar. Se, em contrapartida, Richard Serra tivesse realmente observado esse fenômeno e, mesmo com conhecimento de causa, decidido ignorá-lo, poderíamos dizer que essa peça, por mais inteligente que fosse, constituía também pura provocação, e toda provocação tem resposta14.

Da perspectiva de Serra a questão parece ser enfrentada de um ponto de vista bem mais

formalista: os espaços são vistos como tabuleiros onde o artista atua livremente segundo sua

vontade criativa. O peso do aço, o modo de sustentação das placas, o recorte no espaço e a

presença maciça da gigante placa curvada são elementos importantes em muitos dos seus

trabalhos urbanos e atuam em conjunto para construir uma visualidade muito potente que

interage na paisagem de forma impactante. A própria escala da obra de Serra já sugere que a

convivência com o público seria dificilmente neutra e pacífica. Parece realmente claro que o

observador para ele é considerado enquanto um corpo que se move no espaço, matéria que

interage e se distorce enquanto percorre a obra com olhos e pernas.

Assim enquanto a crítica de Buren parece justificar-se de acordo com os parâmetros

hiper-contextuais da arte in-situ, o trabalho de Serra, vale-se da monumentalidade e da

modelagem do espaço de trânsito para manter uma relação muito forte com o individuo. Em

contato como obstáculo, ele é levado e reposicionar-se no momento espaço-temporal presente e

desenvolve a consciência de sua existência dentro do universo imediato. “Quero ver como as

14 IBID, p. 171.

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pessoas se estruturam em relação ao espaço enquanto elas caminham. Elas se tornam o sujeito

de sua própria experiência" (Serra, 2008. Declaração colhida em entrevista do artista no circuito

"Fronteiras do Pensamento", Porto Alegre, Brasil).

Considero que as questões aqui levantadas podem ir além da

comparação entre diferentes maneiras de trabalhar no espaço, saindo dos

museus e galeria e chegando às áreas públicas. Elas procuram delinear as

bases para a configuração de um olhar mais atento que aponta a arte em

direção à arquitetura e os objetos de uso cotidiano. Neste direcionamento que

tende a abarcar as formas, a história e os usos do espaço; as propostas

urbanas se constituem como uma possibilidade de atuação em meio ao

ambiente por excelência da vida nas sociedades contemporâneas organizadas

e suas reverberações podem também penetrar em um universo mais amplo de

análise.

A desaceleração do ritmo de percepção, numa proposta artística que

está intimamente ligada com a vida. A experimentação da concretude de um

mundo que tende cada vez mais ao virtual: que tipo de impacto o espaço físico

pode causar nas pessoas? E o que deve aspirar o artista que atua neste campo

em contínuo processo de ampliação? Alterar o desenho das estruturas tangíveis

da cidade como caminho para construir uma arquitetura menos funcional que se

inclina para o campo da arte... Ou ainda trazer da arte uma visão atenta e

crítica que coloca em questão os espaços definidos pela ação do artista e se

estende até os lugares percorridos e habitados pelos transeuntes no curso

normal de suas vidas?

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Imagens: Imagem 01

Bruce Nauman: Corridor, 1968-70. Corredor com circuito interno de TV. 518cm

x 1219cm x 91,44cm. Coleção Dr. Giuseppe Ponza. (Foto Rudolph Burckhardt).

Fonte: KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo:

Martins Fontes, 1998, p. 287.

Imagem 2

Carl Andre: 37 Pieces of Work, 1969.Alumínio, cobre, aço, chumbo, magnésio

e zinco. Dimensões totais 10,97m x 10,97m: 1296 unidades, 216 de cada

metal, cada unidade 30,5cm x 30,5cm x 1,9cm. Coleção Dwan Gallery, Nova

York. Como instalada para a exposição 'Carl Andre' no piso de rotunda do

Museu Salomon R. Guggenheim, Nova York. (Foto: Robert E. Mates e Paul

Katz).

Fonte: ARCHER, Michael. Art since 1960. London: Thames & Hudson, 2002, p.

57.

Imagem 3

Gordon Matta-Clark: Office Baroque, Antuérpia, Bélgica, 1977. Intervenção em

pisos e paredes de um edifício. Espolio de Gordon Matta-Clark.(Foto: Gordon

Matta-Clark).

Fonte: GORDON MATTA-CLARK. Londres: Phaidon, 2003, p.115.

Imagem 4

Richard Serra: Tilted Arc, Federal Plaza, Nova York 1981. Aço Cor-tem 3,66m x

36,60m x 6.25cm. Coleção The Place Gallery, Nova York.

Fonte: HUGHES, Robert. The shock of the new. Londres: Thames & Hudson,

1991, p. 370.

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REFERÊNCIAS:

Archer, Michael. Art since 1960. London: Thames & Hudson, 2002. Ardene, Paul. Un art contextuel. Paris: Flammarion, 2004. Batchelor, David. Minimalismo. São Paulo: Cossac&Naify, 1999. Buren, Daniel. Textos e entrevistas escolhidos [1967-2000]. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2001. Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. Ferreira, Glória; COTRIN, Cecília. Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2006. Hughes, Robert. The shock of the new. Londres: Thames & Hudson, 1991. Klabin, Mangia (Org.). Richard Serra. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1997. Krauss, Rosalind. A escultura no campo ampliado. The anti-aesthetic: essays on postmodern culture. Washington, D.C.: 1984. Krauss, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Kwon, Miwon. One place after another: site specific art and locational identity. Cambridge/London: MIT Press, 2002. Marc, Auge. Non-places: introduction to an athropology of supermodernity. Londres: Verso, 2006. Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006. O’Doherty, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Revista FACE: espaço, lugar e local. Disponível em: <http://www.pucsp.br/pos/cos/face/espaco.htm>. Acesso em: 8 mar. 2009.

Warr, Tracey; JONES, Amelia (Org.). The artist's body, themes and movements. London: Phaidon, 2000.

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Ensaios

Crítica de Arte:

Esfacelamento ou mudança de atitude frente aos processos

artísticos contemporâneos? Karine Gomes Perez1

Nos escritos sobre crítica de arte contemporânea, deparamo-nos,

freqüentemente, com afirmações acerca de sua crise. Fala-se do

emudecimento e da impotência da crítica frente às produções contemporâneas.

Tais afirmações não estariam sendo veiculadas em razão de sua menor

ocorrência na imprensa de grande circulação, como nos jornais, os quais lhe

reservam espaço reduzido para um sucinto comentário a propósito dos

acontecimentos do cenário artístico? Além disso, esse emudecimento da

crítica, principalmente no que se refere à aliança entre arte e tecnologia, não

estaria acontecendo em virtude de essas produções não se tratarem

necessariamente de objetos acabados?

Como a importância de grande parte das produções contemporâneas

não está centrada no resultado formal da obra acabada, Ane Cauquelin

(2005b) verifica que parte da crítica, ao abordar tais produções, tende a

discorrer em torno do contexto das obras, da biografia do artista e das relações

destas com determinados movimentos, não da obra em si.

Se considerarmos que estamos diante de um esfacelamento da crítica,

devemos refletir acerca de quais parâmetros estamos nos baseando para

pensá-la. Estaríamos apegando-nos num retorno à crítica de arte surgida com

Diderot, embasada num julgamento de gosto, evocado por Kant, com

comentários endereçados ao público? Em caso positivo, estes seriam

aplicáveis à pluralidade da arte contemporânea?

1 Artista e Mestre em Artes Visuais, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (bolsista CAPES 2008-2010). Bacharel e Licenciada em Desenho e Plástica pela UFSM. Membro do Grupo de Pesquisa Arte e tecnologia/CNPQ. Integra o LABART e a Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa.

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De acordo com Cauquelin (2005a), não podemos analisar as

manifestações artísticas atuais sob as seguintes concepções modernas:

continuidade marcada pela inovação; progressão histórica e tecnológica; arte

em ruptura com suas formas instituídas; compreensão de que o valor de uma

obra esteja contido nela própria; autonomia da arte, arte desinteressada e

idealista; comunicabilidade universal das obras, baseada na intuição sensível

(juízo de gosto); ideia do “sentido”, através da qual o artista expõe a verdadeira

natureza das coisas. Igualmente, não devemos nos deter, necessariamente,

nos valores modernos de originalidade, unicidade e autenticidade para avaliá-

las.

Talvez, seja em razão da decadência de critérios pré-estabelecidos para

avaliação da arte que a crítica pareça esfacelada. Nesse sentido, o que pode

estar acontecendo é uma mudança de atitude por parte da crítica, provocada

pelas transformações ocorridas na arte, pois, conforme Arthur Danto (2006), as

produções artísticas são pluralistas e, por essa razão, exigem uma crítica de

arte não excludente nem homogeneizadora. Isso vai ao encontro da

desconfiança em relação aos discursos totalizantes e homogêneos, presente

em nosso tempo. Assim, Mônica Zielinsky (2003) afirma que as obras exigem

uma visão da alteridade, da contextualização e do relativismo. Por isso,

numerosos autores propõem a ideia de debate crítico, que significa dar lugar a

uma pluralidade de pontos de vista, sendo ele fonte de divergências, cujo

objetivo consiste na aprendizagem de críticos junto a outros críticos.

O crescente enfraquecimento das fronteiras que separam as atividades

exercidas pelos diversos agentes do campo artístico também pode ser

desencadeador de mudança de atitude por parte da crítica. O artista, por

exemplo, já não assume apenas o papel de produtor de obras de arte,

adotando múltiplas funções no fomento de atividades de arte contemporânea,

como: crítico, membro de júri, curador, etc.

Esses fatores levam o artista a ingressar no terreno da crítica, por meio

do uso da palavra, o que, de acordo com Glória Ferreira e Cecília Cotrim

(2006), deve-se à crescente intelectualização desse profissional, com

tendência à formação universitária, e à sua participação nas definições e

maneiras de circulação da arte.

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No período da arte moderna, o artista produzia escritos, porém, eram

diferentes dos atuais, já que se tratavam de manifestos e textos teóricos,

anunciadores dos destinos da arte. Esses textos buscavam atingir o público em

geral, apresentando as justificativas e posicionamentos dos artistas com

relação à arte.

Os textos contemporâneos, por sua vez, não visam a estabelecer os

princípios de um futuro utópico, como os manifestos modernos; focalizam os

problemas correntes ao próprio processo artístico, sendo compostos em

sincronia com a experiência artística. Desse modo, os escritos de artista

diferem dos demais por sua flexibilidade estrutural, metodológica e teórica.

Essa tomada da palavra pelo artista leva-o a responsabilizar-se pela

interpretação de seu trabalho, incorporando a crítica e a história da arte como

matérias do processo operatório da obra. Isso pode transmitir a falsa ilusão de

que a atividade do crítico não seja importante, pois o próprio artista está

autorizado a falar de sua obra. Entretanto, não é uma verdade, já que são

modos diversos de abordagem crítica: uma fala de dentro do processo artístico

e outra, de fora. O crítico não precisa abordar as mesmas questões que o

artista, usando conceitos não pensados no momento da criação. Deve analisar

aspectos formais, técnicos, temáticos, estilísticos da obra e suas relações com

o contexto histórico e sociocultural.

O enfraquecimento das fronteiras que separam as atividades exercidas

pelos diversos agentes do campo artístico não ocorre somente no emprego da

crítica pelo artista. Conforme Zielinsky (2003), a crítica de arte recai em outras

atividades e procedimentos confundidos com ela, como no trabalho dos

curadores, nas notícias da mídia, em atividades didáticas ou na mediação

informativa sobre a arte.

Por outro lado, o crítico concebe sua atividade como artística, criativa,

em particular a curadoria. A subjetividade autoral do curador tem sido exercida

como a do artista, na esfera da visibilidade; desse modo, o formato da

exposição passa a instituir-se como obra autônoma.

Glória Ferreira (2006) observa que o trabalho curatorial tem

transformado o estatuto da crítica de arte, entre o conhecer e o julgar. Em sua

concepção, esse trabalho combina, em um frágil campo de associações, as

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obras e o discurso, operando como um mediador de intenções em prol do

contexto da apresentação, ao invés do objeto.

Para Fernando Cocchiarale (2006), a mediação crítica do curador

respalda-se no discurso, na esfera da visualidade, produzindo questões

extraestéticas, temáticas, que emprestem sentido à dispersão aparente em que

nos encontramos. Esse profissional deve escolher, selecionar, sustentar as

múltiplas produções artísticas a partir de vias que lhe parecem fecundas. Ao

invés de discernir, distinguir e julgar, ele passa a atuar pelos caminhos da

comunicação, da pedagogia e do comentário.

Uma alternativa para a crítica talvez esteja nas proposições de Ursula

Rosa da Silva, as quais sustentam que ela deve dar suporte à apreciação

estética, ser instigante, provocativa e, sob certos aspectos, didática, no sentido

de aproximar o público da arte. Para a autora, a crítica não deve dar

significados prontos ao espectador, pois é um espaço de ressignificação

constante. Portanto, cabe ao curador de exposições a construção de um

espaço de experiência, acompanhado de texto ensaístico, podendo ser

considerado, junto à própria exposição em si, um dos lugares do discurso

crítico, da produção de sentido e da vivência de experiências estéticas.

Outra possibilidade pode estar no pensamento do autor alemão Carl

Einstein, analisado por Didi-Huberman (2003), no livro Fronteiras: arte, crítica e

outros ensaios, em que propõe uma leitura genealógica da obra de arte

(condições de geração das obras) sob o ritmo de suas destruições e

sobrevivências, de seus anacronismos e regressões. Essa leitura genealógica

da obra de arte vai ao encontro do pensamento de Icleia Cattani, a qual

destaca a importância, na análise das poiéticas, dos processos de instauração

das obras. Essa questão é fundamental quando se trata de obras que parecem

similares, pois, ao pensarmos no processo de cada artista, percebemos suas

diferenças, importantes para a análise das obras contemporâneas.

Principalmente, para aquelas feitas às margens do sistema dominante das

artes, tendo em vista que, freqüentemente, são pensadas em termos de

influências de outras obras, as quais teriam servido de “modelo”. Assim, é

fundamental ao crítico centrar atenção nos processos e tomar cada obra em

seus próprios termos, porque, como não temos critérios de análise pré-

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estabelecidos para avaliar a arte contemporânea, eles são elaborados caso a

caso.

A crítica de arte, encarada como atividade judicativa, apoiada em um

consenso universal, apontado por Kant, perde essa função frente à diversidade

dos processos artísticos contemporâneos e da mistura de papéis

desempenhados pelos diversos atores da cena artística. Em sua atuação, a

crítica incorpora o debate e a análise dos processos dos artistas. Dessa forma,

ela não está banida do campo da arte, mas confunde-se com outras atividades,

passando a ser da alçada de variados agentes, como o curador, que deve

incorporá-lo ao seu discurso. Ela também está presente nos escritos de artista

e no interior de variadas obras, constituídas de conteúdo crítico, questionando

a própria noção de arte.

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Referências

CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea, uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005a. ______ . Teorias da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005b. COCCHIARALE, Fernando. Crítica: a palavra em crise. In: FERREIRA, Glória (org.) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006. (Col. Pensamento Crítico). DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. São Paulo: Odysseus/Edusp, 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl Einstein. In: ZIELINSKY, Mônica (org.) Fronteiras. Arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: UFRGS. 2003. FERREIRA, Glória (org.) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006. (Col. Pensamento Crítico). ______ e COTRIM, Cecília. (orgs.) Escritos de artistas 1960/1970. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. SILVA, Ursula Rosa da. Crítica, arte e estética: espaços para ressignificar. In: BERTOLI, Mariza; Stigger, Verônica (orgs.) Arte, Crítica e Mundialização. São Paulo: ABCA, 2008. (Col. Crítica de Arte).

ZIELINSKY, Mônica (org.) Fronteiras. Arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: UFRGS, 2003.

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Ensaios

Arte e sistema: onde está a arte? Paula Frassinetti

“Na era moderna, uma das mais ativas metáforas para o projeto espiritual é a

arte” (Susan Sontag)

A essência filosófica da modernidade é eurocêntrica, o que veio após a

revolução moderna se assenta na razão iluminista. Vive-se a intensificação das

mudanças ocorridas por meio das revoluções Francesa e Industrial e o

Iluminismo. Surge então a Racionalidade pautada nos interesses burgueses e

associada à noção de domínio do saber, uma especialização científica

característica do ocidente. Afirmar isto não significa dizer que a racionalidade

seja algo ausente em outras culturas, mas diferente da singularidade capitalista

eurocêntrica, na qual a razão é entendida como bem cultural. No universo

artístico não é diferente, pois a arte é integrante da cultura, não está acima da

sociedade. No decorrer histórico das mudanças artísticas é possível observar

uma racionalização cada vez maior, vide o surgimento da arte conceitual.

Houve um gradual abandono da realização artística em si, em nome das

discussões teóricas. O efeito de encantamento estético deixa de ser o

elemento principal na obra de arte.

A arte conceitual aparece como uma revisão da noção de obra de arte

arraigada no ocidente. Deixa de ser primordialmente visual e passa a ser

considerada como idéia e pensamento. Muitos trabalhos que se expressam

através da fotografia, filmes ou vídeo como registro de ações e exposição dos

processos, em oposição à noção tradicional de objeto e suporte de arte são

geralmente designados como arte conceitual. Além da crítica ao formalismo,

alguns artistas conceituais criticam as instituições, o sistema de seleção e

legitimação de obras e o mercado de arte.

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George Maciunas, um dos articuladores Fluxus, redige em 1963 um

manifesto que indicam os eixos norteadores deste movimento, que diz:

“[...] Purgar o mundo da doença burguesa, ‘intelectual’, cultura profissional e

comercializada. Purgar o mundo da arte morta, imitação, arte artificial, arte

abstrata, arte ilusionista, arte matemática, - purgar o mundo do ‘europanismo’!

[...] Promover uma enchente e uma maré revolucionária na arte, promover arte

viva, anti-arte, promover realidade não artística a ser entendida por todos, não

somente críticos, diletantes e profissionais.”1

Por meio de livros, periódicos e catálogos se tem hoje contato com

instruções Fluxus e é possível (re)fazê-las. Paradoxalmente, conhecem-se

materialmente alguns dos cartões originais por pertencerem a museus e

acervos. Quando exibidos em exposições nem sempre se pode lê-los

completamente, uma vez que os enunciados das partituras estão

freqüentemente cobertos quando os cartões são expostos sobrepostos,

protegidos por vitrines e legitimados por etiquetas de identificação. Ao

migrarem para coleções e instituições, serem consolidados como Arte e

historiados pertencendo ao passado, Fluxus (por seus objetos residuais ou os

cartões-partituras e respectivas caixas e publicações) seguiu àquilo que

negava em seu princípio tendo seu movimento e premissas congelados. Em

seu momento histórico, o movimento Fluxus foi revolucionário e contestador do

sistema, mas logo foi legitimado por este. Marcel Duchamp, ícone da arte

contemporânea que intencionou destruir o mito do fazer artístico, tornou-se ele

próprio um mito. O sistema capitalista absorve as próprias contradições para

agregar valor de mercado. O “novo” e “revolucionário” têm um espaço de vida

curto, pois logo será integrado ao sistema e se transforma em tradição. Logo,

vive-se à espera da próxima revolução. A contemporaneidade é marcada pelo

desencantamento do mundo, criação de novos mitos e desagregação de

antigos valores, pois o modo de produção capitalista não tem identificação com

o passado, há a constante ressignificação dos símbolos tradicionais para que

1 In: Manifesto Fluxus. Primeira distribuição durante apresentação de dois dias na Düsseldorf Kunstakademie chamada Festum Fluxorum Fluxus, Düsseldorf, 2 e 3 fev. 1963

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sejam transformados em bens mercantis. A busca permanente por identidades

singulares é reflexo da limitação das metanarrativas, que devem ser

redefinidas, pois há uma necessidade de autocrítica para que se possa

entender as micro-manifestações sociais. A hegemonia dissolve o indivíduo e

prioriza a massa já consolidada. A busca pelas singularidades sociais em

micro-realidades aponta para o desejo de integrar ao repertório hegemônico

novos signos de consumo. É desse processo que surge a figura do artista

como um pesquisador, trazendo à tona leituras e aspectos do social não

evidentes para o senso comum. A fotografia e videoarte são suportes

testemunhas da busca contemporânea pelo exotismo estético, o recente

direcionamento do olhar, em registros e intervenções, para a América do Sul e

culturas distantes do centro hegemônico de produção artística. O que

aconteceria se a América Latina se unisse e, convertida em potência

planetária, impusesse sua cultura e sua perspectiva ao resto do mundo? A

pergunta move a Trilogía Iberoamericana, saga épica futurista pop criada pelo

artista uruguaio Martín Sastre, entre 2001 e 2005. Irônica, a Trilogía conta

como, num futuro não muito distante, o império de Hollywood está morto e o

continente americano, unificado no império Bolívia 3, reinvidica o controle da

ficção mundial. Martín faz alusão a ícones ocidentais de todas as estaturas –

de Matthew Barney a Tom Cruise, de Nancy Reagan a Hello Kitty, de Britney

Spears aos Pokémons –, os três episódios são conduzidos pela figura-chave

do próprio Sastre, no papel do artista periférico que procura, encontra e desafia

seu lugar no circuito internacional da arte. No primeiro vídeo da trilogia,

Videoart – A Lenda Iberoamericana (13’, 2002) inicia-se a saga pelo controle

da ficção no mundo. Cruzando referências pessoais, com ícones da cultura pop

internacional, estereótipos latinos, gêneros de narrativas do audiovisual e

acontecimentos políticos, Sastre problematiza uma época em que ficção e

realidade já não trazem distinções.

Existe uma forma de pensar a arte como “desafiante da sociedade”, mas

o espaço social já não sofre impactos de pequenos desafios. O

ativismo/artivismo ‘’desafiador’’ da sociedade é vago e está ligado a contestar o

conceito de arte diante das pessoas que participam do cotidiano do sistema

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artístico contemporâneo, ou seja, arte para artista ver. A fruição da obra de arte

contemporânea pede uma precedente contextualização, pois hoje não há uma

leitura imediata do produto artístico, visto que o próprio processo de produção

faz parte da obra. O Neoísmo, vanguarda que emergiu da Rede da Mail Art no

final dos anos de 1970, tem Stewart Home como seu principal idealizador.

Entusiasta do plágio positivo, o autor sustenta que a grande vantagem do

plágio como método literário é que este descarta a necessidade do talento e

assim abre as portas da expressão artística não apenas para aqueles que

passaram por uma academia de belas artes, mas a qualquer indivíduo que

tenha algo a dizer. No livro “Manifestos Neoístas / Greve da Arte”, o próprio

autor estimula iniciantes no movimento a plagiarem seus textos. “Atacamos o

culto ao indivíduo, os ‘eu-mesmistas’, as tentativas de se apropriar de nomes e

palavras para um uso exclusivo. Rejeitamos a noção de copyright. Pegue o que

puder usar. Afirmamos que o plágio é o verdadeiro método artístico moderno.

O plágio é o crime artístico contra a propriedade. É roubo, e na sociedade

ocidental o roubo é um ato político”. (HOME, Stewart. Manifestos Neoístas /

Greve da Arte). O Neoísmo é uma filosofia prática que faz, tanto na forma

quanto no conteúdo, uma crítica estrutural à individualidade, às artes elitistas e

acadêmicas e ao capitalismo. O movimento se ambienta na divagação

filosófica e nos corações mais românticos em relação ao ser em sociedade,

mas enquanto não for legitimado como produto pelo sistema, não surte efeito

de mudança real (em massa) e proliferação da própria existência.

A arte como “sublimação do ser” talvez seja possível hoje somente no

contexto microestrutural, na tentativa de desconstruir padrões estereotipados

do próprio fazer artístico e do “exotismo estético” tão cultuado atualmente. A

arte tem o poder de fetichizar objetos e contextos culturais, pois colocando em

evidência as manifestações sociais, o detalhe despercebido pela massa no

cotidiano, o artista pode supervalorizar elementos antes invisíveis. É nessa

linha tênue que se esconde a arte? Arte e encantamento, juntos até que o

mercado hegemônico vos separe.

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Bibliografia HOME, Stewart. Greve da Arte / Manifestos Neoístas. São Paulo: Conrad, 1993.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 2006.

FREIRE, Cristina. Afasias na crítica de arte contemporânea. Os lugares da crítica de arte. São Paulo:ABCA/ Imprensa Oficial do Estado, 2005. p.63 a 75.______. Poéticas do Processo. São Paulo: Iluminuras, 1999. ZANINI, Walter. Catálogo da 17ª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1983. JAMESON, Frederic, Pós-Modernismo. São Paulo: Ática, 1997. HABERMAS, Jürgen, A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002. _________________. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990.

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Ensaios

Olhares múltiplos: conferências marcam início das

atividades do recém-inaugurado curso de História da Arte Rosane Vargas

Nos dias 30 e 31 de março, o Instituto de Artes da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul (Ufrgs) promoveu os eventos inaugurais do Bacharelado

em História da Arte. Os conferencistas, professores doutores Armindo Trevisan

e Tadeu Chiarelli, escolheram abordagens diferentes entre si, mas ambas

instigantes, sobre como, a partir da história da arte, de seus produtores,

contempladores e consumidores, podem ser traçados caminhos para que se

conheça mais daquilo que comumente se chama “essência humana” e

investigar relações que constituem ou podem vir a constituir uma identidade

nacional.

“Arte é uma forma privilegiada de amar algo ou alguém”1

(Armindo Trevisan)

Uma abordagem subliminal da história da arte (reflexões de um ex-

professor) foi o tema da conferência do professor aposentado Armindo

Trevisan, no dia 30. Doutor em Filosofia, poeta e historiador da arte, ele

lecionou História da Arte e Estética na Ufrgs e foi docente no Programa de Pós-

Graduação em Artes Visuais da universidade2. Contrariando o conhecido

currículo, Trevisan começou a conferência dizendo que nunca se considerou

um historiador da arte, mas um estudioso do fenômeno artístico. Para ele,

somente pode ser chamado de historiador quem se dedica à investigação das

fontes primárias, a análises técnicas e outras questões para as quais afirmou

não ter paciência ou formação.

1 Frase proferida durante a conferência inaugural do Bacharelado em História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 30 de março de 2010. 2 Armindo Trevisan é autor de vários livros sobre arte, como Escultores contemporâneos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ufrgs, 1983; Como apreciar a arte. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990; e O rosto de Cristo. Porto Alegre: AGE, 2003.

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Nas artes visuais, a palavra ficção adquire plausibilidade, afirmou o

conferencista. Isso porque a arte é resultado da imaginação somada ao

produto da mão do homem. O contemplador da obra de arte tem consciência

de estar vendo uma ilusão com sentido; nas palavras de Trevisan, uma

“alucinação domesticada”. A arte revela uma porção de coisas, disse o

professor, mas só a revela aos mais atentos. A partir dessas afirmações, pode-

se apreender que, para Trevisan, existe uma espécie de acordo ou convenção

entre espectador e artista no processo de produção e consumo da arte. Pode-

se perceber também um convite e uma provocação para que se tente ir além

de um simples olhar. Seria também uma sugestão/afirmação de que o

espectador não tem um papel passivo nessa relação?

Afinal, por que o homem faz arte, mesmo nas condições mais

precárias, se poderia produzir somente coisas práticas, utilitárias? Trevisan

convidou os presentes a imaginarem as condições em que foram produzidas as

pinturas na Pré-História. E repetiu as indagações do etnólogo e arqueólogo

André Leroi-Gourhan: o que revelariam, se existissem, os fósseis verbais? O

que nos contariam das motivações desses precursores da produção simbólica?

Falando sobre a “magia” dos animais pintados nas cavernas, Trevisan disse

acreditar que, mais que uma possibilidade de poder sobre os animais, os

caçadores pretendiam o poder da antecipação, da imaginação do futuro.

O homem também produz arte, disse Trevisan, citando a Bíblia,

porque não é bom que o fique só. E concluiu, poeticamente, “Eva poderia ter se

chamado arte”. O ser humano produz arte, afirmou o professor, porque deseja

transcender sua essencial solidão, porque precisa comunicar, revelar o que

existe em sua intangível psique.

Fazendo uma comparação entre amor e arte, o conferencista disse

que ambos buscam converter a solidão em comunhão. O espectador de uma

obra de arte e o leitor de uma obra literária, na concepção de Trevisan, podem

ser considerados amantes de quem as produziu. O professor disse que sempre

acreditou na dimensão subliminal da arte, que seria um “magnífico abraço no

semelhante”. Em vários momentos, ele falou dessa relação entre artista e

espectador, quase como uma troca amorosa. É possível perceber, também

pelo uso de metáforas comparando a arte à mulher amada, que, para Trevisan,

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a arte tem muito de carnal, físico. Por esse motivo, ele disse que considera um

dos males da arte contemporânea o fato de o artista deixar de usar as mãos

em seu fazer. Afinal, para o professor, não existe corpo sem visibilidade.

“O papel do historiador da arte tem que ser crítico,

problematizador das verdades instituídas”3

(Tadeu Chiarelli)

A repetição diferente: arte no Brasil nos séculos XX e XIX foi o tema

da conferência proferida pelo professor Tadeu Chiarelli4, dia 31. Docente da

Universidade de São Paulo, curador e crítico de arte, ele apresentou o que

chamou de tentativa de pensar as relações possíveis do modernismo brasileiro

com a produção artística do país no século XIX. Chiarelli disse que não traria

um assunto definido, mas algo em formulação, que ainda se amadurece e que

pode levantar a possibilidade de uma revisão da história da arte brasileira.

Em sua pesquisa, o professor busca estabelecer relações entre dois

diferentes tipos de obras produzidas entre a primeira metade do século XX e a

segunda metade do século XIX no Brasil. No primeiro grupo, ele analisou

quatro pinturas realizadas, respectivamente, por Lasar Segall, Anita Malfatti,

Tarsila do Amaral e Cândido Portinari. O segundo grupo é formado por retratos

de Dom Pedro II. A esses dois grupos foram contrapostas algumas pinturas de

Almeida Júnior, com a intenção de tornar mais complexos os problemas

levantados.

Na obra Bananal, de Lasar Segall, 1927, a composição é mais

convencional, descritiva. Um homem negro, figura angulosa, que lembra uma

máscara africana (Chiarelli supõe que possa haver uma referência ao cubismo

e à ancestralidade do retratado) está no centro, tendo ao fundo a densidade

das folhas de bananeira. Nesse quadro, o cubismo é usado apenas como

arranjo ornamental. Chiarelli chama a atenção para uma tentativa do pintor de

neutralizar a diferença de tratamento dada ao fundo e à figura do homem. Para

3 Frase proferida durante a conferência inaugural do Bacharelado em História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 30 de março de 2010. 4 Tadeu Chiarelli tem vários livros publicados, entre os quais se destacam Um jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 2004; e Pintura não é só beleza – A crítica da arte de Mario de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.

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Chiarelli, pode ter havido uma intenção de reforçar a relação entre o homem e

o bananal, este resultado do trabalho daquele. Talvez, afirmou o conferencista,

o olhar ainda não aclimatado de Segall ao Brasil tenha reproduzido uma cena

de estranhamento em que a luminosidade do sol, a exuberância da natureza e

a negritude do trabalhador façam parte de um emblema do Brasil.

Em Tropical, de Anita Malfatti, 1917, a figura feminina mostra um

balaio cheio de frutas, no que Chiarelli interpreta como uma alegoria à

fertilidade dos trópicos. Para ele, a artista oscila entre responder à demanda

naturalista latente e fazer uma obra de cunho moderno, de vanguarda. Mesmo

tentando estabelecer mudanças do ponto de vista formal, Anita lança mão da

tradição iconográfica, dos manuais de iconologia, e usa a deusa Ceres e

figuras alegóricas ligadas ao conceito de abundância. O balaio de frutas, disse

o professor, pode facilmente ser interpretado como a tradicional cornucópia.

O mesmo tom alegórico evocando o caráter pródigo da terra é visto

em Vendedor de frutas, de Tarsila do Amaral, 1925, no qual um homem

negro/mestiço está em um barco com um cesto com frutas variadas. Para

Chiarelli, embora o personagem seja masculino, revive tanto o mito de Ceres

quanto Vênus saindo das águas, de Boticelli. É o Brasil paradisíaco, onde os

frutos da terra são colhidos sem aparente trabalho. As características do

homem mestiço são realçadas pelos olhos azuis e pela boca de lábios

caricatos.

Lavrador de café, de Cândido Portinari, 1934, mostra um homem

altivo. A desproporção de pés e mãos reforça a ideia de ligação com o trabalho

e a terra. Tanto nesse quadro quanto em Bananal, a natureza é um lugar de

trabalho. O fruto da terra é resultado do trabalho do homem, ao contrário de

Malfatti e Tarsila, que mostram a natureza pródiga como uma dádiva a ser

recolhida sem esforço. Neste ponto, Chiarelli fez uma ligação entre Portinari e

Almeida Júnior e seu O derrubador brasileiro, 1875. A interpretação, que o

conferencista reconheceu não ser original, é que o derrubador de café tivesse

levantado para se tornar o homem que olha a terra brasileira, cuja imensidão é

reforçada com o recurso do fundo renascentista.

As pinturas do caipira, feitas por Almeida Júnior, na opinião de

Chiarelli, são estético-documentais do paulista, que deixa de ser um miserável

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e domestica a natureza. São, de acordo com o professor, as primeiras pinturas

a ressaltar o homem local em seu ambiente.

Como não há uma historiografia da arte mais aprofundada no Brasil,

Chiarelli valeu-se da obra de Antônio Cândido Formação da literatura brasileira.

Cândido observou que o romantismo brasileiro tinha se originado de uma

convergência de fatores locais e sugestões externas e se tornou algo, ao

mesmo tempo, nacional e universal. Para Chiarelli, pode-se usar essa assertiva

para falar do modernismo. As diferenças estéticas de cada período são

contrabalançadas pela sua unidade do ponto de vista histórico, disse Chiarelli,

citando Antonio Candido. Com base nisso, afirmou que, apesar das diferenças

visíveis entre parte da pintura modernista do século XX e as pinturas de Pedro

II no século XIX, é possível ver relações entre elas, como a demanda pela

constituição de uma arte nacional. Chiarelli não pensa no modernismo como

uma ruptura, mas como um elo de uma corrente maior.

A reprodução de imagens litográficas foi, na opinião de Chiarelli, um

dos grandes legados da família real. E aqui chegamos aos retratos de Dom

Pedro II. O imperador foi modelo de várias fotos e experimentos e fotografia.

Sua imagem era registrada em fotografia e distribuída litograficamente. O

primeiro retrato, de Debret, já mostrava diferenças entre os retratos do

imperador do Brasil e os das cortes europeias: havia muitos elementos da

paisagem local. Em diversos retratos, o imperador aparecia em meio a

folhagens, um símbolo do país. Chiarelli apontou a tensão constante entre a

vegetação e o imperador, entre a natureza e a cultura. Pedro é a civilização; a

natureza tropical e luxuriante, a barbárie. Uma síntese do Brasil da época?

Nas obras dissecadas pelo professor durante a conferência, ele

destacou as diferentes maneiras de interpretar o Brasil e seus problemas e

emblemas. Isso mostra, na opinião dele, que a arte produzida no período

compreendido entre 1850 e 1950 carece de estudos mais aprofundados. A

abordagem multidisciplinar das obras de arte mostrada por Chiarelli abre

caminhos interessantes e possibilidades para os atuais e futuros historiadores

da arte.

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Ensaios / Dossiê

Introduzir o que é em si André Dornelles Pares

A Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, é o que ela é. O princípio de não-contradição de Aristóteles diz que algo não pode ser

e, ao mesmo tempo, não ser, sob o mesmo aspecto.

Logo, tudo o que já ouvistes sobre oficinas de artes com doentes

mentais, tudo o que já vistes na televisão sobre trabalhos voluntários com

psicóticos, tudo o que imaginas que possa ser um programa de resocialização

de pessoas loucas através de atividades expressivas não é a Oficina de

Criatividade do Hospital São Pedro.

Ela é o que é em si.

É tanto ela mesma que é praticamente impossível descrevê-la, explicá-la

e/ou narrá-la.

Esta dificuldade está perfeitamente notada na leitura dos textos que

compõem o dossiê que o Panorama Crítico traz nesta edição.

Dos textos para explicar, descrever – expor seus estudos sobre o

trabalho na Oficina, surge de imediato a percepção de que o esforço da

explicação torna-se involuntariamente uma narrativa de envolvimento. Alguns

escritos levam páginas para chegar ao assunto ‘real’ (que seria a obra de

determinado interno-artista, por exemplo). Parágrafos e parágrafos que são a

tentativa de aproximação daquilo que os autores dos textos vivenciaram. Até

chegar ao objeto-objetivo do texto, estes parágrafos são camadas de

sensações, buscando uma entrada: uma compreensão para aquilo que tentam

apresentar ou explicar. Para a ‘objetividade’ jornalística, o nariz-de-cera; para o

trabalho afetivo-social do processo artístico com doentes mentais,

necessidade.

O em si da Oficina de Criatividade é composto dessa massa torcida,

meio escura.

* * *

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E também desta, plana e clara:

“Na oficina (de criatividade do hospital São Pedro), o indivíduo (paciente)

tem liberdade para se exprimir; é ele quem escolhe o material com o qual vai

trabalhar e o que quer expressar. Através de desenhos, pinturas, modelagem,

escritos e bordados, o sujeito catalisa o que através da linguagem verbal

muitas vezes lhe seria tão penoso” (NEUBARTH, 2005)15.

O Hospital Psiquiátrico São Pedro, localizado na Avenida Bento

Gonçalves, em Porto Alegre, foi fundado em 1884. O que se chama hoje de

Oficina de Criatividade, criado em 1990. Bárbara Neubarth, autora da frase

acima, e uma das fundadoras da oficina, diz que outros espaços para atividade

expressiva, antes de 1990, já haviam sido criados no hospital. Um destes,

sendo coordenado pelo escritor Dionélio Machado, na década de 1960, do

qual, assim como outros, não resta qualquer registro.

Ou seja, uma memória social perdida.

Ao contrário, a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São

Pedro passou a guardar os trabalhos de seus internos. Serviço que, serviu

para, entre outras coisas,Tânia Mara Fonseca, coordenadora da equipe que

passou a pesquisar e organizar o acervo da Oficina de Criatividade, perguntar:

“Qual valor para a vida poderia se desprender daquele aparente lixo

(todo o material artístico produzido pelos pacientes desde 1990), acumulado

por 19 anos num sótão cujas portas rangem e o vento nos corta quando passa

pelas janelas sem vidros?” (veja o texto no dossiê).

Tânia, calculadamente, faz parecer lixo aquilo que antes era pura falta: a

memória. Mas a aparência, segundo Kant, filósofo alemão, jamais é a coisa em

si.

Se nem a presença de Dionélio Machado impusera a necessidade de

arquivo que, exageradamente ou não, é o registro das manifestações de uma

sociedade – as obras plásticas dos psicóticos dessa sociedade! –, o que fazer,

agora, com a montanha de papéis em que se transformou a vontade de dar

valor a esta memória?

* * * 15 Ver o texto de Bárbara Neubarth em http://www.eusouvoce.com.br/pag_oficinahistoria.htm

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1

O em si da Oficina, além dessa vontade, se compõe ainda destes dois

paradoxos acima vistos. O primeiro, o de ser ela, Oficina, uma massa que tem

a sua parte densa na tentativa de explicar-narrar seus processos subjetivos, e

a sua parte aberta na liberdade dos internos em seu trabalho criativo. O

segundo (paradoxo da Oficina), o de dar valor inestimável ao ‘lixo’ – coisa de

louco, numa sociedade que, quando muito, só valoriza o lixo se ele vira capital

financeiro.

Mas então: o que fazer com esta montoeira de “lixo” em que se tornou

todos os trabalhos artísticos dos internos que foram sendo guardados,

empilhados, empacotados?

Talvez, ao se dispor a organizá-los, uma das coisas que se possa fazer

é se ficar sabendo, por exemplo, que Natália, aos treze anos, fugiu de casa, no

interior do estado do Rio Grande do Sul, e, 400 quilômetros depois, veio parar

num hospício, na capital, que na época, o ano de 1956, abrigava com sua

lotação máxima: cinco mil internos. E saber mais: que depois de tentativas de

saídas e voltas necessárias ao hospital como único lugar de abrigo, Natália

encontre hoje a serenidade possível numa cor de abóbora, que invariavelmente

invade seus bordados (detalhe acima) e desenhos.

Cor que se torna um pouco mais emocionantes quando se pode

observar sua ‘obra’ bem cuidada e valorizada, misturada com a sua biografia,

arquivada no hospital2.

O em si da Oficina, neste momento, se abre, se oferece, e se encontra

com um em si mais extenso; o social. Isto é: Natália é a interna doente mental

1 Recorte de bordado de Natália Leite, interna-artista da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Ver trabalho na íntegra na Exposição “Eu Sou Você”, no próprio hospital, ou em http://www.eusouvoce.com.br/natalia_18.htm 2 Veja mais detalhes em http://www.eusouvoce.com.br/pag_artistas.htm

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Natália Leite, que no belo trabalho do ex-estagiário Fábio dal Molin (veja o texto

no dossiê), tem sua vida explicada-narrada-sentida. Com sua memória de vida

e sua obra guardada e exposta, Natália é um pouco mais: parte da

identificação da mulher que viveu na segunda metade do século XX no sul do

Brasil, e que teve determinados percalços, encaminhamentos e possíveis

soluções na sua existência, nesta faixa temporal da existência humana, nesta

faixa territorial do planeta.

Ou seja; uma memória social achada.

* * *

Da liberdade de criação artística oferecida aos internos que se

transformam em artistas, surge na prática aquilo que poderia ficar só na

palavra: a resocialização de quem ‘não serve(ia)’ a sua sociedade.

Da vontade de se dispor a organizar-arquivar o material produzido por

estes loucos transformados em artistas, surge a transformação da memória

individual em história social.

No dia em que a equipe do Panorama Crítico andou pelos pavilhões

cheiamente vazios (pois o própria lugar, devido a sua história, constitui-se num

paradoxo) do semi-abandonado Hospital Psiquiátrico São Pedro, era Natália,

ciosa e concentrada, a única a estar iluminada pela amarela luz do sol que

entra na espaçosa colorida sala da Oficina.

Na sua frente, um desenho começado em cor de abóbora.

Por trás de Natália, e por causa dela e de Luiz Guides, Frontino e

Cenilda (os outros artista catalogados; leia sobre eles no dossiê), estão “mais

do que biografias e rumos de vidas extraviadas da retidão da normalidade”,

como diz Tânia (leia o texto no dossiê), “mas a sua capacidade de expressão,

sua resistência em se manterem dizendo algo quando todo o seu entorno lhes

impôs esquecimento e letargia”.

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Sãos, como somos, talvez o que todos nós também desejemos quando

nosso entorno de sociedade do consumo e por isso da efemeridade nos

oprime; oportunidade, e coragem, de dizer o que queremos.

O que a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro é em

si aponta para essa possibilidade.

Se este é teu caso, bem-vindo ao dossiê que o Panorama apresenta.

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Ensaios / Dossiê

Vidas do fora e a escrileitura de um mundo incontável1 Tania Mara Galli Fonseca

Para Bárbara, fundadora - aos meus olhos -, de uma ilha deserta e que sabe, como Arthur Bispo do

Rosário que: “Os doentes mentais

são como beija-flores. Nunca pousam. Ficam a

dois metros do chão”. As torneiras de sua casa sofrem avarias. Umas vazam outras emperram.

Você chama o hidráulico para o conserto. Verifica-se, na inspeção, controles impotentes, canos entupidos pela ferrugem que, insidiosa, vedou as aberturas e entranhou-se, ali, como obstáculo à passagem do fluído. Apenas pequenos veios abertos restaram na tubulação. Despencam-se e substituem-se canos, torneiras e registros para que tudo retorne à ordem. Você, então, pode pensar: que tempo invisível é este que transmuta em entupimento aquilo que foi feito para escorrer e lavar? Que faces pode adquirir a matéria ferro quando em longo encontro com a água? Que pode a água diante do ferro?

I

Em nosso pensamento, há ainda um outro lugar, em que ferro e água

celebram estranhas núpcias. Trata-se de um lugar que, mesmo de olhos

fechados, temos vivo em nossa mente. Nele, paisagens se compõem, em dias

secos ou molhados. Sob a luz da lua ou do sol. Dias e noites em ciclos

fechados enfileiram-se em relógios sem ponteiros. No alto dos edifícios,

podem-se ver papagaios empoleirados. Querem ganhar horizonte pelas

cumeeiras. No ar, mansas vacas coloridas flutuam junto a galinhas perdidas de

seus grãos. Evaporaram-se os gramados, A terra e as cercas se esconderam,

imaterializaram-se em poeiras finas e imperceptíveis. Restou apenas seu

cheiro. Os odores funcionam como pistas sensíveis de secretas secreções que

1 Texto originalmente publicado no livro Vidas do Fora – Habitantes do silêncio, organizado por Tania Mara Galli Fonseca e Luciano Bedin; Editora da UFRGS, 2010.

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não se deixam ver. Não se escuta riachos sussurrantes e tampouco se vê

montanhas verdes. No plano, paira o silêncio e uma incessante bruma envolve

telhados que se sobrepõem a outros telhados. Divisamos a paisagem como em

um duplo embaralhado. Estranhos elementos misturam-se ao prédio imponente

e de estilo e compõem, assim, uma bizarra arquitetura. Tem-se a impressão de

que as névoas de um interminável inverno encontraram finalmente um lugar

para sua existência insistente. Situamo-nos em um país profundo, feito de

gestos que se proliferam em câmara lenta, cada qual inapagável e que se

revelam como tentativas de uma construção titubeante após a catástrofe.

Também nós precisamos ultrapassar os limiares da percepção ordinária para

reconhecer que, nesse lugar, é preciso sustentar um eterno estado

convalescente que encena dramas de um combate para constituir uma morada

no mundo. Nesse país, reina um tempo em que épocas demoram a chegar e

saem sempre um pouco mais tarde. A obra do tempo, que se materializa em

corpos - cinzas e lentos -, desloca-se nas flutuações de sua forçada letargia.

Alimenta-se da erosão, mas, como viremos a saber, resiste frente ao que lhe é

adverso, entrega-se a serviço de um si que não cabe em explicações e que se

coloca em busca de um eterno retorno ao sentido. Neste secular ‘lugar ideal’ de

repouso – e de desterro-, os habitantes do ‘palácio’ da loucura andam a dois

metros de um chão inexistente. Habitam uma zona do ‘entre’, perguntando-se,

a cada instante, como Alice de Caroll: em que sentido? em que sentido?

Adormecidos de sua insônia, esquecidos de sua história, alguns desses

seres flutuadores exercem, contudo, uma função autoral: transformam a

infâmia que se abateu sobre sua existência em outros possíveis. Quando

andamos nos pátios e edifícios do palácio da loucura, construídos pela reta

razão, podemos identificar faixas paralelas do tempo no tempo de dois trilhos.

Como formula Bruno Shulz (1994) aqueles acontecimentos que não podem ser

enfileirados num tempo ordenado, dispostos em seqüência como numa fila e

que chegaram tarde demais, quando o tempo já tinha sido distribuído, dividido,

desmontado e que, agora, ficaram no ar. Quando nos equilibramos sobre os

trilhos do tempo ordenado por gonzos, podemos visitar locais onde se erguem

grandes vitrines que guardam descomunais livros de registro. Nosso olhar

torna-se escuta quando os folheamos e, neles, ainda podemos ouvir o ranger

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de antigas canetas à tinta molhada riscando o branco papel sob a mão de

alguns funcionários. Naquela escrita, vidas foram traçadas e decididas, foram

colocadas em jogo e sucumbiram na infâmia de sua inexpressão. Impiedoso, o

arquivo de registros oficiais, escrito por anônimos, parece subtraí-las para

sempre de uma possível apresentação. Desterradas pelos raios das palavras,

vidas devem permanecer silenciadas já que todos os esforços de cura de sua

insanidade foram fracassados. Vidas insanas e incuráveis, cuja presença

singular nos aparece exatamente através daquilo que as cala e as distorce

num esgar. Então, compreendemos o que pode o poder e que sua ação não se

reduz a reprimir. Admitimos que vidas reais foram postas em jogo e ocupam,

nesse arquivo infame, um lugar possível. Com certeza, para a maioria dos

sujeitos internados, esses lacônicos registros, enquanto marcavam os sujeitos

com o selo da infâmia, também traziam a certeza de terem se constituído no

único rastro de sua existência. Guardam curiosas histórias, testemunham

secretas práticas, denunciam costumes sociais que poderiam ainda ser nossos:

nesses álbuns de selos, diagnósticos e prognósticos descrevem a difícil

reconciliação do homem com o homem, do homem com os seus instintos, das

instituições que foram sacralizadas para expulsar a alteridade indigna de existir

e de conviver. A coleção de álbuns, instalada nas vitrines do memorial da

loucura, nos aparece como um livro da contabilidade do juízo. Nada passou

despercebido aos seus escrivães que, furiosamente, investiram sua antiga

caneta sobre o branco papel que ficará para a história. Não sabiam eles,

naqueles momentos de redação, que sua escrita iria explodir em estilhaços.

Seguiriam direções múltiplas, tantas quantas viessem a ser seus possíveis

leitores. Relançar-se-iam sobre toda a humanidade para confrontá-la com suas

injustas verdades moralizantes. Tornar-se-iam um inapagável relato dos

enlaces entre ciência e moral e dar-se-iam a ver, enfim, como mil espelhos

colocados nos crachás e lapelas de cada um dos funcionários do Estado.

Assim, ao examinar a colossal coleção de álbuns de selos infames, algo

diferente acontece em nós. Orientamo-nos em direção ao que nos leva Bruno

Schulz (1994, 11), no seu conto ‘Primavera’:

em todos os horizontes, em todas as esquinas, crescia, emergia este perfil onipresente e inevitável, fechando o

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mundo a chave como uma prisão. E, quando cheios de uma resignação amarga, já perdêramos a esperança, quando já nos conformáramos com a uniformidade do mundo, com aquela imutabilidade cujo fiador era Francisco José I – abriste inesperadamente diante de mim, como uma coisa sem importância, este álbum de selos, oh, Deus, permitindo-me ver de passagem este livro descascando-se com brilho, este álbum despindo-se, página após página, cada vez mais luminoso e mais apavorante ... Quem poderia me levar a mal por eu ficar deslumbrado naquela hora, exânime de tanta comoção, por derramar lágrimas dos olhos que transbordavam de luz. Que relativismo deslumbrante, que feito copernicano, que fluidez de todas as categorias e todos os conceitos. Quantas formas de existência nos deste, oh, Deus, quão incontável é o teu mundo! É mais do que pude imaginar nos meus sonhos mais ousados. Então era verdade esta antecipação prematura de minha alma, que, contrariando as evidências, insistia ser incontável o mundo!

Gostaríamos, pois, de asseverar e repetir com Schultz, nosso desejo de

primavera. Gostaríamos de ir em busca do perdido mundo incontável. Ir além e

também aquém das contabilidades fiscalizantes. Adoraríamos nos ultrapassar,

para vir a nos encontrar fora dos trilhos da história, deixar-nos levar apenas a

um dos braços laterais da história enfileirada. Tomaremos, pois, um desvio

cego e decidiremos andar fora dos trilhos daquele tempo parado e mumificado

da vitrine museológica, de onde ainda podemos ouvir e ver disparos e

relâmpagos. Nosso caminho nos conduzirá a um lugar antagônico ao dos

postos onde se deve pagar impostos e tarifas alfandegárias para a sustentação

da existência. Procuraremos um entreposto, vizinhante das edificações retas e

até mesmo situado em sua quadrada arquitetura. Algo como uma ilha deserta,

na qual desnudos habitantes tomam sol durante horas. Sonharemos com este

enclave de ar na cidade murada. Saberemos que sua ocupação é só em

aparência, e que essa ilha deserta que buscamos, retomará e prolongará seu

impulso apesar das codificações que a querem anexar ao continente.

Estaremos sempre nesse esforço contra a dominação das marés.

Procuraremos produzir, ao menos, um mínimo território, no qual se secam as

palavras e as injúrias, para conceder um solo aos habitantes errantes. Eles já

enxergaram as marés, foram suas vítimas e afogados e agora, tentaremos

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ressuscitá-los, mesmos que já tenham sido levados. De seu além, nada

poderão dizer ou usufruir, mas nós, através da sua tragédia, iremos em busca

de outro mundo do mundo, sonharemos, enfim, com uma ilha deserta da

história do homem. Ela própria seria tão-somente o sonho do homem e o

homem a sua pura consciência (Deleuze, 2006). Nela, a geografia se coligaria

ao imaginário e não se trataria de virmos a encontrá-la fisicamente. Seria um

território existencial, somente existente como pensamento: presença-ausência

de seres amnésicos que ali se situam além de sua precedência carnal e

histórica - seres que portam estandartes faiscantes enquanto criam e resistem

e que continuam a existir como despossuídos e sem qualidades, não nutrindo,

jamais, a gana da posse e do domínio. Pensaremos que tal lugar da

imaginação deveria, entretanto, continuar para sempre inabitado. Não poderá

jamais ser tomado pelo homem e por suas verdades ilusórias. Deve funcionar

como respiradouro, como um não- lugar, lugar de todos e de ninguém, lugar

coletivo, sede de possíveis utopias. Nele se cruzariam versões de toda a

espécie, haveria sempre um vazio e um silêncio para recebê-las e fazê-las

circular, lugar sem ocupantes, ocupantes sem lugar. Circundado que se

encontraria pelo mar de verdades e julgamentos proferidos pela razão científica

e governamental, este lugar - que iremos encontrar a seguir - mostrar-se-ia

como um ovo daquele próprio mar que o produziu. Tudo aconteceria como se ,

num passe de inversão, tal ilha deserta tivesse tornado deserto o próprio mar

que a circunda, abrindo nele infinitos veios de navegação que, já não caberiam

no olhar inspetor e unidirecionado da retidão.Talvez, daqui, se tornasse

possível colocar fora do jogo vidas minúsculas até então, exclusivamente,

marcadas por palavras que as subordinaram a fins práticos e corriqueiros, com

função meramente designativa. E, a seguir, talvez, então, nos seria possível a

experiência de apresentar o mundo ao invés de representá-lo, fundar, como

afirma Blanchot (1984), “o outro dos mundos”, que não se refere a um mundo

inexistente, mas sim aquele que é evocado em seu esplendor e realidade plena

e que, por ter se tornado possível avisaria à linguagem da sua insuficiência

frente à vida. Far-nos-ia também sair da dialética, repensar as noções de

sujeito e de história, verdade e origem. Significaria uma fuga do aprisionamento

posto pelos conceitos e o abandono das certezas de nossa cultura e dos

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princípios que regem nossa história. Tratar-se-ia de um esforço para

realização de uma irrealizada história, a qual só se efetuaria pela negação de

todas as suas realidades particulares, por sua negação e, ao mesmo tempo,

pela afirmação da mesma negação. Essa afirmação pela ausência nos levaria

a um fora da linguagem corrente, constituiria a condição de uma obra feita pelo

“desobramento” das palavras , sendo, enfim, o que nos permitiria chamá-la de

“experiência do Fora” que encenaria todos aqueles atos de escrileitura que

viríamos a empreender em nossa saga pelos caminhos do arquivo de vidas e

obras com o qual estamos implicados.

No arquivo, deveremos anular o tempo, neutralizá-lo, dissolver-lhe a

história, desbaratar-lhe as verdades, abolir-lhe os sujeitos, fazer soçobrar sua

ordem para jogar um pouco de estranhamento e de insólito no mundo

enfileirado. Esse, contudo, não desapareceria, Desdobrar-se-ia no outro dos

mundos, exteriorizado de suas profundezas, colocado em relação com o Fora,

possuindo outra versão, constituída de devires, espaço do deserto, do exílio e

da errância.Uma outra imagem de mundo ser-nos ia possível e ela seria

produzida por nossa capacidade de tornar as coisas inapreensíveis, inatuais,

impassíveis, ou seja, diferidas pela potência de nosso pensamento que torna

presente aquilo que se produz em sua ausência.

Desde esse modo de pensar, seria, então, possível retomar os álbuns de

selos contidos nas vitrines dos portfólios da loucura. Eles seriam lidos de

cabeça para baixo, e também em diagonal e nas entrelinhas, em partes e

fragmentos, enfim, de modos e posições que poderiam suspender o presente e

restituir ao passado aquilo que ainda nele permanece como grito abafado. No

não-lugar, sem nomes ou distinções, na imaginada ilha-imaginária repleta de

virtuais, desejaríamos ser capazes de nos fazer praticantes de revirações do

passado em futuro e de escrever a história a contrapelo. Tratar-se-ia, então, de

fazer nascer uma segunda origem, um recomeço? Tratar-se-ia de vir a

encontrar uma outra coleção de álbuns que, paralela àquela envidraçada,

renega a catástrofe registrada empertigadamente nos registros da história da

loucura? De dar, enfim, uma segunda chance para a apreciação da vida? Em

sua afirmação de que: “Não basta que tudo comece, é preciso que tudo se

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repita uma vez encerrado o ciclo das combinações possíveis”, Deleuze (2006,

22) nos auxilia a deter nossa arca do dilúvio.

Assim, na seqüencia de nossa navegação, vamos fazê-la pousar na

única porção que acreditamos não se encontrar totalmente submersa no país

profundo em que estamos circulando. Na ilha-deserta do Acervo da Oficina de

Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, cuja superfície

nos é também confiada, pareceu-nos ser esse lugar onde tudo pode recomeçar

num mundo que tarda a recomeçar. Recuemos, pois, no tempo, em direção ao

imemorial. Não nos iludamos, entretanto. Este espaço-tempo que existe perto

de nós, é vizinho das outroras encasteladas. Foi dotado de diversos dedos a

mais e que, ágeis, agora nos apontam para o insuspeito, ou seja, para aquilo

que ainda não tínhamos olhado e que está recomeçando. Devemos

problematizá-lo, pois.

II - O mal de arquivo

Desconfiamos que, com nosso desvio, talvez, quiséssemos mesmo estar

em companhia de ladrões para vir a sondar o acúmulo de seus tesouros

roubados, para vir, enfim, encontrar um depósito irregular do ilegítimo. Como

na caverna de Ali “Bárbara” e os quatrocentos ladrões -, vermos ainda fazer

brilhar o esplendor de vidas condenadas e fora da língua maior. Colocar-nos-

íamos, pela nova geografia desviante, em busca do homem perdido, a nos

abraçar com aquele monte de desenhos e pinturas suportados por mais de

cem mil velhos papéis reutilizados.

Qual valor para a vida poderia se desprender daquele aparente lixo,

acumulado por 19 anos num sótão cujas portas rangem e o vento nos corta

quando passa pelas janelas sem vidros? Poder-se-ia tomá-lo como uma

coleção de pistas, de rastros, enfim, vestígios das inúmeras setas disparadas

por ladrões desnorteados que, de sua desrazão, dia após dia, roubaram um

pouco de ar para viver de outro modo na cidade murada. Poder-se-ia observá-

lo como designações da forma vazia de onde provieram como exercícios do ser

que, longe da interioridade pessoal, emergiram na superfície. E, ainda, como

transgressões que abalam as verdades instituídas e nas quais desaparecem as

dicotomias e contradições entre interior e exterior, realidade e imaginário.

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Tais vidas, no labor diário de seu atletismo, contaram, é certo, com a

ajuda de outros que, ajuizados, abriram-lhes as portas de seus braços e

ouvidos, deram-lhes nome próprio e mantiveram os olhos faiscantes enquanto

acompanhavam aquelas mãos inábeis e enrijecidas a traçar, com tintas ,

canetinhas e lápis coloridos, uma outra escrita de si. Na caverna de Ali

“Bárbara”, tornou-se possível, àquelas vidas do Fora apresentarem-se e

dizerem de si, mesmo que através do enlouquecimento dos signos. Ali,

formara-se uma pequena multidão de técnicos, profissionais e estudantes que,

movente em sua composição, iam e vinham e viram, assim, os anos correrem

céleres através de cada manhã. Foram tantas as produções brotadas daqueles

instantes, que os anjos ajuizados que acompanhavam sua feitura resolveram

fundar um domicílio, um espaço de depósito, no qual se podia ver nascer um

arquivo informe. Nesse, transmutava-se o privado em público e tornava-se

possível reunir os signos enlouquecidos em um único lugar. Das precárias

instalações, arranjadas em uma espécie de sótão que outrora havia servido de

enfermaria e local de cirurgias, aproveitaram-se longas mesas grosseiras e

velhas macas. Estantes desengonçadas serviram também de apoio aos

magotes de papéis que continham os estranhos desenhos e pinturas. Não

havendo mais móveis suficientes, os papéis passaram a ser acumulados no

próprio piso e o seu volume, sempre aumentando, indicava que algo

continuava a latejar nas vidas de seus autores. Como as múltiplas cópias que o

gravurista imprime de sua matriz, repetiam-se as cenas, suas representações e

motivos que, após feitas, eram enroladas em séries de tiragem diária. Assim,

enrolados para dentro de si mesmos, com as costas voltadas para fora, os

papéis desse arquivo informe ficaram por muito tempo. Como folhas soltas de

um grande livro despedaçado, misturava nomes e datas e sua vista era

embrulhada e confusa. Desanimava aquele que dele quisesse se aproximar,

uma vez que, tendo tudo, mas em grande desordem, mais escondia do que

visibilizava. Avizinhava-se a necessidade de um novo trabalho dos ajuizados.

Alguns foram chamados e outros se autoconvocaram para o

enfrentamento com aquele caos de papel. Deu-se início à classificação por

nomes e datas e as obras começaram a ser distribuídas, divididas e

empacotadas por autor e data e recebiam, no invólucro pardo, uma inscrição

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frontal que as identificava. O arquivo tomava forma e passava a ocupar os

trilhos do tempo cronológico. Foram necessários anos até que o espaço ficasse

tomado pelas grandes pilhas de papel pardo. Muitos catalogadores vieram,

ficaram um pouco e desistiram quando sentiram os ardores da tarefa. Outros

ficam até agora e se entranham nas paredes. Constituem, então, outras

segmentações, formulam novas classificações, remanejam as pilhas de suas

antigas posições, compõem uma paisagem de aléias por onde circulam

seguros, sendo capazes de apontar, dentre as enfileiradas pilhas quietas e

mudas, onde se encontram as obras deste ou daquele que se lhes pergunte.

Erigem uma arquitetura contra o esquecimento e dizem-nos, exultantes, terem

conquistado a atualização do arquivo, ou seja, atingiram o tento de só

empacotarem e classificarem os atuais trabalhos que ainda são produzidos;

mas, também nos contam, surpresos, que volta e meia, ainda surgem, não se

sabe de quais esconderijos, outros maços de papéis enrolados ou em pastas,

com marcações de datas antigas e nomes de autores mortos, que estiveram

extraviados não se sabe bem por quê.

É através da observação dessa interminável lida arquivística que vamos

encontrar, no próprio arquivo, motivos para novas problematizações. Partimos

do ponto que o espaço do arquivo não é apenas um lugar de estocagem e de

conservação de um conteúdo arquivável passado. Nele entranha-se aquilo que

Derrida chama “mal de arquivo” e que o faz trabalhar contra si próprio.

Convocação silenciosa, este mal - de origem pulsional anárquica – “destrói seu

próprio o arquivo antecipadamente, como se ali estivesse, na verdade, a

motivação mesma de seu movimento característico”. (Derrida, 2001,21). Tal

pulsão de morte e destruição não deixa monumentos e documentos como um

legado que lhe seja próprio. Não possibilitará ao arquivo ser a memória nem a

anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Hipomnésico, este

arquivo trabalha contra si mesmo, sendo, paradoxalmente, conservador e

instituidor, tradicional e revolucionário. Criado como um suporte exterior à

memória interior e espontânea, o arquivo torna possível instituir como

acontecimento aquilo que é arquivável, Ele nos mostra que não haveria desejo

de arquivo não fossem a finitude e o esquecimento daquilo que se quer

arquivar, não fosse, enfim, a ameaça de sua destruição. “Ora, esta ameaça é

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in-finita: ela varre a lógica da finitude e os simples limites factuais, a estética

transcendental, ou seja, as condições espaço-temporais da conservação”

(Derrida, 2001,32). O mal de arquivo implica, pois, no in-finito, em tudo o que

está por vir, na sua abertura para o futuro sem a qual não haveria, para o

arquivo, nenhum desejo ou possibilidade. Mais do que uma coisa relativa ao

passado, “o arquivo deveria pôr em questão a chegada do futuro”, continua a

nos dizer Derrida (Derrida, 2001,48). Trata-se de uma resposta, de uma

promessa e de uma responsabilidade para o amanhã. Fazendo-se Um, o

arquivo compõe-se de uma estrutura espectral: nem presente nem ausente em

carne-e-osso, nem visível nem invisível; torna-se uma casa assombrada na

qual sempre há lugar para a verdade do delírio e da loucura trancafiada sob

sete chaves. Verdade que, mesmo recalcada, retorna como verdade espectral,

fantasmática e irredutível à explicação. Para acessar seu feitio espectral temos

de falar uma língua própria, pois não se fala com fantasmas em qualquer

língua. O rastro do fantasma está ali, mas tudo o que ele faz para nós é abrir

portas atrás de portas, desconstruindo sua aparência de substituto deformado

daquela primeira/última verdade que ainda respira no coração de seu delírio.

Nesse momento, os decifradores do arquivo já devem ter compreendido

a importância em conciliar certo espiritismo com a razão. Já se defrontam com

as reservas e esquivas trazidas pelo problema da tradução; já sentem que os

documentos, desde sua singularidade insubstituível, se ofertam e se furtam,

abrem-se e subtraem-se às leituras fáceis e interpretativas. Os leitores do

arquivo sofrem do “mal de arquivo”.Vivem agoniados com aquilo que os atrai

mas que não podem dominar. Seu mal, contudo, pode significar outra coisa do

que sofrer de um mal, no sentido comum. Nas palavras de Derrida (2001,118):

É arder de paixão. E não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. Nenhum desejo, nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma compulsão, nem compulsão à repetição, nenhum ‘mal-de’, nenhuma

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febre, surgirá para aquele que, de um modo ou outro, não está já com mal de arquivo.

Não estariam tais leitores - acometidos pelo “mal de arquivo” -, também

a experienciar o Fora, buscando sem cessar a presença de algo que insiste em

se ausentar? Não seriam os atuais decifradores das vidas e obras contidas no

arquivo aqueles que teimam em desdobrar o mundo no outro dos mundos?

Anunciadores das auroras ainda não vindas nos pátios do palácio da loucura?

Pensamos neles como Ricardo Piglia (2006) pensou o seu “último leitor”,

ou seja, aquele leitor essencial que empenha sua alma na tarefa de decifrar as

páginas desfolhadas do colossal livro da desrazão. Pretendemos, nesta

sequência, imaginar sua labuta de decifração. Em dias quentes ou mesmo

naqueles gélidos e de vento forte, escutam desprender-se das pilhas

empacotadas, um constante murmúrio, um interminável rumor que pressente

estar abafado por diversas portas que se fecham/abrem, umas atrás das

outras. Como se uma inquietude - rebelde e esconjurada -, ao sentir a

possibilidade de vir a ser liberta, venha pedir-lhes passagem, utilizando seus

corpos sensíveis para sair de sua quase-causa profunda, transformando-se,

então, em efeito de superfície e enunciação que pode ser falada. E, quando

finalmente se acostumam ao incessante rumor desprendido e passam a

desembaraçar as folhas daqueles pacotes murmurantes, quando as estendem

em mesas para folheá-las, apreciá-las e, sobretudo, para interrogar suas

inscrições, podem, então, escutar gritos, como se, com o calor de sua

proximidade, um elemento inarquivável e anárquico pulasse dali, para agarrar-

se a uma possível, ainda que frágil existência. Um elemento pulador é atraído

por aquele que observa e, em sua natureza de quase-causa, não pode tudo

sozinho. Necessita afetar outra natureza que, mesmo lhe sendo heterogênea,

carrega algo que lhes é comum. Necessita de uma relação de intimidade para

que possa agir como de assalto, na imediatez de um contágio, de uma

intrusão, que inverte um em outro e que suspende o presente ao evocar a

presença mesma daquela ausência que quer repetir-se e eternamente

recomeçar. Os leitores são tomados de arrepios quando isso lhes acontece.

Confrontam-se com uma repetição sempre diferencial que funda um tempo não

mais cronológico e no qual as coisas não conhecem mais começo nem fim,

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nem chegam a acontecer de fato e, justamente por isso, estão sempre

recomeçando. Parecem ter nas mãos, aquilo que Maurice Blanchot aponta em

seu “O livro por vir”: um porvir, um “ainda não” que marca a impossibilidade da

linguagem em deixar-nos cadastrar o mundo através de palavras. É Blanchot

(1984,88) que nos diz:

O deserto ainda não é o tempo nem o espaço, mas um espaço sem lugar e um tempo sem engendramento. Aí, apenas se pode errar, tempo sem passado, sem presente. Terra nua onde o homem nunca está presente, mas sempre fora. O deserto é esse fora onde não se pode permanecer, pois estar aí é sempre já estar fora.

Assim, nesses termos, ao mesmo tempo em que podemos pensar o

arquivo como um espaço literário, uma vez que ele contém “a perseverança

das coisas depois que o mundo desapareceu, a teimosia que resta quando

tudo desaparece e o estupor do que aparece quando não há nada” (Blanchot,

1997, 317), também podemos pensar seus “últimos leitores” como errantes e

exilados “que se deixam levar pelo imprevisível de um espaço sem lugar, pelo

inesperado de uma palavra que não começou, de um livro que está ainda e

sempre por vir” (Salem Levy, 2003,34) O arquivo como o lugar de exílio, não-

lugar, deserto - do mundo e do sujeito -, lugar em que o eu transforma-se em

ele, lugar do impessoal, do outro - este desconhecido e errante que libertou sua

interioridade, que se fez superfície e tornou-se a própria ausência e que, por

sua voz, possibilita um discurso sem autor, discurso de todos e de ninguém.

Escrever, pois, desde esse lugar, supõe que os leitores tenham se deixado

levar para além de si mesmos, para um fora-de-si e que tenham feito de sua

leitura uma escrita não sobre o mundo, mas com o mundo e que, em sua

enunciação não houvesse busca de sentido para uma unificação pessoal ou

para a cura de suas neuroses. Nada teria a ver com suas lembranças, e tudo

emanaria de visões, audições, devires e potências que circulam no Fora. Morre

o autor, no sentido de um eu pessoal, nasce um anonimato informe e obstinado

que tira o poder de dizer “Eu”, um plural da própria palavra e que, como diz

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Foucault (2001, 52), abre caminho para a linguagem como escoamento do

Fora:

Escrever, hoje, está infinitamente próximo de sua origem. Isso é, desse murmúrio inquietante que no fundo da linguagem anuncia, logo que se abre um pouco o ouvido, aquilo contra o qual se resguarda e ao mesmo tempo a quem nos endereçamos.

III - A escrileitura de um mundo incontável

Nesse ponto, somos levados a retomar aquela nossa decisão inicial de

seguir pelo desvio da história. Também nos vem à mente a imagem daquele

outro arquivo de registros de internamento, colocado, intocável, em vitrines

para a posteridade. Parece-nos que, vizinhos, os arquivos travam um combate

que não se situa, contudo, em uma natureza que lhes é própria. Ambos são

espectrais e nada, em nenhum deles, impediria a tarefa “do último leitor”, tal

como acima foi referida. Ambos carregam a condição de potências imanentes

que estão sob a condição de um tempo intempestivo e não-reconciliado com a

história. Essa constatação nos faz pensar que tudo o que pode diferenciar os

arquivos, é dito a partir do modo de lê-los e de enunciá-los, sendo, portanto,

eles próprios, destituídos de sentido ético e estético. Contudo, acreditamos que

desse outro modo de escrileitura, do qual se produz uma ontologia, também se

desprende uma ética e uma estética que suportam uma nova maneira de

relação com o real, restabelecem o vínculo do homem com o outro homem.

Modo de ler, modo de escrever e de enunciar como experiência do Fora, como

despersonalização do sujeito que, em seus atos de criação e resistência, age

contra a história, contra os saberes e os poderes que a sustentam como

infâmia e injúria, como o intolerável.

Assim, passam-se os dias. De catalogação e leituras. Pelas mãos dos

“últimos leitores”, desfiam-se cada uma das 100.000 páginas espalhadas do

possível álbum que está por vir, mas tarda a chegar. Reunido e unificado, o

arquivo do desvio transforma-se em labirinto e seus leitores aprendem a ler por

linhas tortas e nas lacunas. Não se mostram preocupados em selar ou

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carimbar com rótulos aquela escritura. Tampouco buscam encaixá-la na

gramática do conhecimento arbitrado. Assumem sua ignorância diante do que

vêem nascer, agem como os famintos e sedentos que, quando têm em mãos

uma fruta que não acabou de amadurecer, a afagam e aquecem - e mesmo a

apertam suavemente entre os dedos -, para fazer movimentar seus sumos e

trazê-los à superfície. Não se trata, então, de ir à profundidade. Todo o artifício

consiste em produzir superfície, um plano comum que sustente as vidas

errantes de todos.

Sabem que, por sua obra de escrileitores, algo difere nesse arquivo

diferentemente do que acontece no arquivo oficial, situado nos trilhos da

história. Encontram, nele, múltiplas traduções para as vidas silenciadas.

Sentem como elas lhes escapam e como insistem em sua expressão, que se

traduz em linguagens que muito diferem daquela depositada nos registros

manicomiais. Fundam um plano de vozes e rumores, frente ao qual de início se

perguntam se estão descendo a uma maior profundidade ou se estão flutuando

naquelas inscrições produzidas por um modo que não procura sentido, mas

que se deixa levar pelos signos que insistem em brotar e se repetir.

Encontram-se com tais vidas e suas obras no Acervo da Oficina de Criatividade

do Hospital Psiquiátrico São Pedro e, nessa ilha-deserta, como náufragos, os

pesquisadores-leitores-decifradores-ressuscitadores navegam na massa

daqueles dos papéis-vidas. Parece-lhes estarem em um mar que, na

horizontal, abre múltiplas entradas. Sabem que estão a serviço de um resgate

para que as águas das marés do esquecimento não destruam aquele legado.

Dentre desenhos, pinturas e bordados situam-se, em um primeiro lance, pelo

que os atrai sua visão. Estabelecem, assim, um encontro cujas razões lhes são

desconhecidas. São, então, tomados por cores, por séries fantásticas, por

escrituras que nunca imaginaram restar ali, como gritos do interminável delírio

ao qual ainda resta uma lucidez. Tudo se lhes torna surpreendente, pois, ali,

naquele fim de mundo, seria o último lugar onde poderiam supor encontrar

alguma beleza e, ainda, algumas vozes emitidas de corpos que não mais

existem. Sabem que, como editores de um livro sempre inacabado, estão

confrontados com uma espécie de diários da loucura - diários daqueles

momentos em que a loucura pôde falar, pôde dizer, colhendo, então o direito

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de ser escutada. Tal como arqueiros, os artistas-autores-loucos lançaram suas

flechas para todos os possíveis passantes. Escreveram a longa carta de seus

instantes, destinaram-na a quem se deixasse afetar por suas fincadas. O

Acervo de Obras torna-se, então, o sótão silencioso de murmúrios dos

instantes que essas vidas tiveram oportunidade de expressão. Com seu

espaço quase todo ocupado, as inúmeras pilhas de papéis tornam-se também

(p) ilhas que, como bancos de corais em meio ao mar, permitem um sossego,

quem sabe para deter a velocidade das correntezas da desrazão. E, ainda, se

as obras empacotadas viessem a ser estendidas, formariam um imenso tapete

enfeitado a encobrir de ponta a ponta, na horizontal e na vertical, o espaço

arruinado que se tornaria, assim, uma espécie de templo da memória feito da

mistura de cores, nomes e datas, sem homens e sem deuses, apenas

inscrições acumuladas e guardadoras de segredos inconfessáveis. Os leitores,

diante dessa imagem, podem então também se perguntar: em que sentido? em

que sentido? sentem que não há como não se deixarem arrastar pelas

subterrâneas correntes de silêncio daquele plano sem precipitações abruptas.

Ali, um tesouro conspira em direção ao sussuro e ao ainda apor vir. Nessa

coleção de indícios, têm de afinarem o ouvido e conversar em voz baixa sob

pena de prejudicarem as ressurreições. Sabem que se encontram em um não-

lugar que, entretanto, se tornou um lugar para aqueles que não tiveram sequer

um digno lugar na existência e que, como natimortos, jazem inertes à espera

que sejam tocados para receberem o lugar do sentido. Os milhares de papéis

desenhados e pintados podem ser assemelhados a membranas sensíveis nas

quais foram inscritos a desmesura e o non-sense. Os leitores supreendem-se

quando os sentem ainda quentes após tantos anos de terem sido feitos,

quando percebem quanto eles ainda reverberam e ressoam a ponto de se

inverterem as posições: aquilo de aparência antiga, velha e decaída, feito por já

mortos, parece investir-se de uma saúde que salta e age como a melhor das

medicinas e das psicologias. Ali, pula um elemento paradoxal que não encontra

posição fixa, que evapora as significações, os nomes próprios e as tipificações,

que apaga os corpos que produziram e daqueles que, agora, os lêem. Os

encontros íntimos com vidas ausentes, com seres cujas costas encontram-se

sempre voltadas, com vidas que, tendo sido jogadas, nunca foram possuídas,

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representadas e ditas, fundam agora, por sua estilística, a possibilidade de uma

reviravolta da história. Mesmo que por instantes, naqueles papéis pintados,

brilha uma luz ofuscante. Neles, fixou-se um gesto que ultrapassa a bizarra

dinâmica de seus autores e se torna indiferente vir a saber quem falou e quem

disse. Considera-se mesmo ser preciso alcançar um certo apagamento do

indivíduo de carne e osso, para ficar com seu sopro. Então, os leitores também

compreendem que o depósito de obras é, enfim, um depósito de vestígios e

que a operação enunciativa de traduzi-los somente será possível quando

ocuparem o lugar de um morto, quando afirmarem sua própria ausência diante

daquilo que se ausenta, mas que pode devir presença.

Entendem que se encontram em um mundo diferente que os força a

pensar de outra maneira e pode, então, escutar Cecília Meireles (1976, 173) a

lhes dizer o poema:

Escreverás meu nome com todas as letras,

Com todas as datas,

- e não serei eu.

Repetirás o que me ouviste,

O que leste de mim, e mostrarás o meu retrato,

- e nada disso serei eu.

Dirás coisas imaginárias,

Invenções sutis, engenhosas,

- e continuarei ausente.

Somos uma difícil unidade,

De muitos instantes mínimos,

-isso seria eu.

IV - Um manifesto, ou ao menos o tom de um, antes de concluir

Alçar à última potência cada recomeço das vidas infames. Derramar o

azeite quente que verte de suas obras expressivas sobre o gelo dos saberes

que as condenou. Pensar em salvá-las e ao mesmo tempo recuar, pois

chegamos tarde demais e já não mais podemos fazê-lo. Vidas perdidas, mas

que não seja em vão. Teriam chances de alguma revanche? Teriam

consciência do poder que as produziu? Teriam possibilidade de se saberem

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testemunhas de uma longa história, da qual transformaram-se em planos de

inscrição do biopoder que as dominou? Seus corpos carregam as marcas de

um estado de exceção, onde os direitos lhes foram negados e, acreditamos

que, uma das razões para impulsioná-los à sobrevivência, foi a de

converterem-se em testemunho. Como sobreviventes de uma guerra,

posicionam-se como transgressores de uma ordem contínua e estabelecida.

Buscam mostrar que o mundo é incontável, apesar das forças que querem

unificá-lo e fechá-lo. Em suas vozes, ecoam os murmúrios de uma conversa

infinita, abundante, múltipla, inesgotável, que nos contam de um mundo

tomado por todos os lados e do qual não tiveram como sair. Em seu mundo de

papel, desenham paisagens em que tudo se desprega do solo. Fazem voar

casas, árvores, animais e a própria gente. Trazem para a cidade os campos, as

lavouras e os pomares de sua infância interiorana. Abstraem-nos em

impressionantes traços, deixando a ver somente fugidios rastros que se

assemelham aos de grandes pintores. Embaralham formas, desfazem-nas e as

parcializam. Produzem veladuras naquilo que já foi; instauram silêncios

brancos e pausas sobre o sangue já derramado; explodem em letras e

números sem gramática e matemática; plantam, em velhos papéis, imensas

árvores de todos os matizes, querem uma coleção delas ao modo de um pomar

extravagante e fecundo. Formatam buquês de uma estranha flora; fazem

nascer gentes de todas as cores, com muitos dedos nos pés e nas mãos,

grandes olhos observadores e bocas carnudas. Amarram-nas em sofás e

cadeiras, ornam-lhes com condecorações enquanto descalçam-lhes os pés e

deixam à vista, sob a roupagem, um corpo desnudo. Tudo o que oferecem

força ao embaralhamento da visão e apresenta-se como expressão do

momento em que a vida se traduz na arte e arte se produz da vida.

Nós os denominamos de artistas da margem e, quando neles falamos

referimo-nos, então, não a sujeitos que se situam nas extremidades,

delimitando um dentro e um fora da cultura. Referimo-nos à margem que marca

um intermezzo, a algo que se desloca entre lógicas duras, sem pertencer a

qualquer uma. Trata-se, a nosso ver, de um lugar que é, a um só tempo,

absolutamente interior e exterior à máquina sócio-cultural e que é forjado no

próprio contexto no qual habitam os sujeitos que, então, delas escavam novas

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possibilidades de linguagem. Desde esta perspectiva, de nosso ponto de vista,

torna-se artista aquele que trabalha na direção de um “pode ser”, na

atualização das virtualidades imanentes ao seu próprio território existencial, o

qual se transmuta por seu ato criador e por suas possíveis proliferações.

Consideramos que essa produção artística - criada no próprio seio daquilo que

a pode aprisionar -, é dotada de um caráter de resistência ativa que a torna

peculiar, ética e politicamente significativa. Trata-se de uma produção

relevante, tanto por sua extensão quanto por seus significados, podendo ser

tomada como um breve clarão que testemunha a existência de homens e

mulheres, os quais , apesar da impotência de suas existências, resistem em

sua vontade de expressão e de relação viva com a realidade. Trata-se, enfim,

de uma manifestação coletiva, que nos leva a perguntar sobre a força que

ainda reside na impotência, e sobre como esses corpos , assujeitados a tantos

desígnios de um poder que os quis normalizar e negar, ainda dizem não ao seu

silenciamento e apagamento sócio-afetivo e cultural.

Como já foi dito, suas obras constituem o Acervo da Oficina de

Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro que consideramos um arquivo

da memória social; o qual, ao ultrapassar o sentido de indícios registrados de

biografias individuais, torna-se documentação que nos remete à necessidade

de fazer a história do nosso presente, retomando os liames rompidos dos

diálogos entre loucura e razão, cultura, ciência e vida. Mais do que as

biografias e rumos de vidas individuais extraviadas da retidão da normalidade,

o que nos surpreende e interessa é a sua capacidade de expressão, sua

resistência em se manterem dizendo algo quando todo o seu entorno lhes

impôs esquecimento e letargia. Não nos interessa tomar as obras de arte para

desentranhar-lhes possíveis interpretações inconscientes que viriam a auxiliar

em processos terapêuticos. Nosso enfoque, neste momento, recai na obra

como incessante manifestação vital dos rumores de forças que habitam ou

habitaram os corpos de seus autores. Encorajamo-nos a encontrar, em tais

obras, coleções de traços, gestos e cores, um lugar valorizado e visível na

cultura e no mundo das artes, da filosofia e das ciências. Aqui, não importa

classificar e denominar segundo critérios marcados pelas dicotomias e

separações entre o que pode ser considerado como parte da cultura ou dela

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excluído. Nosso olhar recai para um longo horizonte e não encontra

demarcação de beiras: como se as obras e seus artistas vivessem em meio a

um grande rio que, de tão largo, não dá a ver suas beiradas. Artistas da

margem e do meio, que não atracam nem se enrijecem nos lugares da moda

cultural, uma vez que o seu ditame de produção não corresponde a nenhum

outro impera o do seu próprio desejo, sem finalidade mercadológica ou

escolástica. Obras e vidas dos afectos e das singularidades, ditadas pela força

de expressão de seus corpos.

Neste lugar da loucura institucionalizada, somos tomados pela vertigem.

O reto olhar de nossa razão revira-se. Vemo-nos mergulhados em um

acontecimento no qual os fatos já não são mais ordenados em sua seqüência

lógica. Eles saem dos trilhos da continuidade e da sucessão e fazem-nos

pensar que o tempo cronos que conhecemos é estreito demais para abrigar os

sentidos que são ali produzidos. Neste país, torna-se escancarado aquilo que,

na verdade, se faz presente em qualquer outro mundo: um elemento extra-

numerário existente nunca encontra seu definitivo lugar; torna-se o assaltante

rebelde que rouba e transgride o curso esperado e previsível das séries em

que os fatos se enfileiram. Nesta cidade dos loucos, instaura-se uma luta

constante contra aquilo que não pode ser enfileirado nas séries dos

significados familiares. Ocupando as pontas de uma linha sem fim,

contrabalançam-se razão e desrazão, saúde e loucura, agentes do poder e

sujeitos ao poder, os quais, apesar da forçada contraposição, se descobrem,

ao final, ocupantes do mesmo plano. Ferro e água numa composição que pode

gerar múltiplos efeitos. Neste país da clausura do Fora, a energia circulante

seria traduzida como de alta tensão, caso não tivessem sido engolidas e

enclausuradas as forças do Fora. Mesmo tendo tido seus corpos travados e

assemelhados a grandes frascos de remédios, alguns desses sujeitos

enclausurados pelo regime da longa internação, denotam uma estranha força,

uma certa teimosia em viver, parecem mesmo retirar alguma alegria de certos

momentos de sua existência. Celebram, sem consciência alguma, a passagem

das águas e sua potência para transformar o duro em mole, o ferro em

ferrugem, o sólido em poeira. Sentam-se nos bancos de coral e desaceleram o

corpo para dar vazão ao seu delírio. Parecem poder ter tido acesso ao que

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Nietzsche chama esquecimento. E isso nos toma de contentamento. Estaria aí

mais uma razão para se insistir ser o mundo incontável?

Agora que estamos conectados a esse país e à sua (p)ilha deserta,

podemos sentir a existência de dois mundos em tensão, como faces de uma

mesma moeda. Razão ou desrazão, poder ou impoder, dentro ou fora

emergem como tendência de um perverso ritmo binário cuja aberrante

monotonia e falta de invenção coloca-se a serviço de aberrações por ele

mesmo produzidas. Gostaríamos de nos dedicar a estabelecer a conjunção

e+e+e entre os termos para que se nos torne difícil e mesmo impossível

problematizar onde efetivamente se localizam cada um destes termos que

compõem esse estado de coisas em suspensão. Seria certo supor, até mesmo,

que tal atribuição individualizada e hierarquizada de predicados, corresponderia

a uma tentativa inútil e a um falso caminho para o pensamento. Tudo o que

podemos, nesse momento saber, é que sendo indissociáveis, cada termo gera

o outro e que não há uma essência natural que lhes garanta independência. Os

termos em relação retroalimentam-se, havendo entre eles uma espécie de casa

vazia, um intervalo branco, ainda não marcado mas marcável, do qual poderão

emergir outros possíveis sentidos e devires. Não há mais aqui uma natureza

senão aquela que já se entranhou com a cultura e com os artifícios. E, ainda

uma vez mais, dizemos que se torna embaraçador quando podemos

reconhecer que o que está, supostamente, situado no lado de uma

interioridade condenada e tida como impotente, ainda resista e queira fazer

uma obra de sua vida. Nestes momentos de afecção, sabemos que estamos

certos em buscar situar nosso pensamento naquele desvio cego, pois, está

sendo dali que temos podido mais do que reclamar e denunciar. Aqui estamos

juntos e buscamos a intimidade com os segredos da desmedida, de cuja

explosão vemos apenas efeitos de devastação. Se adentramos a paisagem,

recolhendo as cortinas de nosso olhar marcado, podemos nos sentir em meio a

cenas de um thriller, nas quais cadáveres ressurgem de tumbas imemoriais

para forjarem núpcias entre vida e morte. Há algo neste horror, contudo, que

nos fascina e passeamos nossa sensibilidade sempre num “entre”, nos

contagiamos com esses corpos informes e, quando os visitamos em suas

moradas, vemos que ainda aquecem as esquálidas camas enfileiradas em

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quartos coletivos. Quando recém despertados, esses corpos, sem consciência

e sem memória, servem-se de café e pão, colocados em longas mesas

providas de bules de alumínio. Em bandejas, comprimidos azuis são

distribuídos, como hóstias, em sua boca. Estes garantirão que se mantenham

plácidos, libertos das convulsões possíveis de seus delírios. Cigarros feitos de

papel-jornal e fumo barato passam a ocupar seus dedos. Uma televisão

encena programações histéricas e promoções baratas. Teria quem lhe

prestasse atenção? Que vidas habitam essas casas, dormem em suas camas,

alimentam-se em longas mesas de todos e de ninguém? A quem pertencem

esses corpos, encurvados e com pés desnudos, cuja visão nos aproxima de

anjos caídos? Quem são esses seres que, sobreviventes de uma catástrofe,

erigem seu testemunho de um modo estético, fazem falar mais além das

palavras e das imagens, convertem suas dores em possibilidade de arte? Anjos

caídos que “conservam seu pathos, uma dignidade e um singular glamour”

(Bloom, 2008, 22), diferenciam-se da figura do demônio e fundam-se

exatamente na invenção do humano, para nos remeter a algo que perdemos e

que temos o potencial de nos tornar de novo. Desta perspectiva, todos nós

somos, pois, anjos caídos, desterrados que fomos do paraíso e da imortalidade

e portadores dessa falha que é ao mesmo tempo nossa condição de grandeza

e miséria.

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Referências Bibliográficas

Blanchot, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio d’Água,1984.

_______. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Bloom, Harold. Anjos caídos. Rio de janeiro: Objetiva, 2008.

Deleuze, Gilles. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Derrida, Jacques. Mal de Arquivo. Uma impressão Freudiana. Rio de

Janeiro: Relume-Dumará, 2001.

Foucault, Michel. Estética: Literatura e pintura, música e cinema.

Coleção Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

Levy, Tatiana Salem. A experiência do Fora. Rio de Janeiro: Relume-

Dumará, 2003.

Meireles, Cecília. Poesias Completas. V.7 I/Poemas II. Ed. Civilização

Brasileira, 1976.

Piglia, Ricardo. O último leitor. São Paulo: Cia. Das Letras, 2006.

Shulz, Bruno. Sanatório. Rio de Janeiro: Imago, 1994.

Sobre a autora

Tania Mara Galli Fonseca é psicóloga, professora titular do Instituto de

Psicologia da UFRGS, professora dos programas de pós-graduação em

Psicologia Social e Institucional e de Informática Educativa/UFRGS,

coordenadora da equipe de pesquisa e extensão/UFRGS do Acervo da Oficina

de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre,

coordenadora do grupo de pesquisas e do diretório CNPQ Corpo, Arte e

Clínica (www.ufrgs.br/corpoarteclinica).

E-mail: [email protected]

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Ensaios / Dossiê

Ao som de uma cançãozinha Luiz sai de sua casa Andresa Ribeiro Thomazoni1

Resumo: Buscamos neste artigo percorrer algumas linhas de nossa pesquisa

cartográfica sobre vida e obra de Luiz Guides, sobre o rumor expressivo de

uma vida. Entendemos a Oficina de Criatividade, como um dispositivo

maquínico, que possibilitou a sustentação para a poiesis de si e de mundos;

assim sua pintura, tornou-se capaz de ultrapassar o caos-catástrofe e eclodir

em planos expressivos que germinam, o diagrama nasce apontando-nos os

agenciamentos que ali operam. Compreendemos então, a pintura como um

território existencial possível em meio à adversidade do Hospital Psiquiátrico,

vida e obra em imagem-tempo, que nos lançam a vertigem de um intempestivo,

que nos visibiliza a resistência e criação.

Palavras-chave: cartografia, diagrama, vida-obra

Ao som de uma cançãozinha Luiz Guides sai de sua casa, em direção

ao mundo, num encontro com as forças do futuro, forças cósmicas, onde se

improvisa, onde confunde-se com o próprio mundo.

Assim a pintura torna-se agenciamento, percorre a folha pendurada no

cavalete, mergulha nas tintas oferecidas, sussurra aos pincéis à disposição,

dança com as cores que se aderem a superfície, instaura a criação de um outro

tempo.

Num lugar cinza que se constitui o Hospital Psiquiátrico, Luiz se torna o

cinza que salta por cima de si mesmo, cinza colorante, no paradoxo da

1 Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional UFRGS. Integrante do grupo de pesquisa Corpo, Arte e Clínica.

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clausura, seu corpo agencia-se com a Oficina de forma a criar, instaurando um

outro território existencial em meio à loucura.

O diagrama pictórico mistura-se ao diagrama que nos diz sobre um

agenciamento. Nosso olhar-cartográfico é, então, capturado por camadas em

que esses diagramas reverberam.

Num primeiro plano, a pesquisa torna-se diagrama, nosso olhar-vibrátil

agencia-se com a vida e obra de Luiz; num segundo plano, a Oficina instaura

um diagrama, como um meio associado que sustenta a criação agencia-se com

os corpos do Hospital; num terceiro plano, Luiz constrói seu diagrama pictórico,

a possibilidade da pintura agencia-se com as forças que o atravessam,

resultando na criação, na instauração de sua arte.

Nossa escrita cartográfica, então, nos impele em direção à captura de um

campo de intensidades, onde também traçamos-desenhamos um diagrama,

que fale sobre nosso processo, nosso encontro, nosso próprio devir.

A pintura diagramática de Luiz agencia elementos dispersos, de um

extremo a outro faz pontes, como uma imagem-tempo, a massa plástica é

dobrada, redobrada, estirada. Instaura proposições não-lineares, não-

dialéticas, não-conclusivas.

A função diagramática possibilita um arranjo de relações, passagens,

encadeamento de séries, desterritorialização, experiência disjuntiva, de

metamorfoses recíprocas entre as matérias, possibilitando produção de devir.

A pintura compreende em si mesma um abismo, passa por um abismo,

instaura um abismo. Mas algo deve sair desse abismo para que o diagrama

possa nascer desse caos-germén.

Assim, a modulação das tintas sobre o papel, a sobreposição de traços, a

vibração do gesto é capaz de produzir uma trama visual, uma geometria do

sensível.

Luiz ultrapassa sua catástrofe, atravessa o deserto caótico da loucura e

instaura a criação de um novo mundo pela pintura.

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Figura 1: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm,

03/08/1994, nº cat. 001158. Acervo: Oficina de Criatividade

Figura 2: Luiz Guides. Guache s/ papel,

61x30cm, 03/08/1994, nº cat. 001159. Acervo: Oficina de Criatividade

De um ponto cinza banal, de linhas verticais e horizontais cujo

cruzamento denunciavam uma espécie de grade, de círculos convulsionantes,

de espirais ascendentes e descendentes, de números saltitantes, de todos

esses elementos o corpo opera um outro movimento, instaura um outro ritmo,

seu estilo.

Assim nasce o diagrama, um ultrapassamento dos blocos de linhas e

cores em direção aos traços e manchas. Uma entrega do corpo para a vibração

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que o atravessa, uma liberação da mão em relação ao olho, a liberdade para

se borrar, para se varrer, para esfregar a tela, ultrapassando regiões e zonas.

Figura 3: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, 06/12/1994, nº cat. 001177. Acervo: Oficina de Criatividade

A mão conduzirá essa germinação, somente uma mão desencadeada é

capaz de traçar o diagrama, rompendo com a subordinação à coordenadas

visuais. Trata-se então, de um caos-germen manual.

A mudança de medida do gesto, que ora é milimétrico, ora é cósmico,

amarrotamento da tela em outras dimensões, estiramento em outros sentidos.

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São traços assignificantes que vibram, traços de sensação. Marcas manuais

quase cegas a serviço se outras forças.

Figura 4: Luiz Guides. Guache s/ papel, 48x33cm, 08/11/1993, nº cat. 001338. Acervo: Oficina de Criatividade

Deleuze (2007), define o diagrama como o conjunto operatório dos

traços e manchas, das linhas e zonas. Assim, o diagrama se transforma em um

gérmen de ordem e ritmo abrindo a pintura a domínios sensíveis.

Cores pictóricas e linhas pictóricas, a dupla gama pictórica de cor e luz.

O ponto cinza que salta por cima de si mesmo, o cinza matriz da cor. O traço

com sua liberação, uma linha que não possui direção constante e que pode

mudar a cada ponto.

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Figura 5: Luiz Guides. Guache s/ papel, 48x33cm, 08/11/1993, nº cat. 001339. Acervo: Oficina de Criatividade

A pintura, assim, não busca nenhuma figuração, ao contrário atua na

direção de um desmanchamento de semelhanças, para que a presença surja.

Não se pinta na direção de um dado, ou um feito, mas de algo que espera a ser

produzido, de um devir.

Cada pintura torna-se, então, um fragmento de seu território existencial,

cujo fascínio e encanto nos captura, pois também queremos habitar esse

pedaço de terra. Não há totalidade possível na pintura, quando o artista quer

pintar o que não tem fim, a sua própria vida.

A pintura-traço de Luiz, cujo gesto motor-sensível materializa o tempo e

o silêncio que o rodeiam, pintura agenciamento que reúne fragmentos de vida

em suspensão, que lhes dá uma terra fértil em meio à infertilidade do hospício.

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Figura 6: Luiz Guides. Guache s/ papel, 62x30cm,

05/11/1995, nº cat. 001457. Acervo: Oficina de Criatividade

A expressividade mais forte de Luiz, instaura-se sobre a tinta guache.

Nela seu corpo se entrega a uma modulação da cor encantadora. Extrai de

uma matéria simples e barata como o guache, toda luz que ela encerra, por

intermédio da cor e pela cor. Mais que modelar, mais que moldar, Luiz

experiência a modulação da cor.

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Figura 7: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, s/d, nº cat. 001394. Acervo: Oficina de Criatividade

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Figura 8: Luiz Guides. Guache s/ papel, 61x30cm, s/d, nº cat. 001395. Acervo: Oficina de Criatividade

Com o surgimento do diagrama, sua pintura, então, continua a avançar,

sobre a folha em seu verso. Duplo movimento cuja imagem embaralha os olhos

que pousam sobre a superfície. Justaposição de manchas coloridas, de

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relevos, de planos, assim a cor é arrastada a pontos que culminam e a séries

que descendem.

Liberação da cor, de seus próprios aprisionamentos, ultrapassamento

em direção à potência da matéria expressiva, do guache sobre papel, do corpo

na clausura.

Figura 9: Luiz Guides.

Guache s/ papel, 62x30cm, 16/01/1995, nº cat. 001465.

Acervo: Oficina de Criatividade

Figura 10: Luiz Guides. Guache s/ papel, 47x32cm, 04/05/1995, nº cat.

001525. Acervo: Oficina de Criatividade

Figura 11: Luiz Guides.

Guache s/ papel, 62x30cm, 19/05/1995, nº cat. 001530. Acervo: Oficina de Criatividade

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Figura 13: detalhe em zoom de 94% da figura 12

Figura 12: Luiz Guides. Guache s/ papel, 65x47cm, s/d, nº cat. 001540. Acervo:

Oficina de Criatividade

Nesse detalhe podemos ver a precisão de Luiz em pintar todos

elementos que compõem a imagem. Há linhas de cor vermelha e cor azul para

traçar os círculos, as retas, e os pontos.

Por mais que a tinta escura esconda o trabalho de composição que está

por trás, em outras partes da tela podemos visualizar o detalhismo de seus

gestos, a sutileza dos traços, tal qual um mosaico.

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Figura 14: Luiz Guides. Guache s/ papel, 47x66cm, 20/03/1997.

Acervo: Oficina de Criatividade

Luiz revela-se como um arquiteto das cores, extraindo delas um ritmo

colorante.

A partir dos regimes das cores existentes, divididas em luminosidade

(claro/escuro) e pureza (saturado/ diluído), podemos pensar que jogo Luiz

instaura em suas pinturas.

Uma pintura que busca a luz, a cor clara para seus jogos de

transparências e veladuras e que, ao mesmo tempo. se gera de uma fusão

com outras cores. Movimentos de clarear e mesclar, muito mais que um

escurecer e purificar.

Assim podemos pensar o teatro de sua vida e obra no São Pedro, o

quanto a potência de vida que ele carrega em seu corpo é velada para certos

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olhos pautados num discurso da razão, o quanto seu corpo frágil e silencioso

mesclou-se à paisagem que o circunda, à clausura que lhe foi imposta.

Luiz é capaz de criar uma música inaudita para nossos olhos, música

colorida pela vertigem de tons claros e mesclados.

Figura 15: Luiz Guides. Guache s/ papel, 45x60cm, s/d. Acervo: Oficina de

Criatividade

Figura 16: Luiz Guides. Guache s/ papel, 52x63cm, 09/05/00. Acervo: Oficina de

Criatividade

Referências Bibliográficas DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 183p.

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Revista Bimestral de Arte Panorama Crítico | ISSN 1984-624X | Edição #06 | Junho/Julho

Ensaios / Dossiê

Vidas do fora e a es Natália e o universo em uma casca cor-

de-abóbora Fábio Dal Molin

Este texto é dedicado aos intrépidos leitores desta revista que

experimentarão, pela primeira vez, a aventura de transpor as águas do tempo e

espaço entre a arte e a loucura no imenso e caudaloso rio do Hospício São

Pedro, tendo como generosos barqueiros os quatro artistas e suas Vidas do

Fora. Conta o grande físico John Osterman, o Dr. Manhattan, que seu pai era

um relojoeiro que largou a profissão quando Einstein formulou a teoria da

relatividade. Pois os acontecimentos de junho de 2010 nos convidarão a todos

a sair fora de nossas vidas e habitarmos os espaços intersticiais do tempo, da

arte e da insanidade.

Diz Paul Veyne que a história é contada pelo reverso de suas lacunas, e

a física quântica alerta que, entre os elétrons de um átomo há espaços

infinitamente vazios. Quando escrevemos, falamos ou contamos, aquilo que é

dito repousa em camadas e camadas de indizível. O que será contado aqui de

Natália, por mais registros e informações que se disponha, será sempre

incompleto.

Esta é a necessidade do corpo1 que escreve. Nesta história que será

contada, incorpórea e vazia da loucura, o quadro-negro é o colossal Hospital

Psiquiátrico São Pedro, os instrumentos são alguns fragmentos da vida e da

obra de uma das artistas mais antigas e marcantes: Natália. A fluidez será

nosso estilo, como a tinta que, misturada na palheta, escorre pelo movimento

do pincel, como uma flor, um arbusto, um papagaio.

Escrever sobre Natália é...

1 Diz o quarto postulado da ética, que trata da natureza e da origem da mente: “O corpo humano tem necessidade, para conservar-se, de muitos outros corpos, pelos quais ele é continuamente regenerado” (SPINOZA, 2007, p. 105). A esta relação entre os corpos, Spinoza chama de afecção.

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Natália Leite, habitando o planeta terra, girando em torno do sol em um

sistema solar que gira ao redor da galáxia que se afasta cada vez mais do

centro do universo, há vinte anos, ao misturar elementos quimicos faz com que

estes produzam cores vivas e intensas, dando formas a seres fantásticos,

animais, árvores, pessoas e casas...

A luz do sol é branca, e, ao passar por um prisma, se difunde e é

decomposta nas múltiplas cores que compõe o espectro luminoso. A essência

de cada cor é definida por seus atributos, ou freqüências luminosas. Se

estudarmos um pouco de mitologia comparada, especialmente a monstruosa

obra do Antropólogo Joseph Campbell “O poder do Mito”, saberemos que, na

maioria dos mitos (inclusive nos que originam o Deus cristão) a divindade é

representada pelo Sol. Não seria difícil entender o pensamento dos antigos,

afinal, quando o sol está presente, o mundo (que era praticamente tudo o que

se conhecia, ou seja, o Universo) aparece em todos os seus atributos e

essências, e à noite, tudo desaparece e fica obscuro. Desta forma, através

das lentes do intelecto, da atmosfera terrestre temos acesso aos distintos

atributos da luz divina. Tudo começou com o sol. Talvez o cineasta soviético

Andrei Tarkovski tenha colocado estas idéias em sua película mais famosa

“Solaris”, na qual os cientistas da terra criam, em algum canto isolado do nosso

sistema solar, uma massa rósea semelhante ao sol, capaz de converter

energia em matéria . No filme, os astronautas que trabalham no projeto

descobrem que a influência do que Tarkovski chama de campo solarístico

utiliza das suas memórias (intelecto) afetadas pelos anos de isolamento no

vácuo como molde. O encontro do intelecto com a imanência produz a

matéria.Natália, ao pintar e bordar, faz da luz o seu pensamento, suas

memórias, seus fluxos.

Em uma camiseta com uma estampa de uma de suas obras Natalícia

serigrafada, na radiante cor de abóbora, há uma árvore frondosa com a forma

da cauda de um pavão. A figura perturbadora surpreende e invade os sentidos

pela intensidade da cor e pela exuberância da forma. Cor de abóbora. Para

determinadas mentes pouco afetadas pela potência das cores, a abóbora tem a

mesma cor da laranja, e todos os marrons são iguais. Não para ela. Natália

pensa, e Natalia é um intelecto que diferencia as qualidades dos corpos,

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expressa os infinitos atributos dos que perturbam outros corpos, exprimindo a

substância divina em cores que ela mesma cria.

Natália também viaja na substância do tecido e, da mesma forma que

uma nave espacial viaja de uma estrela a outra da constelação da Ursa maior,

com linha e agulha une e sobrepõe imagens de uma perdida e bucólica

paisagem interiorana: a imagem de um porco, uma flor, um sol, uma chaleira,

uma casa, uma pequena igreja ou uma lua. Sua agulha dá potência de

movimento a uma linha que produz a forma. A arte de Natália bifurca a loucura

à maneira de como Foucault reinventou sua História de prisões, tortura e

saberes: na forma de espirais caóticas, acontecimentos e retratos, que

produzem um plano onde se inscrevem palavras de ordem, discursos,

diagramas de uma dança sem fim, embaralhada e fascinante. Como se, ao

produzir, todo um mundo de memórias lhe viesse à mente, preenchendo o

espaço com uma superfície povoada e colorida e tudo viesse, entre a agulha,

a linha, o buraco e o tecido, o pincel e a folha de papel, misturando as palavras

como pingos de tinta.

Há quinze anos, um estagiário de psicologia entrou pela primeira vez no

São Pedro, na Oficina de Criatividade. Em uma das paredes, estava pendurado

um pano de algodão bege e dali pululavam pequenos javalis em fila indiana

bordados com linha cor-de-laranja. Aliás, cor de abóbora, como sua criadora

mesma diz. Ela entra em cena: uma capa de chuva acaba de chegar em

passinhos curtos, e do cinza molhado brota um cabelo negro cortado com

franjinha, olhos negros levemente estrábicos, exageradamente pintados, como

o resto do rosto, que combina com o vestido florido. No pescoço há um colar,

que adorna uma espécie de abscesso semelhante ao que aprendemos, no

colégio, como sintoma de bócio endêmico. Natália.

Tanto tempo...

E o que é o tempo no Hospital Psiquiátrico São Pedro? Quando dizemos

que o HPSP foi fundado em 1874 e que em 1974 ele completou 100 anos, ou

que uma mulher chamada Natália Leite vive ali desde 1956, o que realmente

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queremos dizer, ou melhor, de que ciclos estamos falando, quando eles são

inaugurados ou quando eles terminam?

Natália ainda vive no HPSP. Seus pequenos olhos negros se

acostumaram com muros, tijolos, paredes, rebocos velhos e embolorados,

goteiras, torneiras pingando.... Mas estas coisas todas estão jogadas nos

cantos do hospital ou são destruídas pela ação entrópica do tempo. Entulhos e

quinquilharias, que observamos em portas entreabertas, continuam na

duradoura e sólida existência das coisas mortas, porém em tranquila

imobilidade. Natália continua viva, testemunhando a multiplicidade dos modos

de tratar a loucura, e ciclos de loucura, história, política, lei, ciência. Natália

cumpre o seu ciclo vital com uma sua colorida existência. Está internada há 54

anos, entre tristezas, paixões, encontros e alegrias e sabe-se lá o quê na

infinitude inimaginável da vida cotidiana.

Por vinte anos, no âmbito da Oficina de Criatividade, Natália cumpre seu

ciclo vital pinta e borda a cada dia. Sua produção já alcança cerca de quatro

mil obras. Torna-se, ao nosso olhar, portadora de uma vida que se sobrepõe à

decomposição. Diante dela, a linha de morte parece cair e, como para deixar

passar outras linhas compostas por terra diante da linha de fuga. Como uma

divindade hindu, produz a dança da vida; do intelecto de Natália brota a

matéria do Universo. Ela é vida que se autoproduz e expande. gera mais vida.

Dizem os prontuários que sua entrada no hospital foi em 1956, aos 13

anos, vinda de Santo Ângelo, cidade distante a quase 400 km de Porto Alegre,

nas antigas Missões. Teria vindo de uma família em conflito.

Natália fora internada em uma época em que o São Pedro atingira sua

máxima lotação, abrigando cerca de cinco mil internos. Eu soube de lendas de

estrangeiros clandestinos em navios que, por não se entender o que falavam,

eram internados no hospital, assim como toda sorte de enjeitados e rejeitados.

Natália, conforme alguns relatos, sofrera violência doméstica por parte

do pai e teria resistido em voltar para sua terra natal. Após tentativas de

trabalhar como doméstica, Natália retorna para sua cidade, onde sua situação

familiar torna a piorar, até que em 1959 volta ao hospital São Pedro para ficar.

Pelos minguados registros, teve algumas complicações relativas ao uso de

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medicação e chegou a apresentar alucinações visuais, teve que fazer uma

cirurgia no joelho. Pelo que tudo indica, perdeu o contato com a família. A casa

dos loucos é, por necessidade, a moradia de Natália2.

O grande Hospício, uma vez mais em sua história, serviu de porto

seguro, local de moradia, comida, linha de fuga.

2010

O estagiário, já evelhecido, visita novamente o hospício. Agora o espaço

é maior - onde anteriormente eram enfermarias e salas de cirurgias

abandonadas. Em sua época de estagiário, servia como esconderijos e mocós.

A própria reunião da qual participa faz parte de um novo espaço instituído, a da

catalogação das obras e criação de um museu. É tomado de uma alegria

canceriana saudosista ao vislumbrar logo abaixo de uma escada o retrato do

Sorriso. Natália estaria doente; a causa da doença seria o fato de ela ter

trocado de medicação com outra moradora, por esta ser de cor laranja... Não

contém o riso, pois ele vem da explosão elétrica de suas memórias.. isso é

típico da Natália, a primazia da estética. Lembra muito bem dela escolhendo as

cores das linhas e das tintas, com extremo rigor e apuro...

Apêndice e o texto desaparece

Estamos novamente no ano de 2010, e trezentos e poucos pessoas

habitam o HPSP. É quarta-feira, nove da manhã. Sentada o seu canto,

operando o incansável pincel como faz há vinte anos, está Natália, com cabelo

curto, mais gordinha e sem o caroço na garganta. É na minha garganta que

sinto o nó, que parece amarrar as pregas do tempo. Como Calvino amarra as

suas Cidades Invisíveis, no diálogo entre Kublai Khan e Marco Pólo:

Agora, desse passado real ou hipotético, ele será excluído;

não pode parar; deve prosseguir até uma outra cidade em que

outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez posse

possível futuro e que agora é presente de outra pessoa. Os

2 “O asilo construído pelo escrúpulo de Pinel não serviu para nada e não protegeu o mundo contemporâneo contra a grande maré da loucura. Ou melhor, serviu, serviu muito bem. Se libertou o louco da desumanidade de suas correntes, acorrentou ao louco um homem e sua verdade. Com isso, o homem tem acesso a si mesmo como ser verdadeiro, mas esse ser verdadeiro lhe é dado na forma de alienação” (Foucault, 2008)

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futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos

secos.

-Você viaja para reviver seu passado?-era a esta altura a

pergunta do Khan, que também poderia ser reformulada da

seguinte maneira - você viaja para reencontrar seu futuro?

E a resposta de Marco:

-Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante

reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não

teve e o que não terá”. (Calvino, 1994, p.19)

Hoje, Natália tem 67 anos. No seu prontuário consta que, lá pelos anos

90, desistiu de pedir pela família ou mesmo a esqueceu. O Hospital tornou-se

sua casa e tudo o que tem.

Agora, imaginem aquela menina de 13 anos, provavelmente com pouca

ou nenhuma instrução formal, exposta a espancamentos, brigas e bebedeiras,

obrigada a viajar por uma longa e tortuosa estrada até uma cidade

absolutamente desconhecida; conduzida pela polícia, que era quem fazia as

remoções naqueles dias. Chegando no grande hospício lotado, haveria que

passar por uma longa fila de espera, e por uma triagem que provavelmente não

era muito meticulosa. E lá estava alguém de jaleco branco, lhe fazendo

perguntas que talvez ela não entendesse, por estar nervosa, assustada,

angustiada; ou mesmo aliviada e esperançosa

E agora? Como ela se reterritorializou em sua arte e chegou aqui, no fim

do texto? Diagnóstico, internação e medicação, cura. Quem a teria contratado

como doméstica? E por que teria sido demitida? O que suas fugazes patroas

teriam imaginado daquela louca que saiu do hospício? Conseguiria ela limpar

uma casa impregnada de medicamentos, saudades, tristeza e abandono?

Como Natália voltou para Santo Ângelo, quem a buscou? Como e onde estava

sua família, seu pai, que agora não recebiam mais a filha Natália, e sim, a

louca que fugiu de casa e foi parar no hospício. Natália se desterritorializou

enquanto filha problemática e se reterritorializou na figura de louca. Quem é

Natália?

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Os antigos pacientes estão adoecendo, definhando e morrendo. E o

estagiário Fábio desapareceu, assim como todas as pessoas que estavam

vivas há 300 anos morreram e as que vivem hoje estarão mortas daqui a 200

anos. Os budistas chamam isso de temporalidade. Neste momento, enquanto

não morremos, nas mãos tenazes e empoeiradas de pesquisadores

cartógrafos, alguns escrevem também nesta revista, o museu que está

nascendo guarda o paradoxo de, ao invés de trazer o passado, o reencontra e

reterritorializa. Natália vislumbra uma vez mais casas, papagaios, árvores,

florestas e igrejas.

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Referências Bibliográficas

Bauman, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999

Calvino, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1994

Foucault, Michel. A história da Loucura na idade clássica. São Paulo, Perspectiva, 2008.

Foucault, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro, Forense universitária, 2008

Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. O que é a filosofia. Rio de janeiro, Ed 34, 1992.

Godoy, Jacintho. Psiquiatria no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1955. Mariotti, Humberto. O conhecimento do conhecimento: a filosofia de

Baruch de Espinosa e o pensamento complexo. Disponível em www.geocities.com/pluriversu.

Spinoza, Benedictus de. Ética. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007.

Sobre o autor

Psicólogo, mestre em Psicologia Social, doutor em Sociologia e pós-

doutorado em Educação (UFRGS). Integrante do grupo Corpo, Arte, Clínica.

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Ensaios / Dossiê

uma Vida em Acervo: experiência e escrita

Leonardo Martins Costa Garavelo

.Breve escrita no suspiro do vento

Sou livre

para o silêncio das formas

e das cores.1

Estranho minha mão frente à folha branca como o aperto no peito do

viajante no instante da partida. Toco a folha e fecho os olhos ouvindo o som de

chuva nas telhas cerâmicas de estilo francês – na escuridão brilhante de

minhas pálpebras, pontos de luz, vultos e memórias de mundo vão se

agrupando transformando-se numa atmosfera marcada pela coexistência de

tempos e instantes. Um estado de sobreposição de fluxos onde cada molécula

de ar gera uma cor diferente produzindo uma espécie de realidade etérea. Sem

compreender ainda, me vejo parado frente à uma estação de trem

abandonada, estou na margem dos trilhos e atrás de mim um prédio em ruínas.

Transfigura-se a imagem e agora estou dentro de um olhar para o horizonte.

Vê-se um lago cinza metálico espelhando um céu igualmente cinza que

prenuncia tempestade. Algum trem passará? Existem embarcações por estas

bandas? Ainda sem nada entender vejo meu corpo se dissolver num

emaranhado de cor e luz – Abro os olhos e me atiro à escrita porvir num salto.

Caio estatelado, morto, perdido. Lentamente um pequeno bando vem

chegando e me recolhe. Sou colocado num barco por um povo estranho: um

me diz com sua voz rouca que chegara de uma longa hibernação com cheiro

de pedra e seus olhos são da cor da terra. Outro só se faz sentir quando coloco

o ouvido na superfície da madeira, sua voz é mínima e sua boca é muito

pequena, além do mais está ocupada moendo a madeira lentamente. Com o

ouvido colado no toco antigo que dá forma ao barco, ouço o som de um corpo

1 Manoel de Barros. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Record: RJ, 2001. p.55.

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se arrastando entre madeiras. É preciso orelhas pequenas e olhos atentos aos

tênues detalhes. No leme, um homem vestindo uma camiseta azul surrada

expressa no rosto a marca do sol e do vento, tem os cabelos desgrenhados.

Minha respiração conduz estes encontros e suspiramos esta escrita no sentido

do vento...

..Traçar um plano

Atento a não deixar o possível leitor confuso e desavisado, traçarei

abaixo algumas linhas visíveis que atravessam o texto, bem como, abordarei

levemente um pouco de seu contexto. O breve escrito que se inicia deseja

conduzir o leitor por um ensaio experimental que flerta com uma escrita na

espreita daquilo que não se vê. Uma viagem sem lógica, verdade, moral ou

juízo. Trata-se nada mais nada menos de uma mísera produção textual como

afirmação de uma vontade. Um exercício entre os descaminhos da escrita

tendo como horizonte um desejo que sopra no sentido da produção de uma

narrativa que envolva a experiência tal como foi vivida e a experiência de

escrevê-la, compondo um texto como passagem, uma paisagem ao vento.

Efetuando uma operação sensível do pensamento a narrativa torna-se a

própria experiência. Escrever tateando, suspendendo a avidez. Experimentar ir

perambulando, de posse de um instinto réptil que vá sulcando o pensamento,

enfeitiçando-o com seu modo coleante de existir2. O pobre narrador reconhece

seus limites, sabe que a experiência da escrita não é fácil, tem algo de ilusório

e impossível. Sempre que se vai tocar o instante este já não é mais. O narrador

conjuga os verbos em primeira pessoa, porém, de forma alguma está se

referindo a um ‘eu’ pessoal e individual. O narrador é múltiplo, composição de

vozes, vidas, e ações coletivas. Ao narrar, rouba frases alheias, cochichos

escutados ao pé do ouvido, conversas e leituras. Narrador-ladrão, narrador-

leitor, narrador-viajante, narrador-multidão. O que o faz escrever é um profundo

desejo de escrita, uma vontade deliberada de se confrontar com o novo e o

inesperado. O desejo de escrever é o prazer, o sentimento de alegria, júbilo, de

satisfação que me dá a leitura de certos textos, escritos por outros (...) para 2 Rosane Preciosa. Rumores Discretos da Subjetividade: sujeito e escritura em processo. Sulina: RS. 2010. p.25.

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passar do prazer de ler ao desejo de escrever, é necessário a intervenção de

um diferencial de intensidades (...) a alegria produtora de escrita é uma

jubilação, um êxtase, uma mutação, um abalo, uma conversão 3.

Como um meio de manter a atenção nos trilhos de um pensamento

possível, traço quatro movimentos no texto: breve escrita no suspiro do vento –

refere-se ao plano do insano na escrita, algo como um transe que produz, de

maneira metafórica, os elementos e sentidos do texto; devirar ossos –

problematiza a escrita de uma vida, enfocando sua concepção ética-estética-

política; impregnações em tempo e espaço – distende a escrita ao

tempo/espaço do Acervo, da Oficina e do hospício; e por fim, incidentes onde a

experiência é levar a escrita ao limiar do instante. Cada ponto está costurado

por uma linha tênue que tem em comum a pesquisa no Acervo da Oficina de

Criatividade no Hospital Psiquiátrico São Pedro4. (Quando escrevo este nome,

percebo que um bloco pesado cai no corpo do texto, um peso histórico e

surpreendentemente atual.) Cada sopro da experiência aqui narrada tem como

dispositivo alguma impressão, vivência, devaneio, pensamento, afecto ou

combate ocorrido entre as fronteiras sutis do hospital psiquiátrico. Entende-se

por combate uma poderosa vitalidade não-orgânica que completa a força com

a força e enriquece aquilo que se apossa (...) somando-se a ela num devir.5

A pele tece os sentidos entre corpo e mundo. Batucadas no peito vibram

vontades de viajar. A viagem aqui é uma imersão numa breve experiência com

a escrita e leitura. No começo, bem antes de todo gesto, de toda iniciativa e de

toda vontade deliberada de viajar, o corpo trabalha, à maneira dos metais, sob

a ação do sol6. Os olhos atentos ao detalhe, ao mísero, à poeira. As mãos

recolhem fragmentos, trapos que resistem alojados nos cantos. O fragmento

recolhe com simpatia nossas ninharias, falhas, contradições, disparates. Enfim,

tudo que de residual a vida emana.7 Na composição de fragmentos ganhamos

3 Roland Barthes. A Preparação do Romance II: a obra como vontade. Martins Fontes: SP, 2005. p.11. 4 Integra o projeto A Potência Clínica das Memórias da Loucura com orientação da Profa. Dra. Tania Mara Galli Fonseca, 2009. PPGPSI – UFRGS. 5 Gilles Deleuze. Para acabar com o juízo de Deus. Em: Crítica e Clínica. Editora 34: SP, 1997. p.150. 6 Michel Onfray. Teoria da Viagem: poéticas da geografia. 2009. p.11. 7 Rosane Preciosa. Rumores Discretos da Subjetividade: sujeito e escritura em processo. Sulina: RS. 2010. p.24.

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fôlego para expressar ressonâncias que tocam a borda do que devém no

instante. Uma narrativa que suspira nos entretempos de uma vida, nas curvas

de um caminho estrangeiro cujos percursos inesperados provocam uma

viagem louca. Diz Onfray que somente a escrita circunscreve os cinco sentidos,

e mais. O trajeto conduz das coisas às palavras, da vida ao texto, da viagem ao

verbo, de si a si8. Como narrar uma experiência bem como ela acontece?

Como folhas que caem, as palavras vão compondo o texto. Com o ajustamento

do passo no ritmo dos encontros, do acaso emerge um espaço, um plano de

composição possível onde podemos tecer um corpo: uma escrita entre

incidências de Vida e Morte.

...Devirar Ossos

A Morte é a única conselheira

sábia que possuímos. 9

Experimente tocar suas mãos na terra. A palma da mão transmite a

respiração do planeta até as zonas infinitesimais das células. Acessa, assim,

memórias ancestrais que se misturam às camadas de pedra líquida, rochas,

minerais do interior do globo terrestre. Palma da mão entre poros de terra e

húmus: cheiro de fertilidade. O que há de mais fértil do que a Terra, o grande

ventre da Vida. Com as mãos na terra, dedico esta escrita à uma pequena

ação micropolítica: escrever no encontro com uma vida infame, vidas ínfimas

que se tornaram cinzas nas poucas frases que as abateram10. Algo como dar

voz a uma voz apagada, irmã da miséria e do pó. Com isso, investigar a

insanidade para compreender a sanidade, para compreender as relações de

8 Michel Onfray. Teoria da Viagem: poéticas da geografia. 2009. p.100. 9 Carlos Castañeda. Viagem a Ixtlan. Record: RJ. 1997. p. 53. 10 Michel Foucault. A vida dos homens infames. Em: Ditos e Escritos IV. Ed. Forense Universitária: RJ, 2001 p.204.

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poder, talvez devêssemos investigar as formas de resistência e as tentativas de

dissociar as relações.11 Investigar os registros deixados por uma vida, suspeitar

seus possíveis e compor uma escrita que afete o leitor ao ponto de fazê-lo

pensar sobre a condição que o louco vive. Revirar ossos, no sentido de mexer

nas entranhas dessas histórias praticamente esquecidas e jogá-las no plano

dos sentidos do leitor. O osso seria a matéria que resiste à decomposição, que

carrega de volta para o interior da terra infinitas memórias impessoais somadas

a um pequeno punhado de novas experiências vividas por aquela vida contida

no osso que um dia habitou uma carne e seus sentidos. Poderia o texto ser

a terra nas mãos do leitor? O que pode o narrador ao revirar os ossos? Quem

ele pensa que é? O que devém dessa experiência?

Percorrer os rastros deixados por uma vida não é uma experiência fácil e

simples, mais complicado fica quando os caminhos percorridos pelo

pesquisador conduzem à indizível presença da morte. Respiro fundo, inalando

o divino que está entre a vida e a morte, bem ali onde vida e morte estão

juntas, se entrelaçando como num acasalamento de serpentes. A serpente que

não pode mudar de pele perece. Assim também os espíritos aos quais se

impede que mudem de opinião; eles deixam de ser espírito12. Respirando

fundo, inalo desconhecidas vidas que impregnadas nas paredes através dos

tempos ecoam murmúrios, ecos restos de expressão, coagulações de mundos,

cismas, dores e histórias. Medito mansamente desde um corpo intuitivo,

ouvindo pequenos rumores e rasas notícias que praticamente não foram ditas.

Revirar os ossos nas terras desconhecidas de uma vida marcada com a

insígnia da loucura com a intenção de ouvir o que não foi dito ou repetir o

mesmo mantra sempre pronunciado, porém compô-lo diferente. Atentar às

pistas, acolher os rastros e vestígios. Encorajar a dúvida e incerteza. Em quais

territórios estão enterrados estes ossos? Que espécie de cemitério se construiu

para a loucura ao longo dos séculos?

(Devo esclarecer: primeiro – escrevo no sentido da vida e para a vida;

segundo - não há transcendência; terceiro – isto não é uma psicografia; quarto

11 Michel Foucault. O Sujeito e o Poder. Em: Hubert Dreyfus, Paul Rabinow. Michel Foucault: uma trajetória para além do estruturalismo e da hermenêutica. Forense Universitária: RJ, 1995. p. 234. 12 Friedrich Nietzsche. Aurora. Companhia das Letras: SP, 2004. p. 283.

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– o acervo não é túmulo, nem cemitério, há sim, intensidades da morte

imanentes a vida; quinto - ...).

Um pequeno poema em prosa de Charles Baudelaire intitulado O Tiro e

o Cemitério13, conta história de um homem que atraído por um singular letreiro:

‘à vista do cemitério bar’, deixa-se levar pela fantasia, após tomar uma cerveja

e fumar um charuto, e entra no cemitério onde um imenso rumor de vida enchia

o ar – a vida dos infinitamente pequenos – era cortado por intervalos de tiros de

um estande vizinho. O homem, que desfrutava um belo sol e um verde jardim

numa atmosfera de ardentes perfume de morte, ouviu um cochichar sob a

sepultura que estava sentado: ‘malditos sejam seu alvos e suas carabinas,

turbulentos seres vivos, que se preocupam tão pouco com os defuntos e seu

divino repouso. Malditas sejam suas ambições, malditos seus cálculos, mortais

impacientes que vem estudar a arte de matar perto do santuário da Morte! Se

vocês soubessem quanto tudo é nada exceto a Morte, vocês não cansariam

tanto, laboriosos viventes (...). Tal poema, compõe com o parágrafo acima, a

medida que nos leva a pensar sobre o quanto fazer viver uma vida através de

escritos e pesquisas pode ser um barulho ruim para quem já faleceu, ou se

encontra falecido, embora vivo. Digo isso, pois me questiono sobre os limites

entre falar uma vida e estabelecer discursos de verdade sobre ela. Escrever

sussurrando possíveis e não gritando verdades. Aqui, temos uma linha

importante neste pensamento: o que se escreve é apenas uma versão sobre

determinada vida, apenas um jeito de contar e compor os fatos inventivos e

reais. Pode-se dizer que praticamente não importa distinguir o real e o ficcional,

assim como não se procura polarizar o que é vida e o que é morte. Diferente de

desejar compor uma biografia, cujos padrões de verdade, cronologia e história

são fixos, a vertente intensiva de uma escrita com uma vida conflui para o

conceito de biografema14 de Roland Barthes, cujo campo de possibilidades

narrativas provoca justamente a escrita de uma vida a partir de suas

imprecisões, seus fragmentos, seus detalhes aparentemente insignificantes,

suas intensidades e afectos. Como narrar expressões de morte sempre

13 Charles Baudelaire. Pequenos Poemas em Prosa. Record: RJ, 2006. p. 249. 14 Roland Barthes. O Rumor da Língua. Martins Fontes: SP, 2004; Roland Barthes por Roland Barthes. Cultirx: SP, 1977; Sade, Fourier, Loyola. Martins Fontes: SP, 2005.

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afirmando a vida? O que pode a escrita de uma vida? O biografema torna-se

um importante dispositivo nesse exercício da vontade, de escrita e

pensamento. Pensar como descobrir, inventar e compor novas possibilidades

de vida. Um pensamento que vá até o limite daquilo que à vida pode. Ao invés

de um conhecimento que se opõe a vida, um pensamento que afirmaria a vida.

A vida seria a força ativa do pensamento e o pensamento o poder afirmativo da

vida15.

Antonin Artaud, Friedrich Nietzsche, Charles Baudelaire, Gilles Deleuze,

Michel Foucault, Maurice Blanchot e Roland Barthes são alguns escritores e

pensadores que povoam esta intenção de compor escritos de uma Vida. A

presença dos autores citados acima, assim como outros bandos de parceiros

de pesquisa, amigos e professores, criam, aquilo que podemos chamar de uma

inventada amizade estelar16. Uma companhia que ondula feito maré,

possibilitando o estranhamento entre amigos, que permite viagens solitárias e

ao mesmo tempo, afirma uma amizade por sua potência afectiva, pelas forças

que se tensionam com a presença do outro, pela intensidade produtiva desses

estranhamentos. Os afectos efetuam a potência da expressão, a potência é o

que está efetuado e são os afectos que a efetuam. Os afectos podem ser

sentimentos, pensamentos ou percepções, também os conceitos podem

efetuar a potencia de um modo de ser na escrita17.

Do encontro com uma vida e seus modos de dizê-la, cria-se uma

atmosfera semelhante a uma navegação em águas de nevoeiro. Vidas que se

deixam expressar, mortes que se fazem expressar criam uma neblina espessa,

uma névoa baixa que seguidamente faz o navegador se perder. Talvez, se

perder não seja assim tão ruim como se diz. O sábio compositor carioca

Paulinho da Viola já nos ensinava: faça como o velho marinheiro, que durante o

nevoeiro leva o barco devagar18.

15 Gilles Deleuze. Nietzsche e a Filosofia. Rés: Portugal. S/d. p.152. 16 Friedrich, Nietzsche. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.189. 17 Gilles Deleuze. La distinción ética de los existentes: potencia e afecto. En Medio de Spinoza. Cactus: Buenos Aires, 2008. p. 94-95. 18 Paulinho da Viola. Argumento. Em: Nova História da Música Popular Brasileira, 1976.

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Encontros com uma vida: traço, cor e música na obra de Frontino

Vieira

Um canto de vida e morte,

cantado por potências imaginárias,

indicando a direção de um lugar que,

uma vez atingido, só poderá

desaparecer. Lugar sempre por vir no

espaço infinito de uma navegação ao

acaso.19

22/04/2009

A tela branca no meio da sala impõe um poder estranho ao corpo. Reluz

uma soberana brancura fria que contrasta com a enorme variedade de tons

desgastados nas paredes, chão, portas e janelas. O retângulo branco sobre o

cavalete solitário convoca o corpo ao traço e à cor, enquanto um rumor de

ruína produz uma mansa textura entre ele, a tela e a sala. O afecto, que

parece ter o dom de absorver o instante, toca uma espécie de silêncio

povoado que aumenta na justa medida em que o corpo encontra o espaço e

se deixa absorver por ele. Sem se dar conta, o corpo traz um bando consigo e

esta pequena multidão invisível entrelaça-se com o silêncio povoado pintando

uma conversa doida, sem início, destino, meta ou moral. Embriagados de

desconhecido, uma música atravessa o ar girando o caleidoscópico

movimento dos encontros. Agora, além de uma tela branca e fria, de um

corpo em pleno tornar-se e de um espaço cujo rumor de suas ruínas contorna

os espíritos, há uma música tecendo núpcias entre as sombras e as cores,

entre os silêncios e rumores. A conversa imaginária dissolve-se se tornando

uma dança. Até então o corpo mal respirava absorvido pelo instante, porém,

19 Maria Flávia Drummond Dantas. O Canto das Sereias. Em : Maurice Blanchot. Lúcia Castello Branco; Márcio Venício Barbosa e Sérgio Antônio Silva (Orgs). Annablume: SP, 2004. p.25.

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com a entrada da música vinda sabe-se lá donde, o corpo volta a respirar

compassado e no segundo longo suspiro percebe que se encontra justamente

em frente à tela crua. O poder de estranhamento repete-se diferente, não

passa pelo corpo a atração quase magnética que a tela gerava quando da

entrada na sala. Outras forças entram em jogo. Para espanto do corpo além

da tela limpa há, no espaço, outra pintura rica em cores e traços. O corpo

ouve a dança pintada na tela colorida, ela é puro movimento, ela é. A luz do

raio de sol que corta a sala é entrepassada pelo movimento de outras

sombras e uma voz baixa, grossa e pigarreante vinda de um senhor bem

magro e de cabelos brancos diz: - a música cor traça.

Impregnados de sutilezas nossa conversa é puro Sim. A música que

toca o ar entrelaçando-se com os espíritos é verde. Toda cor que tinge o

espaço é viva e baila com a morte que insiste em presentificar-se. Estranho

movimento que torna nossa voz xucra e inconstante. Notas de um primeiro

encontro pulsadas pelo ruído de uma agulha tocando o disco. Como se

pudéssemos ouvir o som dos pincéis que de longe nos observa, a solidão

dissolve-se no ritmo da cor no entre tempo de vozes vermelhas.

Infinitos corpos que miram o agora à espreita de um nome ou rosto que

não chega. Por que cismamos em apresentações? Que cisma por um rosto é

essa que nos aflige? Se tivéssemos uma dose de cachaça brindaríamos e

permaneceríamos em silêncio. Mas aqui não podemos beber, então

silenciamos na embriaguez da cor, do traço, da palavra e do encontro.

Estonteados não percebemos a chegada do azul nem do amarelo. Talvez se o

víssemos não brindaríamos o acaso. Um ruído infinito rompe qualquer plano, a

agulha tocando o fim do LP rasga os tempos. Por que o sol baixou tão rápido?

Para onde foram as sombras que aqui bailavam?

27/05/2010

Percorrer os traços da obra de Frontino tem sido uma experiência

intensa e desafiadora. Li há pouco, os registros falando sobre ele nos diário da

oficina de criatividade, onde encontrei datas e depoimentos sobre seu

cotidiano. Também reli textos que abordam sopros de sua vida e obra como

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por exemplo, o belo texto de Vera Lúcia Inácio20 onde descobri que Frontino

nasceu, assim como eu, numa cidade à margem de um rio, o Jacuí; ou os

escritos de Paola Zordan21 onde encontrei uma afirmação e inspiração para um

modo de escrita; e ainda, as palavras de Bárbara Neubarth22 faces do cotidiano

de Frontino. Também revi suas pinturas, desenhos e escrita. Enfim, tenho

mergulhado em rios de cores e dançado num baile traços.

11/02/1914

Como se vivia na cidade de São Jerônimo em 1914, ano de seu

nascimento?

O que faz Frontino ser internado no hospício em 1938?

Como passam os 55 anos de internação?

20 Vera Lúcia Inácio de Sousa. Vida Incidental. Em: FONSECA, Tania Galli; COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da UFRGS: RS, 2010. 21 Paola Zordan. Notas sobre uma vida frontal. Catálogo da exposição “Eu sou Você”. No prelo. 22 Bárbara Neubarth. Entre vassouras e pincéis. Em: FONSECA, Tania Galli; COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da UFRGS: RS, 2010.

s/t, 15/10/1991 s/t, 05/11/1990 s/t, 03/01/1992 Frontino Vieira dos Santos

A obra em Acervo de Frontino Vieira dos Santos, conta com 784 pinturas e desenhos já catalogados. Tais obras foram produzidas entre agosto de 1990 e agosto de 1993, data de seu falecimento.

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....Impregnações em tempo e espaço

Exatamente, e, de fato,não se entra

jamais pela mesma porta.23

Suspirei profundamente antes de girar o trinco da porta que me levaria

ao espaço esquecido da loucura. Munido de uma intuição ousada e um intenso

sentido de transvaloração, encaro minha insanidade como quem monta num

cavalo xucro ou encara um tigre siberiano. Naquele instante, o suspiro era a

chave quase silenciosa para entrar no corredor flutuante da existência, onde

23 Paul Valéry. Eupalinos ou O Arquiteto. Editora 34: RJ, 1996. p.77

Pavilhão 4

s/t, 01/11/1990 s/t, 07/11/1990 s/t, 08/11/1990 Frontino Vieira dos Santos

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corpo e espírito, morte e vida se entrelaçam incessantemente. Corpo-espírito.

Morte-vida. Sem separação. O suspiro gerou uma breve suspensão no tempo

marcando um entre-tempo característico do acontecimento: pausa de dois

compassos que antecedeu a entrada no universo das ruínas intensivas, antigo

templo onde confinava-se loucos. O silêncio oceânico do prédio histórico foi

rasgado pelo barulho agudo da porta. Logo no primeiro saguão meu corpo foi

inundado por um cheiro de morte viva, e, balançando como uma maré de lua

nova, minha respiração tornou-se lenta e profunda. Diferente da visão comum

de morte, sempre associada a algo sombrio, fúnebre, macabro e assustador, o

odor que arrepiava meu pêlo e me fazia pensar sussurrado tinha uma vibração

próxima da luz e da cor. As ruínas recebiam os raios de sol como que livrando

a morte de um peso que não necessariamente ela carrega. Depois, quando

consegui formular pensamentos, entendi que o peso e o horror que se atribui à

morte são mais uma faceta humana do que algo transcendente. Tem mais cara

de caveira com uma foice e manto preto o ser humano que resolve tirar de

circulação o indivíduo dito louco colocando-o numa sala fechada do que uma

idéia de morte propriamente dita.

Sempre atento a ativar a vida onde quer que ela esteja, ingressei nas

ruínas de uma memória que se quer esquecer. Tolice, pois não há como

esquecer a loucura que está sempre em nós, em cada um, múltipla e singular.

Pois foi na tentativa de se fazer esquecer a loucura que se fundaram os

hospícios e hospitais psiquiátricos. Posso então, começar a colher no ar

algumas pistas daquele cheiro de morte viva que ocupava o espaço. Quando

se tenta conter a vastidão infinita do corpo-espírito sob a imposição da clausura

o que fica nas paredes é a marca do sofrimento. A vastidão do espírito, quando

enclausurada, provoca no corpo a marca da dor. No intuito de manter-se livre,

o corpo-espírito não cessa de investir contra as paredes que o enclausura,

movimento que marca também no espaço as notas do sofrimento. O que sentia

era a reverberação de anos e anos de dor que ficaram incrustados nas

paredes, solo e teto. Não há tinta que apague, não há reforma que transforme.

Suspirei outra vez tentando encontrar um mínimo de superfície neste rio

de intensidades loucas e respirar alguma condição ou palavra que permita criar

algum território possível para expressar algum pensamento. Nunca é tranqüilo

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falar da nossa loucura. Do desespero de desejar matar a sede com água sendo

que no único bebedor possível só há pó e teia de aranha. Uma escada que

leva a lugar nenhum e uma porta que liga dois vazios. Imagine um corpo que

rasteja, arrasta, berra. Some a isso um organismo encharcado de químicos

variados que não trazem viagem, só torpor e apatia culminando num total

impedimento da expressão e voz.

O que você sente?

Textura e Vazio

O exercício de composição destes escritos faz habitar algo que podemos

chamar de vazio povoado de invisibilidades. Pouco ou quase nada consigo

expressar deste tempo dissolvido no ar. O que se expressa são faíscas

resultantes de encontros de corpo, espaço e tempo. Tento apalpar uma

imprecisão, isso é um risco tremendo. O que se faz expressar é uma sensação

de vazio repleto, algo que anuncia um sopro antes do é. Como escrever uma

experiência que ainda não é? Um corpo que se torna no encontro com

qualquer possível, um espectro andante, um modo de ser que de tão lento

torna-se quase imóvel como uma mesa de madeira encostada num canto de

uma sala vazia.. Na margem entre um vazio transbordante e um estado de

coisa, coexistem diferentes tempos e velocidades. O decanto do tempo

incidindo sobre o espaço gera uma textura seca e craquelante, espécie de

resíduo que produz uma forma para a pele...

Gilles Deleuze, ao comentar o livro sobre o poeta Raymond Roussel, de

Michel Foucault, nos faz pensar sobre o vazio que se abre no interior de uma

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palavra e que a repetição de uma palavra deixa escancarada a diferença de

seus sentidos. Podemos pensar que entre cada palavra permanece um vazio?

É isso que chamamos de entrelinhas da escrita? Um modo de pesquisar e

escrever entre os planos da loucura, talvez seja isso: percorrer as entrelinhas

do tempo e do espaço. Repetir as palavras, repetir os trajetos, provocar

diferenças, permitir um vazio entre as palavras. O enlace da diferença com a

repetição contém também a vida, a morte e a loucura. Pois parece que o vazio

interior às coisas e às palavras é um signo de morte e aquilo que preenche é

presença da loucura.24 Uma experiência de escrita implicada com

espaço/tempo do São Pedro, é, talvez, uma imersão entre vazios de

esquecimento, vazios de morte e vazios de existência: como se as coisas se

sucedessem num vazio, onde são suspensas entre um suporte esquecido e

uma borda que ainda não está à vista. A cada instante, as palavras nascem

numa ausência de ser, surgindo uma junto às outras, sós, (...,) ou agrupadas

segundo aproximações incongruentes, semelhanças ilusórias (...)25

.....Incidentes26

A imaginação da rosa

Imagine uma rosa exuberante, cujas grandes pétalas de coloração

radicalmente rosa lembram um tecido de veludo escorrido em uma onda

espiralada sem fim ou começo. O veludo da pétala disfarça o bruto e

aconchega o vazio. As pétalas ativas em sua formação de língua ou onda

estendem um duplo convite para quem as olha: afirmação de potência e

ressentimento, admiração e constrangimento. A rosa mais linda do mundo, a

rosa viva, a rosa cantante, a rosa das rosas. Um ramo verde e espinhento com

um vestido de cetim ondulado e solto. Uma rosa imponente e viva, caprichosa

e exagerada de tão bela. Pétalas como lábios carnudos na boca de uma

mulher vaidosa. Essa seria uma história romântica se não fosse trágica. A flor

pomposa ousou invadir um território opaco e sombrio com seu susto colorido e

24 Gilles Deleuze. Raymond Roussel ou o horror do vazio. A Ilha Deserta: e outros textos. Iluminuras:SP, 2006. p. 100. 25Michel Foucault. Raymond Roussel. Forense Universitária: RJ, 1999. p.121. 26 Inspirado em: Roland Barthes. Incidentes. Martins Fontes: SP, 2004.

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predestinadamente contrastante. A flor fora colocada na pia de porcelana num

vaso formado por uma garrafa de plástico cortada ao meio. Imagine essa rosa,

brilhante e festiva, uma rainha entre as flores começando a ruborizar sua pele

se sentindo deslocada. Com a despedida do último raio de sol, a cor viva da

rosa começa a mergulhar no negrume informe da noite. A escuridão e a brisa

noturna despertam na flor uma magia só sentida por aqueles que ousam

perder-se de si mesmos, a flor deslocada começa a exalar seu mais profundo

perfume. Cada espírito que habita o local procura o encanto do seu cheiro

como uma ternura esquecida, como um afago para sua mísera condição de

invisibilidade vagante. O invisível perfume da flor, por ser tão cheio de vida,

atrai seu próprio fim. Naquele território de desrazão onde a flor fora colocada,

está aplicada a mais crua selvageria natural das relações. As formigas

aprenderam a rastrear os mais tênues aromas da terra e também elas, seres

que estão habituadas a viver e se alimentar no campo do rejeito, do dejeto

indesejado, sentiram o perfume da rosa. No tempo de uma noite, as grandes

pétalas da rosa imaginada foram completamente recortadas pelas garras das

formicideas.

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Lagartixa seca na gaveta

Um gato e a suspensão do instante

Linhas de som vindas de diferentes direções

constroem uma direção imprecisa no corredor vazio.

Caminho ao sabor do acaso, sem destino, com a

mente desocupada. O som dos pés tocando o chão e

os barulhos do vento mexendo as portas, rangendo

dobraduras e afinando janelas marca o compasso de

uma existência. Estou sozinho no segundo andar do

quarto pavilhão. Pressinto outra vida diferente da

minha. A abertura de uma porta à minha esquerda

propõe um encontro imprevisto: um gato imóvel na

janela. A materialização de uma vida marcou uma

ruptura no tempo, senti meus pés fora do chão e por

um instante experimentei uma suspensão do corpo. É

o gato que me olha com instinto de felino na espreita

do ocaso. Eu, na espreita dos meus pensamentos.

Você nunca sabe onde se encontram as chaves. Alguém sempre indica seu lugar. Alguém disse: - a chave está na gaveta da

escrivaninha do corredor! Ali estava o corpo seco de uma lagartixa, um

parafuso solto e uma chave de bronze.

Entre mofos

O mofo está entre. Sempre e em tudo.

Entre a cerâmica e o esmalte do azulejo, os minúsculos seres vivos, amigos

íntimos do ar e amantes da umidade, construíram seus mapas.

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....... Referências

Bibliográficas:

BARROS, Manoel de. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Record: RJ,

2001.

BARTHES, Roland. A Preparação do Romance II: a obra como vontade.

Martins Fontes: SP, 2005.

__________. Incidentes. Martins Fontes: SP, 2004.

__________. O Rumor da Língua. Martins Fontes: SP, 2004.

__________. Roland Barthes por Roland Barthes. Cultirx: SP, 1977.

__________. Sade, Fourier, Loyola. Martins Fontes: SP, 2005.

BAUDELAIRE, Charles. Pequenos Poemas em Prosa. Record: RJ, 2006.

CASTAÑEDA, Carlos. Viagem a Ixtlan. Record: RJ. 1997.

DANTAS, Maria Flávia Drummond. O Canto das Sereias. Em: Maurice

Blanchot. Lúcia Castello Branco; Márcio Venício Barbosa e Sérgio Antônio

Silva (Orgs). Annablume: SP, 2004.

DELEUZE, Gilles. Raymond Roussel ou o horror do vazio. Em: A Ilha Deserta:

e outros textos. Iluminuras:SP, 2006.DELEUZE, Gilles La distinción ética de

los existentes: potencia e afecto. En Medio de Spinoza. Cactus: Buenos

Aires, 2008.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rés: Portugal. S/d.

DELEUZE, Gilles. Para acabar com o juízo de Deus. Em: Crítica e Clínica.

Editora 34: SP, 1997.

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. Em: Ditos e Escritos IV.

Ed. Forense Universitária: RJ, 2001.

FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Em: Hubert Dreyfus, Paul Rabinow.

Michel Foucault: uma trajetória para além do estruturalismo e da hermenêutica.

Forense Universitária: RJ, 1995.

FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Forense Universitária: RJ, 1999.

NEUBARTH, Bárbara. Entre vassouras e pincéis. . Em: FONSECA, Tania Galli;

COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da

UFRGS: RS, 2010.

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NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Companhia das Letras: SP, 2004.

ONFRAY, Michel. Teoria da Viagem: poéticas da geografia. 2009.

PRECIOSA, Rosane. Rumores Discretos da Subjetividade: sujeito e

escritura em processo. Sulina: RS. 2010.

SOUSA, Vera Lúcia Inácio. Vida Incidental. Em: FONSECA, Tania Galli;

COSTA, Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Editora da

UFRGS: RS, 2010.

VALÉRY, Paul. Eupalinos ou O Arquiteto. Editora 34: RJ, 1996.

VIOLA, Paulinho. Argumento. Em: Nova História da Música Popular Brasileira,

1976.

ZORDAN, Paola. Notas sobre uma vida frontal. Catálogo da exposição “Eu

sou Você”, promovida pelo Acervo da Oficina de Criatividade junto com o

Museu da UFRGS. No prelo.

Imagens:

(por ordem de aparição no texto)

- Folhas que caem. Série de fotografias. Pátio do quarto pavilhão do

Hospital Psiquiátrico São Pedro; 2010.

- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 15/10/1991.

- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel e giz de cera, s/t,

05/11/1990.

- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 03/01/1992.

- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 01/11/1990.

- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 07/11/1990.

- Frontino Vieira dos Santos. Tinta guache sobre papel, s/t, 08/11/1990.

- Luz Cirúrgica. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP,

2010.

- Porta. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP, 2010.

- O gato na janela. Composição de fotografias. Acervo da Oficina de

Criatividade do HPSP. 2009.

- Lagartixa seca na gaveta. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade

do HPSP, 2010.

- Mofo. Fotografia. Acervo da Oficina de Criatividade do HPSP, 2009.

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Aulas

Por sua fundamental importância para a produção deste texto, torna-se

necessário referir também as aulas com as professoras: Tania Galli (PPGPSI),

Juliane Farina, Débora Coelho e Patrícia Kisrt (Curso de Especialização:

Instituições em Análise), e Paola Zordan (PPGEdu); e com o professor Luis

Artur Costa (Instituições em Análise).

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Ensaios / Dossiê

C.RCP: uma vida Sara Hartmann1

Ele se chamava girorino e tinha as pernas bambas. O caminho

de quarto à sala era lento e lhe faziam o certo. Não era pra ficar

aleijado, cladizem. Ia de olhos grandes vendo as chaves na

cintura dela. Passar de pés sem sapato e era vermelho como o

sofá, era alemão de cabelo fogo, era de olhos azuis cada vez

maiores. A polícia não vinha como eu pensava, não pode fazer

errado. Não é de fazer errado, sujeitinho.

O que se pode dizer de uma vida, ocupada por muitas outras, senão

através de uma procura pela medida justa nas palavras? É como nos aparece

certa existência e suas redondezas. A ela chamaremos, a princípio, C. Não

conhecemos sua pele nem seu cheiro, quiçá uma imagem de corpo inteiro.

Suspeitamos sua presença em desenhos, pinturas e escritos; é ela nos diários,

ao canto da foto; alguém e algo dela dizem. Sabemos estar longe, e cada vez

mais perto, dessa vida que vai nos tomando a imaginação, sempre prenhe de

outras. Quem sabe não sejam todas as vidas diferentes, e sim alguns possíveis

de uma.

Temos, aqui, certa vida de arquivo. Entre altas paredes, impregnadas de

sabe-se lá quantos rostos, C. é uma interna de sombras inexploradas.

Investigá-la nos lança em espaços em branco, procurando povoar aquilo que

resta como dado sem importância. São efeitos de real a que nos dedicamos,

quando “é uma cena pintada que a linguagem assume” (Barthes, 2004). A

realidade sendo “aquilo que é” não passaria de resistência ao sentido, como se

o que vive não pudesse significar, somente existir.

1 Sara Hartmann, psicóloga, mestranda do Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, membro da equipe do Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro. [email protected]

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Toda vida que se quer escrever precisa ser inflada a partir do que deixa.

São traços com os quais se escolhe inscrever, organizar, justificar, ilustrar,

irromper ou reviver uma vida. A maneira de proceder vem responder à

pergunta: o que caberá aos idos? Questão mais espinhenta, quanto o que se

vai fazer com ela não conta com uma voz de retorno toda sua, toda C. Sequer

se sabe se ela mesma se reconhecia uma. Sua vida servirá, assim espera-se,

para abrir caminho entre aquelas de um jeito ou de outro escarnecidas. Vamos

desde um agenciamento amoroso até um agenciamento histórico2. O primeiro

passo, portanto, é o desejo. Escreve-se para contentá-lo, o que não é pouco.

Nesse caso, satisfazemos o ímpeto de falar com algo que provoca eriçamento

dos sentidos, uma atenção perturbada, alegria sem riso.

Nessa vida e neste trabalho, a escrita quer ser uma plataforma de

produção. Para quem escreve, para quem lê, para quem virá. Em um sentido

radical, que a vida apareça passível de ser vivida e revivida, já que estar nela é

buscar produzir-se em um plano mais que factual. Essa vida carrega-nos

através de seus possíveis e já não somos os mesmos, até porque, dificilmente,

assim permaneceríamos. É uma vida rigorosa, entretanto, que exige um

pedaço a ser entregue, um bocado de espaço-tempo até que se escute.

Não fosse pelos criadores de arquivos, seriam caminhos desérticos de

encontros, impossível o acaso fora do esbarrão na rua, do instante de cruzar

olhares. Quantas finezas jamais teriam subsistido... Não que o lugar ao vento

signifique o fim de um gesto, mas uma outra existência. Para Foucault (2006),

a escrita de vidas infames formava cristais de acesso a mundos. Dizia ele que,

sob palavras lisas como pedra, algo insiste. Aqui, escolhemos fustigar uma

tranqüilidade tacitamente assumida, segundo a qual o que está dito fica sem

pronunciação póstuma. São agitações demais em um encontro para que se

possa passar os olhos e seguir, sem parada. Dali não se pode sair incólume, já

que não é de se esperar pés sem marcas após uma caminhada sobre

pedregulhos. Ou escolhe-se fazer outra coisa.

2 Cf. Bedin, 2008.

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Proibido machuca.

O aparecimento se dá, portanto, pela decantação de diversas camadas,

entre papéis, fotos de longe, nossas histórias. Então, como escrevê-la?

Seqüência de datas, endereços, registros civis, um riso incontrolável. São

elementos que explicitam o desafio de transpor uma vida para a escrita. Logo

percebe-se que não há transposição, a bem dizer, mas uma criação arejada

pelos espíritos ou sopros implicados, quando “todo verdadeiro pensamento é

uma agressão” (Deleuze, 2007, p. 306).

Em uma espécie de prenúncio, encontra-se a figura de C. escapando das

fotografias, perdendo ou multiplicando seu nome. Não se deixa de tentar

espreitá-la, procurando retornos. Mas nenhuma descoberta é primeira. Escuta-

se, assim, uma proximidade, sem saber bem o que acontece nas linhas

escritas ou por vir, guardando um futuro que é colocar tais coisas em papéis.

O que se atribui a ela, certamente, mistura prazer e esforço por um rosto.

Procurando não olhar em seus olhos, ou para seus olhos, e sim nadar através

deles, como nos diz Miller (2008). Desfazer a face esquadrinhada assim como

os começos se perdem no texto que deles extirpa os motivos. A fim de dizer,

no que acontece, a porção de mundo em transformação.

Desejada, essa escrita faz da vida uma aparição amada, e logo não se

pode reconhecê-la. Ela parte de onde estava, habitando mundos que lhe são

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possíveis. Uma escrita à direita do texto que escreve e repete Cê nas vidas

ditas doentes para sempre. Ela segue reunindo nomes. Não é próprio do

homem pretender resolver enigmas?

Ma vie, ta vie, tra-la-lá vi

Eu nasci em três mais dez de onze de oitenta mais seu quatro,

e menos este. Mesmo mês e ano em que nasce no hospital, um.

Unidade impossível,

“transfira-se”

para ti de lá

no dia menos cinco.

Este o número que não tens nos teus.

Cinco entre-nós.

É isso,

teu prontuário

0 1 4 2 1 3 3:

mil novecentos e cinqüenta e dois

cidade perto d’eu

antes de mim.

Quando nascia

meu pai era tu

no planalto plaino.

Soledades conjuradas,

talvez consegui.

Vir antes de ti no mesmo

ano e mês,

talvez

pra te

encont

.

Não quero

diminuir

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de nós

até zer/cen/sar -ar

Vou des-cor-dar.

Uma vida não se encontra. Ela é um compósito de signos soltos. Esta ou

aquela, uma vida qualquer acontece nas cores de flores, nas pegadas feitas

por lobos, nos objetos de um baú, sempre beirando o limite de seu próprio

desaparecimento. Uma vida é certa incidência no transcendental. Por isso, ela

aponta para a impessoalidade, algo que se reúne singularmente naquele

momento, encarna fragilmente um corpo, sem colar-se a nada. Não é a vida

deste ou daquele, e sim vida sem dono, vida-alguma-coisa. A energia do último

suspiro de um vivente, quando os acontecimentos passados não têm

importância. Algo resiste ali, força que implica a mudança constante, a

continuidade do mundo. É o que deixa, de cada existência, rastros capazes de

atingir corpos futuros. Uma vida invoca planos de vida compartilhados, tocantes

em algum ponto das suas distâncias.

Tal vida é produzida ao se exprimir. Assim como certa secreção e seu

odor demarcam territórios existenciais, por onde uma significação é possível,

criação e experiência são virtualmente simultâneas. Cor, calor e postura criam

para um animal um mundo. Ele mesmo é criado ao traçar seu território, espécie

de arte em estado puro, quando a própria vida engendra as linhas e os campos

de sua existência possível. Vida e obra são vidobra, vidarbo, indiscerníveis e

em ambas se fazendo, uma através da outra (Corazza, no prelo).

Na extremidade da morte de C., anunciada e ritualizada em diários, há a

abertura de uma região de sentido. Fala-se de “um vácuo no lugar em que

antes tínhamos as cores, o caos carregado de tinta” (Diário da Oficina de

Criatividade, 1999). Aparecem aos poucos cadernos, é momento em que algo

agarra as palavras. Tomando da morte sua finura e peso, o encontro estende

uma linha de tempo povoada de intensidades. Passam a aparecer junto aos

olhos traços de Cida, e as palavras estão levemente bagunçadas.

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No fim fiquei cega

É desde o fim de outro que se quer sair de casa, ganhar pedaço de rua,

mostrar ao mundo o que já vinha alimentando o corpo, a fim de estendê-lo. Há

no acontecimento algo mais que toma lugar, sem necessariamente efetuar-se,

ou seja, sem adquirir um estado de corpo. É justamente para além dos fatos

que um tal acontecimento3 instaura desvio no tempo regular. Como os eventos

de uma vida que não se ajustam à cronologia, em que é impossível delimitar

começos e fins. Pode-se imaginar uma espécie de bolsa de eventos errantes,

que habitam a margem paralela à organização em etapas.

Névoa a guardar “uma parte sombria e secreta, que não pára de se

subtrair ou de se acrescentar a sua atualização” (Deleuze, 1992, p.202). Essa

pura reserva que não encarna, linha abstrata apontando ao que mais está no

que acontece, dá sinal a uma reserva. O que é incapturável, espécie de núcleo

duro do acontecimento, espera-nos em direção ao que quer da vida o mais

potente. Como será o algo apontado? Ultrapassar a efetuação é fazer corpo

com a reserva do acontecimento, fundado em mim, e muito grande para mim,

já que não se efetua de todo. O inacabado retorna em nova realização,

trabalha e dissolve o mundo atualizado.

Impossível desfazer-se da ambigüidade de um crescimento em mão

dupla, em que o acontecimento se efetua e indica mais. Remontá-lo envolveria,

primeiro, não restringir seu alcance. Vislumbre da necessidade de uma

linguagem hesitante e fragmentada.

Em outras palavras: lançar-se à caça do que dizer do acontecimento, não

será a alçada aos incorporais, abertura às vidas possíveis de um encontro, ou

seja, ao que o acontecimento teria de mais revolucionário? Em direção à vida

3 É com Gilles Deleuze, em especial em Lógica do Sentido (2007), que tomamos o acontecimento como conceito que opera sentido, enquanto lança um incorporal a cada efetuação em estado de coisas.

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desalojada, desembrulhada em possíveis, liberada da forma individual. De

modo que passado e futuro acompanhem o presente como uma membrana.

Algo, assim, vislumbra diversos mundos. Cani morta e viva, desenhando

e acamada, toda a vida uma convergência ou divergência de fatores,

responsáveis pela possibilidade. Buscar onde está, o que fala, como

desaparece uma vida que deixa vácuo e atrai palavras, relançando-a a partir do

que aponta sem efetuar. Desvia-se então do saber que se pretende supra-

humano, do eu que sintetiza todo o mundo, da arte como reflexo. Toma-se um

ar à frente e se está na poeira. Com Celda viva e próxima, ida e outra, Celda

que virá.

O encontro é então um roubo duplo. O que se segue nos diários e

desenhos não mais coincide, e não deixa de se encontrar. Ela é dita artista e

suas escolhas precisam ser caçadas a lupa, deixando ver as linhas frágeis de

uma procura expressiva. Lá onde os fatos são fiapos, percebe-se que cada

vida é um esboço, de múltiplas possibilidades.

Escrevinhança

"Eu não escrevo / não escreverei / para pessoas que não podem

dar-me uma quantidade de tempo e qualidade de atenção

comparáveis às que lhes dou”27

Querer ser o leitor de alguém, desejo mais píndaro e primevo deste

lampejo de olhar. Ser o outro corpo, aquele que é atingido, responsável pela

reação, qualquer que seja, à produção lançada. Sempre aturdido, doravante.

Como ser justo ao que nos acontece desde o surgimento de uma vidarbo,

seguindo as trilhas de arquivo até os tempos do desenrolar de ouvido? Como

tomar C. sem desmerecer a distância?

Pois se não basta que tudo comece, é preciso que tudo se repita, uma

vez encerrado o ciclo das combinações possíveis. Uma segunda origem não

seria aquela que sucede a primeira, mas seu reaparecimento28. Sobrevivência

27 Valéry, 1973-1974. "Je n’écris/n’écrirais/pas p[ou]r des gens qui ne peuvent pas me donner une quantité de temps et qualité d’attention comparable à ceux que je leur donne”. 28 Cf. Deleuze, 2006.

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em um mundo que tarda para recomeçar: no ideal do recomeço há algo que

precede o próprio começo, que o retoma para aprofundá-lo e recuá-lo no

tempo. Um mínimo insiste e subsiste no que vem mover a terra de tempos em

tempos. Se é possível habitar o rio dos acontecimentos, mergulhar em seu

fluxo, é de onde se sai com pedaços de vivência, fragmentos de estória.

Impossível sobrevir sem esquecer e transmutar. Imagina-se uma abertura que

mantenha a vibração, uma espécie de língua estrangeira, tênue desligamento.

Quando se procura ferramentas para contar uma vida, Roland Barthes

surge como uma escrita ao acaso, do prazer e do estilo que fazem de seus

textos tentativas incansáveis de vidobra. Para ele, os fragmentos são “pedras

sobre o contorno do círculo (...) cada peça se basta, e no entanto ela nunca é

mais do que o interstício de suas vizinhas” (Barthes, 2003 p.108-110).

Opacidade e beatitude de um sorriso, de uma flexão, de um dia, uma estação.

O artigo indefinido é uma espécie de índice de singularidades, no caminho de

uma vida que está em toda parte, que é potência completa.

Transporta-nos ao corpo surgido no contato com os documentos, à

experiência com arquivos e ritmos de uma vida. Interna no fora e, assim,

enclausurada. Incidências que são justamente indizíveis como todo, e que

escapam à história encerrada. Tocada pelo contorno do acontecimento, uma

vida não é dizível, aspirando ao incorporal, se não provoca uma linguagem a se

abalar em seu caráter explicativo.

Será uma caminhada das almas ao ar livre, estrangeiridade como borda

para vida, obra e pensamento. Riscar, resmungar, chorar, correr Celina. São

infinitivos destacados da linha que o encontro efetua, e para a qual aponta.

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Gosto de nomes, chaves, facas. Adereços.

No lugar, portanto, de uma biografia completa, fragmentos cuja finalidade

última é música. Combinação singular de sons e silêncio, linguagem arejada

para a formação de outros rostos. Que as leituras por vir possam ser infiéis ao

corpo proposto, justas apenas com a potencialização da vida. Fragmentos

biografemáticos, assim, “cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de

qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicuristas, algum corpo

futuro, prometido à mesma dispersão” (Barthes, 2005, p.172). É o desejo

convidativo desse escritor de pormenores, o qual transladamos para o retorno

de uma vida em novas efetuações, sendo o sentido o possível expresso dos

encontros.

Vida, assim, não pode ser um jogo de errância em torno do que lhe falta.

Aquela que é contada, apreende-nos como os animais que povoam quem se

ama. Não são eles amados através de alguém? Ou como se poderia separar

tais coisas? Ligar às minhas, as multiplicidades que este ser encerra, fazê-las

encontrarem-se. Não quaisquer, nem qualquer. Mas da vida aquilo impessoal e

íntimo, isto.

Aforismo do pensamento e anedota de vida são então de uma mesma

distribuição de singularidades. Uma anedota trabalhada, esticada, é desejada

em seu incorporal, quanto ao que pode liberar, desde cada estado de vida,

uma depuração de pensamento. Viver Cinara atravessando as salas, as

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fotografias, as horas. É preciso este amigo insinuante, a dizer “vê comigo, lê

comigo” essa vida e seus povos. O biografema enquanto companhia tangível,

que puxa linhas de alguém para abaixo do nariz (Bedin, 2008). Seu critério, a

paixão que abre o corpo, assim como um amigo ou amante ensinam sem

anunciar. Ceni, de quem apenas metade da face está à mostra em fotos de

arquivo, é meiamada, através dos afetos que retornam ativos do encontro.

Quiçá. Que Cilda senão a que se debate, ressuscitada nas batalhas de

expressão? São cem ildas longas, retornadas, nilcadas, enimescidas, na

esteira de um corpo em pedaços como as estrofes da poesia sustentam

palavras pesadas. Já que “o biografema nada mais é do que uma anamnese

factícia: aquela que eu atribuo ao autor que amo” (Barthes 2003, p.126).

Sendo o incompatível possível apenas quanto a pessoas e mundos em

que os acontecimentos se efetuam, a comunicação se dá no que passa de um

a outro acontecimento, em termos de singularidades acósmicas, impessoais e

pré-individuais. Ser um indivíduo envolve uma prega de efetuações. Lançar-se

além, por sua vida, traz caos e algum perigo. Mais ou menos como a

personagem do romance “Palmeiras Selvagens” descreve o amor, como

aquele que abandona quem não é forte o bastante. Se alguém morre, nesse

caso, é quem não pode permanecer: “É como o oceano: se você não presta, se

começa a empesteá-lo, ele te cospe fora em alguma parte para morrer”

(Faulkner, 2003, p. 77).

Que dizer de desejar a ferida que se nasce para encarnar? Querer o

indizível da paixão que certa existência movimenta, até dizer um mínimo. A

escrita fragmentária é rumorosa se pode abalar a construção de uma vida

estagnada, invadida, apaziguada, seguindo uma linha incorporal, que não dá

garantias. Seremos só uma existência, ou seremosd

É noite. Ela deixa o quarto nu em direção ao corredor que se

retorce. Suas mãos pressionam a parede maciça, ali onde as

palavras são ditas em qualquer ouvido. Pergunta-se como estar

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acompanhada quando não há silêncio. Depois da oitava porta

ela se vira sobre o pé gelado, tenta escutar sono detrás.

Suspende a respiração. Nem um fiapo.

Surgem linhas, suspeita-se alguém. Em toda pausa transparece:

escrever dá medo. Escrever com as pontas dos dedos, uma expressão

mendiga, a vontade de apagar-se. Logo que um rosto aparece, não se vê a

hora de encontrar seu fim. De fato, acompanha-se uma decomposição desde

dentro, experimentando traçá-lo. Não é do rosto concreto de uma vida que nos

ocupamos. No máximo, partimos dele, e a ele retornamos outros. Uma vida

liberada na decomposição e reformulação. Há um plano diabólico de inscrição,

quando um rosto se destaca. Uma seleção ao longo de um campo de

rebatimento ou de significação. A força atrativa inevitável de uma linha

partindo, traindo a órbita.

Atravessar os olhos, borrar a boca, diagramar bochechas. A caminho do

a-significante, desfazendo o rosto, mesmo se a tentativa fracassa. Gostar-se-ia

que fossem linhas moles, indolentes, que se espalhassem, encontrassem

duras e, assim sendo, que entre si houvesse roubo. Que as duas séries

fizessem desvio, elas que não coincidem, mas que se deslocam uma em

relação a outra. Que sejam noturnos, que cheguem.

Sua camisola se arrasta carregando fios de cabelo. As

maçanetas das portas, já quis arrancá-las em dias furiosos.

Desenha-as nas manhãs quando lhe pedem cartões de natal.

Sim, seus cartões são pequenas portas para abrir, com janelas

ainda menores. Será impossível que se aquietem? A cada ano

nova cor, esquece da anterior como deixa acumular feridas nas

pernas. Já não há espaço para cada abertura.

Fazer-se até que não haja mais nada de estranho entre nós. Só assim

algo se passa, "somos sempre loucos em dupla, ambos se tornam loucos no

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dia em que ‘massacraram o tempo', isto é, destruíram a medida" (Deleuze 2007,

p.82). A comunicação dos acontecimentos se dá percorrendo distâncias,

entendidas não como espaços vazios onde repentinamente surge outra coisa.

Mas uma faixa que leva de um a outro, em que se dá a diferenciação. Faixa a

ser desenrolada topologicamente.

Chega agora a uma bifurcação, a primeira, e distende o passo

quando uma luz fracamente corta o caminho. Como uma

memória antiga, seu estômago dá sinal e em seguida

desaparece.

De onde vim, pensou, tinha a cara cheia e as horas contadas.

Aos poucos um corpo de baixo deixou minha pele mais fina,

quase imperceptível. Não me saem da cabeça, de dia, as linhas

das roupas de cada um. Sua camisola gruda.

O corredor continua no escuro, agora mais denso. Quando eu

ando, eu ando. Lembra-se das duplas, entre dois era capaz de

ver. Na verdade, isso a forçava, com a possibilidade de esmagar

a ambos. Nada mais à frente, a não ser seus gestos.

Quand la nuit tombe, je tombe aussi. 4

É na medida de uma vida que pede mais, e que, portanto, decompõe em

si qualquer medição, que se escreve procurando insistir sobre o plano de

significação. Sem querer agarrar nada, já que o prazer do texto não é seguro, e

movimenta.

4 Quando a noite cai, eu caio também. Cf. Camille, 2005.

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“aconteceu aconteceu teve livrinho pra salva”

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Referências

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Liberdade, 2003.

BARTHES, Roland. O efeito de real. Em: Rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes,

2004.

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BEDIN, Luciano. A vida em escrileitura: biografemas e o problema da biografia.

Projeto de Doutorado no PPGEdu/ UFRGS, 2008.

CAMILLE. Quand je marche. Em: Le Fil [CD]. Londres: Virgin Records, 2005.

CORAZZA, Sandra Mara. Introdução ao método biografemático. In: Vidas do Fora

FONSECA, Tania Mara Galli & BEDIN, Luciano (Orgs.) Porto Alegre: Editora

UFRGS, (no prelo).

DELEUZE, Gilles. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Ano zero – rostidade; Como criar para si um

corpo sem órgãos Em: Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de

Janeiro: Ed. 34, 1996.

DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida... Educação & Realidade 27(2):10-18, 2002.

DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. Em: A ilha deserta – e outros textos. São Paulo:

Iluminuras, 2006.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007.

FAULKNER, William. Palmeiras selvagens. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

FONSECA, Tania Mara Galli et al. Pesquisa e acontecimento: o toque no impensado.

Psicol. estud., Dez 2006, vol.11, no.3, p.655-660. ISSN 1413-7372

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. Em: Manoel Barros da Motta

(Org.). Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

MILLER, Henry. The time of the assassins: a study of Rimbaud. Nova Iorque: New

Directions, 1962.

VALERY, Paul. Cahiers. Edição estabelecida por Judith Robinson, Bibliothèque de la

Pléiade. Paris: Gallimard, 1973-1974.

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Coleção C. Ribeiro. Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São

Pedro, Porto Alegre.

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Entrevista

Maria Helena Bernardes

Entrevista: Alexandre Nicolodi e Denis Nicola

Horizonte Expandido – Santander Cultural Entrevista realizada em 10/06/2010

Enquanto Maria Helena Bernardes terminava uma entrevista à uma

emissora de televisão local, fazíamos os nossos últimos ajustes nas questões

roteirizadas para a entrevista com a curadora da exposição Horizonte

Expandido, localizada no Santander Cultural. Entre um café e outro, as

perguntas e respostas que vinham a tona no espaço educativo/biblioteca

instalado logo na entrada da exposição, ‘viajavam’ entre a exposição e o

Projeto Areal. Porém, o sentido de trânsito na qual a entrevista decorria,

mostrava como muita das coisas que estavam sendo colocada e apresentada

na mostra de registros fotográficos e vídeos, principalmente, são parte também

da proposta do Areal a praticamente 10 anos. Como isto tudo se relaciona, o

leitor pode conferir abaixo, na entrevista.

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“... é como a Karen Lambrecht diz: “esse artista vai

ter que saber viver no deserto quando aquilo que ele

acredita estar fazendo de importante pra ele não vai

ser solicitado, vai ficar na prateleira do sistema e ele

vai atravessar o deserto, mas sairá do deserto

fortalecido como artista.”

Panorama – Fale sobre a mostra Horizonte Expandido, ou seja, como surgiu a

proposta para esta exposição, como foi o processo de criação e

desenvolvimento da mesma?

Maria Helena Bernardes – Essa foi uma exposição organizada em muito

pouco tempo. Foram apenas 4 meses, desde o “nascimento” até a abertura da

exposição... foi um trabalho super intenso! Mas de maneira geral Horizonte

Expandindo tem uma relação direta com o projeto Areal, que mantenho com o

André Severo, que é meu parceiro aqui nessa curadoria, que é um projeto em

arte contemporânea que tem por característica produzir trabalhos artísticos que

são criados na esfera do Areal. São trabalhos que excluem, digamos assim,

uma necessidade de uma mediação já dada para sua apresentação. Desde

2000, ano em que iniciamos o projeto, propusemos para nós mesmos uma

espécie de “espaço de respiração”, ou seja, um espaço de liberdade em

relação a um formato de apresentação de obras de arte, no caso das artes

visuais, que se apresentava cada vez mais especializado. Porque da metade

dos anos 90 em diante, momento em que sentimos isso, os espaços, as

instituições culturais, começam a ganhar um porte no mundo inteiro, até

mesmo aqui no Brasil mesmo não tendo na época uma estabilidade econômica

como temos hoje, o mundo da arte estava se profissionalizando rapidamente.

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“Esses artistas agiam de maneira diferente, fizeram o que

fizeram porque queriam dizer certas coisas e tocar alguém.,

(...) tem essa pulsão por tocar o outro, tocar o seu

contemporâneo de uma forma tão apaixonada e intensa...”

Todas essas categorias profissionais, desde curadores, mediadores, críticos,

administradores e produtores culturais em todas suas especificações,

rapidamente se montaram; e para nós isso foi uma estrutura sufocante porque

quanto mais especializada a estrutura de apresentação mais específica é o

objeto que ela demanda e as condições que ela oferece para apresentação do

mesmo. O Areal foi a criação de um espaço de liberdade para que nós

pudéssemos pensar livremente as formas que nós traríamos nosso

pensamento à público fora dessas condições tão delimitadas. O Areal faz 10

anos esse ano, em função disso, houve um entendimento, por assim dizer,

entre a coordenação de projetos do Santander Cultural que vinha conversando

com a NAU produtora em busca de um projeto local que traduzisse, de certo

modo, uma visão de arte contemporânea que pudesse promover um evento

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consistente, que acompanhasse o mesmo nível das exposições usuais do

Santander, e que pudesse ser feito em espaço curto de tempo para aproveitar

essa agenda. Como o André e eu tínhamos vontade de ver certos trabalhos

que serviram de referência para que nós tomássemos certas decisões no

Areal, nos ajudassem a construir uma reflexão sobre esses meios de

apresentação, sobre a relação artista, sistema de arte e público, ou também

artista e o público diretamente. Como nós tínhamos uma série de artistas a

quem nos sentíamos devendo uma “homenagem pessoal”, mesmo que fosse

íntima, e que gostaríamos de ver e compartilhar com nossa cidade algumas

obras fundamentais.

“... descobrimos que nesse lugar nenhum, onde

existisse gente, paisagem ou algo que reagisse, é

possível um artista agir. E não é preciso que ele

anuncie que é um artista e nem omitir, para se poder

produzir conhecimento, relações...”

A NAU produtora conversou comigo e com o André sobre uma exposição do

Areal, uma exposição reflexiva já que o Areal não propõe trabalhos para serem

expostos. Onde nós oferecêssemos uma leitura, do ponto de vista do Areal, de

artistas e obras que sido referencias para comemorar esses dez anos. Uma

“curadoria Areal”... foi assim que surgiu a exposição. Então, de certa forma, nós

pensamos nessa curadoria como nós costumamos pensar um livro. Nós temos

a nossa série Documento Areal que é através da forma de livros comunicar

pensamentos que vem das artes visuais, da produção contemporânea.

Pensamos que essa exposição é uma espécie de Documento Areal sob a

forma de uma exposição. Mostrar o trabalho de outros da melhor forma

possível, tentando não formatá-los de modo a subjugá-los numa leitura muito

autoral nossa que costura isso com aquilo. Pretendemos dar autonomia a cada

trabalho e não construir roteiros de visitação. Pensar quase com a cabeça de

um artista em seu atelier. Uma obra para ser mostrada por vez, nesse caso

teria que ser uma coletiva, e felizmente é, um grande apanhado de trabalhos.

Existe uma função pública aí, de informar, compartilhar, trazer o maior número

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de coisas que pudéssemos trazer dentro de boas condições museográficas.

Mas tentamos manter a cabeça como artistas, pensamos, por exemplo: Como

o Smithson pediu para que fosse mostrada a Spiral Jety? Então é assim que

será mostrada... Sem a interferencia de outro trabalho. Cada vídeo desses que

deve ser mostrado em monitor, está sendo mostrado em monitor, o que é

vídeo-instalação está como vídeo-instalação, nos monitores foram criadas

cabines com uma arquitetura e uma acústica que permitem um maior

isolamento e intimidade com aquele trabalho. Procuramos montar a instalação

de maneira que uma obra não interferisse na outra, e principalmente, que nós

não interferíssemos nas obras, seja com textos ou com mediação em frente à

obra e etc. Então foi assim que pensamos a exposição, com cabeça de artista!

“O Areal foi a criação de um espaço de liberdade

para que nós pudéssemos pensar livremente as

formas que nós traríamos nosso pensamento à

público fora dessas condições tão delimitadas.”

Panorama – Já que você citou o Projeto Areal, talvez tu possas falar um pouco

mais, especificamente, sobre este projeto e da sua história, tendo em vista que

foi daí que surgiu essa parceria com o Santander e essa exposição.

M.H – Para deixar um pouco mais claro a natureza da concepção artística do

Areal pode ter em relação à natureza dos trabalhos aqui presentes nessa

mostra. Porque, com estes trabalhos aqui expostos, a gente vê alguns “links”

também, não só de reflexão, mas também de realização artísticas, guardadas

as devidas proporções. Então aqui estão presentes todos os “heróis”, não só

nossos, mas como de todas as pessoas que apreciam a arte contemporânea.

Não seremos nós que nos colocaremos ao lado deles na história nem nada

disso, simplesmente sentimos certa afinidade com a maneira que estes artistas

tiveram de ver a arte e ver a vida. Bom, então o que é o Projeto Areal? No

início, em 2000, eu e o André Severo éramos amigos, mas ainda não tão

próximos quanto depois da criação do Areal. Nós identificamos como inicio

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dessa amizade uma mesma angústia, pois é um projeto que nasce da crise, da

angústia.

Estávamos num momento de nossa trajetória como artistas emergentes, eu

sempre brinco que artista emergente é que nem país com economia

emergente, pois só deixa de ser emergente se outros quiserem (risos). Então

como estávamos na malfadada categoria de emergentes, e eu uma emergente

mais velha já com 33 anos, o André um emergente novinho com seus 25, 26

anos, e participando de um programa nacional que se chamava Rumos

Visuais, do Instituto Itaú Cultural, era a primeira edição do Rumos. Na época

nos deixaram muito claro que era um programa que, em primeiro lugar dava

visibilidade para a produção nacional fazendo com que artistas de diferentes

regiões circulassem pelo país. E também, internamente, o que nos era dito era

que nós iríamos, na qualidade de artistas emergente, experimentar o tipo de

situação profissional que os artistas já estabelecidos experimentam, que é ver

de perto a organização de uma exposição, conhecer curadores profissionais,

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viver uma rotina de montagens em instituições importantes... Enfim, havia uma

série de coisas ali que davam a entender que se tudo desse certo depois dessa

grande sabatina que era o Rumos e os que passassem para a etapa posterior

iriam desfrutar desse “Olimpo” que são as artes visuais profissionais. Enquanto

uma parte de nossos colegas estivessem funcionando de maneira harmônica

dentro disso tudo sem sentir nenhuma contradição nem nada, o André e eu nos

identificamos numa angústia. Nós nos demos conta que aquilo que o Rumos

nos apresentava como um futuro era algo que para nós não servia, pois aquilo

nos angustiava, nos deprimia - falando francamente. Percebíamos que

havíamos trabalhado duramente para chegarmos até ali, pois na época éramos

artistas que mantinham atelier, ambos éramos fanáticos, daqueles de trabalhar

em suas obras 24h por dia de Segunda a Segunda. Ou seja, trabalhávamos

tanto para chegar num lugar que nós não queríamos, que era ter um tipo de

atividade profissional como artista que consistia em produzir situações dentro

de uma caixa, que é o atelier, colocá-las dentro de uma caixa de madeira

revestida com plástico bolha e enviá-las para outra caixa que seria o espaço

expositivo. Então, de caixa em caixa nós iríamos passar nossas vidas, e

distantes de uma realidade mais viva, de uma troca mais intensa, mais

experimental que de algum jeito nós queríamos proporcionar.

“... aqui estão presentes todos os “heróis”, não só

nossos, mas como de todas as pessoas que apreciam

a arte contemporânea (...), simplesmente sentimos

certa afinidade com a maneira que estes artistas

tiveram de ver a arte e ver a vida.” Criar o Areal foi buscar essa outra condição, uma condição de autonomia, de

tentar descobrir que outros trabalhos nós saberíamos fazer fora das nossas

caixas... e também para sustentar aquele ritmo do Rumos que cada vez foi

ficando mais insustentável e angustiante, saímos a viajar apenas para

conversar, para desabafar sobre essa angústia. Íamos de ônibus para qualquer

lugar longe de Porto Alegre e que não tivesse nenhuma instituição cultural

funcionando. Lugares estes mais isolados como Mostardas, São José do

Norte... e voltada sempre no mesmo dia. Aproveitando também para pensar em

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uma situação em que não exista a estrutura profissional da arte

conseguiríamos nos sustentar como artistas, se isso estava dentro de nós

ainda. Onde não teríamos nenhuma confirmação externa da nossa condição de

artistas, sem a confirmação do sistema de arte para nos dizer que éramos

artistas ou não. Tentávamos responder àquela velha pergunta, do inicio do

romantismo ainda, “existe uma necessidade em mim de fazer isso? O que acho

que posso contribuir sendo um artista? A quem interessaria isso? Com quem

posso trocar idéias? Quem são os interlocutores fora da estrutura pré-

estabelecida na arte?”

Então, fizemos esses exercícios de viagem durante um ano e as praias eram

angustiantes também, assim como o Rumos, pois nos víamos sem saber o que

fazer, o que ser! Não nos encontrávamos nem num lugar nem no outro! E foi

nessa falta de identidade, nesse meio, que aprendemos a pensar as cosias em

transito, fazer estas coisas em transito. Por exemplo Vaga em campo de

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rejeito1 que é uma situação casual, onde fui parar lá em Arroio dos Ratos e

deixo que uma série de situações se apresentem e vão se realizando

coletivamente em solidariedade que recebi de vários moradores do local; e daí

a situação vai se montando na minha frente e eu vou aprendendo e as pessoas

vão me ensinando. Então juntos criamos uma situação sem prazo para

terminar, que não resultou numa exposição, mas é comunicada num livro que

já é outra coisa, não é apenas o resultado da experiência, é outra coisa, outra

etapa do mesmo trabalho que se caracteriza quase como um conto. E o André

desenvolveu um trabalho também em viajem que está relacionado no

Documento Areal: consciência errante2. Ou seja, descobrimos que nesse lugar

nenhum, onde existisse gente, paisagem ou algo que reagisse, é possível um

artista agir. E não é preciso que ele anuncie que é um artista e nem omitir, para

se poder produzir conhecimento, relações... Enfim, eu acho que a idéia é essa,

ente o artista que conhece alguma coisa e o outro não artista mas que tem sua

vida, tem uma experiência rica e conhece outras coisas, produz um atrito e

desse atrito se gera conhecimento e troca. O Areal é isso, é proporcionar que

esses encontros aconteçam. Pra isso criamos a Arena, onde são dados cursos,

mas que tem duas camadas: é uma associação sem fins lucrativos para o

desenvolvimento dos nossos projetos. E a outra é uma empresa, onde as duas

estão na mesma sede e estão relacionadas, que é onde eu dou os cursos e

outros professores também. A NAU produtora, que o André é sócio, também

produz, além de ir atrás de recursos para algumas ações do Areal, sobretudo

filmes. Então lentamente, ao longo de 10 anos, instituir alguns suportes para

esta autonomia. E esse é um trabalho incondicional, que não cede a nenhuma

condição que não do seu próprio desejo, de seu movimento espontâneo. Isso é

o Areal!

“As vezes você pode ser demandado por outros, que

te convidam para uma situação, e você arregaça as

mangas e vai trabalhar, mas em algo que te convença

1 BERNADES, Maria Helena; Vaga em Campo de Rejeito; São Paulo: Ed. Escrituras, 2003 (Documento Areal 2) 2 SEVERO, André; Consciência Errante. São Paulo: Ed. Escrituras, 2004 (Documento Areal 5)

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no sentido moral, ético, espiritual, humano, lúdico.

Mas não por outros interesses.” Panorama – É uma relação direta com os trabalhos da mostra....

M.H – Temos uma dívida para com a arte contemporânea que busca rever as

relações entre a arte e as pessoas fora dessa categoria inerte que é púbico,

abstrata; fora do evento cultural. Todos nós temos uma dívida, colocamos um

pequeno passinho, senão à frente, talvez, um pouquinho mais ao lado ou

fazemos um “puxadinho” desse grande pensamento que encontramos aqui no

Santander Cultural. Quando lemos nos livros temos a sensação de que está

tudo resolvido, pois os autores possuem esse dom de nos apresentar tudo já

resolvido. Mas diante do trabalho eles reviram do avesso, pois são muitos

frescos. Tem um grau de intensidade, experimentação, de inquietação viva e

de forma aberta.

Panorama – De modo em geral, como é feito o trabalho do projeto

pedagógico? Afinal a mostra abrange também um publico que busca e que

espera uma obra mais formal, materializada, quase que “entregue”, tendo em

vista que esta exposição evidencia muito mais o conceito do processo, as

idéias e as questões das transformações do espaço/tempo. E, além disso,

como se percebe essa relação do vídeo, que na maioria dessa exposição,

serve mais como documento/registro dos trabalhos expostos com esse mesmo

público visitante?

M.H – Um dos pontos de apoio ao público que não é familiarizado a esta

exposição foi criar uma das portas de entrada, que nós pensamos e que

poderia facilitar o acesso a esse tipo de obras a cada trabalho desses, a cada

um dos artistas aqui representados, e em cada trabalho também, o artista está,

de alguma forma, presente como sujeito. Talvez isso tenha sido o único critério

que tivemos, após termos escolhidos os artistas, assim como este leque de

obras destes mesmos artistas, foi a escolha de trabalhos nas quais o artista

tivesse uma participação, uma presença direta. Que ele estivesse falando

diretamente ao público, ou que o corpo, a imagem do corpo do artista estivesse

presente, ou que ele se dirigisse ao público diretamente através de um texto ou

através de uma ação, representada por uma fotografia, como exemplos. Então

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queríamos que essa exposição fosse um pouco como o Areal: uma plataforma

de encontro entre o visitante e o artista, mesmo o artista não estando de corpo

presente. Isso porque no nosso entender esses artistas tinham uma

necessidade verdadeira, que foge ao sentido de produzir profissionalmente um

trabalho de arte “porque sou um artista” , então eu produzo obras. Esses

artistas agiam de maneira diferente, fizeram o que fizeram porque queriam

dizer certas coisas e tocar alguém. Então se essas pessoas tem essa pulsão

por tocar o outro, tocar o seu contemporâneo de uma forma tão apaixonada e

intensa, isso já é um ponto de comunicação legal. Acredito que qualquer

pessoa possa se sentar em frente ao trabalho falado do (Joseph) Beuys, que é

uma conversa quase como um debate entre ele e interlocutores de uma platéia,

e acompanhar o que está sendo dito. Agora é claro que referencias específicas

existem ali como existem em diversas outras áreas de atuação profissional.

Mas ainda assim existe um canal de contato, tenho certeza, por serem pessoas

que faziam, falavam, agiam por uma necessidade real e autêntica de tocar o

outro. Ou seja, o fato de não serem “burocratas” da arte, mas sim pensadores e

artistas inquietos, apaixonados e com uma visão humanista que de fato implica

ao outro, com uma compreensão solidária o outro precisa alcançar para

funcionar. Então, em princípio, com alguns destes trabalhos, as pessoas que

vem aqui visitar a exposição, com algum desses trabalhos, ela irá se relacionar.

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Então não vemos, nessa exposição, um daqueles exemplos dolorosos de

exposições da arte conceitual dos anos 70, digo experiência dolorosa no

sentido de você sair “moído” com todas aquelas coisas pra ler, com todas as

relações, por vezes cientificas, que são estabelecidas e etc., que possuem seu

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mérito, na qual eu concordo absolutamente, mas que precisam de um

mergulho no contexto, contexto este que é referencial, de leitura, filosófico. E

isso não faz com que a arte conceitual seja menos importante ou menos

relevante. Mas não é o caso dessa exposição. É também dos anos 70 mas

está fora, digamos assim, daquela produção. Então as atividades pedagógicas

estão considerando isso! Além dos mediadores que estão aqui presentes para

ajudar, temos esse espaço de encontro que é a biblioteca, onde as pessoas

podem vir, sentar ler livros, conversar, pesquisar sobre os artistas da mostra.

Os mediadores, alguns voluntários do Arena, estão preparados e a disposição

para recomendar leituras, conversar sobre as obras, dar sugestões, trocar

idéias. Além disso temos também visitas guiadas que semanalmente o André e

eu fazemos com o público visitante. ...

Panorama – Sem desmerecer os que aqui estão presentes, nesta exposição,

há algum artista ou obra que vocês sentem por não ter conseguido trazer par a

mostra?

M.H – Acredito que as coisas mais importantes estão aqui. Coisas que

chegaram a ser cogitadas de serem trazidas, mas devido ao curto tempo de

produção tivemos que deixar de lado... Queríamos muito mais um trabalho do

Smithson, Hotel Palenque3, que é uma projeção de slides com a voz dele, já

tínhamos até a tradução do texto. Mas trabalhos como esse, que exigem a

realização com projetor de slides e não data show, pois ele precisa do som da

troca dos fotogramas... é necessária uma antecedência muitíssimo maior, o

que não era possível. Havia outro com slides do Dan Grahan, Homes for

America4, um trabalho que circulou primeiro como publicação numa revista em

1967. Esses dois trabalhos queríamos muito! Desistimos também de alguns

trabalhos “mais materiais”, como os múltiplos do Joseph Beuys ou alguns

objetos do Gordon Matta-Clark, pois queríamos mostra o lado escultor social

dele entre outros objetos por entendermos que não se tratava de uma

exposição que devesse ter uma presença material forte e sim uma vivência, o

3 T¨rabalho de Robert Smithson realizado em 1969 em um hotel abandonado no Novo México, Nos Estados unidos . Mais Informações em http://www.robertsmithson.com/photoworks/hotel-palenque_300.htm ou http://www.guggenheimcollection.org/site/artist_work_md_146E_1.html 4 Fotografias de Graham realizadas em 1966-67 sobre a arquitetura das casas das famílias norte-americanas.

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tempo pensado... e o filme dá conta disso. Nós pensamos que as pessoas, no

caso do Beuys, por exemplo, precisavam esquecer um pouco este lado dele

escultor, unicamente, e fazer ver o lado dele “escultor social”, que é fazendo

aquele vídeo/filme que vemos na exposição, das conversas com o público, dos

debates, etc. Mas de modo geral não tivemos nenhuma grande frustração!

Uma surpresa que tivemos, foi quando nós incluímos o Chris Burden, que num

primeiro momento não estava na exposição, pois tínhamos outros trabalhos em

mente. E de repente demos uma virada num determinado momento nesta idéia

de presença, e assistimos o vídeo completo do Burden, e o modo como ele

conta o seu trabalho é realmente muito especial para todos aqueles que

estudam performance, ou a relação artista-público.

“... descobrimos que nesse lugar nenhum, onde

existisse gente, paisagem ou algo que reagisse, é

possível um artista agir. E não é preciso que ele

anuncie que é um artista e nem omitir, para se poder

produzir conhecimento, relações...”

Panorama – Parte da produção contemporânea apresenta um resultado, por

vezes, muito parecido ao que se fazia na época dos trabalhos/registros aqui

presentes na mostra Horizonte Expandido. Em muitos casos, nessa nova

produção, temos uma sensação de “vazio” diante dos trabalhos. Seria talvez,

por essa mesma produção de hoje pensar mais na obra como uma coisa

pronta e não ter os mesmo impulsos geradores da mesma época. Afinal, os

trabalhos aqui expostos tem cerca de 40, 50 anos. O mundo era outro, as

questões, tanto sociais como as da própria arte, eram diferentes. Não te parece

que hoje, não são todos os casos, alguns trabalhos se apresentam como

meras cópias esvaziadas? E dessa repetição, ao nosso ver, cria-se um certo

“vazio” na arte contemporânea... mas esse questionamento, que não é

exclusivamente nosso, as vezes passa por um discurso ressentido com o

mercado, com as instituições, entre outros sujeitos atuantes do sistema, e que,

por isso, não é realizado. Porém, quando é realizado, é taxado dentro deste

discurso ou passa desapercebido. Como você vê isso acontecendo hoje?

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M.H – Bem.. .eu também tenho o mesmo cuidado que vocês estão tendo nesta

questão ao falar disso, pois muitas vezes, como tu disse, acaba parecendo um

discurso muito ressentido, muito facilmente até. Acredito que quem escolhe ser

artista, não quero dizer que isso seja uma verdade absoluta, escolhe não

assumir um compromisso com suprir demandas, produzir mercadorias, produzir

atrativos... ou seja, não ter compromissos com niguém.

Panorama – A não ser suprir nossas próprias demandas pessoais.

M.H – Exato! Uma demanda que sintamos ser legítima, seja do nosso tempo

ou dos nossos sentimentos e percepções. As vezes você pode ser demandado

por outros, que te convidam para uma situação, e você arregaça as mangas e

vai trabalhar, mas em algo que te convença no sentido moral, ético, espiritual,

humano, lúdico. Mas não por outros interesses. Isso estamos falando da

minha, ou da nossa visão, que abandonamos esse modelo institucionalizado

por acreditar em algo mais. Cada um deve fazer o que gosta e Let it be! Não se

trata aqui de discriminar, mas de opção de vida. Mas posso dizer que uma das

coisas que mais nos chocou ali naquele início de profissionalização do meio

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artístico, na segunda metade dos anos 90, foi ver como rapidamente jovens

artistas aderiam de forma acrítica à essa vitrine, e as demandas dessa vitrine.

E também como todo mundo começou de repente a falar em carreira e não

mais em trajetória artística. Artista tem trajetória, porque trajetória significa ter

tentativa e erro, muitos erros, muitas tentativas e alguns acertos.

Mas carreira é uma coisa em que se soma pontos e se ascende. Então quando

começou a se falar num profissionalismo que implicava em carreira, se falava

em competitividade e eficiência, e cada um apresentava portfólios muito bem

apresentados antes mesmo de ver a obra! E isso nos provocou uma aversão,

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pois não é só isso que compõe o mundo da arte e dos movimentos da arte

jovem. Tem aí uma corte e tem os prêmios, e tem também uma roda viva

comendo, engolindo e pedindo novas mercadorias. Existem modos de ser um

artista integro e correto dentro desse sistema vigente, mas, é como a Karen

Lambrecht diz: “esse artista vai ter que saber viver no deserto quando aquilo

que ele acredita estar fazendo de importante pra ele não vai ser solicitado, vai

ficar na prateleira do sistema e ele vai atravessar o deserto, mas sairá do

deserto fortalecido como artista”.

“Uma ‘curadoria Areal’... foi assim que surgiu a

exposição. Então, de certa forma, nós pensamos

nessa curadoria como nós costumamos pensar um

livro.”

Eu particularmente acredito haver modos de ser um artista sério tanto dentro

como fora do sistema, fora eu quero dizer da lógica dele, porque ninguém está

fora, o sistema é todo o circuito onde gira a palavra arte, pelo menos eu

entendo assim. Até porque hoje o sistema absorve praticamente tudo... em

diferentes níveis, nas suas estratégias e corporações... mas eu acho que nós

podemos ser um artista sério em qualquer lugar, mas o importante e encontrar

este lugar. Mas a gente percebe esses funcionamentos e tem coisas que nos

chocam as vezes. São assuntos, são coisas que incomodam a gente e que nós

devemos discutir. Por exemplo, as obras desta exposição, os filmes e vídeos,

não eram nem exibidos ou mostrados, a não ser entre os próprios artistas.

Tudo isso não era um sucesso garantido... muito pelo contrário: as pessoas

que fizeram essas ações, abandonaram o que eram garantido... abandonaram

o terreno seguro... e isso aqui (a obras da exposição) é o terreno inseguro, isto

daqui é o deserto, pois os artistas saíram da zona de conforto. Mas o sistema é

muito grande, e ele absorve tudo muito rapidamente, sendo legitimado e usado

pelo entretenimento, pelo evento cultural, pois são muitos espaços para se

preencher. O sistema de artes hoje é uma máquina muito grande. Mas ao

pensar sobre os artistas desta exposição, os seus anseios quanto a estes

trabalhos era utilizar o vídeo para registrar a experiência no sentido de

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duração, no registro de uma vivência intensa, ou seja, processual. Era gravar e

comunicar essa intensidade, pois não se pensava em produto, em mercado, se

pensava nessa vivencia, nessa experiência, em abertura, em desmonte de

coisas e ao mesmo tempo no registro de coisas acontecendo, no registro de

um entendimento, de um processo. Diferente de hoje que é um tiro muito

certeiro fazer um vídeo ou uma foto.

“São trabalhos que excluem, digamos assim, uma

necessidade de uma mediação já dada para sua

apresentação”

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Expediente

Editores

Alexandre Nicolodi

Artista Plástico graduado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em Escultura. Vive em Porto Alegre.

Denis Nicola

Artista Plástico, Publicitário e Fotógrafo. Graduado em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCRS e em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em fotografia. Vive em Porto Alegre.

Jornalista

André Dornelles Pares

Jornalista e Filósofo licenciado. Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Unisinos e Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vive em Porto Alegre.

Conselho Editorial

Paula Viviane Ramos

Jornalista e crítica de arte. Mestre (2002) e Doutora (2007) em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (UFRGS). Professora Adjunta do Instituto de Artes da UFRGS. Desenvolve pesquisa sobre arte moderna, arte contemporânea e artes gráficas. Vive em Porto Alegre.

Maria Ivone dos Santos

Artista, Doutora em Artes Plásticas na Universidade de Paris I, Panthéon Sorbonne em 2003. É professora da área de escultura do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Coordena com Helio Fervenza o Grupo de Pesquisa: Veículos da Arte (CNPq) e o Programa Formas de Pensar a escultura – Perdidos no espaço (www.ufrgs.br/artes/escultura/). Vive em Porto Alegre.

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Paulo Gomes

Artista plástico, curador independente e professor na UFRGS. Mestre e Doutor em Artes Visuais – Poéticas Visuais, pela UFRGS. Desenvolve pesquisa na área de Poéticas Visuais, sobre arte contemporânea e arte no Rio Grande do Sul. Tem textos publicados em livros, revistas e jornais. Vive em Porto Alegre.

Neiva Maria Fonseca Bohns

Professora adjunta do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas. Mestre e Doutora em Artes Visuais - História, Teoria e Crítica de arte pela UFRGS. Professora de Arte Contemporânea, História da Arte no Brasil, História da Arte no Rio Grande do Sul e Metodologia da Pesquisa em Artes Visuais. Desenvolve pesquisa sobre arte contemporânea no Brasil e arte no Rio Grande do Sul. Atua como crítica de arte e curadora de exposições de arte contemporânea. Membro do Conselho Curatorial da Fundação Vera Chaves Barcellos. Tem textos publicados em livros, revistas e outros veículos especializados.

Design Gráfico – versão online

Adreson Vilson Vita de Sá

Artista e designer. Formado pela UFSM, atualmente graduando no Instituto de Artes (UFRGS), trabalha com design gráfico e projetos de arte (Bienal B). Atualmente está na diretoria da Associação Chico Lisboa. http://adreson.com Design Editorial

Natália Correa

Artista e Colaboradores

Gabriel Karasek

Artista plástico e web designer de Porto Alegre. Graduando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente morando em São Paulo onde trabalha na www.cubo.cc. Mais informações em www.gkarasek.com.

Letícia Lampert

Artista plástica, designer gráfica, web designer e fotógrafa, Vive e trabalha em Porto Alegre. Formada em Desenho Industrial/Programação Visual, pela Ulbra, é graduada em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade federal do

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Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em fotografia. Mais informações e portfólio em www.leticialampert.com.br.

Angela Cagliari

Artista plástica graduada pelo Instituto de Artes da UFRGS com ênfase em Fotografia. Vive e Atua em porto Alegre. Recebeu prêmio do British Council para intercâmbio acadêmico na Inglaterra em 2007.

Roberto Muniz

Graduado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ênfase em desenho. Há muitos anos trabalha com desenvolvimento web e publicidade on-line.

Vitor Butkus

Artista visual. Graduando em Artes Visuais, habilitação em História, Teoria e Crítica, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa transdisciplinar Corpo, Arte, Clínica.

... E todos aqueles que contribuíram, e contribuem das mais diversas maneiras, para a publicação dessa revista.

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“Um espaço público para o intercâmbio de idéias e ações, por meio de textos críticos e reflexivos acerca da produção artística contemporânea..."

Mesmo com a produção artística contemporânea vivendo um período de

grandes realizações, são muitos os teóricos que analisam o período a partir da

óptica de uma "crise da arte", ou mesmo do "fim da arte". Esses mesmos

intelectuais reconhecem que, se existe crise, parte importante dela deve-se à

escassez de material crítico. De fato, foi-se o tempo em que se podia encontrar

crítica de arte em jornais e revistas, os meios tradicionais para esse e outros

tipos semelhantes de manifestação... Hoje, o exercício da crítica, notadamente

da crítica de arte, parece ter encontrado lugar nos ambientes acadêmicos. No

entanto, será que essa estratégia não estaria restringindo ainda mais a reflexão

sobre arte, sobretudo sobre arte contemporânea, a círculos de iniciados no

assunto?

Foi pensando nessas e em tantas outras questões que criamos a revista

PanoramaCrítico. O nosso objetivo é disponibilizar um espaço público para o

intercâmbio de idéias e ações, por meio de textos críticos e reflexivos acerca

da produção artística contemporânea, brasileira e internacional.

PanoramaCrítico também tem como objetivo possibilitar a troca entre

instituições, acadêmicas ou não, que tem algum tipo de atuação voltada ao

campo. Assim, o site se coloca como um espaço para a divulgação de

atividades, eventos, cursos e palestras na área. Isso significa que estão todos

convidados a participar!

PanoramaCrítico é uma publicação bimestral.

Acesse: www.panoramacritico.com