palavras-chave 1. introdução - fomerco · 2017. 10. 23. · em razão do aumento dos conflitos...
TRANSCRIPT
Análise da Migração Internacional e Fluxos Mistos à Luz da Normativa
Humanitária
Yuri Matheus Araujo Matos1
Resumo
Em razão do aumento dos conflitos civis e políticos em diversas nações, tem se
acentuado, exponencialmente, nos últimos anos, o número de migrantes e refugiados.
Logo, novos problemas decorrentes da migração em massa surgem. Neste contexto,
políticas de efetividade dos Direitos Humanos devem ser promovidas para que os
direitos mínimos daqueles que se deslocam em busca de melhores condições de vida
e de trabalho não sejam mitigados arbitrariamente. Assim, para alcançar tais objetivos,
faz-se mister a aplicação das normas internas à luz das tutelas internacionais,
utilizando-se métodos integradores, interpretação axiológica, teleológica e
humanitária, em especial. Consequentemente, protege-se a acolhida humanitária, a
igualdade formal e material entre migrantes e nacionais, bem como o repúdio às
condutas xenofóbicas e práticas de expulsão e deportação coletivas.
Palavras-chave: Promoção do Trabalho Digno. Migração. Refúgio.
1. Introdução
O deslocamento realizado pela população no espaço é compreendido como
migração, gênero do qual são espécies a migração interna e a externa. A diferença
entre esta e aquela reside na transposição da fronteira de um país. Ou seja, a
subdivisão adotada hoje está intrinsecamente relacionada à formação de sociedades
suficientemente organizadas ao ponto do estabelecimento das suas fronteiras2.
A migração externa, por sua vez, subdivide-se em migração voluntária, refúgio3,
exílio e asilo4. No primeiro caso há desejo do indivíduo de passar a viver em nova
1 Universidade Federal de Sergipe. Estudante de graduação. 2 Observe-se que, anteriormente ao estabelecimento da agricultura, o deslocamento realizado pela população no espaço era regra geral entre a humanidade, e passou a ser exceção com a complexificação das relações humanas e desdobramento das sociedades sedentárias.
3 OIM (Organização Internacional para as Migrações). Editora Organização Internacional para as Migrações. Glossário sobre Migração. Nº 22, p. 62 4 Glossário sobre Migração. Nº 22, p. 11
localidade, em busca de melhores condições de vida e de trabalho. Possui, portanto,
a mais ampla das definições dentre os temas aqui estudados. Já o segundo (refúgio)
ocorre com a saída do local em que a pessoa vive por motivo de força maior, e não
"simples" busca de melhores meios de vida (e esta é a sua principal diferença em
relação à migração voluntária). Usualmente ocorre em caso de perseguições em
função de etnia, nacionalidade, religião, ideologia, violação de direitos humanos, e até
mesmo catástrofes ambientais. Buscam apenas a preservação da sua vida e
integridade mínima, assim como dos seus familiares.
O exílio, por sua vez, sucede contra a vontade do seu principal sujeito: a pessoa
é "expulsa" da localidade em que vive pelas lideranças locais (no mundo
contemporâneo, enviado para fora da nação por um governo). Usualmente o exílio
está atrelado a motivações políticas. A última face da migração externa – asilo – se
dá a pedido do indivíduo a um Estado diferente do seu, para que o proteja (permitindo
a entrada) de perseguição do governo do país de origem. A posição política e crimes
relacionados à segurança estatal são as razões mais comuns da perseguição.
As principais razões para os fluxos migratórios, em grande parte influenciadas
pela atuação do Estado, são as razões políticas internas, conflitos internacionais, fatos
da natureza e crises econômicas.
O primeiro fator está estritamente ligado à disputa de poder dentro de uma
nação, como ocorreu na Europa Oriental na década de 90 do último século. O
segundo, mais frequentemente ocasionador do refúgio em massa, é atrelado à própria
história da humanidade: iniciada com a conquista da Suméria pelos Acádios, ampliou
o seu impacto ao longo do tempo, chegando o século XX à quantidade de 61 conflitos
de impacto internacional, dentre eles as duas guerras mundiais.
O terceiro, por sua vez, independe de previsibilidade, e pode ocorrer no longo
prazo, ocasionando aumento paulatino na migração5, ou em curto lapso temporal,
causando uma "fuga em massa"6. Quanto às crises econômicas, originam-se
costumeiramente dos três fatores citados, e atuam como catalizadores.
5 Como o aquecimento no medievo, que provocou: o deslocamento dos mongóis entre o norte e o sul da Ásia; expedições vikings na Groelândia ensejadora das primeiras trocas comerciais com os esquimós nativos; o renascimento urbano-comercial europeu; e o processo diaspórico entre as tribos nativas do sul da região atualmente compreendida como sul dos EUA em busca de terras férteis e clima ameno. 6 Por exemplo, o Furacão Matthew, que provocou o êxodo de cerca de 2 milhões de pessoas nos Estados Unidos, além da migração haitiana no Brasil impulsionada pelo terremoto que destruiu a nação em 2010.
Como se pode observar, os fluxos migratórios modernos estão estritamente
relacionados à atuação estatal. Sendo esta a principal ocasionadora de desrespeitos
aos direitos fundamentais (dos próprios cidadãos e dos estrangeiros), a história da
formação das nações se coincide com a história da ampliação das migrações. Os
fluxos são anteriores à organização social, mas o volume é diretamente ligado a si.
2. Crise migratória e a tutela jurídica internacional do trabalhador migrante
A acentuação da influência do Estado (em última análise, do próprio ser
humano) na migração se dá conforme o desenvolvimento tecnológico e
impulsionamento dos ideais ufanistas, pois estes ampliam os diversos efeitos das
crises, conflitos e guerras. Dentre eles, as crises migratórias.
Após a derrota Alemã na Primeira Grande Guerra, as ideias nacionalistas de
parceria com as teorias racistas, na Alemanha, com o nacional-socialismo, no Japão,
com o nacionalismo próprio e Itália, com o fascismo, ensejaram a Segunda Guerra
Mundial.
Com uma sequência inimaginável de atentados aos direitos humanos, povos
inteiros foram massacrados, e a ideia de direitos dos estrangeiros, neste momento, foi
reduzida a pó, em diversos países. O nacionalismo ufanista se evidenciou nas
décadas de 1930 e 1940, em conjunto com a ideia de superioridade e consequente
discriminação. O auge do nacionalismo foi responsável por um dos maiores violações
contra a humanidade, alcançando níveis exagerados (e catastróficos)7.
7 Richard Pierre Claude e Burns H. Weston aduzem que: "foi apenas após a Segunda Guerra Mundial – com a ascensão e a decadência do Nazismo na Alemanha – que a doutrina da soberania estatal foi dramaticamente alterada. A doutrina em defesa de uma soberania ilimitada passou a ser crescentemente atacada, durante o século XX, em especial em face das consequências da revelação dos horrores e das atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus durante a Segunda Guerra, o que fez com que muitos doutrinadores concluíssem que a soberania estatal não é um princípio absoluto, mas deve estar sujeita a certas limitações em prol dos direitos humanos. Os direitos humanos tornam-se uma legítima preocupação internacional com o fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação das Nações Unidas, com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral da ONU, em 1948 e, como consequência, passam a ocupar um espaço central na agenda das instituições internacionais. No período do pós-guerra, os indivíduos tornam-se foco de atenção internacional. A estrutura do contemporâneo Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a se consolidar. Não mais poder-se-ia afirmar, no fim do século XX, que o Estado pode tratar de seus cidadãos da forma que quiser, não sofrendo qualquer responsabilização na arena internacional. Não mais poder-se-ia afirmar no plano internacional that king can do no wrong." - Richard Pierre Claude e Burns H. Weston (eds.), Human rights in the world community: issues and action, p.4-5
Eis um momento fundamental para uma nova acepção de soberania8, inclusive
a territorial. Ela já não podia, por óbvio, servir ao governante, mas também não podia
servir a um povo, em detrimento de outro. Não podia também ser utilizada como meio
para se negar o mínimo existencial a qualquer indivíduo, ou deixar de reconhecer o
seu direito à existência digna. Os direitos humanos ascenderam com o fim da Segunda
Grande Guerra e negação reiterada aos direitos basilares à própria concepção do ser
humano.
O estrangeiro, migrante (em especial o externo), exilado, asilado, e a partir de
então o apátrida (indivíduo destituído de qualquer nacionalidade, em virtude de um
conflito negativo, em especial entre ius solis e ius sanguinis) também passaram a ter
proteção especial, em virtude das situações degradantes às quais foram submetidos.
A proteção aos trabalhadores migrantes não tardou, pois a OIT
("coincidentemente" criada com o fim da Primeira Grande Guerra) adotou pela
Conferência Geral a Convenção nº 97 em 1949.
Destaque-se, nesta convenção, dentre os principais pontos da grande
conquista humanitária previstos, a garantia da igualdade perante a ordem jurídica e
os bens da vida entre os migrantes e os próprios nacionais, assegurando-lhes os
mesmos direitos civis e políticos (com pontuais exceções, v.g. na capacidade eleitoral
passiva) e sociais e econômicos, aí incluso o fundamental direito ao trabalho digno,
norteador das principais garantias sociais.9
Além da proteção assegurada pela OIT (e como complemento a esta), há ainda
as disposições previstas na Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos
de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias. Esta,
entretanto, é expressamente inaplicável aos refugiados (Artigo 3º, "d").
8 Como princípio basilar da República Federativa do Brasil, elencado no primeiro artigo da nossa Constituição (a soberania), tal qual demonstrado, serve de base para a efetivação, e jamais para o amesquinhamento de direitos. Para que ela possa atingir o seu fim de maneira satisfatória, é imprescindível ao seu aplicador a compreensão profunda do seu objetivo epistemológico. Caso contrário, haverá confusão e defesa de um nacionalismo ufanista travestido de mera soberania. Os limites devem ser traçados, para que o verdadeiro objetivo da soberania seja alcançado. 9 Há proteção especial nos anexos do referido texto aos trabalhadores recrutados em determinada localidade, para prestarem serviços em outra, em razão da vulnerabilidade especial na qual se encontram, comprovada, referida vulnerabilidade, pelo histórico reincidente de explorações, restando tutelado, também, os objetos pessoais dos trabalhadores.
No plano interno, por força do princípio da igualdade entre nacionais e
estrangeiros, bem como a natureza jurídica dos pactos no Brasil, as únicas restrições
aos estrangeiros serão as dispostas na própria Constituição. Aquilo que não for
taxativamente proibido na constituição será direito estendido aos migrantes.
As normas supracitadas, todavia, são usualmente desrespeitadas (em especial
nos períodos de graves crises internacionais). A degradação do indivíduo a um estágio
quase animalesco em virtude de guerras, fome, terror e conflitos políticos não tem sido
devidamente mitigada pela recepção dos refugiados, conforme orientado pela ONU e
OIT, mas acentuada pela elevação de barreiras que afastam das pessoas uma chance
a mais de vida. E assim, em síntese, se formam crises de migração e refúgio.
Sob uma perspectiva mundial, os atuais refugiados são originários, na maioria
da vezes, das seguintes nações: Eritreia, Nigéria, Síria, Afeganistão, Paquistão e
Kosovo. As nações que mais os recebem são a Alemanha, Turquia, Suécia, Itália,
Hungria, França e Áustria, conforme o UNHCR (Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados) e o Ministério do Interior Britânico.
Em números absolutos, são 65 milhões de pessoas deslocadas, número
acrescido em 24 por minuto10, estimando-se um aumento de cerca de 10% ao ano.
Dentre eles, 21,3 milhões são de refugiados ao redor do mundo e 3,2 milhões
solicitantes de refúgio11.
3. O caso Sírio e a efetividade dos direitos humanos
Dentre tantos conflitos e seus respectivos rastros de destruição, cumpre
destacar um em especial: a guerra na Síria, recentemente um dos mais exacerbados
10 Uma dimensão descomunal é demonstrada pelo Globo: "A cada minuto o mundo produz 24 novos refugiados. Pessoas que têm que abandonar as casas, para escapar de guerras, perseguições ou tortura. Sessenta e cinco milhões estão fugindo de algum lugar, ou deslocados internamente nos próprios países. Quase seis milhões a mais do que em 2014. O maior número desde a 2ª Guerra Mundial. Dois mil e quinze teve o pior recorde da história, segundo o relatório divulgado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas. Mais da metade vem de apenas três países: Síria, Somália e Afeganistão." Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/06/onu-
registra-o-numero-recorde-de-refugiados-e-deslocados-no-planeta.html>. Acesso em 07/11/2016 11 Complementa a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), ressaltando que "[...] Esta é a primeira vez que o deslocamento forçado ultrapassa o marco de 60 milhões de pessoas. No final de 2005, o ACNUR registrou uma média de seis pessoas deslocadas a cada minuto. Hoje, esse número é de 24 por minuto. Do total de 65,3 milhões, 12,4 milhões são novos deslocados por conflitos e perseguições apenas em 2015. Esse conjunto se divide entre 8,6 milhões de pessoas forçadas a abandonar seus lares e a mudar-se para outros lugares de seu país e 1,8 milhões que tiveram de cruzar as fronteiras. O universo de 65,3 milhões inclui 21,3 milhões de refugiados ao redor do mundo, 3,2 milhões de solicitantes de refúgio e 40,8 milhões deslocados que continuam dentro de seus países." Disponível em: <http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/>. Acesso em 07/11/2016
conflitos12. Originou-se, assim como na maioria das nações árabes, com um governo
ditatorial contemporâneo: Bashar al-Assad desde o início do terceiro milênio pratica
seus desmandos sob o manto do nacionalismo (intensificado com as trágicas
incursões da OTAN e da URSS no Oriente Médio no final do século passado).
A insatisfação popular com o regime foi impulsionada pela Primavera Árabe,
expansão dos meios de comunicação e difusão dos ideais de liberdade. Entretanto,
esbarrou-se em uma mordaça gigante construída pelo Estado (como sempre, sob o
manto da proteção jurídica e social, autonomia nacional e busca do pleno
desenvolvimento interno) e protegida pelos interesses político-econômicos da
Federação Russa. Inobstante os esforços repressivos estatais, as manifestações se
intensificaram, causando centenas de milhares de mortes em meia década.
A diferença sectária entre xiitas e sunitas catalisou o confronto entre
nacionalistas e manifestantes, com a formação de novos protestos (desta vez,
protagonizados pela maioria sunita Shia. Grupos Jihadistas transformaram a crise
interna em um verdadeiro caldeirão, em especial com o crescimento do Estado
Islâmico, que rapidamente controlou imensas regiões e passou a se denominar ISIS
(Estado Islâmico do Iraque e Al-Sham)13.
Logo surgiram milhões de refugiados. A população síria reduziu de cerca de 23
milhões de pessoas para aproximadamente 17 milhões14. Dentre estas,
aproximadamente 80% vivem em situação de extrema pobreza e quase 60% estão
desempregados. A expectativa de vida caiu de 75,9 anos para 55,7.
Sem qualquer acesso a uma vida digna, originou-se uma legião de miseráveis,
composta por uma geração condenada pelos desmandos de um governo corrupto15,
12 YÁRNOZ, Carlos (2015). «Bruxelas pede solidariedade aos países diante da crise migratória mundial». El País. Consultado em 12 de junho de 2017 13 Os bombardeios, que eram até então a principal ameaça à população local, foram ofuscados pela relevância dos sucessivos estupros e métodos inventivos de assassinatos e torturas. Rapidamente foi bloqueada (por todos lados do conflito) a passagem de alimentos, água e ajuda humanitária aos que não originaram o conflito e deste eram as principais vítimas: a população civil. O Estado Sírio se utilizou de bombardeios e armas químicas, que motivaram intervenções externas (inconvenientes, mal aplicadas e, consequentemente, catastróficas). 14 Demographic Data of Registered Population. UNHCR. Consultado em 11 de junho de 2017 15 OLIVER, Christine. Corruption index 2010: the most corrupt countries in the world (em inglês). The Guardian. Consultado em 23 de maio de 2017.
extremismo religioso, protagonista de abjetas atrocidades e uma política internacional
lamentável encabeçada pelas principais potências.
As nações árabes, em especial a Arábia Saudita (majoritariamente Sunita,
assim como o Estado Islâmico) fecharam as portas aos refugiados16, que tiveram de
buscar abrigo ao norte: o caminho para a Europa foi buscado desesperadamente por
aqueles que tinham às suas costas pouco além da fome, miséria e destruição.
Os principais trajetos utilizados pelos refugiados foram17 pela Península Ibérica,
Mediterrâneo Central (por mar, sem condições de segurança e salubridade), em
especial pela Puglia e Calábria, além do caminho dos Bálcãs – Albânia, Grécia,
Macedônia, Sérvia, Hungria, e então Europa Central – e pela fronteira da Turquia, por
terra.
A chegada das legiões de famintos18 logo provocou choques nas nações
anfitriãs, em virtude das variações linguísticas e culturais, sociais e, em especial,
devido aos custos necessários para garantir a dignidade mínima aos refugiados. Ora,
um número alto de trabalhadores provoca, naturalmente, alterações na oferta e
demanda de empregos, assim como gastos públicos, especialmente nos Estados de
Bem-estar Social. No caso europeu, com um Estado responsável constitucionalmente
pela tutela social dos indivíduos, há impacto direto da imigração na economia e gastos
públicos.
A ideia de organização social intrínseca especialmente às nações da Europa
Central (norte da Itália, Suíça, Alemanha, Áustria) busca que tudo esteja em sua
perfeita ordem. Com reduzidos índices de natalidade, alta renda e sentimento de
coletividade (especialmente nos pequenos vilarejos, a exemplo dos cantões suíços)
16 http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150903_refugiados_sirios_hb 17 BBC Brasil, ed. (2015). «As perigosas rotas de migração para entrada na Europa». BBC. Consultado em 14 de junho de 2017. 18 Conforme preleciona a exímia professora da PUCSP, Flávia Piovesan, "No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do direito. Diante dessa ruptura, emerge a necessidade de reconstruir os direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral." PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 116- 118.
qualquer ínfima alteração na comunidade provoca distúrbios no próprio senso de
ordenação, basilar à compreensão da articulação social interna, como um todo
orgânico (e consequentemente do papel do Estado).
Por outro lado, pela diversidade da mão-de-obra imigrante, assim como o
capital advindo com os seus respectivos patrimônios e sua expectativa de criação de
patrimônios, alguns pesquisadores chegaram à conclusão de que o impacto da
imigração na sociedade acolhedora não é negativo da forma que usualmente
evidenciado. Os trabalhos de Borjas, Grogger e Hanson19 são fundamentais para a
compreensão de que, especialmente no longo prazo, a imigração é muito mais
benéfica que prejudicial20.
A análise sob uma perspectiva social, macroeconômica, leva-nos à
compreensão de que a falha se encontra exclusivamente nos excessos: a entrada
completamente desordenada de migrantes em uma nação pode provocar distúrbios
sociais no curto prazo. Se não sanados de imediato, passam a ter reflexos negativos
nas estruturas da sociedade, não apenas para o povo local, mas também para os
imigrantes e aqueles que estão por vir. Ainda assim, a simples mão-de-obra, seja ela
especializada ou não, significa contribuição significativa para o desenvolvimento
econômico, pois o trabalhador paga impostos (pela renda e pelo consumo), financia
serviços públicos e a assistência e apenas terá direito à previdência após os períodos
de contribuição previstos em lei.
Apesar do choque ocorrido no curto prazo, em especial quanto aos que
adentram o solo nacional em condições precárias, sob fuga das maiores atrocidades
cometidas contra a humanidade, no longo prazo o seu auxílio ao desenvolvimento
nacional é considerável. Assim foi durante toda a história do Brasil e da maioria das
nações americanas. Basta que sejam inseridos no mercado formal sob condições
dignas, ou tenham reais chances de empreendedorismo. Nesse sentido tem agido a
19 BORJAS, George J. GROGGER, Jeffrey. HANSON, Gordon H. COMMENT: ON ESTIMATING ELASTICITIES OF SUBSTITION. Harvard University. University of Chicago. University of California, San Diego. 2012.
20 Entretanto, não se deve olvidar que a mão-de-obra especializada é muitas vezes a minoria dentre os migrantes, e até que a não-especializada colha os frutos do labor dos seus detentores, há um inerente gasto social para a recepção dos indivíduos.
nova lei de migração21, que desburocratiza a documentação e acesso ao trabalho do
migrante, protegendo-o e à sua família concomitantemente.
Deve-se levar em consideração que no momento em que uma nação aceita o
ingresso de indivíduo nessa condição, o Estado passa a ter, em relação a ele, os
deveres que objetivem a garantia da sua dignidade humana22. Observe-se ainda que,
por ser uma Crise dos Refugiados, os parâmetros a serem analisados são
completamente diferentes. O refugiado (quem foi obrigado a abandonar a sua terra
natal em virtude de perseguição ligada à sua etnia, religião, nacionalidade, convicção
política ou pertencimento a certo grupo social) é protegido pelo princípio da não-
devolução.
Ainda assim, pelo medo do desconhecido, questões étnicas e associação do
islã ao terror, algumas nações (a exemplo da Polônia) vêm buscando o afastamento
dos refugiados. O meio utilizado é o tratamento dos refugiados como imigrantes,
relegando-os sob o argumento da ausência de obrigatoriedade da recepção.
Para resolver a questão, em especial diante da crise de proporções
descomunais vivenciada pelo Velho Mundo, faz-se mister a diferenciação entre o
imigrante e o refugiado, de acordo com diretrizes pré-estabelecidas pela União
Europeia, criando-se assim uma presunção iuris tantum da natureza do movimento de
determinados grupos humanos, a depender da região de origem e condição física em
que se encontra o emigrado. Assim sendo, evitar-se-á o uso do subterfúgio pelas
nações europeias, que provoca o abandono de pessoas em risco de vida.
Observe-se que a determinação de quem é refugiado é do Executivo
(CONARE), com ampla margem de discricionariedade. Não deve o judiciário se
imiscuir na competência do administrativo. Contudo, em sintonia com a aplicação dos
21 A citada lei dialoga com o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao atrair aquela para si a parte basilar desta: a proteção integral e o interesse superior da criança e do adolescente (best interest of child), em seu art. 3º, XVII. Além disso, garante a anistia aos migrantes indocumentados em seu art. 118. 22 Para Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade é "a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos." Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal da 1988, 2ª ed., revista e ampliada, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002,p.62. Apud FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito. Trabalho
Decente. Análise Jurídica da Exploração do Trabalho – Trabalho Forçado e outras Formas de Trabalho Indigno. Pp. 43-44. Editora LTR. São Paulo. 2004.
checks and balances, é necessário que o judiciário afaste decisões proferidas de
maneira autoritária, sendo a tirania originária da inobservância dos princípios
processuais, ou de deliberações teratológicas.23
Quanto à inserção em geral do estrangeiro na nação anfitriã, é um imperativo
a compreensão de que a sua incorporação do estrangeiro no mercado de trabalho,
seja na economia formal ou informal, já é pressuposto necessário para o
reconhecimento de direitos de ordem trabalhista.
Ressalte-se, ademais, que é essencial que a igualdade de direitos para com o
nacional seja levada em consideração, em sintonia com a compreensão do
deslocamento humano como fato, e não mera hipótese. A admissibilidade dos direitos
humanos e do trabalho independem de meros formalismos e burocracias.
Logo, até mesmo o migrante ilegal não deve ser privado dos seus direitos
mínimos em solo nacional, que dirá o estrangeiro em sentido amplo, principalmente o
refugiado. A análise da "reserva do possível", conforme já demonstrado, apenas deve
ter o objetivo de propiciar uma migração organizada, sendo que, a partir do momento
em que ela se efetiva, é obrigação do Estado a garantia dos direitos basilares. Por ser
obrigação da nação anfitriã a fiscalização daqueles que devem adentrar ou não o seu
solo, todos que nele entrarem possuem o direito a ter direitos24, independentemente
da maneira de ingresso.
A condição do indivíduo titular de direitos independe da sua origem, credo ou
classe social. Inerente a si estão os direitos de primeira, segunda e terceira
dimensões. Todavia, os direitos de segunda dimensão (sociais) demandam um gasto
por parte da sociedade e do Estado. Expandindo a análise, de um indivíduo apenas,
23 AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTRANGEIRO. DECLARAÇÃO DA CONDIÇÃO DE REFUGIADO. GUERRA NO PAÍS DE ORIGEM. ALTO GRAU DE DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO. 1. O controle de estrangeiros no território brasileiro quanto à entrada, permanência e saída compulsória é matéria cometida à Administração com elevado grau de discricionariedade. 2. Os compromissos brasileiros com a proteção dos direitos humanos não afastam a discricionariedade no exame dos casos individuais de pedido de proteção. Tal exame de conveniência deflui da responsabilidade diplomática cometida ao Chefe do Executivo, em exercício de soberania estatal perante a sociedade internacional, e revela circunstâncias delicadas de responsabilidades e ônus nesse campo. 3. Não reconhecida a condição de refugiado após conclusão de regular processo administrativo, não cabe ao Poder Judiciário intervir para modificar a decisão da administração. É pertinente a ordem de saída do Brasil sob pena de deportação, observado que implementada uma ou outra situação não há restrição para que se postule imigração por outras formas disponíveis. (TRF-4 - AGRAVO DE INSTRUMENTO : AG 37636 PR 2007.04.00.037636-5) 24 HARENDT, Hannah. A Condição Humana. 1958. Livraria Cultura.
para uma massa de migrantes, passa a ser perceptível o seu impacto sobre a
economia regional.
Contudo, a reserva do possível não se aplica aos refugiados em virtude da
imprescindibilidade e transitoriedade facultada. O primeiro fator significa que, caso o
refugiado seja abandonado, o risco à sua vida e dignidade é tamanho que há uma
concorrência desproporcional entre os princípios ponderados, sendo necessária no
mínimo a manutenção do refugiado em proteção até que a ameaça seja
substancialmente mitigada.
Quanto à transitoriedade, o refugiado não possui o animus e direito subjetivo à
permanência. Não integrará a sociedade que o acolhe, desfrutando tão somente do
refúgio temporário. A perenidade da relação de abrigo é condicionada à vontade
(demonstrada expressa ou tacitamente) do indivíduo e do Estado acolhedor.
4. Proteção aos estrangeiros no Brasil
O Brasil é conhecido historicamente pela sua característica acolhedora. Ainda
assim enfrenta também os seus desafios, com as suas róprias Crises dos Refugiados.
Estas derivam dos problemas internos no Haiti, Bolívia e Venezuela, em especial.
Para lidar com o caso, foi publicada a Lei nº 13.445. Amplamente elogiada pelos
órgãos internacionais, e garante não somente a proteção ao migrante25, mas também
o combate às organizações aproveitadoras da migração para a prática de ilícitos.
Afasta-se dos métodos ritualísticos da legislação anterior, e apresenta aproximação
com os mais nobres fins da ordem jurídica: a proteção aos vulneráveis, o alcance da
igualdade material, a concretização da justiça social, mediante os métodos de
consolidação dos seus mandamentos no seio social.
A nova lei de migração rebenta com três grandes desafios a lidar
(Venezuelanos, Haitianos e Bolivianos). Os haitianos, historicamente, tiveram
presença quantitativa ínfima se comparada à dos demais estrangeiros em solo
pátrio26. Com o terremoto que avassalou a ilha em 2010, o povo, que em geral já vivia
25 Os termos "migrante" e lei de "migração" devem ser, em regra, utilizados ao se tratar desta lei, pois ela também estende direito aos brasileiros no exterior. Utilizar os termos "imigrante" e "lei de imigração" seria uma limitação à sua eficácia. 26 ARAÚJO, Adriano Alves de Aquino. Reve de Brezil: A inserção de um grupo de imigrantes haitianos em Santo André, São Paulo - Brasil. Santo André: Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais - UFABC, 2015.
em condições precárias27, passou a não ter outra solução que não a busca por abrigo
e oportunidades educacionais no além-mar28.
Diante da dificuldade de ingresso nos locais de tradicional migração (EUA,
França, Canadá), aliada à participação das forças brasileiras na MINUSTAH (Missão
das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), as vítimas do terremoto enxergaram
o Brasil como terra propícia para o início da reconstrução das suas vidas.
Adentrando o Brasil, laboraram no período da Copa do Mundo e Olimpíadas na
construção civil, em especial. Entretanto, muitos vivenciaram realidade distinta da
idealizada. Os originários da ilha em que ocorreu a maior revolta de escravos no
período colonial (ano de 1791) tornaram a ser submetidos a condições desumanas –
desta vez longe de casa.29 Os relatos de exploração cotidiana pelos próprios
brasileiros são reiterados, a exemplo dos contratos de prestação de serviço em que
um valor é prometido e outro pago30.
Em relação aos bolivianos, originários da nação de mais baixo Índice de
Desenvolvimento Humano da América do Sul, são estimulados mediante publicidade
nas próprias emissoras de rádio locais ao trabalho em São Paulo para empregadores
da Coreia do Sul, por exemplo31. No Brasil, as condições de saúde, educação,
27 O Haiti é o país de mais baixo IDH da América, conforme o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), ed. (24 de julho de 2014). Human Development Report 2014 (em inglês). Consultado em 14 de julho de 2017. 28 TÉLÉMAQUE, Jenny. 2012. Imigração haitiana na mídia brasileira: entre fatos e representações. Monografia para conclusão de Curso apresentado à Escola de Comunicação da UFRJ. Disponível em: <http://oestrangeiro.org/2012/08/02/haitianos-na-midia-brasileira-entre-fatos-e-representacoes/>. Acesso em 14/07/2017. 29 Em 2014, por exemplo, foram encontrados 19 casos de exploração do trabalho escravo e 2 de exploração infantil nas redondezas de São Paulo, na produção de carvão que abastece supermercados e churrascarias da capital pela Companhia Anglo American. São as palavras do Auditor Marcelo Gonçalves Campos, partícipe das operações de resgate: “Uma das casas parecia uma senzala da época da colônia, era absolutamente precária. No fundo, havia um espaço grande com fogões a lenha. A construção nem era de alvenaria.” 30 Laurie Jeanty, tesoureira da União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH) para o Repórter Brasil: Alguns brasileiros usam os haitianos, eles não têm direitos iguais aos dos outros empregados. Nem todo mundo é assim, mas alguns [empregadores] manipulam bem. Alguns tratam os haitianos como escravos. Eles não conseguem fazer nada sobre isso, como vão conseguir ajuda, se não sabem falar bem a língua portuguesa? Não tem ninguém para interagir, não tem ninguém para falar por eles.” Disponível em: < http://reporterbrasil.org.br/2016/01/alguns-brasileiros-tratam-os-haitianos-como-escravos-diz-lider-de-associacao-de-imigrantes/>. Acesso em 14/07/2017. 31 O “coiote” é responsável por atravessar os trabalhadores pela fronteira, com promessas de altos salários. Paga o transporte (e assim se inicia o endividamento) e assim se inicia um processo digno de asco. Chegando ao destino, a sua liberdade de ir e vir é logo cessada de maneira direta ou, mais comumente, indireta. No primeiro caso, impedem a locomoção mediante barreiras físicas, como caso de escravidão e aprisionamento. No segundo, o confinamento deriva do termo devido à situação irregular em que se encontra o migrante.
segurança e até mesmo alimentação lhes são esvaídas, a remuneração muito inferior
à prometida – até mesmo para os padrões nacionais – e são ainda submetidos a
jornadas extenuantes. Estes fatores cumulados ensejam o assolamento do projeto de
vida dessas pessoas, causando-lhes um dano existencial irreparável32.
A crise Venezuelana, por sua vez, foi marcada pelo baixo preço do barril de
petróleo, estatização da economia e prática de desmandos e desrespeitos aos direitos
humanos, em defesa de uma ditadura chavista. A proximidade cultural e
oportunidades de emprego trouxeram milhares de vítimas da nação vizinha, em prol
da tentativa de reconstrução das suas vidas33.
Vários pontos comuns são observados entre os migrantes submetidos a
situações indignas, independentemente do local de origem: variação nos padrões
(socioeconômicos, em especial) em sua terra natal; impossibilidade de permanência
diante da escassez de recursos; busca por melhores condições de vida; vítimas de
pessoas especializadas no crime, que cotidianamente praticam o tráfico e a
exploração; receio constante de deportação; em especial, ausência de proteção
institucional, derivada da má aplicação das normas.
Espera-se que, com a nova lei de migração, os procedimentos sejam
otimizados, o receio de deportação cesse e os órgãos de controle passem a laborar
com maio eficácia. Caso contrário, não passará de outro regulamento recheado de
cláusulas abertas, mas destituído de efetividade prática.
5. Conclusões
Com base nos dados acima explanados, compreende-se que a escassez de
recursos entra em direto conflito com a garantia de direitos, especialmente aqueles
inerentes à Segunda Dimensão. Para que o direito dos estrangeiros seja devidamente
tutelado, com o mínimo de prejuízo à sociedade anfitriã, alguns pontos devem ser
observados:
32 A pesquisadora Denise Pasello Valente Novais, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), realizou um mapeamento do trajeto dos bolivianos da sua terra de origem até o local da sujeição às condições degradantes. Estima que há entre 120 e 160 mil bolivianos em São Paulo, mas apenas uma parte deles em condições precárias. 33 Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/05/milhares-de-venezuelanos-deixam-o-pais-para-recomecar-no-brasil.html >. Acesso em 19/07/2017
O primeiro é a definição precisa de quem é refugiado e quem é migrante,
utilizando-se de presunção (admitida, por óbvio, a prova em contrário), estabelecida
pelo Ministério da Justiça, no caso do Brasil, e pela União Europeia, no caso do Velho
Continente, de acordo com a região de origem34. O método de concessão dos pedidos
de permanência seriam mantidos do mesmo modo, sendo concedida apenas uma
"chance a mais" aos que se originam de regiões conflituosas.
Fator fundamental à migração, e em especial o refúgio, é a crise humanitária.
Evitando a existência da crise (precavendo o dano) não há necessidade de cuidar de
milhões de pessoas, pois elas não necessitarão dos cuidados. Tal desiderato é
alcançável tanto pela atuação positiva quanto pela negativa das nações que
virtualmente seriam as receptoras dos próprios refugiados. O ato positivo consiste na
atuação efetiva na crise em terras alheias, com o objetivo de minimizar a situação
caótica estrangeira. Contudo, este é um âmbito extremamente delicado, e qualquer
passo em falso pode ocasionar uma crise muito maior. Daí a razão para primar pela
atuação negativa.
Outro ponto importante é que com a entrada do estrangeiro seja indicada a
sua profissão e escolaridade, em nível técnico e científico, para que haja a
possibilidade de prática da profissão na nação acolhedora pelos que estão
capacitados. Há assim otimização dos recursos e maximização da produtividade.
Dessa maneira, evita-se que haja uma massa de pessoas em condições
laborativas, mas trancadas em uma espécie de campo de concentração moderno35.
Isto porque os refugiados são abrigados em campos específicos, criados por
Organizações Não Governamentais, como a Médico Sem Fronteiras, ou mesmo por
governos locais36.
34 Faz-se importante ressaltar, neste ponto, que uma diferenciação pautada na etnia, cultura ou religião é manifestamente inconstitucional, e a presunção de refugiado deve servir apenas para ampliar o acesso dos mais necessitados ao mínimo existencial, não podendo ser utilizada, em hipótese alguma, como parâmetro para afastar dos originários de outras localidades a concessão do refúgio. 35 Afirmou o Papa Francisco, em cerimônia em memória dos mártires modernos do Cristianismo, em 22/04/2017: "Esses campos de refugiados... Muitos deles são campos de concentração, (...) abandonados aos povos generosos que os acolhem, que têm de passar esse peso para frente porque os acordos internacionais parecem ser mais importantes do que os Direitos Humanos". Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/papa-compara-centros-de-refugiados-da-europa-a-campos-de-concentracao.ghtml>. Acesso em 14/07/2017. 36 De lá não podem sair, a depender da nação europeia na qual se encontrem, e são fadados à ociosidade. Sem espaço, atividade lúdica, destituídos do seu passado e desprovidos de indicações acerca do futuro, são pouco a pouco condicionados à perda dos projetos educacionais e laborativos.
Um método eficaz de reassentamento seria com um cadastro internacional das
profissões dos migrantes e refugiados e análise das principais demandas entre as
possíveis nações anfitriãs. Trata-se de um simples método de otimização dos recursos
materiais (utilizados para a garantia da dignidade dos migrantes) e humanos
(garantindo assim melhores salários e condições de vida aos profissionais e suas
famílias, assim como suprimento das demandas interregionais)37.
Por óbvio, entretanto, deve ser considerada a opinião do estrangeiro e a real
capacidade de integração à nação anfitriã, à luz da razoabilidade. Uma decisão
amparada unicamente na oferta e demanda de vagas de emprego, sem analisar
fatores socioculturais e afetivos, bem como a liberdade do indivíduo, desrespeita a
liberdade laborativa consagrada no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais e na Constituição, em seu art. 5º, XIII38.
Migração sem integração é uma das raízes dos movimentos xenofóbicos e
defensores de práticas abjetas. O sucesso na integração dos migrantes culmina em
redução dessas violações aos Direitos Humanos39. Outro meio de otimização dos
recursos é a utilização dos green cards e incentivo para que o migrante, instalado na
nova nação, leve consigo o patrimônio que eventualmente possua no local de origem.
Como se pode observar, a documentação e inserção do migrante e refugiado
no país é apenas a primeira fase em um longo processo de integração, cujo êxito
depende de medidas socioeconômicas e contrapartidas por parte dos protegidos.
Assim sendo, não basta uma atuação governamental no sentido de garantir
documentos, mas também de proteger interesses individuais e coletivos. Em virtude
da sua heterogeneidade, o Brasil possui mais chances de sucesso nesta empreitada.
Sem atitudes concretas, contudo, permanecerá no plano do formalismo, ignorando a
37 A Argentina, por exemplo, possui maior demanda por técnicos, e trabalhadores de ofício. O Brasil acrescenta necessidade por assistentes de escritórios e mecânicos, que não estão em falta dentre os nossos vizinhos. O Canadá precisa de mais professores, a Colômbia de operadores de produção e a Guatemala da representantes de vendas. O Peru precisa de recepcionistas e os EUA de motoristas. 38 Ressalte-se que às medidas relacionadas à oferta de emprego propostas é vedada a coercitividade. Trata-se apenas de aliar duas demandas imensas de uma forma mais inteligente, mas jamais de obrigar alguém a exercer qualquer tipo de trabalho, ou impedir de maneira discriminatória.
39 A migração deve ocorrer, preferencialmente, de forma ordenada, de tal forma que os direitos de nenhum indivíduo sejam deixados de lado, e a sociedade tenha plena capacidade de utilização da migração em favor do seu próprio crescimento (nos termos da Lei 13.445/17, art. 3º, VII, bem como o art. 16, parágrafo único, da legislação anterior). Contudo, o direito dos refugiados é inegociável, e todos que assim são considerados devem obter pleno acesso e proteção.
maior parte do âmbito material, assim como ocorre com muitos direitos consagrados
na Constituição.
REFERÊNCIAS
OIM (Organização Internacional para as Migrações). Editora Organização Internacional para as Migrações. Glossário sobre Migração. Nº 22.
BONAVIDES, Paulo (2012). Ciência Política 19 ed. São Paulo: Malheiros.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Rev. E atual. São Paulo: Saraiva, 2011.
KREMER, Michael (1993). "Population Growth and Technological Change: One Million B.C. to 1990" no The Quarterly Journal of Economics 108(3): 681–716.
Encyclopædia Britannica. 8 (11ª edição). Cambridge University Press.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1998.
FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito. Trabalho Decente. Análise Jurídica da Exploração do Trabalho – Trabalho Forçado e outras Formas de Trabalho Indigno. Pp. 43-44. Editora LTR. São Paulo. 2004.
LOPES, Cristiane. M. Sbalqueiro. O direito a não discriminação dos estrangeiros. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, v. 37, p. 37-61, 2012.
DELGADO, Gabriela Neves. A CLT aos 70 anos: Rumo a um Direito do Trabalho Constitucionalizado
OLIVER, Christine. Corruption index 2010: the most corrupt countries in the world (em inglês). The Guardian. Consultado em 23 de maio de 2017;
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 116- 118.
HARENDT, Hannah. A Condição Humana. 1958. Livraria Cultura.
BORJAS, George J. GROGGER, Jeffrey. HANSON, Gordon H. COMMENT: ON ESTIMATING ELASTICITIES OF SUBSTITION. Harvard University. University of Chicago. University of California, San Diego. 2012.