paiva educação jesuítica no brasil colonial

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ORGANIZADORES: Eliane Marta Teixeira Lopes Luciano Mendes Faria Filho Cynthia Greive Veiga 500 ANas DE EDUCA\=AoNO BRASIL 3a edic;ao a Autentica Belo Horizonte 2003

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Page 1: PAIVA Educação Jesuítica No Brasil Colonial

ORGANIZADORES:

Eliane Marta Teixeira LopesLuciano Mendes Faria Filho

Cynthia Greive Veiga

500 ANas DE EDUCA\=AoNO BRASIL

3a edic;ao

aAutentica

Belo Horizonte2003

Page 2: PAIVA Educação Jesuítica No Brasil Colonial

EDUCA~Ao JEsufTICANO BRASILCOLONIALJOSE MARIA DE PAIVA

fl.s livros e 06 textoo sobre aeduca~ao jesuitica no Brasilcolonial contem, geralmente, informa-~5es sobre 0 currfculo ou sobre 0 de-senvolvimento dos colegios. Como asitua~aosocialda epoca nao eposta emquesmo, pode parecer ao leitor que seassemelha a nossa e lemos os fatos es-colares dos seculos coloniais a luz da

nossa experiencia. Ora, escola, escola-riza~ao, alfabetiza~ao tern urn sentidotipico em cada epoca, em cada contex-to social. 0 colegio e a universidade,nesse tempo, eram destinados a poucagente. As diferen~as sociais, determi-nantes do quadro organizacional, saomarcadas nao apenas pelo poder, mastambem pela explica~o que disso seda. Ha que se buscar na historia portu-guesa e no seu desdobramento em ter-ras brasilicas 0 lugar que a escolaocupou na organiza~ao social. Nesteensaio, assumo a escola como urn

dado da cultura portuguesa coloniale procuro le-Iaem seu contexto, na ten-tativa de entender a explica~ao. Bus-co a escola jesuitica no seu contextocolonial e tento entende-Ia como ins-

titui~ao, isto e, como forma de rela~5essOOais,e entende-Ia nos seus efeitos.

Desde que chegaram ao Brasil,os jesuitas estabeleceram escolas e co-me~aram a ensinar a ler, a escrever e a

contar e cantar. Nobrega,! em sua pri-meira carta do Brasil, 0 atesta: "0 Ir-

ma<:>Vicente Rijo ensina a doutrina aosmeninos cada dia e tambem tern esco-

la de ler e escrever". 0 colegio, contu-

do, era 0 grande objetivo, porque comele preparariam novos missionarios.

Apesar de, inicialmente, 0 colegio ter

sidopensadoparaosindios2 -"os quehao de estar no Colegio hao de ser fi-lhos de todo este gentio" -, ja em 1551se dizia:3 "este colegio (...) sera bornpara recolher os filhos dos gentios ecrismos para os ensinar e doutrinar".

o que representava a alfabetiza-~ao para os jesuitas a ponto de quere-rem, desde 0 inicio, alfabetizar os

indios, quando nem em Portugal 0povo era alfabetizado? Mais do que 0resultado dessa inten~ao, interessan-te e observar a mentalidade. As le-

tras deviam significar adesao plenaa cultura portuguesa. Quem fez asletras nessa sociedade? A quem per-tencem? Pertencem a corte, comoeixo social. Nao se trata, a meu ver,

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SOOanos de educarao no Brasil

de possibilitar 0 acesso ao livro, ao livro sagrado: nem estamosna Alemanha, nem a leitura da Biblia estava na linha do devo-

cionismo enhlo vigente. Trata-se de uma atitude cultural de pro-fundas raizes:pelas letrasse confirma a organiza<;aoda sociedade.Essa mesma organiza<;aovai determinar os graus de acesso asletras, a uns mais, a outros menos. A certa altura da catequesedos indios, os pr6prios jesuitas vao julga-las desnecessarias. E oscolegios, estes sobretudo, se voltam para os fillios dos princi-pais.4 A cultura hegemonica assim 0 dispunha.

o que as letras fazem estudar? 0 Ratio studiorum, queorganizava os estudos da Companhia, estabelecia em porme-nores 0 curriculo do colegio.5 A Gramaticamedia; a Gramati-ca superior; as Humanidades; a Retorica. Havia ainda aFilosofiae a Teologiapara quem se preparasse para 0 sacer-d6cio. A presen<;agreco-romana e incontestave1.6

Os jesuitas deviam estar convencidos de que isso eraimportante para os homens desta terra. Tambem os princi-pais da terra 0 deviam estar, senao nao mandariam seus fi-lhos.7A manuten<;aodo sistema cultural estava a exigi-lo. Essesfilhos seriam ou padres ou advogados, ocupariam cargos pu-blicos, possibilitariam a sociedade se reproduzir. 0 novo ce-nario, por sua vez, por mais diferente que fosse, nao levava asociedade portuguesa a ser estruturalmente diferente. Nempoderia. Ao contrario, 0 cenario e que deveria ser conforma-

do. Assim mesmo,. fica uma interroga<;ao: a imposi<;aoda cul-tura portuguesa aos naturais da terra e aos negros escravos,numa experiencia singular para os colonizadores, nao afeta-ria 0 significado mesmo dos gestos culturais portugueses? Naoestaria afetando sua pr6pria cultura? Melhor dizendo, a cul-tura brasileira que se forjava nao seria devedora do cemirio?

E importante assinalar que os portugueses coloniza-dores s6 tinham uma visao de sociedade, visao esta que serealizava na sua sociedade e, portanto, tendo-a como mode-10,agiam segundo ela em seu relacionamento com as demaisculturas. 0 unico comportamento possive!, no caso, era a im-posi<;ao. A sociedade portuguesatinha uma estrutura rigi-da} centrad a na hierarquia, fundada na religia09 . Hierarquiae religiao eram prindpios inadiaveis em qualquer situa<;ao.o servi90 de Deus e 0 servi90 d'EI-Rei eram os parametrosdas a<;oessociaislOe obrigavam a manuten<;ao das letras, comoeram entendidas a epoca.Por isso,nao ha do que se espantarcom 0 colegio jesuitico em terras brasilicas: baluarte erguido

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Educapo jesuftica no Brasil colonial- Jose Maria de Paiva

no campo da batalha cultural, cum-

pria com a missao de preservar a cul-tura portuguesa.

o cenario, no entanto, era gri-tantemente diferente do cenario origi-nal, a come<;ar pela distancia daterra-mae,mediada pelo imensomareignotum.llHavia osnativos,comtudoo que isso possa significar.Havia a £10-resta virgem, os bichos, 0 vazio. Haviaas distancias, a rarefa<;aode popula<;i:io,a falta de recursos de toda ordem. E,

nessa situa<;ao,a premencia de produ-zir riqueza. Eesse cenario que precisaser descrito para contracenar com acultura trazida de Portugal.

A primeira observa<;aoque meocorre a leitura dos documentos qui-nhentistas e seiscentistas e 0 estado de

guerra em que os portugueses viviam.Por precisarem das terras e por preci-sarem do bra<;oindigena, puseram-seem guerra contra os nativos. Sujeitadosou amigos, os nativos estavam a1iparatrabalhar como escravos. Ora, a popu-la<;aonativa era milhares de vezes maisnumerosa, estavam presentes a cadacanto, como que fechando 0 espa<;oaoportugues. Havia indio demais paratao poucos portugueses. Como eles seassentariam na terra e produziriamnela, comtanta gente inimigapor per-to? A vida cotidiana se fazia de ata-

que e defesa. Tinham de sair a campoe lutar contra os indios e sabiam queisso era por a vida em risco. E isso eraa toda hora. Havia que sobreviver. Erauma amea<;a permanente, fosse doponto de vista da seguran<;a,fosse doponto de vista cultural.

Os brasileiros12 se ressentiam da

mudan<;a geral que a nova situa<;ao

lhes causava. A primeira, ao menospara portugueses e indios, dizia res-peito a posse tranqiiila da terra. Paraos primeiros isso significava expulsaodos indios e conseqiiente escraviza<;ao.Criar urn povoado era, antes de maisnada, construir uma fortifica<;ao.

[Falando da Parafba:] assentaramfazer-se urn forte primeiro, peraque a sua sombra pudessem po-voar.

o governador [Duarte da Costa,1553],tanto que chegou, trabalhoumuito por fortificar e defender estanova cidade da Bahia,contra os bar-baros gentios.13

A leitura de Frei Vicente do

Salvador nos permite imaginar a si-tua<;ao de guerra no primeiro secu-10 de Brasil:

Baepeba, que era 0 rei e principe[sic] de todo este gentio, (...) tinhajuntas da sua mais duas cercas, nasquais todas haveria 20.000 almas(...) mas os nossos os fizeram reti-rar, matando-lhes 300. (...) entran-do os nossos apos eles, lhesmataram 1.600e cativaram 4.000.14

Repete-semuitas vezes este re-frao: "mataram mais de quinhentos;foram mortos mais de seiscentos;mataram trezentos".

Mas as terras do cabo [falando daBahia], que os gentios inimigos ti-nham ocupadas, eram as mais fer-teis e melhores [e por is to ]determinou de Ihas fazer despe-jar, por guerra (...)Pelas quais seiscompanhias iram repartidos vin-te mil negros, os mais deles dogentio da mata do pau-de-brasil,contrarios aos do cabo. (...) E comisto foram fazendo seus canaviais

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500 anos de educarao no Brasil

e engenhos de ac;ucar com que enriqueceram muito, por aterra ser fertilissima.15

A uida do co/cgio pareciaCOl1ti/1l1ar, illipauida, C01110se

/1no estiuesse e/1uo/uida pe/oIIIeS1ll0 alii bie/1 te c%/1 ia /.

o nt1mero de indios devia ser assustador. Mas havia ne-

cessidadede terra ede sossego.Para tanto, osportugueses, alemde seempenharem, elespr6prios, ern guerras, usavarn da mali-cia de indispor na<;6escontra na<;6es.0 mesmo Frei Vicente doSalvador conta de urn cerco que os Tamoios fizerarn aosportu-gueses:"durou estamolestia dois anos, sem que for<;aalgurnapudesse reprirnir 0 atrevimento dos barbaros insolentes". Se,acossadospela novidade da coloniza<;ao,os indios nao davarnsossego,os portugueses, por sua vez, faziam par corn eles,obri-gando-os a servi-Ios. A hist6ria de nossa coloniza<;aoesta fartade exemplos, mostrando como a rela<;aocotidiana, para portu-gueses, indios e africanos, se marcava pelo clima de defesa/ataque, condi<;aode sobrevivencia.

Ataque edefesacaracterizarn0 estadodeviolencia ern quesevivia. A vida parecia urn bem de pouco valor, tao ern jogo eraposta. Ir a guerra implicava risco de vida. Mais ainda, ensinavaaos portugueses 0 desvalor da vida. Matar trezentos,quinhen-tos, seiscentos ou mil eseiscentos indios pouco importava. 0 queimportava era 0 sossego para fazer suas fazendas. Aos indios,parece, isso nao afetava como aos portugueses: fazia parte desua cultura fazer guerra aos contrarios. A guerra nao objetivavaterra, produ<;ao, riqueza. Os portugueses aprenderarn, dessa for-ma, 0 pouco caso pela vida do outro, inimigo ou subaltemo, ernface da dificuldade de implanta<;ao de seu projeto de coloniza-<;ao16que justificava qualquer atitude contraria. !sso foi aconte-

cendo na conquista da terra e no estabelecirnento de vilas, nolitoral e no interior.No litoral havia ainda a guerra contra os

outros invasores: franceses, ingleses, ho-landeses. No interior, as bandeiras de-

monstram, de forma patente, 0 poderdo chefe quanto avida dos que lhe es-tavarn sujeitos.Tudo ern nome do pro-jeto de coloniza<;ao que justificava

qualquer atitude contraria aos seus ha-bitos e valores. Evidentemente, deviam estar "assegurados da

consciencia", na expressao de Frei Vicente, melhor ainda se" cornpareceres de te610gos e canonistas".

A guerra - 0 estado de guerra -, que nao era expe-

riencia cotidiana da sociedade portuguesa ern Portugal, ain-da que dela soubesse pelas noticias das colonias, passou a

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Educarao jesuitica no BrasH colonial- Jose Maria de Paiva

ser, com todas as suas conseqi.iI?ncias,ingrediente da vida no Brasil.17as je-suitas tambem a achavam natural nes-

sas condi<;6es, acompanhando asexpedi<;6es,ainda que para tentar, comboaspalavras, trazer os indios para 0servi<;odos portugueses.18 Pelos prin-cipais e, agora, pelos pr6prios jesuitas,a guerra penetrava 0 colegio jesuitico.Mas nao abalava 0 curriculo nem a

disciplina. A vida do colegio pareciacontinuar, impavida, como se nao esti-vesse envolvida pelo mesmo am-biente colonial. Todos falando latim,

assuntando falas piedosas, recitandopoesias e textos classicos, afiando-sena arte da disputa como urn cavaleiromedieval na arte da espada, reunin-do-se em academias, devotando-se

com empenho avirtudeeapraticadosatos piedosos. A realidade, ali, pare-cia estar suspensa. 0 mundo ali den-tro funcionava com perfei<;ao, naohavendo falhas na distribui<;ao das

fun<;6es.Urn mundo perfeito. Uma so-ciedade perfeita.

A educa<;aoe 0 ensino se pau-tavam por principios que, ipsis litte-ris, nao prevaleciam extra muros. Aoleitor de hoje pareceria que, extranlll-ros, teria de se fazer urn esfor<;oexe-getico monumental para a praticainteressada parecer adequada aosprincipios. Eles, no entanto, viviam anaturalidade dos comportamentos edas justifica<;6es. Intra ou extra mu-ros, a linguagem e a interpreta<;aoeram as mesmas. Nao havia percep-<;aode incoerencia entre discurso l'

pratica. Era natural que os interessesde vida, determinassem a pratica e quea explica<;ao the fosse consentanea.

Implantava-se, assim, culturalmente,o formalismo pedag6gico.

Extra muros a vida era feita de

pecados.

Nesta capitania (Pernambuco) sevivia muito seguramente nos pe-cados de todo genero, e tinham 0pecar por lei e costume; os mais ouquase todos nao comungavamnunca e a absolvi<;aosacramentala recebiam perseverando em seuspecados. (00.)E posto que por todasas outras capitanias houvesse osmesmos pecados (00.)19

Os pecados mais freqiienteseram os da carne, pela abundancia deprazer a vista, num contexte de lutase agruras20, e os da escraviza<;ao deindios pela necessidade de produ<;aode sobrevivencia e de exporta<;ao.Aqueles pecados, 0 jesuita mesmo

lmicio de Loyola foi 0ftmdador da

Ordern dos Jesllftas, que tern

grande devoriio pela Virgern Maria.

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SOOanos de educafao no Brasil

percebia a situa<;ao:"mulheres de muito born parecer e nuas elimpas, para serem desejadas, e se prezam de os homens lliesfalarem, elas comumente os buscam sem nenhuma vergonha edisto se gabam sem ter nenhum segredo".21au, como diria Fer-nao Cardim,22"mulheres nuas (coisa para nos mui nova)". An-chieta23tambem confirma: IIaqui, onde as mullieres andam nuase nao sabem se negar a ninguem, mas ate elas mesmas cometeme importunam os homens, jogando-se com eles nas redes porquetern por honra dormir com os cristaos".

a que chamei de formalismo pedagogico - resultadodo contraste entre prcHica e prindpios - nao deve ser atribui-do ao estilo jesuitico: era validado pela aprova<;aosocial; cor-respondia a interpreta<;ao que a sociedade fazia de seusproprios comportamentos. A sociedade portuguesa, aqui as-sentada, assim pensava, assim agia. Para alem de pedagogi-co, tratava-se de urn formalismo cultural. Sao constantes os

testemunhos desse proceder e podemos acompanha-Ios des-de a chegada de Nobrega. as colonizados, sempre que hou-vesse pressao social, buscavam apoio em pareceres de letradose canonistas. A presen<;ados padres jesuitas e do bispo justifi-cava as decis6es tomadas em consellio e, na ausencia destes,

prevalecia como valida a opiniao dos capitaes, de terra ou deguerra, lug ares-tenentes de El-Rei. As melhores express6esdessa situa<;aome parecem ser os argumentos a favor da guer-ra aos indios e de sua escraviza<;ao.Ai, as filigranas das distin-<;6esescolasticas prim am sobre qualquer evidencia de justi<;a.

as que mataram a gente da nau do Bispo se podem logo casti-gar e sujeitar e todos os que estao apregoados par inimigosdos cristaos e os que querem quebrantar as pazes e os que ternos escravos dos cristaos e nao os querem dar e todos os maisque nao quiserem sofrer 0 jugo justo que lhes derem e por issose alevantaremcontra os cristaos.24 .

Em defesa dos [indios] convertidos, [0 principe] faz guerra aosseus contrarios e os submete. A outros, os submete pelo ultra-je ao Deus verdadeiro ao ofender a lei natural: comendo camehumana, por exemplo; nao andando vestidos; tendo mais deuma mulher. A outros, os submete a titulo de compensa<;ao

pelos ingentes gastos com a empresa evangelizadora-coloni-zadora. A outros, por outros tituJoS.25

A literatura sobre a justi<;a da escravidao negra naoe menos escolastica. as proprios jesuitas, acompanhandoas necessidades da epoca, defendiam a escravidao negra.

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Educaryaojesuftica no Brasil colonial- Jose Maria de Paiva

Cito apenas urn texto que permite aintui<;aoda forma de se pensar sobrea questao nos seculos coloniais.

Nos mesmos,que vivemosaqui (An-gola) jeifaz quarenta anos e temosentre nos padres muito doutos,nunca consideramos este tnifico

como ilicito. Os padres do Brasiltambem nao, e sempre houve, na-quela provincia, padres eminentespelo seu saber. Assim tanto noscomo os padres do Brasil compra-mos aqueles escravos sem escrupu-los (00.)Na America, todo escrupuloe fora de proposito: conforme ensi-na Sanchez, pode-se comprar aosque possuem de boa fe. Everdadeque, quando urn negro e interroga-do, ele sempre pretende que foicap-turado por meios ilegitimos. Maspor esta resposta ele quer obter sualiberdade: por isso nunca se devefazer este tipo de perguntas aos ne-gros. Everdade tambem que, entreos escravos que se vendem em An-gola nas feiras, heios que nao saolegitimos, sejaporque foram rouba-dos a forc;a,sejaporque seus senho-res lhes tenham imposto penasinjustas. Mas estes nao sao nume-rosos e e impossivel procurar estespoucos escravos ilegitimos entre osdez ou doze mil que partem cadaano do porto de Luanda. Nao pare-ce urn servic;oa Deus perder tantasalmas por causa de alguns casos deescravos ilegitimos que nao podemser identificados.2h

Como se aquietava a cons-ciencia, agindo 0 homem diversamen-te da letra dos principios professados?A cultura portuguesa, baseada nacren<;a de urn mundo teocentrico e,por isso mesmo, acabado, impunhaa corre<;ao individual, mesmo que a

maioria incorresse em desvios. Nao

havia lugar para se pensar uma trans-forma<;ao estrutural da sociedade.Nesse contexto, principios, de urnlado, e praticas divergentes, de ou-tro, podiam conviver numa paralelainfinita. 0 formalismo decorria dos

pr6prios principios da cultura, 0 co-legio sendo apenas urn instrumentomais refinado.27 A cultura reinante,

expressao da visao de mundo que 0orbis christianus, 0 cristianismo, en-cerrava, levava os membros dessa 50-ciedade a se dividirem entre a a<;ao,que atendia a seus interesses, e a ex-plica<;aodo funcionamento do mun-do verdadeiro, ideal a ser buscado.

Em conseqiiencia, a justifica<;ao deurn comportamento fundada nessaexplica<;aobastaria para garantir suavalida de social e, portanto, sua ma-nuten<;ao. Dai a importancia dos le-trados e canonistas: eles jogavam comos argumentos e recompunham aa<;aoem term os de validade, segun-do os principios. Dai, indiscutivel-mente, a importancia do colegio.

o colegio plasmava 0 estudan-te para desempenhar, no futuro, 0 pa-pel de vigilante cultural, de forma quea pratica, mesmo desviante, pudesseser recuperada. 0 colegio era a ade-sac a cultura portuguesa. Lendo a gra-matica do colegio, entenderemos agramatica da cultura. Sublinho aqui aslinhas-mestras do Ratio studiorum,

c6digo pedag6gico dos jesuitas.28 Adestina<;ao do homem e de todos osseus atos para Deus, compreensaopr6pria de uma sociedade teocen-trica, funda a visao pedag6gica. Areligiosidade, pois, da forma a essesatos. Em outras palavras, os atos sac

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500 anos de educafao no Brasil

Niio cra s6 a rcligiiioquc crn vivida Cill

fOrlllalidadcs: toda a vidasocial til1!/{/ cssa IlUlrcn.

compreendidos como fun'1ao de urn mundo religioso e ex-press os em lingua gem religiosa. 0 principio estrutural e aautoridade hierarquizada - Deus como principio e fun - doque decorrem a centraliza'1ao,a tmiformidade e a invariancia. Adisciplina se torna, ai, instrumento capital: disciplina de costu-mes, disciplina acadfunica,disciplina ascetica.A orienta'1aodadapara a Filosofia resume bem a concep'1ao de mundo: IIdesde 0inicio da Logica se exercitem os alunos, de modo que de nadase envergonhem tanto como de se apartar do rigor da forma; ecoisa alguma deles exija 0 professor com maior severidade doque a observancia das leis e ordem da argumenta'1ao". Epreci-so treinar as pessoas a agir de acordo com 0 pIano divino. 0proposto pela pedagogia jesuitica era a pratica das virtudes, 0amor das virtudes solidas. No entanto, 0 caminho para se che-gar ai, lavrado no devocionismo barroco, era a penitencia e afuga. Fuga dos maus costumes, dos vicios, dos maus livros, dasmas companhias, dos espetaculos e teatros, de juramentos, in-sultos, injUrias,detra'1Oes,mentiras, jogos proibidos, lugares per-niciosos ou interditos. Em uma palavra, fuga do pecado: este

transgride a ordem e a vigilancia da disci-plina. 0 pecado nega, na pratica, a ordemestabelecida, a Unica ordem, fora da qualnao ha salva'1ao.Nem se imaginava, a epo-ca, que pudesse haver outras concep'1oesde mundo. 0 pecado se torna, destarte, 0

principio negativo orientador da pedagogia, avaliador dos cos-tumes, em contraposi'1ao a qualquer principio normativo posi-tivO.290 formalismo pedagogico se mostra, assim, tambem elenegativo. Educa-se para nao se fazer (isto ou aquilo).30Querdizer, a natureza do homem e rebelde no exercicio de suas fun-

<;oes,nao atendendo ao estabelecido por Deus. Mais do quecorre'1ao, 0 formalismo pedagogico implica ambigilidade: hanecessidade de se preservar a forma - que e mais do que apa-rencia - num concreto que esta a subverter a ordem. Essa pre-serva'1aose da pela elimina'1aodo carater contrastante: por meioda corre'1ao.A subversao da ordem e concedida, ainda que semantendo a maior.A corre'1aopadece, pois, in radice,do cara-ter formal. Bastaler as ConfissoesdaBahia,por exemplo, parase imaginar a ambigilidade em que viviam as pessoas nessaepoca: confessavam-se por atos em nada pecaminosos, mas quecontrastavam com 0 rigor da forma. Cito 0 caso do Dr. Ambro-sio Peixoto de Carvalho, letrado, do Desembargo de Sua Ma-jestade e provedor-mor dos defuntos e ausentes, que afirmou:

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Educafao jesuftica no Brasil colonial-Jose Maria de Paiva

"ainda que Sao Joao Evangelista lhedissesse 0 contnirio do que se contin-ha no dito (seu) caderno, nao lho cre-

ria (...) e entao sentiu ele que disseramal nelas sem considerar 0 que dizia,e por isso pede perdao".31 Ha que seobservar a atitude do confessante e a

normalidade da confissao junto a co-munidade. Uma e outra, coerentes

com 0 formalismo pedagogico, com 0formalismo cultural.

Catarina Fernandes confes-

sou que:

(...) tinha comido uma talada deanamis antes de ir comungar e en-tao teve grande arrependimento ese tomou a confessar a urn padreda Companhia, 0 quallhe deu empenitencia que trouxesse urn ciUcioquinze dias e rezasse cinco vezes 0rosario e outras tantas a coroa de

Nossa Senhora e jejuasse tres saba-dos a pao e agua. 32

Manuel Faleiro, homem domar,

(...) havera cinco anos pouco maisou menos (...) estando em sua casa,com c6lera e paixao de nao ter quedar de comer a seus filhos que lhepediam de comer, disse que se davaaos diabos (...) e das ditas culpas dis-se que esta muito arrependido (...) Efoi logo admoestado pelo senhor vi-sitador com muita caridade (...) e queva se confessar.33

Nao era so a religiao que eravivida em formalidades: toda a vida

social tinha essa marca. 0 dialogo emterceira pessoa expressa, com relevo,esse formalismo cultural.34

o colegio propunha 0 modelodo comportar-se, tanto no foro inter-no quanto no externo: justificava 0

CATECISMOBRASILICO

C})a DOlarmaChrtjiaa,Com 0 Ccrcmqnial dos Sacr:tmcntos,&

n'lal~~c1os Parochiacs.COMPOSTO

Por Padres Doutos da Companhia de.I E 5 U 5,

Apt1lif~AdD .($ dAdD" 1H:.

PdoPadrcANTONIO DE ARAUIOda mdl1la Companhia.

£m~"Jlldo mj/ Iffi!.14"dA imprtffA;

PrloP.BERTHOLAM£U DELEAMda mefmaComp1\nhia.

L 1.580 AN.Officin..de MIGUEL DESLAN DES

M. DC. L X X X V 1.

Com lorltt]t11[,cc"fa; nraf("ritt)

Frolltispicio da edit;iio de 1686do Catecismo Brasilico, do

Pe. AntOnio de Aralljo.

modelo e ensinava a interpreta<;ao.Do colegio saiam os letrados, que sedesincumbiriam da fun<;ao de vigi-lantes da cultura, fun<;ao com efeitode todos os que tinham subalternos:a concep<;ao de sociedade e de suaorganiza<;ao era, toda ela, de caraterhierarquico. VigiHinciapara que a or-dem fosse preservada. Tratava-se deuma fun<;aonobre. Enesse contexteque se deve compreender a Inquisi-<;ao:vigiHincia maxima pela purezada ordem. A quem se obstinasse emafrontar 0 codigo seriam aplicadospenas e castigos.

Qual era, no entanto, no cotidia-

no, essa realidade que precisava ser

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SOOanos de educafao no Brasil

filtrada para ser validada? 0 que havia de novo no contexto bra-sileiro era 0 indio e 0 negro, urn e outro em sua respectiva totali-dade: mao-de-obra, mas tambem portadores de cultura,portadores de historia. Diante desse mundo novo 0 portugues,para sobreviver, se viu forc;ado a se adaptar, isto e, precisou,muitas vezes e em muitos aspectos, deixar seus habitos e fre-qiientar habitos alheios. 0 freqiientar lhe fez sentir que era pos-sivel urna outra forma - ate mesmo comer carne hurnana -sem que.perdesse sua propria identidade.

Em toda a costa se tern geralmente por grandes e pequenosque e grande servic;ode Nosso Senhor fazer aos gentios quese comam e se travern uns com os outros (...) e isso aprovamcapitaes e prelados, eclesiasticos e seculares (...) e d'aqui vemque, nas guerras passadas que se tiveram com 0 gentio, sem-pre dao carne humana a comer nao somente a outros indios,mas a seus pr6prios escravos. Louvam e aprovam ao gentioo comerem-se uns a outros, e ja se achou cristao a mastigarcarne humana, para darem com isso born exemplo ao gen-tio. Outros matam em terreiro a maneira dos indios, toman-do nomes, e nao ~omente 0 fazem horn ens baixos emamalucos, mas 0 mesmo capitao as vezes! (...) Desta mes-ma raiz nasce darem-se pouco os cristaos pela salvac;ao dosescravos que tern do gentio, deixando-os viver em sua lei, semdoutrina nem ensino, em muitos pecados 35

Como se dava 0 dia-a-dia do portugues na colonia, dia-a-dia condicionado pelo cenario vivido, nessa luta ingente pelasobrevivencia? Como batiam-Ihe na alma 0 cerco que 0 indiolhe fazia, 0 perigo dos corsarios invasores, as dificuldades daimplantac;ao da agricultura, 0 problema da lingua, a presenc;ado negro, 0 isolamento nessa selva sem fim, as dissens6es in-temas, a ausencia de Portugal? Que soluc;6es inventava paraa escassez de recursos, para as situac;6es de conflito moral,para 0 cansac;o das lutas? Como convivia 0 velho e 0 novo?Gilberto Freyre, ainda em 1945, escreveu:

Ainda e trabalho a fazer-se 0 que diz respeito a colheita deinformac;6es completas sobre a vida e a atividade da gente dopovo e a influencia que tern exercido sobre a economia e acultura humana.36

A resposta que 0 portugues se dava era imediata. Ha-via que se conjugar a tradic;ao nas suas express6es religiosas(0 devocionismo expresso no culto aos santos, nas reliquias;as confrarias; 0 revestimento do cotidiano individual e social

com as praticas religiosas; 0 individualismo salvacionista; as

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Educafao jesuitica no Brasil colonial- Jose Maria de Paiva

doa~oespias;a reservade missaspostmortem);e nas suas expressoes orga-nizacionais (confrarias, rela~oes Igre-ja/governo/povo, institui~oes) coma nova situa~ao que gerava instabiIi-dade, 0 que repercutia em todas asesferas da vida. Nao havia tempopara se fazerem consultas aos letra-dos quando 0 inimigo estava a porta.Essas consultas so a distancia po-diam ser feitas: os jesuitas as faziamem rela~ao aos seus superiores e teo-logos; eram os governadores em re-la~ao ao rei e aos juristas. Enquantoisso, os fatos iam acontecendo e fir-mando urn modus vivendi e uma

conseqiiente justifica~ao que, a cadavez, mais se distanciava da primeirainterpreta~ao, fundando a nova cul-tura sobre os aIicerces do formaIismo.

Nesse meio tempo, as conciIia~oes:

(...) determinou 0 padre ver algu-mas fazendas e engenhos dosportugueses, visitando os senho-res delas (...) e era necessario con-ciliar os animos de alguns com aCompanhia, por nao estaremmuito benevolos.37

E os senhores sao tais que unslhes mandam (aos escravos) quenao venham a doutrina; e outroslhes dizem que nao ha senao vi-ver a vontade neste mundo, queno outro a alma nao sente; outroslhes dizem que nos nao sabemoso que lhes dizemos, que eles saoos verdadeiros que lhes falam averdade.38

Os jesuitas, por serem os repre-sentantes dos valores da cultura, sac

perseguidos pelos fazendeiros quandoos interesses sac perturbados. A prati-ca estciinduzindo anovos argumentos,

a novos valores. 0 proprio governa-dor-geral tom a partido dos fazendei-ros na questao da escraviza~ao deindios:39"e de parecer que nao se to-que nisso pelo prejuizo que vira amuitos homens (...) e de outra ma-neira, como isto toque a quase todos,sera grande mal para a terra".

A utiliza~ao dos indios, emtodo tipo de atividade, era 0 pontode discordia entre jesuitas e fazendei-ros e, ao mesmo tempo, 0 lugar ondeestes aprendiam novas formas cultu-rais. Nobrega testemunha:

E toda intenc;aoque trazem e de osenganar, de os roubar (...) de sortequequantomaismalesfazemvidentobsequiumsepraestareDeo(...)e jatudo 0 que se lhes diz (aos indios)acreditam ser manha ou engano etomam a ma parte. Esses e outrosgrandes males fizeram os cristaoscom 0 mau exemplo de vida e apouca verdade nas palavras e no-vas crueldades e abominac;6es nasobras. Os gentios desejam muito 0comercio dos cristaos pela mercan-cia que fazem entre si do ferro, edisto nascem da parte destes tantascoisasilicitase exorbitantesque nun-ca as poderei escrever.40

Para os jesuitas, os portuguesesse comportavam mal, fora dos pa-droes. "0 mau exemplo de vida, apouca verdade nas palavras, as cruel-dades e as abomina~oes nas obras"sao, no entanto, descri~ao de urn com-portamento que vem posto desde 0inicio da coloniza~ao, persistindo ateo estabelecimento definitivo. Por isso,

litem a consciencia pesada", como sedira adiante nesse mesmo texto. Na

verdade, esta se formando urna nova

consciencia, plasmada na urgenda da

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500 anos de educapio no Brasil

Ptigina de rosto doVocabuIario na linguabrasflica, um dos vastos

reposit6rios daterminologia tupi do

secul0 XVII. De 1621(autor desconhecido).

coloniza~ao possivel a epoca. Ja IInaocuram de estar excomun-gados!1IE nem mesmo 0 clero sustenta 0 modelo jesuftico:

Os cIerigos desta terra tem mais offcio de demanios que decIerigos: porque, alem de seu mau exemplo e costumes, que-rem contrariar a doutrina de Cristo, e dizem publicamente aoshomens que lhes e licito estar em pecado com suas negras,pois que SaDsuas escravas; e que podem ter os salteados, poisque SaDcaes, e outras coisas semelhantes, por escusar seuspecados e abomina~6es, de maneira que nenhum demaniotemo agora que nos persiga, senao estes.41

Isso se faz em publico, sem maiores cautelas. Quer di-zer, a publicizafiiode urn comportamento significa que 0 gru-po social de que se faz parte compartilha da mesma forma depensar e agir. Os letrados e que tern 0 offcio de resguardar apureza da cultura e nesse momenta seu trabalho redobra: ela-boram sofisticados argumentos de forma que nao se ofend a nema cultura nem a nova pratica. A afirma~ao de urn modelo so-cial, que paulatinamente vai se construindo, garantira a manu-ten~ao dessa pratica nova e de seus argumentos. Seria preciso,pois, acompanhar 0 desenvolvimento desse modelo, desde asprimeiras capitanias, tao distantes urnas das outras, passandopela conquista de terras e de condi~Oespara produzir, ate 0estcigioglorioso dos engenhos da Bahia e de Pernambuco.

Conforme se distanciam os portugueses da cidadeda Bahia, a concentra~ao ao red or do capitao se faz maior,

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Educafffo jesuftica no Brasil colonial- Jose Maria de Paiva

cabendo-lheadecisaoinquestionaveldoque se deve fazer, desde a estrategia deataque e defesa ate 0 julgamento docomportamento no grupo. A medidaque 0 assentamento se vai fazendo commaior tranqiillidade ese plantam os en-genhos, razao maior da colonizac;ao,acentralizac;aosocial se realiza, produ-zindo uma sociedade profundamentehierarquizada e de dimensao regional.Antoni! testemunha do momento jeidaconsolidac;ao da empresa colonial edescreve a sociedade:

Dos senhores depend em os la-vradores que tern partidos arren-dados em terras do rnesrno

engenho (...)Servern ao senhor doengenho, em vcirios oficios, alerndos escravos de enxada e foice quetern nas fazendas e na rnoenda, efora os rnulatos e rnulatas, negrose negras de casa,ou ocupados emoutras partes, barqueiros, canoei-ros, calafates, carapinas, carreiros,oleiros, vaqueiros, pastores e pes-cadores. Tern rnais, cada senhordestes, necessariarnente, urn rnes-tre de ac;ucar, urn banqueiro e urncontrabanqueiro, urn purgador,urn caixeiro no engenho e outrona cidade, feitores nos partidos eroc;as,urn feitor-rnor do engenho,e para 0 espiritual urn sacerdoteseu capelao (...)

Os senhores de engenho - e

ser senhor de engenho e titulo aque muitos aspiram, porque trazconsigo 0 ser servido, obedecido erespeitado de muitos -parece queem todos quer(em) dependencia deservos.Osmenoresse hajamcomsu-bordinac;ao ao maior, e todos ao Be-nhor a quem servem.42

As relac;oes sociais estavamsendo novamente modeladas e uma

nova constelac;aode valores, heibitos,comportamentos, instituic;6es vao seimpondo, claramente calcados no pro-cesso de colonizac;ao exploradora. 0modelo colonial, nesses termos, vaiinvadindo e conformando todas asareas da vida social, aumentando, as-sim, cada vez mais, a distancia entreas letras e a vida vivida. 0 eixo social

vai deixando de ser aCorte, ainda quereine 0 rei, e as letras vao assumindonova semantica. 0 eixo se toma a clas-

se dos senhores de engenhos e dos ca-pitaes de terra, isto e, aqueles, seja noNordeste, seja no Centro, que produ-zem para a exportac;ao.43As letras setomam mercantis, tambem elas, mes-

mo guardando a roupagem que, porantiga, ainda faz parecer que tudocontinua como d'antes. Nao se trata

de interesse mercantil simplesmente,porquanto tambem 0 teve a Casa deAvis desde que se pos. Trata-se, comefeito, de uma substituic;ao,em termosreais, em termos de valorizac;ao so-cial, da ideologia do orbis christianuspela ideologia da mercadoria. As apa-rencias vao significando uma realida-de diferente da que, antes, indicavam.o formalismo cultural se agudiza, pa-lavras e gestos antigos se tomando,cada vez mais, c6digos nominais, naomais portadores da realidade enun-ciada. A medida que a realidade so-cial vai mudando estruturalmente, 0

significado das formas tambem 0 vai,ainda que a aparencia permanec;a.

Esse percurso e longo. Sao doisseculos para se afirmar urn novotipo, agora, brasileiro. E complexa atrama de influencias na construc;ao

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500 anos de educafao no Brasil

da cultura e da sociedade brasileira. Ebem verdade que as1951eguas de Capistrano44 nao se estenderam muito alem daBahia, de Pernambuco, do Rio de Janeiro e de Sao Paulo. As-sim mesmo, os regionalism os se imp oem, contribuindo, tam-hem eles, para a configurac;ao do todo.

Convem, no entanto, ressaltar ainda 0 papel do mer-cantilismo na transformac;ao da cultura, no caso, a brasilei-

ra. Vma nova visao de homem estava se impondo, nao maisfixa - 0 modelo pronto -, mas processual: cada gerac;aoconstruindo essa nova forma de ser. Antes, bastava copiar, ain-da que corn arte.45Agora, tern de se criar. Antes, havia coorde-nadas que davam seguranc;a. Agora, ha que se deterrninar ever ate onde da. Antes, havia urn sentido de comunidade so-

bredeterminando 0 individuo. Agora, a monada viaja sozi-nha, numa competic;aoque nao e aprimoramento pessoal mas,se possivel, alijamento do outro. Antes, 0 Estado parecia ab-soluto, sem condic;oes.Agora, tern sentido na medida em queatende aos interesses de uma nova c1asseque com ele nao seidentificava. Foi urn momenta de instabilidade no Ocidente,ern todos os recantos da vida social: economia, politica, reli-giao, moral, direito, cultura. Momento de drama. Momentode contradic;oes.

A centralizac;aodo poder, 0 uso da forc;ae do castigo, aescravidao, a distinc;aode classes, a inferioridade do povo per-maneciam como ingredientes culturais fortes. Os senhores sub-vertiarn a ordem, fazendo-se eles mesmos 0 novo eixo social.

Questionavam, pela pratica, os valores e as forrnas. A desrnistifi-cac;aodas verdades absolutas ja se fizera sentir desde as grandesdescobertas, desdobrando-se mais intensarnente com 0 desen-

volvimento do mercantilismo. No Brasildos engenhos, das imen-sidoes sem fim, do isolarnento das comunidades, a afirmac;aodessas novas sensibilidades se punha em ato, numa assimetriasocial, mas com consequencias universais. A sociedade setransformava culturalmente, a estrutura permanecendo ri-gida e hierarquica. A ordem continuava a ser urn valor in-substituivel. 0 absoluto continuava a hipnotizar as mentes.

o colonizador portugues experimentava, no seu dia-a-dia, a necessidade de desobedecer as normas verdadeiras,a

casagrandese fazendo norma. Essa experiencia cotidiana pau-tava a consciencia e conformava 0 agir das pessoas. E 0 cole-gio jesuitico continuava formando letrados.

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Educapo jesuitica no Brasil colonial- Jose Maria de Paiva

NOTAS

I N6BREGA, Manuel da. Cartasdo Brasil,1549-1560.BeloHorizonte: Itatiaia; Sao Paulo:Edusp, 1988, Cartas Jesuiticas, p. 72.

2 LEITE, Serafim. Hist6ria da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugalia; Rio deJaneiro: Civilizac;ao Brasileira, 1938, t. I, p. 576.

3Carta do Pe. Joao de Azpilcueta Navarro, da cidade de Salvador no ana de 1551. CartasAvulsas, 1550-1568/ Azpilcueta Navarro et al. Belo Horizonte: Itatiaia; Sao Paulo: Edusp,1988, p. 98.

4A expressao devia ser comum a epoca. Foi usada por Femao Cardim falando dos estudan-tes de Humanidades. CARDIM, Femao. Informafiio da missiio do Fe. Christoviio Gouveaas partes do Brasil - ana de 83. In Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte:Itatiaia; Sao Paulo: Edusp, 1980. Intr. de Rodolfo Garcia, p. 163.

5 Cito os autores indicados: na Gramatica media: Cicero, Ovidio, 0 Catecismo Grego, asTabuas de Cebes; na Gramaticasuperior:Cicero, Ovidio, Catulo, Tibulo, Propercio, Virgilio('Eclogas), S. Joao Crisostomo, Esopo, Agapetos; em Humanidades: Cicero, Salustio, Cesar,Livio, Curtius, Virgilio ('Eclogas e Eneida), Horacio; na Retorica: Cicero, Aristoteles,Demostenes, Platao, Tucidides, Homero, Hesiodo, Pindaro, S. Gregorio Nazianzeno, S.Basilio e S. Joao Crisostomo.

6 Registre-se aqui 0 uso que os jesuitas fizeram dos classicos:a intenc;aoera copiar, aindaque no melhor sentido da palavra, visando a criatividade pessoal nos limites da ordem.Tratava-se da consolidac;ao do modelo. Por isso, nao se fizeram renascentistas.

7 Baseado na Informaflio para nosso padre, de Anchieta, Serafim Leite (1938, p. 82) faz umlevantamento dos estudantes do colegio jesuitico da Bahia: em 1589 havia 55 filhos dosprincipais, extemos!

8A mudanc;a tinha, ai, um sentido pejorativo, indicando decadencia: estaria afrontando aordem estabelecida por Deus. Observar, nesse sentido, a lentidao na adesao as descober-tas cientmcas por parte dos jesuitas, mormente as ciencias medicas, pois estas remexiamcom 0 corpo, obra-prima do Criador.

9 Sobre esse assunto ver J. HOFFNER, Joseph. Colonizafiio e Evangelho: etica da coloniza-fiio espanhola no Seculo de Ouro. Rio de Janeiro: Presenc;a, 1986, Parte I, p. 19-81. Vertambem: HOORNAERT, Eduardo et. al. Hist6ria da Igreja no Brasil. Petropolis: Vozes,1977, t. II, p. 246. Esse autor assim se expressa: "A cultura medieval portuguesa queformou 0 conceito que se tinha da Igreja no Brasil identificava religiao e sociedade. Naoexistia identificac;ao eclesial propriamente dita. (...) nao ha autoconsciencia de Igreja comoIgreja, mas sim como sociedade global."

10Os argumentos catequeticos se apoiavam tambem em premissas economicas, tal a uni-dade de ambos os servic;os. N6BREGA (op. cit., p. 126), em 1551, escrevendo a EI-Reisobre uma expedic;ao em busca de DurOcom a presenc;a de um jesuita, diz: "(...) porquetambem nos releva descobri-Io para 0 tesouro de Jesus Cristo Nosso Senhor, e ser coisade que tanto proveito resultara a gloria do mesmo Senhor e bem a todo 0 Reino e conso-lac;aoa Vossa Alteza." (N6BREGA,op. cit., CartasJesufticas1)

11 HOLLANDA, Sergio Buarque de. Visiiodo para{so:os motivos edenicosno descobri-mento e colonizafiio do Brasil. Sao Paulo: Nacional, 1959. GIUCCI, Guillermo. Viajantesdo Maravilhoso - a Novo Mundo. Sao Paulo: Cia. das Letras, 1992.

12Com esse termo indico portugueses/indios/africanos vivendo 0 momenta de instalac;aode uma nova cultura.

Ro~ana Area' 88 Carva~57

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500 anos de educafao no Brasil

13 SALVADOR, Frei Vicente do. Hist6ria do Brasil 1500-1627. Belo Horizonte: Itatiaia, Sao

Paulo, p. 222 e 147.

14Ibdem,p. 254.

15Ibdem, p. 171.

]6Frei Vicente do Salvador (op. cit., p.121) relata: "0 govemador Jeronimo de Albuquerqueos prendeu e, depois de averiguar quais foram os homicidas dos brancos, uns man-dou por em bocas de bombardas e dispara-las a vista dos mais, para que os vissemvoar feitos pedac;os, e outros entregou aos acusadores que os mataram em terreiro e oscomeram...".

]7 Em carta de 1550,Nobrega (op. cit., p.112) anotava: "Ate agora os negociantes e forasteirosnao tern feito fazendas com medo de serem salteados pelos gentios." E ainda: "(...) de ma-neira que Ihes (aos portugueses) convem viver em povoac;6es fortes e com muito resguardoe armas, e nao ousam de se estender e espalhar pela terra para fazerem fazendas, mas vivemnas fortalezas como fronteiros de mouros ou turcos". Tambem Femao Cardim (ibdem, p.147),ja pelo fun do secuIo, 0 atesta. Falando de Ilheus: "estao muito apertados dos Guaimurese com eles em continua guerra; nao se estendem pelo sertao adentro mais de meia ate umalegua, e pela costa, de cada parte, duas ou tres leguas."

18 Filipe I decreta, ern 1587 (e com os que forem ao gentio): "irao dois ou tres Padres daCompanhia de Jesus, que pelo born credito que tern entre os gentios, os persuadirao maisfacilmente a virem servir aos ditos seus vassalos em seus engenhos e fazendas, sem forc;anem engano." (LEITE, ibdem, 1938, t. II, p. 211) A presenc;a do padre da Companhia juntoaos soldados (para nao falar da presenc;a dos proprios santos) nao era mera capelania: era asUmuia da cultura teocentrica da sociedade portuguesa, toda ela mergulhada no sagrado.

19 N6BREGA,op.cit.,p. 123.20 FREYRE, Gilberto. Novo mundo nos tr6picos. Sao Paulo: Nacional, 1971. Co!. Brasiliana,

348, p. 147, relaciona 0 gosto dos colonos pela poligamia e concubinagem it influenciamoura, de longa tradic;ao na Peninsula.

21Carta do Pe. Antonio Rocha, de 26.6.1569, citada por Serafun Leite (ibdem, 1938, t. II, p. 514).

22 CARDIM, ibdem, 1980, p.146.

23ANCHIETA, Jose de. Cartas: informaroes,fragmentos hist6ricos e sermoes.BeloHori-zonte: Itatiaia; Sao Paulo: Edusp, 1988,p. 78.

24N6BREGA, Manuel da. Cartas do Brasil e mais escritos. Coimbra: Universidade, 1955, p. 279.

25PAlVA, Jose Maria. Catequese e colonizariio. Sao Paulo: Cortez/ Autores Associados,1982,p. 33. Cf. tb. 0 metodo pedag6gico jesuitico. Vic;osa: Imprensa Universitaria, 1981.

26Apud HOORNAERT, ibdem, p. 261, que acrescenta a seguinte informac;ao: "Carta doPadre Luis Brandao, reitor do colegio de Luanda, ao seu colega Alonso de Sandoval, deCartagena de las fndias, que se escandalizava com os rumores que ele ouviu acercadeste trafico. A carta e de 21 de agosto de 1611."

27 Esse refinamento pode ser ilustrado pelo metodo escolcistico, em que 0 nego, concedo,

distingo como que dissecam as possibilidades do ser. Eduardo d'Oliveira Franc;a escreve:"Ora, a escolastica, menos fecunda como metodo de pesquisa cientifica, era urn terrivelinstrumento de cIareza no jogo das ideias e urn excelente fiador da ordem. Havia de sercarinhosamente preservada." FRAN<;A,Eduardo d'OIiveira. Portugal na epocada Res-taurarno.Sao Paulo: Hucitec,1997,p. 43.

28 Sobre 0 Ratio stlldiorllm consuItar FRANCA, Leone!. 0 Metodo Pedag6gicodos Jeslll-tas. Rio de Janeiro: Agir, 1952.

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Educafio jesuitica no Brasil colonial- Jose Maria de Paiva

2'JA literatura jesuitica dos seculos XVIe XVIItrata, a cada passo, de pecado. Nao se tratade c6digo de uma linguagem entre iniciados na espiritualidade. Trata-se de c6digo deuma compreensao do mundo. Indico, aqui, apenas duas cartas de N6brega - uma a El-Rei, de 1551,e outra a Tome de Souza, de 1559-, que ilustrarao 0 acima exposto. (Nobrega,1988, p. 123-7 e 191-218).

30 Essa pedagogia, essencialmente derivada da visao de mundo que se tinha, visava amanter as pessoas dentro dos padr6es e limites da sociedade acabada. 0 orbischristianusimpossibilitava a criatividade: os caminhos ja estavam definidos e havia que se respeita-los. 0 copiar se fez tecmca tanto na arte quanto na espiritualidade.

31 CONFISSOESDA BAHIA. SantoOftcio da Inquisifiio de Lisboa. Sao Paulo: Companhiadas Letras, 1997. Org. de Ronaldo Vainfas, p. 93.

32Ibdem, p. 79.

33Ibdem, p. 150.

340 portugues usa 0 voce. Voce se deriva de Vossa Merce. Nao se fala com a pessoa afrente: fala-se com a nrercedela. Assim, 0 senhor, a senhora. Em Portugal, ate hoje, se diza menina quer...? em vez de voce, menina, quer...?

35N6BREGA, 1988, p. 196 e 198.

36 FREYRE, Gilberto. Novo mllndo nos tr6picos. Sao Paulo: Nacional, 1971. Co!. Brasiliana,348, p. 53.

37 CARDIM, Fernao. Informafiio da missiiodo Pe. ChristoviioGouveaas partes do Brasil -anode83. In Tratadosda terrae gentedoBrasil.Belo Horizonte: Itatiaia; Sao Paulo: Edusp,1980, p. 156.

38N6BREGA, op. cit., p. 158.

3'JEde N6BREGA (Ibdem, p. 131) este parecer: "0 Governador Thome de Souza, eu 0 tenhopor virtuoso e entende tao bem 0 espirito da Companhia que !he falta pouco para ser dela."

40Ibdem, p. 107.

41Ibdem, p. 116.

42Estes dizeres abrem 0 texto de Antoni!. ANTONIL, Andre Joao. Cultllrae opulenciadoBrasil. Belo Horizonte: Itatiaia; Sao Paulo: Edusp, 1982.Colaborac;aode Affonso de E.Taunay, Fernando Sales e Leonardo Arroyo p. 75, 79, 85

43 PALACIN, Luis. Vieira e a visiio tragica do barroco. Sao Paulo: Hucitec; Brasilia: INL/Fundac;ao Pr6-Memoria, 1986,p. 104,observa: "Os Dieilogos das Grandezas do Brasil mos-tram clara mente que a evoluc;ao da sociedade mais aberta dos comec;os a sociedadeestamentalizada de acordo com uma mentalidade aristocratica estava jeipraticamente con-cluida na segunda decada do seculo XVII."

44 CASPISTRANODE ABREU.Capftulosdehistoriacolonial:1500-1800.Belo Horizonte:Itatiaia, Sao Paulo: Edusp, 1988. Anotac;6es e prefeicio de Jose Honorio Rodrigues. "Ahist6ria do Brasil no seculo XVI elaborou-se em trechos exiguos de Itamaraca,Pernambuco, Bahia, Santo Amaro e S. Vicente, situados nestas cento e noventa e cincoleguas de litora!." (p. 84)

4SSobre a pedagogia jesuitica da arte, ler FRANCA, Leonel, op. cit., p. 82 seguintes.

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