educação jesuítica no oriente: o padroado português na índia

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE PEDAGOGIA EDUCAÇÃO JESUÍTICA NO ORIENTE: O PADROADO PORTUGUÊS NA ÍNDIA (1499-1552) Felipe Augusto Fernandes Borges Maringá, PR 2012

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

CURSO DE PEDAGOGIA

EDUCAÇÃO JESUÍTICA NO ORIENTE: O PADROADO PORTUGUÊS NA ÍNDIA (1499-1552)

Felipe Augusto Fernandes Borges

Maringá, PR 2012

Felipe Augusto Fernandes Borges

EDUCAÇÃO JESUÍTICA NO ORIENTE: O PADROADO PORTUGUÊS NA ÍNDIA (1499-1552)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciatura Plena em Pedagogia, pelo curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Maringá. Orientador: Prof. Dr. Célio Juvenal Costa

Maringá, 2012

Dedico este trabalho a todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para formulação do mesmo. Ainda, aos amigos, amigas e professores que, nos últimos anos, têm sido parte integrante da minha vida.

Agradecimentos

Agradeço primeiramente a Deus, que me concedeu a oportunidade de

realizar este trabalho. Sei que sem a vida que vem dele, não seria possível escrever

sequer uma linha.

Agradeço também a minha família, por me compreender em momentos de

dificuldade e me ajudar emocionalmente durante todo este tempo. Pai, Mãe, Ana

Carolina, muito obrigado!

Ao meu professor e orientador Célio, que sempre incentivou a formulação

deste trabalho, apontando caminhos e desfazendo meus equívocos... Não obstante,

por ter valorizado as relações humanas, além das acadêmicas.

Aos amigos do LEIP, pelas reuniões e conversas que, com certeza,

ajudaram a amadurecer muitas ideias e discussões presentes neste estudo. Em

especial ao Professor Sezinando, que me esclareceu muitas dúvidas, mesmo sem

perceber que o fazia.

As minhas amigas de início de curso: Karen, Renata, Aline e Leiliane, pelos

bons momentos que passamos juntos, enfim, por tudo aquilo que compartilhamos.

Vocês foram também, individualmente, muito importantes em minha vida.

Os dois últimos anos de minha graduação foram marcados por três pessoas

mais que especiais, a quem também quero agradecer: Jaqueline, Camila e Josilene.

Muito obrigado pelo tempo que juntos passamos, pelos trabalhos feitos, os estágios,

os almoços, as risadas... Vocês são realmente presentes que Deus colocou em meu

caminho!

Agradeço ainda a todos os professores e professoras que tão ricamente

contribuíram para minha formação acadêmica.

A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente.

Marc Bloch

BORGES, Felipe A. F. Educação Jesuítica no Oriente: O Padroado Português na Índia (1499-1552). Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2012.

RESUMO

O financiamento dos padres católicos pelas Coroas ibéricas recebeu a designação de Padroado (em espanhol Patronato ou Patronasgo). Junto à expansão territorial desses países, especialmente a portuguesa, ia a Igreja alçando também o seu raio nesses novos domínios. O objetivo deste trabalho, portanto, é analisar a presença dos padres e irmãos religiosos, sobretudo os jesuítas, em meio aos processos de expansão portuguesa. O período delimitado situa-se entre os séculos XV e XVI, mais especificamente, entre os anos de 1499-1552. As fontes utilizadas para a referida pesquisa serão os cinco primeiros volumes da Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, coligidas e anotas por António da Silva Rego, os quais abordam a atuação portuguesa na Índia. Por meio da leitura desse conjunto de documentos e sua comparação com textos historiográficos acerca do período, pretende-se demonstrar como a atuação desses padres, para além da evangelização e catequese, contribuía para a civilização dos novos súditos e sua consequente integralização ao Império. Ainda, afirmamos que a despeito do esforço e árduo trabalho dos primeiros padres nas Índias, o real impulso das missões católicas orientais aconteceu apenas a partir de 1542 com a chegada dos padres da Companhia de Jesus em Goa, na Índia. Munidos de novos métodos e formas de catequisar e evangelizar, esses padres acabaram por monopolizar as missões do Oriente a partir de sua chegada.

Palavras-chave: Companhia de Jesus; Educação; Padroado.

Jesuit education in the East: the Portuguese Patronage in India (1499-1552)

ABSTRACT

The financing of Catholic priests by the Iberian Crowns received the designation of Patronage (in Spanish Patronage or Patronasgo). Next to the territorial expansion of these countries, especially Portugal, would the Church taking its range in these new areas. The aim of this study, therefore, is to analyze the presence of priests and religious brothers, especially the Jesuits, in the midst of the Portuguese expansion processes. The delimited period lies between the 15th and 16th centuries, more specifically, between the years 1499-1552. The sources used for this research will be the first five volumes of Documentation for the History of the missions of the Portuguese Padroado in the East, collected and anotas by António da Silva Rego, which deal with the Portuguese presence in India. Through the reading of this set of documents and its comparison with historical texts about the period it is intended to demonstrate how these priests, in addition to the evangelization and catechesis, contributed to the civilization of new subjects and their subsequent payment to the Empire. Still, we affirm that in spite of the effort and hard work of the first priests in India, the actual thrust of Eastern Catholic missions happen just from 1542 with the arrival of the priests of the Society of Jesus in Goa, India. Fitted with new methods and new forms of catechesis and evangelization, these priests went on to monopolize the Eastern missions from their arrival.

Keywords: Society of Jesus; Education; Patronage.

Sumário

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9

1. O PROCESSO EXPANSIONISTA PORTUGUÊS E A OCUPAÇÃO DA ÍNDIA ... 12

2. O PADROADO REAL PORTUGUÊS ................................................................... 23

3. PRIMEIROS ANOS DE MISSÕES NO ORIENTE ................................................ 27

4. A COMPANHIA DE JESUS E A COROA PORTUGUESA ................................... 36

5. MISSÕES NO ORIENTE SOB A COMPANHIA DE JESUS ................................. 41

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 55

FONTES PRIMÁRIAS: ............................................................................................. 59

REFERÊNCIAS: ....................................................................................................... 59

9

INTRODUÇÃO

A educação é, sem dúvida, um dos mais importantes fenômenos

exclusivamente humanos. Estudá-la, em suas origens, é também algo de grande

importância se desejamos compreender as sociedades e suas peculiaridades.

Ainda na Antiguidade, a humanidade assistiu à criação e desenvolvimento

daquela que seria uma das mais importantes, influentes e poderosas instituições da

história humana: a Igreja. Institucionalizada sob o domínio do Império Romano

desde a chamada Idade Média, a (agora) Igreja Católica Romana pôde usufruir

durante um longo período de tempo de uma supremacia peculiar, regulando e

legislando sobre pessoas e reinos. Na Modernidade, porém, seu poder foi

enfraquecido pelo progressivo fim do feudalismo, o fortalecimento dos estados

nacionais, os “absolutismos” e pela própria Reforma Protestante. Ainda assim, a

Igreja conservou seu poderio regulador e seu papel de “parceira” das monarquias

católicas europeias. Destaca-se aqui as ibéricas Portugal e Espanha.

Considerando o papel que a Igreja desempenhou na história, vemos que a

educação esteve durante muito tempo em poder da mesma. Nesse sentido é que se

desenvolve o presente trabalho, com intuito de compreender a gênese e os métodos

da educação empreendida por uma das instituições católicas mais importantes na

Modernidade, a Companhia de Jesus, precursora de vários modelos educacionais.

Esta pesquisa busca delimitar algumas diferenças nos métodos de trabalho dos

inacianos com relação às outras ordens religiosas, contemporâneas à mesma.

Sendo assim, pretendemos identificar as características educacionais e/ou

pedagógicas da atuação desses padres na Índia de domínio português. O recorte

temporal da pesquisa se encontra entre 1499 a 1552 e justifica-se pela instauração

do Estado em 1499, consequentemente, do domínio português nas Índias, por meio

da travessia do Cabo da Boa Esperança (ou Cabo das Tormentas), pelo navegador

Vasco da Gama. Já 1552 é o ano da morte do padre Francisco Xavier, o primeiro

jesuíta que chegou às Índias. Este chegou em Goa no ano de 1542, e foi, até o fim

de sua vida, o líder e mentor das missões jesuíticas em todo o Oriente.

O período limitado neste estudo será analisado por meio dos cinco primeiros

volumes da Documentação para a História das Missões do Padroado Português do

Oriente. Trata-se de um conjunto de documentos, organizados e comentados por

10

António da Silva Rego. Esta documentação abrange, em seu primeiro volume, os

anos de 1499-1522. No segundo volume, os documentos datam de 1523-1543,

enquanto o terceiro volume contém documentos dos anos 1543-1547. O quarto

volume estudado contempla o período de 1548-1550, e, por fim, temos o quinto

volume, com documentos de 1551-1554. Sobre estes documentos é que se

fundamenta o trabalho, partindo das fontes primárias a análise do período aqui

estudado.

Para cumprir suas proposições, este trabalho estruturou-se em cinco

capítulos distintos, porém complementares:

No primeiro, aborda-se a expansão portuguesa, o processo das navegações

e a consequente ocupação e institucionalização do Estado Português da Índia.

Na sequencia, apresenta-se o conceito de Padroado Português, momento

em que se discorre sobre o surgimento e os contextos de alargamento do mesmo.

No terceiro capítulo, analisa-se, sob as fontes primárias e bibliográficas, as

primeiras quatro décadas do Padroado Português no Oriente, momento que

antecede a ida dos padres jesuítas às missões.

No quarto capítulo do trabalho, descreve-se a formação da Companhia de

Jesus, ensejo no qual aponta-se para alguns determinantes de sua criação e

contextos de seu ideário.

Vistos os antecedentes à chegada dos inacianos em solo oriental, o quinto

capítulo do trabalho ocupa-se por analisar a atuação destes sob a bandeira do

Padroado Luso. Neste momento, aproveita-se para inferir algumas comparações

com as análises feitas das ordens anteriores, para compreender os diferenciais entre

a educação e a missionação jesuítica e as demais.

Por fim, tecemos nossas considerações finais, comparando as informações

obtidas nas fontes documentais e bibliografias de apoio.

Entendemos que o período analisado torna-se relevante para a formulação

de um TCC no Curso de Pedagogia, pois a temática lida diretamente com a gênese

da educação formal brasileira. Considerando que a Companhia de Jesus trouxe a

primeira educação formal para o Brasil, estudar a formação dos métodos da

Companhia, ainda que na Índia, ajuda-nos a compreender também a educação que

foi aqui implantada pelos mesmos. A história da educação nos permite, além disso,

compreender os condicionantes e determinantes sociais, históricos e culturais que

influenciam os processos educacionais em todas as épocas e sociedades. Esta

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compreensão nos possibilita a formação de um olhar crítico sobre a própria

educação contemporânea.

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1. O PROCESSO EXPANSIONISTA PORTUGUÊS E A OCUPAÇÃO DA ÍNDIA

O expansionismo português, iniciado já no século XV, foi sem dúvida uma

das características marcantes na história daquele país, pois trouxe consigo

consideráveis mudanças no cenário governamental, político e econômico do mesmo.

Para além de uma visão meramente político-econômica, podemos afirmar que os

contatos com as novas culturas advindas das “viagens dos descobrimentos” também

exerceram grande influência sobre o modo de vida e os costumes dos portugueses

proporcionando também transformações de ordem cultural.

É possível afirmar que as grandes navegações e os “descobrimentos”

cooperaram mutuamente para mudanças profundas na sociedade portuguesa, uma

transformação no próprio ideário do reino, favorecendo a formação da estrutura

daquilo que seria depois conhecido como Império Português. A partir das primeiras

viagens em direção ao ultramar, os portugueses não mais se detiveram em suas

pretensões de conquistas: as grandes rotas marítimas foram sendo paulatinamente

instauradas; os mares, desbravados; as terras conquistadas e os povos, subjugados

ao senhorio português e à Igreja Católica. Isso significa dizer que a marcha

portuguesa foi, durante quase todo o século XV, incisiva e dominante, levando a

bandeira lusa até terras d’antes desconhecidas e/ou não desbravadas.

Evidente é que, para analisar a história e os processos da expansão

portuguesa, é preciso deixar de lado concepções naturalizantes, bem como

concepções que fazem dos viajantes portugueses instrumentos do acaso, a fim de

que possamos compreender os fatos históricos imbuídos em seus respectivos

contextos. É preciso também realizar a leitura e análise das fontes e da bibliografia

correlacionadas à sua origem, afinal:

A produção tradicional dos historiadores portugueses esteve durante muito tempo fortemente associada a um discurso nacionalista, que procurava enaltecer os Descobrimentos como o grande momento do passado português, destacando-se a bravura de Portugal, sua capacidade de enfrentar os desafios e o glorioso domínio de vastas extensões de terras. (TAVARES, 2004, p.36)

A política de navegação e expansionismo presente na Portugal do século

XV é por diversas vezes atribuída a fatores isolados. Um desses fatores seria a

posição geográfica privilegiada de Portugal sobre o mar, em detrimento de outros

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países europeus ou mesmo as posições políticas e os esforços empreendidos pelo

infante D. Henrique para realização de tais empreendimentos.

Porém, analisando a história de um modo mais global compreendemos que

esse processo deu-se devido a todos esses fatores, adicionados a uma série de

eventos histórico-sociais que “sem dúvida surgiram de uma mistura de fatores

religiosos, econômicos, estratégicos e políticos, é claro que nem sempre dosados

nas mesmas proporções” (BOXER, 2002, p.33).

É evidente que os “descobrimentos” não foram resultados de

aleatoriedades, porém deram-se a partir de um grande prisma de determinantes.

Certo é que as navegações portuguesas desenvolveram-se de forma ascendente e

progressiva, desde a memorável conquista de Ceuta, tomada dos mouros em 1415.

A tomada de Ceuta pode ser considerada como o estopim para a definitiva formação

da cultura marítima portuguesa, pois os portugueses passaram a ser um povo de

marinheiros, sendo que o objetivo maior das conquistas se refletiu no sentimento

individual das pessoas e, a partir daí, o povo

desviado dos hábitos hereditários, que o prendiam à terra, adquiriu uma índole aventureira, cosmopolita, disposta aos riscos pelo imediato lucro, de preferência à obstinação no trabalho, de lento mas seguro resultado (LÚCIO DE AZEVEDO, 1978, p. 63, apud COSTA, 2004, p. 93)

Não se pode negligenciar, ainda, os progressivos avanços científicos que o

século XV provou, os quais deram as condições materiais necessárias às

navegações. Houve um significativo aprimoramento na fabricação naval, melhorias

nas ciências náuticas e aprimoramento dos conhecimentos geográficos, todos

indispensáveis ao êxito do empreendimento expansionista (MARQUES, 1974).

Nesse sentido, afirmamos que o aprimoramento na construção naval e o

desenvolvimento das habilidades de navegação foram condições necessárias ao

desenvolvimento dessa política expansionista, pois sem os instrumentos de

navegação adequados jamais teriam os portugueses alcançado territórios tão

distantes no ultramar. Os navios dos descobridores eram, na prática, “o veículo, a

casa, a fortaleza, o tesouro, o templo, o caixão” (COELHO, 2004, p.129).

Utilizamos para este trabalho o conceito de “Império Marítimo Português”,

expresso em Boxer (2002). Ou seja, o Império formado pela Coroa Portuguesa foi,

durante toda sua existência, essencialmente ligado ao mar, tendo nos navios, naus,

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caravelas, galeões, muitas vezes suas sedes e centros de comandos e operações.

Daí a importância desses artefatos, os navios, para a implantação e manutenção

dos domínios portugueses, sobretudo no Oriente. O bom funcionamento de todo o

aparato marítimo português, incluindo a utilização das armas, era questão premente

para que os descobridores pudessem subjugar aqueles que de bom grado não

quisessem submeter-se ao domínio pretendido. A respeito das embarcações da

Carreira das Índias afirma Charles Boxer:

As embarcações que durante trezentos anos participaram da Carreira da Índia eram basicamente, e sobretudo, as naus, mas essa palavra abrangia ampla variedade de significados. [...] Tecnicamente, durante os dois primeiros séculos, havia uma distinção entre carraca (nau) e galeão: as carracas eram navios mercantes largos, altos e pesadamente construídos, mas levemente armados, com castelos de proa e popa grandes e bem desenvolvidos, e os galeões eram mais compridos e estreitos, com superestruturas mais simples, e, em geral, navios de guerra fortemente armados. (2002, p. 221, sem grifos no original)

Assim, o historiador Boxer (2002) nos mostra como havia uma tênue

distinção entre naus mercantes, as quais eram “levemente armados” e galeões, que

por sua vez eram “navios de guerra fortemente armados”. As armas e a força

desempenharam, também, um importante papel na imposição do domínio imperial,

seja em terra ou mesmo no mar.

Acerca das habilidades portuguesas com a navegação, compreendemos

que há muito vinham sendo aprimoradas. Como um país insular, as atividades de

mar estavam presentes no dia-a-dia de muitos portugueses.

Por muito mais de um século, pescadores do Sul de Portugal, despreocupada mas ousadamente, e durante várias gerações, foram chegando cada vez mais longe na sua busca de pescado, baleias e saqueio. [...] Vagarosa mas continuamente, foram aperfeiçoando os métodos de navegar dos seus barcos. Vagarosa mas continuamente também se foi desenvolvendo a sua destreza, transmitida de pai para filho. Quando, ao raiar do século XV, outras circunstâncias permitiram maior consciência do que fora já conseguido, e quando burgueses, senhores nobres e o próprio rei, feitos armadores, precisaram de mão-de-obra especializada para as suas novas empresas, foram achá-la em quantidade bastante para a distraírem dos fins puramente piscatórios e empregarem em esforços mais complexos. (SERRÃO & MARQUES, 1998, p. 201-202)

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Contudo, as viagens dos descobrimentos propriamente ditas têm início a

partir de 1419, quatro anos após a conquista de Ceuta e ainda no reinado de D.

João I. Estas viagens estendem-se durante o século XV, culminando com a

instauração da rota do Cabo, em 1499, e a chegada dos navegadores lusitanos ao

Brasil, em 1500, já sob o reinado de D. Manuel, conforme afirmado por Boxer

(2002).

Podemos afirmar que foi com a viagem de Vasco da Gama que, em 1499,

instaurou-se por definitivo a primeira grande etapa do desenvolvimento do domínio

lusitano no além-mar: forma-se nesse episódio da história um novo caminho para as

Índias, conhecida como a Rota do Cabo da Boa Esperança, ou simplesmente, a

Rota do Cabo. É essa parte em especial do processo de expansão portuguesa que

diz respeito ao desenvolvimento da presente pesquisa, a fim de que possamos mais

pormenorizadamente analisar a influência dos portugueses, civis e principalmente

clérigos no Oriente indiano. Não obstante é preciso afirmar que a partir das primeiras

viagens, “Não cessam os Portugueses [...] de dar novos mundos ao Mundo”

(AMEAL, 1968, p. 252). Esta foi apenas a primeira parte, o impulso inicial para a

formação de um vasto Império.

A partir da viagem de Vasco da Gama não mais cessou a Carreira da Índia,

ou seja, a travessia de naus portuguesas para o Oriente, em busca de novos

espaços, novos povos, novos cristãos, novos domínios para a Coroa e,

consequentemente, de novos mercados, tanto fornecedores como, inevitavelmente,

consumidores.

Segundo Costa (2004), a mercadoria foi um fator essencial para explicar o

interesse europeu, principalmente português, pela exploração do Oriente. A busca

pelo mercado, comércio, enfim, pelo lucro é o que vai impulsionar aventureiros

navegadores a arriscarem a própria vida em expedições a mares desconhecidos.

Não há ocupação sem pessoas, não há Império sem domínio, e ambos foram, no

quinhentos, exercidos por homens que, deixando pátria, família e negócios,

aventuraram-se por lugares dos quais até então ouviam-se apenas histórias, e as

mais fantasiosas possíveis.

O incentivo para tal empreitada era, consequentemente, a esperança de

grande lucro, fama e sucesso que poderiam vir das viagens ao Oriente

desconhecido. Pouco a pouco as narrativas (cada vez mais realistas) a respeito

desse Oriente e das riquezas que nele havia foram espalhando-se por toda a

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Europa, atraindo a atenção de cada vez mais “destemidos aventureiros” para tais

rotas comerciais.

O novo caminho para as especiarias, inaugurado com a viagem de Vasco da Gama pela rota do Cabo da Boa Esperança em 1498, atraiu florentinos, genoveses e venezianos interessados no comércio, fazendo dos mercadores das cidades italianas os pioneiros na divulgação dos feitos portugueses nas Índias. Eram homens aventureiros, ávidos por confirmar o que se ouvia dizer sobre a Arábia, Pérsia, Índia...; ciosos por registrar o que viam e atestar o que os círculos letrados ou os comerciantes mais bem informados sabiam sobre o Oriente; eram agentes de prósperas casas comerciais com negócios que iam de Amsterdã a Beirute, passando por Lisboa. Foi pelas mãos desses viajantes, narradores ou missivistas, que em grande medida a presença portuguesa na Índia se fez conhecer ao longo do século XVI. (DORÉ, 2002, p. 332)

É importante afirmar, também, que o comércio instaurado pelos portugueses

com o Oriente em muitos momentos teve, sim, a participação de estrangeiros, porém

sempre sob o controle, fiscalização e tributação da Coroa lusitana. O tráfego de

navios estrangeiros e a pirataria pela Rota do Cabo foi, durante todo o tempo de

domínio português, duramente reprimido pelas frotas da Coroa, isso porque o

constante tráfego dos navios lusitanos pelo Cabo da Boa Esperança desencadeou a

paulatina ocupação portuguesa na Índia. O Oriente indiano, a partir das primeiras

viagens portuguesas, vai passar a contar com a presença singular e nova desses

desbravadores viajantes, entre eles mercadores (comerciantes), funcionários da

Coroa e é claro, padres e irmãos de diversas ordens religiosas.

Nesse sentido, verifica-se mudanças culturais adjacentes aos povos

alcançados pela expansão. Nos espaços ocupados pelos portugueses houve

continuamente alteração nos costumes, no dia-a-dia, na cultura em geral. Até

mesmo os hábitos costumeiros dos povos nativos passam a sofrer a interferência

direta dessa nova massa populacional que, pouco a pouco, aporta em terras

indianas. O comércio e as negociações, principal atividade e objetivo lusitano nas

novas terras, exigem que os habitantes da mesma adquiram meios para tais

negociações, ou seja, aprendam principalmente a língua portuguesa necessária para

a comunicação e o comércio.

Os nativos indianos são, substancialmente, aqueles que irão vender,

negociar, buscar as mercadorias desejadas pelos comerciantes e, de certa forma,

também lucrar com as novas negociações. Além disso, uma grande massa de

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nativos também foi usada para os trabalhos braçais da ocupação: foram

carregadores, guias e, também, tradutores para os portugueses.

Assim, podemos afirmar que a expansão portuguesa e sua consequente

ocupação dos territórios orientais estiveram sempre ligadas às relações de trabalho,

econômicas, sociais e religiosas. Nesse sentido, lemos que:

[...] a expansão portuguesa pelo Oriente e pelo Ocidente faz parte de uma lógica mercantil, mas que nem sempre é linear. O tempo do mercador e o olhar do mercador são os sinais a indicar o que é e o que não é importante na empresa expansionista. A mercadoria regula a vida dos homens; em função dela se constroem homens e nações fortes; em razão dela, se destroem povos e se subjugam culturas. (COSTA, 2004, p. 99-100)

Além das questões econômicas, os portugueses sempre deflagraram o uso

da afirmação religiosa como justificativa de sua expansão e domínios. O uso do

argumento religioso é claramente utilizado também em alguns trechos da

historiografia portuguesa a respeito das navegações. João Ameal (1968, p. 251)

afirma que:

Descoberto o caminho para a Índia através do oceano, está ameaçado de flanco o domínio do Mar Vermelho pelos Árabes. Tanto o poderio egípcio como o Império turco de Constantinopla vêem cerceadas as possibilidades expansionistas para o Oriente.[...] Noutro plano – o mais alto – acaba de ser dado um grande passo ao serviço de Deus. Cria-se nova frente contra o Islamita, atingido na raiz dos seus interesses e da sua prosperidade. (sem grifos no original)

Conforme pode-se perceber, o fator religioso esteve presente tanto no

tempo das navegações quanto na leitura de alguns historiadores a respeito dos

referidos fatos. Para ilustrar a dualidade entre o religioso e o econômico poderíamos

citar diversos trechos de cartas, sobretudo de D. Manuel, datadas dos inícios da

ocupação da Índia. Dentre estes, elegemos o seguinte, escrito em 1500 como

instrução a Pedro Álvares Cabral:

[...] como senpre nos tempos pasados, desejamdo nos muyto de saber das cousas daquella teerra da India e jentes della, principalmente por serviço de Nosso Senhor, por termos emformaçom que elle (o Samorin de Calicute) e seus suditos e moradores de seu reyno sam christãos e de nosa fee, e com que

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devemos folgar de ter todo trauto, amizade e prestança, nos desposemos a emvyar allguuas vezes nossos navyos a buscar a via da Yndia, por sabermos que os yndyanos sam asy christãos, e omeens de tal fe, e verdade e trauto, que devem ser buscados, pera mais imteiramente averem praticar de nossa fee, e serem nas cousas dela doutrynados e ensinados, como compre a serviço de Deus e sallvaçam de suas allmas; e depois, pera nos prestarmos e tratarmos com elles, comnosco, levamdo das mercadaryas de nosos regnos a elles necesarias e asy trazemdo das suas...[...] (IN: REGO, 1947, pp. 12-13)

A expansão lusa e os discursos a ela relacionados caminham

historicamente em consonância com o trecho acima. Ao mesmo tempo em que se

procura por mercadorias e mercados, procura-se por almas a serem salvas. O valor

das almas perdidas a serem convertidas, por sua vez, passa a justificar todos os

esforços e todos os métodos utilizados para o alcance do referido fim.

Há, também, tanto na ida dos portugueses para a Índia quanto nas

descrições dos primeiros contatos, a crença de que os povos indianos seriam em

sua maioria formados por cristãos. Há, ainda, a busca pelo lendário Preste João,

suposto governante de um próspero reino cristão do Oriente que, segundo a

expectativa dos portugueses, unir-se-iam a estes no combate e destruição dos

mouros.

Como podemos perceber, até o momento em que as viagens portuguesas

ao Oriente se tornaram mais constantes, este espaço era pouco conhecido no

ideário do povo luso, e as primeiras aproximações com estes povos foram cercadas

de expectativas e “pré-conceitos” carregados pelos lusitanos. Quando muitas dessas

ideias foram mostrando-se infundadas e algumas expectativas – principalmente a do

Preste João – se transformaram em decepção, as dificuldades e resistências foram

se tornando mais visíveis e os portugueses passaram a agir de modo mais

pragmático.

Para que houvesse efetivação da ocupação portuguesa nas terras orientais,

podemos dizer que algumas vezes esta ocorreu de forma pacífica, por meio de

acordos comerciais ou militares; outras vezes, ainda, as negociações pacíficas não

foram suficientes e a dominação foi imposta com o uso violento do poderio bélico

português, que não foi poupado para tais fins. “A diplomacia acompanhou o furor

das armas”, conforme afirma Coelho (2004, p.123). Diplomática ou bélica, a

ocupação instaurou-se e efetivou-se a despeito das dificuldades encontradas.

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Certo é que a partir dos primeiros impulsos expansionistas, gradativamente

foi formado o Estado Português da Índia, dirigido por seus sucessivos governadores

e vice-reis. A respeito da formação do que se chama de Estado Português da Índia,

recorremos novamente a Coelho, que escreve:

A viagem de Vasco da Gama desencadeou simultaneamente a formação meteórica do Estado Português da Índia. Este Estado nasceu da armada anual que cruzava a rota nos dois sentidos, lançou os seus fundamentos nas primeiras fortalezas [...]. A tiros de bombarda forçou um controlo que se pretendia total mas sempre limitado de comércio internacional do Índico e do Pacífico, desenvolvido havia séculos pelos muçulmanos. (idem, p.109)

Como podemos compreender, a força e o poderio militar foram de extrema

importância para o domínio português no Oriente. A presença de grandes armadas,

tiros de canhões e guerras são fatores inerentes à permanência dos portugueses na

Índia. Para o estabelecimento e funcionamento das fortalezas, foi necessário por

diversas vezes o uso da força.

Entretanto, não se pode afirmar que foi apenas por meio da força que se

estabeleceu a dominação e o comércio português no Oriente. Há registros de muitas

alianças, contratos, trocas e outras formas pacíficas de relacionamento com os

reinos locais. Podemos citar como exemplos os acordos feitos em Cochim e

Cananor, onde foram instaladas feitorias e posteriormente fortalezas para o

comércio português.

A diplomacia portuguesa era também tênue: onde não houve acordo, por

consequência houve conflitos, dos quais por vezes os lusos saíam vencedores, por

vezes vencidos, caracterizando o cotidiano do domínio português no Oriente. Os

anos de dominação oriental foram em sua maioria tempos de guerra, pois a

dominação das Índias diferiu muito da dominação portuguesa no continente

americano, mais especificamente no Brasil. Enquanto nestas partes o domínio

português caracterizava-se pela propriedade do território, pelo domínio dos espaços,

o Estado da Índia caracterizava-se por ser estritamente ligado ao mar,

essencialmente marítimo. Raramente primava-se pela posse da terra, ou o domínio

de vastas regiões: o que os portugueses lá almejavam (e possuíam) era o domínio e

controle das rotas comerciais, a posse dos entrepostos. Portanto, tais fortalezas e

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feitorias, assim como as frotas marítimas, eram constantemente alvos de ataques

dos opositores, ataques estes que eram severamente revidados.

Todo esse estado de coisas contribuía para formar a conjuntura em que o

comércio português oriental esteve inserido durante um vasto período. Corroborando

estas afirmações, Thomaz (1994, p. 210) diz que “De qualquer modo, o Estado da

Índia é, essencialmente, uma rede e não um espaço: não lhe interessa a produção

de bens – mas a sua circulação; [...] por isso, aspira mais ao controlo dos mares que

a dominação da terra”.

Outro fator importante para ideologia da expansão portuguesa e

consequente ocupação oriental é a grande importância que se dava ao combate dos

infiéis mouros, os muçulmanos. A luta contra eles é incessantemente lembrada por

capitães, governadores, vice-reis, clérigos e pelos próprios reis de Portugal em suas

correspondências com as colônias, e isso durante todo o tempo do Império. A

necessidade de combate aos mouros dava-se, substancialmente, por duas

questões: a comercial e a religiosa.

Primeiramente, o combate aos mouros tem seu fundo econômico/comercial

porque há muito tempo já eram os muçulmanos quem dominavam as rotas

comerciais agora pretendidas pela Coroa lusa. Para o sucesso desse combate, o

tráfego de navios muçulmanos pelo mar foi proibido pelos portugueses, de forma

que o próprio D. Manuel ordenou em diversas cartas que, se encontrados, os tais

navios deveriam ser combatidos e, tanto quanto possível, tomados e/ou afundados.

O comércio com os muçulmanos também é proibido aos reinos locais,

sendo esse direito reservado apenas aos portugueses, que comerciariam com os

mouros desde que não lhes fornecessem armas ou munição – essa atitude é tida

como uma “medida de segurança”, pois se acreditava que o comércio não-português

poderia fornecer tais armas aos mouros. Cabe lembrar que a autorização para

comércio português com os muçulmanos foi legitimada pela própria Santa Sé por

meio de bulas, com destaque para a Aeterni Regis clementis, que expressamente

dava aos lusitanos o direito de comerciar inclusive com maometanos, desde que não

lhes oferecessem armas e munições (MATOS, 1987). Como exemplo, citamos D.

Manuel, escrevendo a Afonso de Albuquerque em 1514:

Nos spreveemos [...] emcomendando lhe que trabalhe de meter em costume que os christãos da terra e asy gemtios navegem em nosas

21

naaos e navios, e em tall maneira que os mouros imigos de nosa samta fee percam a navegaçam e se tirem della [...]. [...] será azo de se irem arrancando de todo os mouros desa terra, e do que nisso se fezer folgaremos de nos avisardes. (IN: REGO, 1947, pp. 198-199)

O combate aos mouros é ainda, como afirmado na citação acima, uma

questão religiosa, um ato de fé. A ocupação portuguesa da Índia vai ostentar, como

estandarte principal, a evangelização do Oriente: daí a grande importância em

combater a outra religião, o Islamismo, que nesse momento crescia e prevalecia na

região da Índia.

Para que o combate ao mouro demonstrasse o efeito desejado tanto na

esfera da dominação física como na cultural, foi implantada uma política de total

separação entre cristãos e muçulmanos, valendo essas regras tanto para os cristãos

europeus quanto (e principalmente) para os nativos, ou os novos-convertidos. A

separação tem como objetivo principal o distanciamento dos costumes, da crença e

da religião muçulmana como um todo. Dessa forma serão proibidos aos cristãos da

Índia, para além do comércio, também os casamentos com muçulmanos. O que se

pode observar é a formação de uma barreira, um muro de separação que facilite a

dominação portuguesa, não só pela força, mas ainda pela cristianização,

acompanhada pela civilização e incorporação aos costumes europeus, portugueses.

É também evidente afirmar que nem sempre (ou raramente) essas regras de

separação foram obedecidas ortodoxamente. A esse respeito, porém, o presente

trabalho versará, quando da análise própria da atuação dos padres nesses

territórios.

Todo esse movimento de organização do Estado da Índia, em sua essência,

visa um objetivo específico: a conversão e salvação dos novos súditos, sua

incorporação ao Corpo de Cristo, a Igreja, e consequentemente ao Império

propriamente dito. Essa necessidade – de conversão dos novos súditos – é a razão

áurea para os investimentos financeiros e humanos empreendidos pela Coroa para

o estabelecimento da Igreja do ultramar.

Nesse aspecto, os padres e irmãos religiosos são indispensáveis na

empresa comercial indiana, pois seu ensino, pregação e catequese tornam-se

também partes indissociáveis do abrangente processo de expansão, entendido aqui

como uma forma de dominação ampla: territorial, comercial, cultural, religiosa...

22

Este grande aparato religioso encontrou abrigo, financiamento e proteção na

Coroa Portuguesa, representada por suas fortalezas indianas. O estabelecimento da

empresa religiosa acarretará paulatinamente uma série de concessões dos Papas à

Portugal, por meio de bulas/breves que regulamentarão privilégios versus deveres

da Coroa para com as Missões ultramarinas. Esse conjunto de documentos irá

formalizar o que, mais tarde, será denominado como Padroado Real Português, o

órgão que, durante a existência do Império gerenciou toda a missionação

portuguesa.

23

2. O PADROADO REAL PORTUGUÊS

Na medida em que os domínios portugueses eram alargados por meio da

política expansionista vigente, uma importante instituição acompanhava e legitimava

tal corrida: a Igreja. Conjuntamente à expansão ibérica, a Igreja ia também alçando

crescimento contínuo.

A presença dos padres, tanto regulares quanto seculares, é um fator

inerente à presença ibérica nas terras dos descobrimentos. Portugal e Espanha,

Coroas católicas que eram, tinham subjacentes às suas jornadas expansionistas o

sentimento de dever, de obrigação de levar a verdade do Cristianismo aos novos

súditos. Dar a oportunidade da conversão e da salvação das almas dos futuros

súditos era uma ação concebida como obrigação do rei católico. Portanto, deveria

este pôr seu reino à disposição da Igreja: sua expansão territorial significava

consequentemente a expansão do território cristão. À medida que portugueses e

espanhóis ocuparam os diferentes continentes, a Igreja Católica, juntamente com

eles, também tinha seu espaço. Isso significa dizer que nas armadas dos

descobridores viajavam também os padres, ou seja, nos navios dos mercadores,

estavam eles também presentes, impulsionando e sendo impulsionados pelo espírito

desbravador da época.

Cabe ressaltar, nesse momento, que a presença do Cristianismo e da

Igreja, propriamente dita, dava-se por meio de seus agentes diretos – padres,

irmãos, ordens religiosas – e também por meio de agentes indiretos, os próprios

portugueses. A religiosidade, o catolicismo em si, é algo singular na cultura

portuguesa do tempo em questão. Isso não quer dizer que os portugueses como um

todo eram inteiramente fiéis a todos os mandamentos e ordenanças da Igreja,

porém, em sua cultura estava arraigados o sentimento e os valores cristãos, que

acompanhavam sua presença e seu dia-a-dia, tanto em Portugal como nas terras

recém-ocupadas.

Toda essa cultura de devoção religiosa desencadeava nos súditos do reino

certa concepção de dever cristão do rei: seria deste a obrigação, ou ainda mais, a

missão de dar condições de crescimento do evangelho, de pregação cristã. Assim,

impulsiona-se o investimento e a preocupação com as missões e desencadeia-se

uma progressiva delegação de direitos e deveres por parte dos papas em favor das

Coroas ibéricas: direitos e deveres sobre o clero, os convertidos e as igrejas.

24

A série de concessões papais recebeu a designação de Padroado (em

espanhol Patronato ou Patronasgo). Essa instituição compreendeu, em seu cerne, o

financiamento das missões nas terras descobertas e uma série de direitos do rei

sobre o clero que trabalhasse sob seus domínios. Dessa forma, os padres e irmãos

religiosos, para além da obediência devida à Santa Sé e às suas respectivas ordens,

eram também contados como súditos obedientes à sua Coroa financiadora. A união

entre Fé e Império é uma condição basilar do período histórico tratado.

A aliança estreita e indissolúvel entre a Cruz e a Coroa, o trono e o altar, a Fé e o império, era uma das principais preocupações comuns aos monarcas ibéricos, ministros e missionários em geral. [...] Durante séculos, a união da Cruz com a Coroa foi exemplificado pela peculiar instituição [...] do padroado real da Igreja do ultramar exercido pelas Coroas ibéricas: Padroado Real em português e Patronato (ou Patronazgo) em espanhol. (BOXER, 1981, pp. 98-99)

No caso da Coroa portuguesa delimitamos então o Padroado Real

Português. A fim de pontuar esta especificidade, Boxer (idem) prossegue:

O Padroado Real Português pode ser vagamente definido como uma combinação de direitos, privilégios e deveres, concedidos pelo papado à Coroa portuguesa, como patrono das missões católicas e instituições eclesiásticas na África, Ásia e Brasil.

Essa combinação de direitos e deveres foi, quase sempre, regida por regras

de contrapartidas. Podemos considerar que para a Coroa, a subordinação do clero

ao rei é um dos mais importantes direitos instituídos pelo Padroado. Além desse,

havia também as rendas provenientes das missões, as quais eram em grande parte

administradas pela Coroa que, obviamente, revertia partes destas à Santa Sé. A

nomeação de padres, párocos e bispos também era responsabilidade da Coroa, nos

termos de seu Padroado.

É evidente que, para além desses existiam outros direitos, acompanhados

sempre pelas respectivas obrigações da Coroa para com a missão. A dualidade

direitos/deveres é claramente compreendida na instituição do Padroado, pois ao

mesmo tempo em que as bulas papais concediam os privilégios à Coroa portuguesa,

reiteravam as condições necessárias à manutenção desses privilégios mediante o

funcionamento satisfatório das missões. O mau funcionamento, abandono ou

25

negligência nas missões catequéticas poderia ocasionar, em extremo caso, a própria

perda do direito de Padroado pela Coroa.

Em síntese, a contrapartida da Coroa na instituição do Padroado era o

fornecimento dos missionários necessários, seu pagamento e sua proteção, bem

como o fornecimento dos materiais necessários à manutenção das igrejas, dos

mosteiros, colégios e outras edificações necessárias à propagação da Fé, que por

sua vez também deveriam ser edificados com recursos da Coroa, ou recursos das

próprias missões, administrados pela mesma. O padre Miguel Oliveira (1958, p. 201)

resume:

O Padroado português compreendia os seguintes direitos e obrigações: apresentação para os benefícios eclesiásticos, incluindo os episcopais; conservação e reparação das igrejas, mosteiros e lugares pios das dioceses; dotação de todos os templos e mosteiros e lugares pios das dioceses; dotação de todos os templos e mosteiros com os objectos necessários para o culto; sustentação dos eclesiásticos e seculares adstritos ao serviço religioso; construção dos edifícios necessários; deputação dos clérigos suficientes para o culto e cura das almas.

Ao contrário do que, de início, pode-se imaginar, a instituição do Padroado

Português ocorreu de forma lenta e progressiva. Os privilégios sobre a missão não

foram concedidos em um único “momento especial”, ao contrário, foram concedidos

em blocos sucessivos e não contínuos. Cada papa em exercício emitia suas bulas,

breves e/ou recomendações dando as concessões necessárias e plausíveis a cada

momento. Pode-se perceber que, à medida que a expansão e o poderio português

iam crescendo, mais benefícios eram concedidos pela Santa Sé à Coroa. É extensa

a documentação que legitima a ação do Padroado, porém devemos destacar

algumas bulas em especial que, segundo Oliveira (idem), são de essencial

relevância para esta instituição:

● Bula Dum diversas, de Nicolau V, em 18 de junho de 1452;

● Bula Romanus Pontifex, de Nicolau V, em 08 de janeiro de 1455;

● Bula Inter caetera, de Calisto III, de 13 de março de 1456 – concede à

Ordem de Cristo a jurisdição espiritual em terras portuguesas, mas os privilégios são

do rei;

● Bula Dum fidei constantiam, de Leão X, de 07 de junho de 1514;

26

● Bula Pro excellenti praeminentia, de Leão X, de 12 de junho de 1514;

● Breve Dudum pro parte, de Leão X, de 31 de março de 1516 – confere

aos reis de Portugal o direito universal de Padroado em todas as igrejas localizadas

em território de domínio lusitano;

● Bula Aequum reputamus, de Paulo III, de 03 de novembro de 1534 –

que institui a diocese de Goa, com jurisdição desde o Cabo da Boa Esperança até a

China, passando pela Índia, descrevendo, minuciosamente, os direitos e deveres

inerentes ao Padroado; considerada “com razão o principal fundamento do padroado

português” (idem, p. 201);

● E, ainda, bulas instituindo outras dioceses nos territórios do Padroado,

reproduzindo a forma da Aequun reputamus.

Observa-se que as bulas supracitadas compreendem um período de 82

anos e quatro papas: Nicolau V, Calisto III, Leão X e Paulo III. Essa documentação

não se esgota na presente lista. Pontuam-se aqui apenas os documentos principais.

Por meio deles, podemos compreender como os processos para consolidação da

referida instituição se deram: como já mencionado, cada um destes papas concedeu

e cobrou à Coroa o que era aceitável e plausível ao seu momento histórico, assim

como às condições e perspectivas apresentadas pelo Reino.

Estes documentos, entre outros, regulamentaram a jurisdição portuguesa

sobre a cristandade de seus domínios, o chamado Padroado. Por meio destes

documentos, os papas concederam à Coroa Portuguesa os privilégios eclesiásticos

que durante muito tempo foram inerentes à expansão territorial desse país. Sendo

assim, a atuação dos padres portugueses na Índia, objeto desta pesquisa, é também

regulamentada pelos referidos documentos.

27

3. PRIMEIROS ANOS DE MISSÕES NO ORIENTE

Conforme já mencionado, as frotas portuguesas que iam todos os anos para

a Índia, além dos soldados, funcionários da Coroa, mercadores e outros tripulantes,

levavam consigo também um importante contingente para a colonização desses

territórios já a partir do século XV: os padres e irmãos religiosos.

A conversão dos novos povos era a bandeira ostentada por Portugal, muitas

vezes usada como justificativa das colonizações e levada a sério por seus monarcas

durante a expansão. A presença da Igreja é inseparável das novas conquistas e, na

verdade, chegava-se acreditar que Portugal tornara-se uma potência mundial em

termos de navegação simplesmente pelo fato de ser impulsionada pela missão de

levar o evangelho aos povos desconhecidos. Assim, conquistas e missões andaram

entrelaçados durante todo o processo de formação do Império Português: onde

havia conquista portuguesa, havia evangelização, catequização e consequente

conversão de almas ao Cristianismo. Para compreendermos a importância dada às

missões de fé durante os descobrimentos, citamos o historiador português João

Ameal (1968, p.248), que assim descreve a partida de Vasco da Gama para a Índia:

Antes de partir despede-se o Almirante do Rei, então em Montemor. Declara D. Manuel os dois objectivos que presidem à expedição: a propagação da Fé e o comércio oriental. Ajoelhado, toma Vasco da Gama nas mãos o estandarte de seda branca onde a Cruz de Cristo sangra; jura levá-lo e honrá-lo sobre todos os perigos. (sem grifos no original)

A fervorosa religiosidade portuguesa é um dos fatores que devem ser

levados em conta perante a animosa campanha pela conversão das almas. Por

outro lado, havia grandes privilégios para a Coroa em sustentar e controlar a missão

em seus domínios, privilégios estes que poderiam ser financeiros, pelo direito de

administrar algumas arrecadações eclesiásticas ou mesmo privilégios de autoridade,

ao passo que o clero estava diretamente subordinado à Coroa.

A presença dos padres nas Índias é inerente à própria presença portuguesa.

Um dos primeiros favores que D. Manuel oferece em carta ao rei de Calicute é, além

do comércio, o envio de pessoas “religiosas e doutrinadas na fee e religião christã”

(In: REGO, 1947, p.18). Nessa mesma carta, D. Manuel diz que “[...] não ordenou

Deus Noso Senhor tam maravilhoso feito desta nosa naveguação pera somente ser

28

servido nos tratos e proveitos temporaes dantre nos e vos, mas tambem nos

esprituaes das almas e salvação dellas[...]” (idem). A conversão era necessidade

premente, portanto, o envio e sustento dos agentes para tanto, os padres, também o

era.

Inicialmente, a maioria dos padres que se instalaram nas missões indianas

foram missionários enviados pelas ordens religiosas: padres regulares. A

documentação analisada mostra a presença de dominicanos, agostinhos e,

sobretudo, franciscanos nos primeiros anos da missão, considerando-se que os

jesuítas chegaram somente a partir do ano 1542. A presença franciscana é

destacável, e podemos citar dois mosteiros franciscanos: o Mosteiro de São

Francisco, em Goa, e o Mosteiro de Santo Antônio, em Cochim. A Câmara de Goa,

em carta escrita a D. João III em 1524, refere-se ao mosteiro, dizendo: “E quamto a

algumas obras que saão fetas nesta cidade, principalmente he o moesteiro de São

Francisco, que podemos dizer esta acabado [...]” (In: REGO, 1991, p. 36). Ainda

sobre os mosteiros franciscanos, já em 1527, frei Gonçalo de Lamego, escreve ao

mesmo rei reclamando do desprovimento de ambos:

[...] que agora no mosteiro de São Francisco de Goa nom ficão senão cynco frades de misa e tres coristas e quatro frades leygos e dous noviços, e em Cochim outros tantos, afora noviços que la nom ha. Estes anos pasados esperavamos sermos providos do reyno, mas pareçe que ho tempo nom deu lugar pera se fazer. Nom vem em cada armada senão hum ou dous. (idem, p.133)

A falta de pessoal fica clara no excerto acima: as missões do Padroado,

durante muito tempo vão sofrer com a escassez de missionários. A despeito do

trabalho incessante das ordens ali presentes, a falta de recursos e de pessoal vai

prejudicar e muito os primeiros anos de missão do Padroado no Oriente. Pode-se

afirmar que, na verdade, o impulso nas missões orientais vai acontecer com a

chegada dos primeiros jesuítas a partir de 1542, com novos métodos, novas

diretrizes e novas formas de trabalho e ensino (BOXER, 1981).

Além dos padres regulares existia também um número, ainda que restrito,

de padres seculares nas missões do Padroado. Sem generalizar todos esses

padres, muitas são as reclamações enviadas por carta à Portugal relatando a

imoralidade e a desobediência de alguns deles. Não só os padres, mas os

portugueses de modo geral, quando se viam longe de sua nação, de seus costumes

29

e, no caso dos padres, longes de seus superiores, acabavam por adquirir algumas

práticas nomeadas por vezes de “escandalosas” aos novos convertidos e aos

cristãos locais. O Bispo de Dume relata algumas dessas experiências e pede

providências sobre isto a D. João III, em carta enviada no ano de 1523:

Item. Quanto ao viver dos clérigos e frades que estam fora destes moesteiros, por a maior parte he mui corruta e por seu mao exemplo se perde muito a devação dos cristãos da terra. Mande lhe Vosa Alteza pesoa que os meta em ordem e seja de bom viver e leterado, porque doutra maneyra fazem mui pouco serviço a Deus e a Vosa Alteza. (In: REGO, 1991, p.19, sem grifos no original)

Na América Portuguesa as reclamações são muitos semelhantes, quando

observamos, por exemplo, que Manuel da Nóbrega denuncia, já em 1549 (ano da

chegada dos jesuítas no Brasil) o “mau cristianismo” que os clérigos praticavam.

Este não é um problema isolado, pois antes da data acima citada, reinando

ainda D. Manuel, o Padre Julião Nunes, envia uma carta em 1510, queixando-se

tanto do capitão-mor da fortaleza de Cananor quanto de padres corruptos. Sobre um

desses casos, escreve:

[...] ho dito creligo ho foram topar huma noute os merynhos e seus escryvens e homens, com huma molher casada em huma cama, em braços, e seu marydo em outra, junto com elles, e os prenderam; e ho vigairo, em vez de ho casygar, mandou o pera Cochim e fello capelam da dita igreja e ho livrou per aleam viam, e asy a ho que eu mandey de armada, que tinha aqui os filhos, tambem ho fez capelam da dita igeja. (idem, 1947 p.112-113)

Ainda segundo o padre Julião, por estas e outras causas, “os leygos

murmuram grandemente” (idem, p.113). Sem dúvida, estes fatos constituíram-se em

grandes obstáculos para os religiosos portugueses nas Índias, sendo que

encontramos queixas como estas também em cartas de Afonso de Albuquerque,

que escrevendo a D. Manuel afirma que muitos portugueses davam “[...] maos

enxempros e maos comselhos e com toda desordem quamta podem fazer; e esta he

a mayor perseguiçam que agora qa tenho na Imdia” (idem, p.150).

Novamente afirmamos que não se podem generalizar os padres, seculares

ou não, porém esta realidade constituiu-se em registros históricos que agora são

analisados. Dessa forma, compreendemos que ao mesmo tempo em que muitos

missionários iam para a Índia com o firme propósito da evangelização dos povos

30

desconhecidos, “parte do clero secular pioneiro estava mais interessada em servir a

Mamona do que a Deus” (BOXER, 2002, p. 81). A busca pelo enriquecimento e pelo

comércio acabou por desvirtuar os ideais de muitos religiosos que inicialmente iam à

Índia com o intuito de trabalhar na missão, mas que se desviavam dela com o

tempo, partindo para atividades de proveito próprio e algumas vezes praticando atos

que iam inteiramente contra seus primeiros princípios.

Precisamos também mencionar, além dos cleros regular e secular europeu,

o clero nativo que progressivamente se formou na Índia portuguesa. Esse clero,

porém, foi dificultosamente formado devido à relutância e desconfiança de alguns

arcebispos com relação à capacidade desses convertidos indianos em tomarem

parte do ministério sacro. Mesmo após as primeiras ordenações – que consistiu

substancialmente na formação de padres seculares, levando-se em conta que as

ordens religiosas dificilmente aceitavam o ingresso dos nativos – o caráter de

atuação desse clero indígena era inteiramente secundário à atuação portuguesa.

Durante muito tempo, esse ramo do clero foi considerado e usado simplesmente

como auxiliar dos clérigos europeus. Esses padres, “A princípio, eram catequistas e

auxiliares dos regulares europeus, únicos padres paroquianos durante esse período.

Aliás, este clero secular indígena era deliberadamente recrutado só entre as castas

mais altas [...]” (BOXER, 1981, p.25).

Havia sim, segundo cartas enviadas ao Império, indígenas preparados para

receberem as devidas ordenações. Ainda segundo Boxer (idem), algumas

autoridades e clérigos portugueses defendiam a ordenação e a formação

consistente de um clero nativo que progressivamente pudesse trabalhar ao lado do

clero europeu e até mesmo substituí-lo em casos onde houvesse necessidade.

Novamente recorremos a um trecho escrito a D. João III no ano de 1527, pelo frei

Gonçalo de Lamego:

Dos que qua temos reçebidos a religião casi todos são doutrinados já pera poderem tomar ordens sacras, se houvese quem lhas dese, pello qual fazemos saber a Vosa Alteza que sempre avemos de ter neçeçydade de quem as de. Mercê e esmola reçeberemos consultar isto com ho nosso Padre Ministro e provernos, segundo vir que he mais serviço de Deus e seu. (In: REGO, 1991, p.133)

Fica claro, no trecho acima, a existência de homens considerados como

preparados para assumir postos eclesiásticos, porém os clérigos na Índia estavam

31

impedidos de ordená-los por falta de autorização expressa de seus superiores e,

também, pela falta de um bispo para ordenar os novos padres. Percebemos isso por

meio do apelo que frei Gonçalo faz ao rei a fim de que este pudesse interceder a

esse respeito com seus superiores franciscanos em Portugal.

A despeito da resistência e diminuto esforço para a formação do clero

indígena, ainda assim podemos afirmar que este existiu: em número restrito sim,

mas pouco a pouco se desenvolvendo e alçando novos espaços na missão.

Variados são, também, os papéis sociais que os padres portugueses

assumem na colonização da Índia. Para além de meros eclesiásticos em viagem,

eles passam a exercer as mais diversas posições não só no que diz respeito aos

assuntos restritos à Igreja, mas ainda ocupando cargos e funções de serviço à

Coroa. Os padres portugueses assumiram, nesse processo, a superintendência das

ajudas e esmolas aos cristãos pobres, o controle dos hospitais e ainda

desempenharam um importante papel no que tange à educação nas terras indianas.

Assim, podemos afirmar que os padres das missões indianas trabalhavam na

assistência social, na saúde e na educação, serviços necessários ao contingente

português que agora ocupava aquele espaço e também aos próprios indianos que

em contrapartida de suas conversões muitas vezes demandavam estes auxílios por

parte do governo português das Índias.

No campo da saúde, os hospitais portugueses na Índia eram de extrema

importância e atendiam às populações locais e aos portugueses que necessitavam

de remédios para suas enfermidades. Os hospitais desempenhavam um importante

papel ainda por conta dos vários conflitos armados empreendidos pelos portugueses

no processo de colonização, onde muitos portugueses acabavam gravemente

feridos. Na documentação analisada são abundantes as listas de doações de

produtos como açúcar para xaropes, vinho para limpeza de feridas, tecidos para

lençóis, e mesmo de alimentação para os referidos hospitais. Tais doações partiam

das fortalezas portuguesas e, frequentemente, assinadas pelos respectivos clérigos

responsáveis pelos hospitais e boticas (farmácias).

Outro campo importante de atuação destes clérigos é o da assistência

social. Existiram, no tempo de colonização portuguesa das Índias, certos

favorecimentos e mesmo doações àqueles que se tornavam cristãos. Devido à

insuficiência de missionários ou mesmo aos métodos usados por estes, houve certa

deficiência no que toca à conversão das almas, durante os primeiros anos da missão

32

do Padroado no Oriente. Portanto, a fim de estimular as conversões, a Coroa

Portuguesa oferecia além de benefícios advindos da organização da colônia – tais

como cargos reservados a cristãos, favorecimentos em serviços – também o que

chamavam de esmolas aos cristãos pobres da terra. Forma-se então aquilo que

Boxer (2002, p.81) caracteriza como um grande contingente de “cristãos de arroz”:

um grande número de pessoas financeiramente desfavorecidas que se convertiam à

religião cristã tão somente no intuito de gozar dos benefícios que esta condição

social poderia lhes trazer. Salientamos que não são apenas os comentários que dão

conta dessa realidade, porém, temos amplo apoio na documentação analisada para

fazer tais afirmações.

Como exemplo, podemos nos remeter a vários documentos disponíveis nas

fontes primárias, que por vezes ordenam a doação desses gêneros alimentícios,

quando disponíveis nos almoxarifados das fortalezas indianas.

Alguns padres defendem fortemente o favorecimento e as esmolas como

instrumentos de “encorajamento” das conversões. O padre Sebastião Pires, na

condição de vigário geral de Cochim, escreve a D. Manuel em 1518: “Digo, Senhor,

que muita enfymda se faz christãa e muito mais se faria, sendo favorecyda dos

vossos portugueses, principalmente dos capitans e ofeciaees” (In: REGO, 1947,

p.340).

Tal política de favorecimentos e doações àqueles que se tornassem cristãos

só faz transparecer um aspecto das primeiras missões na Índia: o despreparo dos

padres missionários para a catequese e conversão dos nativos. Faltava a estes,

entre outras coisas, o conhecimento da língua, dos costumes, da religião e da

própria sociedade hindu. Na verdade, até 1542, a maioria das conversões atingiam

apenas as castas mais baixas da religião hindu: os párias. Isto porque estes,

segregados na sociedade indiana, achavam no cristianismo uma forma de

estabilidade social e eram também atraídos pelas doações alimentícias,

considerando-se o extremo estado de pobreza em que muitos desses viviam.

Esses dados históricos nos permitem refletir que os primeiros anos das

missões do Oriente não foram o que se pode chamar de satisfatórios. As conversões

na verdade eram em muito forçadas e os conversos eram um tanto quanto instáveis.

Os grandes favorecimentos que davam-se aos cristãos acabavam por intensificar

esse movimento de conversões superficiais.

33

Existia, ainda, um número de pessoas em algumas regiões da Índia que já

possuíam um tipo diferente de cristianismo quando os portugueses lá chegaram.

Segundo a tradição, foram resultantes de grupos cristãos primitivos fundados pelo

apóstolo Tomé, quando este estivera nas regiões da Índia durante o exercício de

seu ministério. Eram esses os chamados cristãos de São Tomé.

Para os cristãos portugueses, essa religião cristã presente nas Índias não

era de todo verdadeira, devido às suas diferenças com o catolicismo romano,

considerada por eles única e verdadeira religião. Muitas vezes, padres mencionaram

por carta a necessidade de ensinar a esses cristãos a “maneira certa” de seguir à fé.

A existência dos cristãos de S. Tomé só destaca mais algo já mencionado:

os padres portugueses pouco – ou quase nada – conheciam dos povos a quem

queriam evangelizar. Assim como não tinham informação prévia da existência

desses grupos cristãos, os padres também pouco conheciam as religiões que

estavam tentando refutar nas Índias. Por conta da evangelização, esses padres

depararam-se com o Hinduísmo, o Budismo, o Islamismo e ainda outros grupos

religiosos de menor destaque. Porém não houve esforço, nesse primeiro momento,

por compreender nem ao menos conhecer essas manifestações religiosas. Ao

contrário disso, ignoravam-nas, considerando-as totalmente como obras do diabo,

as quais não eram dignas de ser conhecidas e estudadas em maior profundidade.

Esse desconhecimento (ignorância) das religiões locais dificultou durante

muitos anos a formação de argumentos convincentes, que pudessem dar uma real

conversão aos povos da Índia portuguesa, sendo então necessários para essas

conversões a gama de favorecimentos e doações citadas acima. O

desconhecimento da língua dificultou em muito a formação de discursos e prédicas

inteligíveis aos nativos indianos.

Consideramos ser de grande importância a atuação dos primeiros padres

principalmente no que diz respeito à catequização e evangelização dos nativos. A

chegada dos portugueses em terras indianas, longe de pacífica, foi por muitas vezes

demasiadamente conflituosa. Portanto, a aculturação promovida por esses primeiros

propagadores da fé foi imprescindível para o sucesso de muitos empreendimentos

portugueses no Oriente.

A ação desses padres, do ponto de vista cultural, facilitou a penetração

portuguesa nos reinos orientais e seu convívio com os povos ali estabelecidos. À

medida que os padres ensinavam a doutrina cristã, acabavam por dar aos nativos

34

noções gerais (e às vezes até pormenorizada) da língua e dos costumes

portugueses. A presença dos padres pode ser considerada pedagógica, quando

levados em conta esses fatores.

Contudo, apesar dos esforços empreendidos pelos primeiros padres na luta

pela conversão das almas, verificamos pouca eficácia nesse sentido durante os

primeiros anos da missão. Pode-se atribuir este parcial insucesso a vários fatores

tais como o relaxamento disciplinar de alguns padres, o baixo ou nulo esforço dos

primeiros padres em aprender as línguas nativas a fim de facilitar sua comunicação

e pregação, assim como o desconhecimento (e desinteresse em conhecer) das

religiões e crenças locais. Ainda podemos adicionar a falta de recursos financeiros e

até mesmo de pessoal, ou seja, a própria falta de padres missionários. O seguinte

excerto ilustra a realidade dos primeiros anos das missões orientais:

Apesar da regularidade das missões, os resultados foram medíocres, tanto devido ao escasso número de missionários, como devido à incoerência da sua actividade, embora resultantes não só da sua fraca preparação para esse tipo de missões, como também do insuficiente apoio político português. Durante quase meio século, os progressos do cristianismo foram diminutos, quer no que concerne à evangelização dos “gentios e mouros”, quer relativamente à submissão dos cristãos de S. Tomé a Roma. (MANSO, 2009, p. 13)

Foram exíguos, nos primeiros anos, o número de conversões efetivas, pois

quando estas aconteciam, eram em sua maioria conversões superficiais de pessoas

com desejos de usufruir os bens e favorecimentos que os portugueses poderiam

lhes dar.

Evidente é que não podemos generalizar todos os esforços e todas as

conversões assim. Certo é que houve verdadeiros esforços e verdadeiras

conversões, porém

[...] foi a Companhia de Jesus, em seu papel de ponta-de-lança da Igreja militante, que tornou a luta pelas almas tão intensa e ampliada quanto a competição pelas especiarias. Os filhos de Loiola estabeleceram e mantiveram padrões muito mais elevados do que seus predecessores, e o notável desenvolvimento das missões portuguesas entre 1550 e 1570 deveu-se sobretudo à obra deles [...]. (BOXER, 2002, p. 81)

35

No Oriente este cenário não destoou: foi com a chegada dos jesuítas, a

partir de 1542, que deu-se o real e satisfatório impulso das missões. Vale também

lembrar que, mesmo com a chegada dessa nova ordem eclesiástica, os missionários

das antigas ordens continuaram na Índia e ainda sendo também enviados para a

missão oriental. Porém, a partir de sua chegada, os jesuítas adquirem um lugar de

certa forma privilegiado com relação às outras ordens e passam a desempenhar um

papel fundamental na formação da cristandade do além-mar. Esse aspecto será

pormenorizado na sequencia deste trabalho.

36

4. A COMPANHIA DE JESUS E A COROA PORTUGUESA

A Companhia de Jesus foi fundada em um momento de grandes embates

sociais, políticos e religiosos, contextualizados no século XVI. Essa ordem, em

essência, nasce num espírito missionário, com a inicial intenção dos fundadores de

ir à Jerusalém, a fim de retomá-la aos cristãos. Além disso, há de se considerar que

o desenvolvimento da ordem inaciana deu-se também impulsionada e influenciada

pelos ideais da chamada Contra-Reforma (ou Reforma Católica) preconizados pelo

Concílio de Trento.

A ordem iniciou-se formada por um grupo de padres em torno do espanhol

Inácio de Loiola, que à época propagava os seus Exercícios Espirituais. Tais

ensinamentos foram desenvolvidos por Loiola durante sua convalescença e

posterior peregrinação, que marcou um período de mudança em sua vida: de militar,

agora estava desejoso em dedicar-se a viver como religioso. Segundo Tavares

(2004, p. 92)

A trajectória religiosa de Inácio de Loyola iniciou-se quando convalescia de ferimento grave obtido na batalha de Pamplona em 1521 [...]. A convalescença [...] possibilitou a Loyola entrar em contato com dois livros [...] que grande impressão lhe causaram, despertando seu interesse pela vida religiosa e por seguir em peregrinação aos lugares santos. Depois de reestabelecido, Loyola executou o plano de peregrinação e, ao longo dessa viagem, desenvolveu os famosos exercícios espirituais [...]. (grifado no original)

Assim, difundindo os exercícios espirituais na Universidade de Paris, Loiola

juntou a si outros futuros companheiros, entre eles, notadamente, Simão Rodrigues,

Francisco Xavier, Nicolau de Bobadilha, Diogo Laiñez, Alonso de Salmerón e Pedro

Fabro. Assim,

O grupo inicial que se reuniu à volta do Fundador era formado por seis estudantes da Universidade de Paris entre os quais se contavam o navarro S. Francisco Xavier e o português Simão Rodrigues. A 15 de Agosto de 1534, em Paris, fizeram voto de castidade e de pobreza, na capela de S. Dinis, na colina de Montmartre, com promessa de ir em peregrinação a Jerusalém e pregar o Evangelho entre os infiéis. Se não pudessem realizar essa viagem dentro de um ano, iriam a Roma, pondo-se sob a obediência do Papa para que os enviasse onde entendesse. Foi o que veio a acontecer, já que a

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guerra com os turcos impossibilitou a partida de Veneza onde tinham esperado, em vão, passagem para a Terra Santa. (JESUÍTAS, 2012)

É importante recordar que, para além dos votos comuns às outras ordens

religiosas, os discípulos de Loiola optaram por um quarto voto, o de obediência

irrestrita ao Papa. No dia 27 de setembro de 1540, a ordem foi oficializada pela

Santa Sé, sob a bula Regimini militantis Ecclesiae, expedida pelo Sumo Pontífice,

Paulo III. A partir desse momento estava oficialmente criada aquela que se tornaria

um dos principais instrumentos reformadores da Igreja, a Companhia de Jesus

(COSTA, 2004).

O jesuíta Henrique Rosa (1954, pp. 39-40), discorrendo sobre como seria o

agir e fazer da nova Companhia, escreve:

Que era pois a nova Ordem? – Era uma espécie de milícia, arvorando por insígnia o nome de Jesus, e inscrita sob a bandeira da Cruz, para servir só ao Senhor e ao seu Vigário na terra, desejando principalmente auxiliar as almas na vida cristã, na doutrina, na propagação da fé, mediante pregações públicas e todo ministério da palavra de Deus, os Exercícios espirituais e as obras de caridade, em especial a instrução cristã às crianças e pessoas rudes, e a consolação espiritual dos fiéis no tribunal da penitência. Tudo isso porém devia realizar-se nos lugares e missões que fossem do agrado do Sumo Pontífice, a quem a nova milícia estava ligada, além do vínculo comum, por um voto especial de obediência, como a Vigário de Cristo. [...] Fundada assim a Companhia de Jesus em seus traços essenciais, trazia desde o berço o nome de seu Capitão, não com o intuito humano de salientar-se, mas para combater como um esquadrão ligeiro, pronto sempre a levar reforço aonde quer que chamasse a voz ou o aceno do chefe.

Porém, antes mesmo de ser oficializada, a Companhia iniciou aquilo que

Costa (2004, p.25) denominou como uma “próspera relação” com a Coroa lusitana,

na pessoa do rei D. João III. Ainda segundo o mesmo autor, data de 1538 o primeiro

documento em que os inacianos são mencionados ao referido monarca português.

Assim, quando de sua oficialização, a Companhia já contava com o apoio de

Portugal, tanto que, nos anos que se seguiram, tornou-se a principal ordem a atuar

sob a bandeira do Padroado luso.

Desde que informado por Diogo de Gouveia, embaixador português em

Paris, sobre esses novos padres renovados, D. João III manifestou o interesse para

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que os mesmos trabalhassem como evangelizadores das conquistas portuguesas.

Ainda em 1539, o mesmo rei escreve a seu embaixador em Roma, D. Pedro

Mascarenhas para que este verifique a veracidade das informações recebidas e, em

caso de veracidade, convidasse os ditos padres a exercerem seu ministério sob a

Coroa lusitana.

O embaixador entrou em contacto com Loyola e com o Papa, solicitando seis padres para o propósito revelado pelo soberano português. Mas como isso ocorreu nos momentos iniciais da fundação da ordem, só foi possível a destinação de dois religiosos: Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilha. O segundo veio a adoecer e em seu lugar foi designado Francisco Xavier. [...] Em 1540 chegaram a Lisboa[...]. Os dois causaram grande impressão na corte portuguesa [...], fazendo com que o rei retivesse Simão Rodrigues para o trabalho religioso em Portugal, enviando Francisco Xavier para o Oriente, em 1541. (TAVARES, 2004, p. 102)

A partir destes primeiros contatos, os inacianos não mais se ausentaram do

território e das missões portuguesas – isto é, até o ano de 1759, quando de sua

expulsão deste território, pelo Marquês de Pombal. Nas terras lusas, os jesuítas

tiveram grandes e duradores empreendimentos como mosteiros, colégios, igrejas e

outros, sempre sob os auspícios e apoio da Coroa.

Sua atuação destacou-se, principalmente, pelo impacto que causou às

missões lusas do ultramar, especialmente na Índia e no Brasil. Os métodos de

trabalho dessa nova ordem fizeram com que o Padroado alcançasse resultados até

então não experimentados desde sua criação. O constante esforço desses padres

pelas conversões de nativos fez com que o número de convertidos se multiplicasse

quase que “a cada dia” nas terras dos domínios portugueses. Esse assunto, porém,

será detalhado na sequencia do trabalho.

É deveras importante salientar, mais uma vez, que a Companhia de Jesus

expressa a realidade de um momento. Sua constituição, formação e atuação retrata

também o desejo reformador da Igreja, advindo do contexto tridentino. O jesuíta é,

novamente nas palavras de Costa (2004, p. 118), um “instrumento da Reforma

Católica”. Segundo o autor, essa estreita ligação com as discussões de Trento pode

perceber-se nas Constituições da Companhia de Jesus “quando se encontra

naquelas regras e normas a valorização da formação intelectual dos futuros padres”

(idem, p. 127). Corroborando a tese, citamos Manso (2009, p. 132), que afirma:

39

A política missionária dos jesuítas fez parte integrante da renovação tridentina da Igreja Católica. A formação a ser ministrada ao clero passou a ser uma das principais preocupações. Para isso foram criados seminários, destinados à preparação de homens capazes de executarem com rigor as tarefas pastorais: pregação, liturgia e administração dos sacramentos. [...] A Companhia de Jesus foi a Ordem que melhor respondeu às novas exigências doutrinais [...].

Ainda segundo a autora, o jesuíta passa a representar a valorização dos

sacramentos, da pregação e da liturgia católica propriamente dita. Isso ocorre em

resposta direta ao Protestantismo que, em sua pregação, desvalorizava os ditos

sacramentos, atribuindo o valor primordial à chamada “justificação pela fé” (idem, p.

132).

Parece possível afirmar que um dos motivos mais plausíveis para a escolha

dos jesuítas como a nova ordem para as missões portuguesas foi justamente o

caráter renovador que a mesma apresentava. A essa altura da história, já havia se

passado quase meio século de missões no Oriente, e os resultados continuavam

exíguos. A renovação, a mudança, poderia resultar numa transformação desse

quadro, o que de fato ocorre anos mais tarde. Ao trazer a Companhia para Portugal

e domínios, D. João III pretendia contar com esses padres para a Reforma da Igreja

no reino e nas conquistas, ainda que Portugal nunca tivesse sentido os impactos da

Reforma Protestante. Ainda assim, mesmo sem efeitos protestantes, a Igreja em

Portugal necessitava de uma renovação, necessidade que se fazia ainda mais

premente no Oriente e mesmo no Brasil. A legitimar tal constatação, lemos, em

Manso (idem, p. 37-38) que:

Interessado em renovar as actividades do clero e religiosos que se movimentavam nos espaços ultramarinos, o rei parece ter encontrado na formação e programa da nova Companhia uma possível saída para o incremento da evangelização dos espações asiáticos. [...] Os jesuítas haviam inserido no coração de seu carisma a castidade, a obediência e a pobreza, comprometendo-se a deslocarem-se para onde quer que o Papa os quisesse enviar, características que dotaram imediatamente a Companhia de um grande dinamismo e sentido de eficácia que se viria a revelar instrumentalmente útil nos complexos espaços da presença oriental portuguesa.

Na continuidade de sua análise, a autora refere-se à Companhia como um

instrumento necessário à missionação oriental, devido ao insucesso até então

experimentado mesmo pelas ordens mendicantes. Destaca, também, a já referida

40

precária preparação dos religiosos face às complexas religiões orientais e o reduzido

número de padres existentes nas missões até então. Completa afirmando que a

disciplina e a hierarquia próprias da Companhia davam a esta condições de triunfar

onde outros haviam fracassado. Tal triunfo representaria, na prática, maior

aculturação de nativos, gerando maior “colaboração” dos mesmos com o domínio

pretendido pelo Império.

Dessa forma, afirmamos que a chamada dos jesuítas à Portugal e domínios

expressa a urgência sentida por D. João III de um projeto de evangelização que

realmente impactasse as conquistas orientais, alargando o Cristianismo, elemento

crucial para agregação de tão vasto território. Se havia algo que unia portugueses e

dominados sob uma só identidade, um só governo, um só Império, era o fato de

terem uma só religião. Este foi o elemento aglutinador do Império Português durante

toda sua existência. O fracasso da evangelização oriental representaria, ao longo

prazo, o fracasso do próprio domínio português naquelas partes. Para que tal não

ocorresse, o Rei agrega um novo e poderoso instrumento a seu Padroado: a

Companhia de Jesus.

Inácio de Loiola, por sua vez, conhecia a necessidade de uma agência

financiadora do crescimento de sua recém-nascida ordem, e enxergou na Coroa

Portuguesa tal possibilidade. Ao receber proteção e impulso da Coroa que

representava um dos mais influentes poderes políticos da época, Loiola estava

recebendo uma importante legitimação da importância de sua nova ordem dentro

dos entraves próprios ao contexto do século XVI.

41

5. MISSÕES NO ORIENTE SOB A COMPANHIA DE JESUS

Data de 1542 a chegada do primeiro representante da Companhia de Jesus

às terras indianas: era ele o Padre Francisco Xavier. Como já mencionado, as

missões orientais sob a bandeira desta ordem religiosa diferiram em alguns pontos

dos trabalhos anteriormente realizados, tanto que tais diferenças puderam ser

percebidas a longo prazo, no tocante ao número de convertidos ao cristianismo

assim como a qualidade destas conversões.

Nesse capítulo do trabalho, abordaremos a presença e a atuação jesuítica

propriamente dita, contrapondo as atividades da Companhia com as atividades dos

demais religiosos, sempre que as fontes nos permitirem. A fim de melhor alcançar

nosso intuito, lançaremos mão de uma grande gama de citações das fontes

primárias, constituindo-se, na maioria, de cartas dos inacianos, especialmente do

padre Francisco Xavier. A utilização destas fontes no corpo do trabalho visa dar ao

leitor a noção exata do trabalho dos padres jesuítas na visão e descrição dos

próprios membros da Companhia.

Logo que chega a Goa, Xavier escreve uma carta destinada à corte

portuguesa, datada de 20 de setembro de 1542, a fim de informar sobre a viagem

que fora feita e os primeiros contatos naquelas terras (In: REGO, 1950, p. 26-34).

Por meio dessa correspondência, podemos observar já as primeiras impressões que

o padre recebe em seu novo campo missionário.

Já de início, Xavier deixa claro que havia muito trabalho a ser realizado na

Índia, e que seu empenho seria para que tal trabalho não fosse negligenciado. Em

sua carta, faz menção de visitas aos enfermos, confissões, pregações e ensinos.

Pode-se perceber o vigor missionário e a crescente atividade deste padre, dando

inicialmente como exemplo o seguinte excerto:

Aquí em Goa possé en el espital. Confesava y comulgava los enfermos que ay estavan; eran tantos los que venían a confesarse, que, si estuviera em diez partes partido, en todas ellas tuviera que confesar. Después de cumplir con los enfermos, confesava por la mañana los sanos que me venían a buscar; y después de mediodía yva a la cárcel a confesar los presos, dándoles alguna orden y entiligencia primero del modo y ordem que avían de tener para confesarse generalmente. Después de aver confesado los presos, tomé una ermita de nuestra Señora, que estava cerca del espital, y

42

ay comencé a enseñar los mochachos las oraciones, el Credo y los mandamientos; pasavan muchas vezes de trezientos los que venían a la dotrina cristiana. Mandó el Señor Obispo que por las otras yglesias se hiziese lo mesmo, y así se continua agora, donde el servicio que a Dios nuestro Señor em esto se haze es mayor do lo que muchos piensan. (idem, p. 31-32)

As atividades descritas por Xavier dão ideia de tudo o que se tinha por fazer

pelos cristãos da Índia, tanto pelos portugueses quanto pelos naturais da terra.

Destacamos o discurso acima, pois, a voz de Xavier é, por assim dizer, a

representação da voz da Companhia de Jesus na Índia. Não só nos documentos,

mas na historiografia, encontramos frequentemente menções a Xavier como

cavaleiro de Cristo, apóstolo do Oriente e outros. Lemos em um dos autores

estudados que:

O campo mais almejado pela nova milícia era todavia o além-mar, principalmente os países descobertos havia pouco pelos portugueses. O cavaleiro navarrino [Xavier] que o abrira e percorrera como intrépido explorador, ou antes como verdadeiro apóstolo de Cristo, chamava para lá com ferventes cartas a seus irmãos, a fim de continuarem e assegurarem aquelas conquistas para a fé. (ROSA, 1954, p.108)

Até sua morte, em 1552, Xavier será o homem a quem os jesuítas terão de

respeitar na Índia, será seu superior oriental. As atividades daquele padre

representam não apenas uma individualidade, mas carregam em si a significação da

postura de um grupo: a Companhia de Jesus. Durante toda a sua vida e mesmo

após sua morte, Xavier era lembrado pelos irmãos da Companhia como um modelo,

um exemplo a ser seguido. Desta forma, ao nos referirmos às atividades

xavierianas, estamos nos referindo às atividades que posteriormente seriam

adotadas e imitadas por todos os demais jesuítas que fossem missionar em terras

indianas.

O primeiro aspecto que queremos então destacar na Companhia de Jesus é

a polivalência que os ditos padres desempenharam no Padroado Oriental. As

atividades eram as mais diversas possíveis, como se vê no documento. Onde quer

que chegavam os jesuítas ocupavam-se primeiramente por levantar todas as

hipóteses de evangelização possíveis. A partir do crescimento do número de padres

dessa companhia no Oriente, os mesmos passaram a estar em todos os lugares

imagináveis para o trabalho cristão: prisões, hospitais, orfanatos, fortalezas, no

43

ensino das crianças portuguesas e nativas, enfim. Todas as possibilidades de

“acrescentamento da santa fé católica” não eram desperdiçadas. Esse aspecto deve

ser salientado, pois revela em si novamente a ligação entre o programa da

Companhia e os ideais pretendidos no Concílio de Trento.

O papel modelador que a Igreja Católica adquiriu na época Moderna vai ser transplantado para os novos espaços geográficos ultramarinos. O religioso envolvia e regia todos os momentos solenes do indivíduo, desde o nascimento até a morte, passando pelo baptismo, pelo casamento e outras manifestações sociais. Aliás, os mecanismos que a Igreja pós-tridentina encontrou para homogeneizar o comportamento do cristão europeu vão ser, mutatis mutandis, também utilizados na Índia: a catequese, as procissões, os sermões, as festas, a assistência e a protecção. (MANSO, 2009, p.124)

A atividade da Companhia é tão intensa que, a partir de sua chegada no

Oriente, é como se as outras ordens “embotassem” nos relatos que lemos nas

fontes. Ainda segundo Manso (idem, p.14):

Os inacianos encontraram no enclave português um espaço social que lhes permitiu afirmarem-se em relação às restantes ordens, mobilizando a preparação trazida das Universidades e, depois, seminários europeus que, aliada a novas metodologias de pregação e circulação religiosas, fizeram mesmo com que o número de cristãos aumentasse significativamente em muitos espaços de presença portuguesa, pelo menos em comparação com a época precedente.

Na realidade, não houve um rompimento com os antigos trabalhos, mas,

pouco a pouco, a Companhia foi se apropriando (ou sendo apropriada) de

praticamente toda a estrutura que havia sido construída pela Igreja e pelas outras

ordens eclesiásticas na Índia. Podemos afirmar que o número de jesuítas nestes

espaços também foi gradual e paulatinamente acrescido pelo sucessivo envio de

missionários ao grupo de Xavier e ao grande favorecimento dado a estes clérigos

pelo rei português. Novamente, conforme Manso (idem, p.133-134),

Os mecanismos traçados para as missões da Índia, a partir de 1542, davam sequencia ao que as outras Ordens já tinham definido como política missionária. [...] No entanto, tinham-se criado estruturas que vão ser aproveitadas e desenvolvidas pelos inacianos, nomeadamente na questão assistencial [...]. Embora a coroa portuguesa se tivesse empenhado desde sempre nesta matéria, nesta altura tudo passou a ser feito de forma mais

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planificada. Foram criadas condições políticas e económicas que permitiram ao missionário actuar de forma mais eficaz. D. João III tomou medidas que aceleraram toda a obra missionária na Índia [...].

Veja-se que, além dos novos métodos da Companhia, o impulso das

missões orientais deu-se também devido ao fato de que D. João III, neste momento

histórico, concede à estas missões maiores condições tanto políticas quanto

financeiras para desenvolvimento das mesmas. A predileção do monarca pela

Companhia fez com que este, além de enviá-la desse-lhe as condições necessárias

ao sucesso de sua empreitada.

Em geral, os jesuítas pareciam interessados também na educação e cuidado

das almas dos portugueses, aventureiros do além-mar, assim como de seus filhos.

Porém, o que chama atenção nas cartas analisadas é que, diferindo das antigas

ordens, os inacianos davam muito mais atenção e dedicavam-se sobremaneira na

conversão dos nativos. A grande missão da Companhia era essencialmente a de

levar o evangelho àqueles que ainda não o conheciam. Tal fato evidencia-se em

muitas passagens documentais, podendo ser observado que, via de regra, os

jesuítas que chegavam à Goa eram logo dispersados pelo território de domínio

lusitano, à busca de aldeias, povoados, lugares onde ainda não houvesse clérigos

ou igrejas, para ali erigir uma base para seus trabalhos de catequese e

evangelização. A busca das almas e a salvação dos gentios estavam na ordem

primaz da missão jesuítica oriental.

O esforço dos jesuítas para converter os nativos é tão real e intenso que,

diferentemente das missões anteriores, as jesuíticas desejavam não apenas o

batismo dos nativos, mas a real conversão e compreensão dos mesmos. Por meio

das cartas de Xavier, e mesmo das instruções que este envia aos seus

subordinados, percebemos que estes padres desejavam que os nativos

primeiramente compreendessem o evangelho, bem como os chamados artigos de fé

para posteriormente serem batizados e contados como cristãos. A despeito dos

anos anteriores que havia produzido o grande contingente dos já citados “cristãos de

arroz” (BOXER, 2002) os jesuítas agora se esforçavam não só por números de

cristãos, mas também, e principalmente, pela qualidade dessas conversões.

Desejavam os jesuítas conversões conscientes e verdadeiras, a fim de que

mostrassem também conversões duradoras.

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Nesse sentido, impunha-se um novo desafio para a política missionária da

Companhia: até sua chegada no Oriente, os antigos detentores das missões haviam

realizado um raso ensino do português aos nativos, para que, de posse da língua

lusitana, estes pudessem ser catequizados. O problema é que, devido à

complexidade da língua portuguesa, muitos nativos aprendiam apenas o essencial,

ficando privados de muitas palavras e expressões necessárias à efetiva

compreensão do catecismo. A não-compreensão da língua portuguesa, aliada à

complexidade de algumas doutrinas do cristianismo juntavam-se para produzir as já

supracitadas conversões, muito mais emocionais e interesseiras do que racionais.

Compreendendo tal impasse, a Companhia, por sua vez, adota uma forma

diferente de evangelização: os padres missionários é que aprenderiam a língua dos

nativos e, por consequência, traduziriam os artigos de fé e a catequese para a

linguagem local. Essa atividade foi o que podemos chamar de revolução no ensino

cristão para os nativos. A comprovar nossas afirmações, citamos Xavier em carta

aos jesuítas em Roma, datada de 15 de janeiro de 1544, contando sobre os diálogos

que tivera com alguns cristãos nativos, no início de sua missionação oriental:

[...] y demandándoles acerca de los artículos de la fee, lo que creyan, o tenían más aora que eran christianos que quando eran gentiles, no hallava em ellos otra respuesta, sino que eran christianos, y que por no entender ellos nuestra lengua no sabían nuestra lei, ni lo que avían de creer; y como ellos no me entendiessen, ni yo a ellos, por ser su lengua natural malavar y la mía bizcaína, ayunté los que entr’ellos eran más sabidores, y busqué personas que entendiessen nuestra lengua y suia dellos. Y después de avernos ayntado muchos días con garnde trabajo, sacamos las oraciones, começando por el modo de sanctiguar, confessando las tres personas ser um solo Dios: después el Credo, mandamientos, Pater noster, Ave María, Salve Regina, y la confessión general de latín en malavar. Después de aver sacado em su lengua y saberlas de coro, iva por todo el lugar con uma campana en la mano, ayuntando todos los muchachos y hombres que podia, y después de averlos ayntado, los enseñava cada día dos vezes; y en espacio de un mes enseñava las oraciones, dando tal orden, que los muchachos e sus padres y madres, y a todos los de casa y vezinos, enseñassem los que en las escuela deprendían. (In: REGO, 1950a, p. 56)

Compreende-se, nesta narração de Xavier que, em seu contato inicial com

aqueles nativos que se declaravam cristãos, ele espanta-se por não conseguir dos

mesmos nenhuma resposta sobre em quem, por que, ou como criam nas coisas da

fé cristã. Inconformado, o padre encontra meios para traduzir as orações,

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mandamentos e artigos de fé à língua nativa. Além disso, Xavier conta a seus

confrades que, após decorar as traduções, saiu pelos lugares onde havia cristãos

para ensiná-los a fé cristã em língua materna. A ordem do padre era para que, tanto

quanto possível, os próprios cristãos ensinassem aos parentes, vizinhos e demais

cristãos as orações e mandamentos aprendidos. Na continuação da carta, Xavier

afirma que os nativos muito se alegravam em aprender as orações em sua língua:

Los domingos hazía ayuntar todos los del lugar, así hombres como mugeres, grandes e pequeños, a dizir las oraciones em su lengua; y ellos mostravan mucho plazer, y venían com mucha alegría. Y començando por la confessión de un solo Dios, trino y uno, a grandes bozes dezían el Credo en su lengua y ansí como yo iva dizendo todos me respondían; [...]. (idem, p. 56, sem grifos no original)

Já o padre jesuíta Henrique Henriques, em carta datada de 1546 aos seus

confrades em Coimbra, demonstra sua comoção ao deparar-se com a celebração de

uma missa em língua nativa:

Que consolação vos parece que receberiam nossas almas, quando nós, chegando a casa e entrando na igreja víssemos estar pregando a huum Irmão dos que aqui estão em casa em sua mesma lingua aos christãos naturaes da terra! Quid dicam, ver-lhes aos Irmãos desta casa oficiar huma missa e rezar suas vesperas tudo entoado! Não vos poderieys ter, Irmãos, que de prazer não chorasseis. Hé cousa pera muito se louvar o Senhor, ver que os que eram gentios e ministros do demonio e que aviam de ser sacerdotes dos ídolos agora nos incitem louvar a Deus. (idem, p. 377-378)

A atividade de tradução e difusão do evangelho nas línguas nativas tinha por

objetivo essencial dar aos indianos o acesso às verdades cristãs, assim como

proporcionar a já citada compreensão das mesmas de forma mais efetiva e próxima

à cultura local.

Outro diferencial no processo de ensino e catequese jesuítica é a ênfase

dada à intervenção cultural e religiosa aplicada sobre as crianças. Não queremos

afirmar com isso que os padres jesuítas não trabalhavam ensino e catequese junto a

adultos, porém, as instruções aos missionários nas Índias estão sempre permeadas

pela constante lembrança do “ensino dos meninos”.

Percebe-se, também, nos escritos jesuíticos que, em suma, estes

acreditavam numa maior eficiência do ensino (tanto da língua quanto da catequese)

47

quando aplicada às crianças. É frequente a preocupação do próprio Xavier quanto

ao tempo dependido a este departamento da missão oriental. No Brasil, apenas para

anotar a mesma atitude dos jesuítas, Anchieta chega a mesma conclusão.

Podemos enumerar alguns motivos para tal crença: primeiramente,

compreende-se que a criança tem, essencialmente, um espírito mais receptivo ao

aprendizado. Assim ficaria mais simples e eficaz o ensino da língua portuguesa, da

gramática e mesmo dos dogmas cristãos, por exemplo.

Em segundo lugar, as crianças, como seres ainda em formação moral e

intelectual não estavam – na opinião dos jesuítas – tão ligadas e enraizadas às

crenças e religiões locais como estariam seus pais e outros adultos. A vivência da

criança e sua relação com o sagrado das religiões locais seria menor. Dessa forma,

a existência de crenças pré-estabelecidas e o impedimento de uma religião

precedente não estariam tão fortes nas crianças como nos adultos. Como seres em

formação, seria mais fácil incutir na consciência das crianças a religião cristã, e,

segundo alguns escritos jesuíticos, seria mais difícil que estes pequenos se

“desviassem” das verdades aprendidas.

Em terceiro lugar, além de ensinar as crianças nos dogmas católicos, os

padres da Companhia de Jesus os incentivavam a divulgar as verdades aprendidas

aos parentes, pais, amigos a outras crianças... São fartas as referências a meninos

que “sabiam as orações” e que as repetiam nas casas, nas missas ou em outros

lugares onde houvesse atividades e celebrações cristãs.

Ao instruir seus subordinados, o padre Xavier insiste no ensino das crianças

e ordena o estabelecimento de escolas por onde quer que os jesuítas passassem.

Nesse ponto, afirmamos que a política missionária jesuítica no oriente guardava um

lugar central para a figura infantil: a criança que deveria ser salva, ensinada nas

verdades cristãs. A importância dada ao ser infantil é tão grande que Xavier também

relembra constantemente seus missionários sobre o batismo dos recém-nascidos.

Segundo o provincial, os padres da Companhia deveriam acompanhar,

pessoalmente, os nascimentos que ocorressem no local onde estavam, a fim de não

deixarem que nenhuma criança viesse a morrer sem o batismo.

A atenção posta sobre esse assunto explica-se pelo alto índice de

mortalidade infantil presente na época e lugar relatados. A partir da crença cristã no

batismo como garantia de salvação dessas crianças, urgia ao jesuíta garantir que

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todos os bebês a seu redor participassem desse sacramento, pois, mesmo que

estes viessem ao precoce óbito, teriam garantida sua salvação.

Escrevendo instruções ao padre Francisco Mansilhas, em 1544, Xavier

afirma:

O ensino dos meninos vos emcommendo muito, e as crianças que nascem com muita deligencia as baptizareis; e pois os grandes nem por mal nem por bem querem hir ao paraizo, ao menos que vão as crianças que depois de baptizadas morrem. (idem, p. 93)

Destaque-se a indignação de Xavier sobre os adultos que, segundo ele, não

desejam nem querem ir ao paraíso prometido, nem por bem nem por mal. Portanto,

o padre conclui, em outros escritos, que boa parte dos recursos – tanto financeiros

como de pessoal – deveriam ser aplicados, com maior retorno, na catequese infantil.

Em outra carta, novamente ao padre Mansilhas, Xavier prevê até mesmo gastos

para este ensino:

Para o ensino dos meninos tomareis emprestados em poder de Manoel da Cruz de Punicale, vosso amigo, cem fanoens, os quais gastareis em pagar aos que ensinão aos meninos, emformando- {v} os deles o que eu lhes sohia a pagar, e nisto fareis muito serviço a Deos. (idem, p. 113)

Em outro momento, ainda em carta a Mansilhas, Xavier reforça as instruções

para a abertura de escolas, bem como sobre seu funcionamento:

[...] e em cada lugar metereis uma escolla para ensinar meninos, {com um mestre que os ensine. Podereis tomar do dinheiro que vos for necessario para o mestre e ensino dos meninos} athé 150 franoens; e por todos os lugares dessa Costa deixareis pago os que ensinão os meninos athé a pescaria grande, e para vossos gastos demandareis dinheiro ao cappitão. (idem, p. 129-130)

Os dois trechos documentais por último apresentados datam de 1544. Essa

data nos faz acreditar que a política de investimento no ensino das crianças gerou

os “frutos” esperados pelos jesuítas pois, em sua instrução aos missionários da

Costa da Pescaria e Travancor, já no ano de 1548, Xavier continua insistindo nas

mesmas ações: batismo e ensino das crianças.

49

1. Primeiramente vos occupareis com muita deligencia, nos lugares que vizitardes ou tiveres a cargo, de baptizar as crianças que nascem, por ser este hum feito mayor que nestas partes se pode, hindo de caza em caza, pelos lugares que andardes vizitando, preguntando se ahi há alguma criança para baptizar, levando comvosco alguns meninos do lugar para vos ajudarem a preguntar. 2. E não confieis em meirinhos nem em outras pessoas, que vos vierem dizer quando alguma criança nasce, pelo descuido que nestes cabe, e perigo que corre {m} as crianças de morrerem sem baptismo. 3. Occupar-vos heis muito em os lugares onde estiverdes, ou lugares que vizitardes ou tiverdes cargo, de fazer ensinar aos meninos a doutrina christã, fazendo com muita deligencia ajunta-llos, e emcommendando aos moradores que os ensinem com muita deligencia, e que fação seu officio; tomando-lhe conta de quantos sabem as oraçoens, para quando outra vez o{s} vizitardes, acheis mais fruito, sabendo elles a conta que lhes haveis de pedir: e este fruito dos meninos hé o principal. (idem, 1950b, p. 39-40, sem grifos no original)

Deve observar-se como, no fim do trecho apresentado, o provincial deixa

clara sua intenção, destacando com a palavra “principal” os frutos que deveriam ser

obtidos por meio das crianças nativas. Se esta missão fosse bem sucedida, na

opinião de Xavier, futuramente “muito mais fruto” se faria por meio desses jovens

cristãos.

As formas de trabalho da Companhia realmente passaram a surtir o efeito

desejado na Índia. O número de cristãos não apenas aumentou, como cresceu

também a qualidade das conversões e o conhecimento dos conversos acerca da

religião que adotavam. O sucesso missionário está estampado em documentos da

época, tanto de jesuítas quanto de admiradores dos mesmos.

O jesuíta Manuel de Moraes, escrevendo aos confrades de Roma em 1549,

afirma ter batizado 600 pessoas na Costa do Malabar, num espaço de 13 meses

(idem, pp. 212-217). Comparados com os números registrados antes da chegada

dos jesuítas, estes refletem a tenacidade com que os mesmos se empenhavam para

o incremento das conversões.

Os elogios à forma de ser da Companhia de Jesus, como já afirmado, vêm

por todas as partes. Não encontramos, como já assinalado, os relatos de sucesso

apenas nas cartas dos padres da Companhia. Se isto acontecesse, haveria

possibilidade de contestação da veracidade dos relatos. Dessa forma, vários são os

exemplos de pessoas alheias à Ordem que, escrevendo a Portugal (seja ao rei, à

rainha, a superiores) tecem elogios aos inacianos presentes nas terras orientais,

50

bem como relatam os êxitos de sua atuação. O cruzamento das informações das

cartas jesuíticas com as contidas nas cartas de pessoas que não pertenciam à

Companhia apenas reforça a veracidade dos relatos de ambas as partes.

Como exemplo disso, destacamos alguns trechos que comprovam nossas

afirmações. Um leigo, Tomé Lobo, escreve ao rei D. João III no ano de 1548,

salientando os serviços prestados pela Companhia e o fato de que estes padres não

tomavam dinheiro como pagamento de suas atividades:

Gramde serviço a Deus se faz qua nestas partes em todas estas religiões, e primcipallmente na Ordem de Jesus por estes apostollos, porque nos fazem em estremo bons cristãos, pera o que eramos, de que Vosa Alteza deve ter gramde contentamento; todo ano sempre em sua casa São Paullo há comfesar e comungar muita gente, e quamdo o padre Mestre Francisco aquy esta, pregação sempre de gramde doutrina, [...]. São todos muyto virtuosos e de gramde humildade; por mysa nem cousa que fação não levam dinheiro, nem no tomam na mão [...] (idem, p. 69-70)

Tal relato, além de elogiar a Companhia e Xavier em particular, nos chama

atenção por outro motivo: o autor da carta compara o estado do cristianismo

português na Índia antes e depois da Companhia. Veja-se que é afirmado “nos

fazem em estremo bons cristãos, pera o que eramos”. O autor admite que, antes da

chegada dos padres jesuítas eles (os portugueses) não eram, ou não estavam

sendo bons cristãos. Vale aqui frisar que o impacto da missão jesuítica deu-se não

apenas sobre os nativos, mas também sobre os cristãos portugueses que estavam

no além-mar.

É certo que a postura do jesuíta, sua preparação, e o rigor da própria ordem

trouxeram aos portugueses lembranças do catolicismo que era praticado no Reino.

Dessa forma, muitos daqueles lusitanos que haviam aderido ao relaxamento moral e

religioso que se fazia no Oriente, sentiam-se agora cobrados (e amparados) a

praticar novamente o verdadeiro catolicismo.

Outro fator que chama atenção de Tomé Lobo, sendo digno de ser escrito

em sua carta, é o fato de os inacianos não receberem pagamentos por suas

atividades eclesiásticas. Os padres da Companhia eram sustentados diretamente

com recursos advindos da Coroa, e o fato de não se aproveitarem da situação em

que se encontravam no Oriente para angariar recursos excedentes chamava

51

atenção dos portugueses, principalmente quando comparada esta postura com as

posturas dos primeiros padres desta missão.

Outro elogio aos jesuítas é tecido por D. João de Albuquerque, bispo de

Goa, em carta também a D. João III, no ano de 1548. Em sua descrição da

Companhia, o bispo chega a afirmar que até aquele momento não haviam ido à

Índia homens mais fervorosos que os jesuítas, destacando o cuidado, a diligência e

a dedicação com que esses doavam-se na realização de suas missões. D. João de

Albuquerque escreve:

Item. Por espiriemcia acho não averem vimdo a esta terra omens de mais fervor, e de mais cuidado e diligemcia pera o caso da christãodade e comversão dos imfieis, e ajuda dos portugueses pera se salvarem, que os padres da Companhia de Jesu. Eles cada dia vão ao esprital a comfesar e servir os emfermos [...]. Comfissõis jerais de muita jemte omrada, que temos casi todo ano coresma; visitão as irmidas; pregão por elas aos canarins // moços gramdes da mesma terra na limguoa [...] (idem, p. 135)

Muitos outros exemplos temos de cartas dirigidas ao Reino em cujo bojo

encontram-se menções à Companhia. Esses padres conseguiram, no executar de

suas funções, conquistar a simpatia e o respeito daqueles que os rodeavam. É

evidente que, como todas as demais ordens, os jesuítas possuíam seus opositores,

mas o fato é que a grossa maioria dos portugueses (e mesmo dos cristãos indianos)

admiravam e respeitavam a forma como os jesuítas portavam-se religiosa e

secularmente.

O fato de serem bem vistos pela comunidade portuguesa e também pela

nativa, não era aleatório. Na verdade, ser benquisto pelas pessoas à sua volta era

uma orientação jesuítica. Nos escritos de Xavier, vamos encontrar várias vezes

recomendações aos missionários, aconselhando aos mesmos que fossem sempre

amáveis, agradáveis e que ganhassem, intencionalmente, a simpatia tanto das

autoridades portuguesas, como das autoridades locais e ainda, dos naturais da

terra.

A intencionalidade é algo que permeia sempre a atuação jesuítica, tanto no

Oriente como na Europa e mesmo no Brasil. Os jesuítas são os padres que,

segundo Costa (2004), agem racionalmente, tendo claros os objetivos e fins das

ações empreendidas. Vemos nas cartas de Xavier que o bom missionário deveria,

necessariamente ser admirado e amado pelo público alvo de sua missão.

52

Novamente recorrendo às instruções de Xavier aos jesuítas da Costa da Pescaria e

Travancor, escritas em 1548, lemos que estes padres deveriam “estar bem” com os

capitães, com os portugueses, com os padres de outras ordens e com os nativos:

12. Com o cappitão vos havereis muito benignamente, de modo que por nehuma couza quebreis com elle. Com todos os portuguezes desta Costa procurareis de viver em paz e amor com elles, e com nenhum estareis mal, ainda que elles queirão. Os aggravos que elles fizerem aos christãos com amor os reprehendereis; quando nelles não houver emmenda, fa-llo heis a saber ao cappitão. Outra vez vos torno a emcommendar que por nenhuma couza esteja{is} mal com o cappitão. [...] 14. Aos padres da terra os favorece{re}is nas couzas spirituaes [...]; e delles não escrevais mal a ninguem[...] [...] 16. Procurareis com todas vossas forças de vos fazer amar {d}esta gente, porque, sendo {d}elles amados, fareis muito mais fruito que sendo delles aborrecidos. (IN: REGO, 1950b, pp. 41-42)

As estratégias acima traçadas por Xavier nos dão uma pequena

demonstração de outra característica peculiar do trabalho missionário da

Companhia: a adaptação. Segundo o que compreendemos das instruções de Xavier

a seus subordinados, bem como da maneira de trabalho da Companhia como um

todo, o jesuíta deveria adaptar-se ao meio no qual seu trabalho seria realizado.

Manso (2009, p.130) afirma que “A adaptação é considerada por alguns

missionários como uma pré-evangelização, [...] um momento de estudo e apreço

pelas culturas indígenas, abrindo, dessa forma, o caminho ao processo missionário.”

Já segundo Costa (2004, p. 167):

A necessidade da adaptação tanto no discurso, como da metodologia empregada e até do comportamento exterior dos padres jesuítas em missão foi resultado principalmente do enfrentamento de culturas e religiões tão diferentes da cristã-ocidental. Quanto mais complexas eram a vida e a religião dos outros povos, crescia a necessidade de adaptação, aumentando a necessidade de avaliar profundamente quais as estratégias necessárias para realizar a evangelização.

Retomamos aqui o fato de que os padres da Companhia esforçaram-se

primeiramente por aprender os idiomas nativos, assim como levar o ensinamento do

evangelho nestes idiomas. Eles almejavam, com isso, falar como os nativos falavam,

ensinar de uma forma inteligível, ou seja, estes padres adaptaram o ensino católico

53

romano à realidade da Índia. Para além disso, adaptaram-se, eles mesmos, às

peculiaridades desses locais.

Para a missão jesuítica, cada local era ímpar, necessitando de uma forma de

ser e agir diferente para cada situação. O padre jesuíta, ao chegar a qualquer local,

estava orientado a observar os costumes do mesmo a fim de que sua pregação e

ensino pudessem atingir mais pontualmente as populações pretendidas. Veja-se

para isso a orientação de Xavier aos padres João da Beira e António Criminal em

carta de 1545:

Por esta cara vos pido, charíssimos Padres y Hermanos Joam da Beira y Antonio Criminal, que, vista ésta, vos hagaes prestes para irdes al Cabo de Comorín, donde haréys más servicio a Dios que estando em Goa; donde allaréys el Pe. Francisco Mancilhas, el qual sabe la tierra y el modo que avees de terner em ela. (IN: REGO, 1950a, p. 252, sem grifos no original)

Xavier exorta os padres a que se aconselhem com o padre Mansilhas, que

há mais tempo está no local e já havia compreendido o modo de evangelizar o

mesmo. Todo o esforço destes padres está direcionado a um fim, um objetivo bem

delimitado que, a nosso ver, estava muito bem elucidado na mente de cada membro

da Companhia: a salvação do maior número possível de almas.

Ao colocar-se em situação de adaptado, o jesuíta tinha como finalidade uma

maior e mais efetiva aproximação com o alvo de sua missionação, o que a longo e

mesmo a curto prazo, ofereceria uma maior facilidade para o recebimento do

evangelho por estes. Todo o ideário de catequese e educação jesuítico esteve,

desde sua fundação até seu crescimento e consolidação, voltado para um fim

comum, a cristianização do outro.

As análises das características da missão oriental realizada pela Companhia

de Jesus trazidas neste trabalho não têm a intenção de esgotar o assunto. Pelo

contrário, propõem-se em contribuir criticamente para o debate em torno desta que

é, por assim dizer, a mais importante Ordem religiosa da Igreja Católica na

Modernidade.

Cabe-nos ainda ressaltar que, no período compreendido por nossas fontes

primárias (1499-1552) houve um verdadeiro salto quantitativo e qualitativo nas

missões orientais após a chegada da Companhia de Jesus. Aumenta, ainda, a

quantidade de cartas que descrevem as ações da Companhia. Num espaço de 10

54

anos, de 1542-1552, período jesuítico aqui analisado, há mais cartas descrevendo

estas missões do que nos 42 anos anteriores. Deve-se este fato ao intenso esforço

dos inacianos pela comunicação com os irmãos e confrades, tanto na Europa quanto

no próprio campo missionário.

No que tange ao número e condições dos convertidos é inegável que,

segundo as fontes primárias e a bibliografia, houve um grande aprimoramento da

catequese, do ensino, da educação e do cristianismo de além-mar. Os jesuítas, com

sua ação pontual e planejada trouxeram ao Padroado Português uma nova

formatação, contribuindo fortemente com a difusão da religião cristã, da cultura

europeia e do domínio cultural lusitano, por todos os lugares onde exerceram suas

funções eclesiásticas.

55

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A formulação de um trabalho acadêmico envolve diversas relações

conflituosas. Desde a escolha e o recorte do tema até o desenvolvimento do estudo

sobre o mesmo, há embates que se colocam à frente daquele que pretende

desenvolver uma reflexão mais profunda sobre o assunto elencado. Nesse sentido é

que acredito que o trabalho realizado para formulação deste estudo contribuiu

substancialmente para minha formação acadêmica. Enquanto pedagogo em

formação, acredito que a experiência de pesquisa na área de História da Educação

proporcionou-me uma visão mais ampla a respeito dos fenômenos educativos,

especialmente seus determinantes histórico-sociais. Em posse deste olhar mais

crítico, o pedagogo tem condições de analisar a educação e sua própria prática de

maneira mais consciente, menos alienada e descolada da realidade social vigente.

Nesse sentido, é que tecemos o fechamento das reflexões do presente estudo.

Considerando como educação não somente as formas sistematizadas de

transmissão do saber, mas, também, todo processo informal/não-formal de

transmissão de cultura, costumes e de conhecimento, pretendemos afirmar que os

padres portugueses desempenharam um importante papel educacional nas Índias.

Nesse prisma, não somente os padres, mas a presença da massa

portuguesa em si adquire forma pedagógica, uma vez que modifica o cotidiano, o

comportamento desses povos com quem entram em contato. Dessa forma, a

presença dos colonizadores portugueses tornou-se educativa, pois trouxe consigo

costumes/comportamentos até então desconhecidos pelos indianos; trouxe,

também, consigo, uma forma de organização política, um comércio e uma religião,

os quais tentaram impor muitas vezes com uso da força.

A atuação dos padres tem seu fundo pedagógico também, pois eram eles

os detentores do saber, das letras, da cultura portuguesa letrada na Índia. Por

vezes, documentos enviados de Portugal para o Oriente dão ordens para que se

ensinem nativos e filhos de portugueses a ler e escrever. Em outras ocasiões, são

remetidas cartas da Índia a Portugal dando conta dos resultados desse ensino.

O ensino eclesiástico, ao contrário do que se pode pensar, não estava

restrito à catequese ou aos dogmas do cristianismo. Certo é que tinha como objetivo

favorecer principalmente a conversão, mas o ensino das primeiras letras e do idioma

português figurava também como uma das atribuições dadas ao clero no Oriente.

56

Gradativamente, também, foi-se dando mais destaque e importância ao

ensino e doutrinação das crianças. Por razões óbvias, se estas fossem ensinadas na

mais tenra idade maiores seriam as chances de aproveitamento desse esforço. D.

Manuel, dando ordens acerca dos cristãos de Ceilão, em 1521 escreve “Que hos

menynos christãos sejam ensynados e bem doutrinados nas cousas da fee [...]” (In:

REGO, 1947, p. 414). Ainda em 1521, num despacho de D. Duarte de Menezes,

então governador da Índia, lemos: “[...] que mandes entregar ao feitor de Goa

cymquenta cartylhas [...] pera os ele la dar aos moços e orffaaõs pera por eles

apremderem a ler [...]” (idem, p. 419). Mais à frente, vamos ler o jesuíta Francisco

Xavier recomendando o ensino das crianças como uma das principais obras a serem

realizadas pela Companhia de Jesus no Oriente.

O ensino da leitura e da escrita no primeiro momento missionário (antes da

chegada dos jesuítas) torna-se importante por uma série de motivos. Um deles é a

aprendizagem do idioma português, a fim de que houvesse uma melhor

comunicação entre portugueses e nativos, facilitando as trocas e o comércio oriental,

tão desejado pela Coroa. Num outro plano, é necessário esse conhecimento para

que se facilite o trabalho de evangelização e catequese pelos padres que quase

nada sabiam das línguas nativas. Posteriormente à chegada dos inacianos o ensino

da língua portuguesa adquire caráter mais cultural, para formação de clérigos locais,

já que estes padres tinham por objetivo dominar as línguas nativas a fim de que

pudessem evangelizar por meio delas.

Substancialmente, queremos afirmar que a educação e o ensino (tanto

secular como religioso) ministrado pelos padres na Índia consistiam, basicamente e

principalmente, numa educação para o Império. Os portugueses chegaram à Índia a

fim de estender sobre ela seu território imperial e dominá-la, comerciar, comprar,

vender... Esse domínio não podia dar-se apenas de forma violenta e bélica. Era

necessário “incorporar” novos súditos ao Império. Qual a melhor forma de fazer

isso? Trazer o costume e a identidade do Império para as possessões, e isso se fez

mediante a educação.

Ao proferir missas, evangelizar, ensinar, os padres estavam trazendo

Portugal para a Índia: estavam impondo uma nova cultura sobre a já existente,

sobrepondo a religião cristã sobre as outras, estavam criando, formando um novo

povo com novos costumes. Nesse aspecto é que consideramos a atividade do

57

Padroado como uma atividade fundamentalmente educativa, não somente na Índia,

mas em todos os domínios portugueses alcançados por esses padres.

O Padroado foi uma instituição necessária ao desenvolvimento da expansão

portuguesa e da consequente formação de seu Império colonial. A atuação dos

padres, para além de inseparável, pode ser considerada indispensável no que diz

respeito à dominação cultural e cívica sobre os novos súditos. No caso da Índia,

particular recorte deste trabalho, o efetivo desempenho da educação cristã deu-se a

partir da vinda dos primeiros jesuítas, ou seja, a partir de 1542.

Não desejamos por meio destas afirmações desmerecer, ou mesmo

descartar o trabalho de todos os missionários anteriores aos jesuítas, sejam eles

seculares, franciscanos, agostinhos, carmelitas ou de outras ordens, que tão

prontamente deslocaram-se para as Índias no início da ocupação portuguesa. O que

deseja-se aqui é delimitar uma diferença e, na verdade, uma grande diferença entre

os instrumentos de evangelização e educação inacianos dos demais.

As formas de ser e agir da Companhia de Jesus foram o que

substancialmente diferenciou os resultados obtidos por esta daqueles alcançados

antes de sua instalação no Oriente. O empenho dos padres desta ordem por

conhecer o evangelizado dava-lhes argumentos, meios mais eficazes e prontos para

levar sua mensagem, refutar as crenças locais e apresentar o cristianismo como

verdadeira religião. A “racionalidade” do agir jesuítico é o seu diferencial em relação

às demais ordens (COSTA, 2004).

Ao deslocar-se para os meios a serem evangelizados na Índia, os padres

jesuítas passaram a conhecer minuciosamente estes locais. Aprenderam, como já

mencionado, a língua nativa: pregavam por ela, ensinavam as doutrinas cristãs com

ela, doutrinavam com ela. Aproximavam o ouvinte do evangelho. Além disso,

conheciam as crenças e religiões locais, debatiam com os brâmanes, convenciam as

multidões.

O agir jesuítico na Índia mudou completamente a face da cristandade ali

existente. Até a morte de Francisco Xavier, em 1552, a Companhia fez um grande

trabalho no Oriente português. Trabalharam como verdadeiros disseminadores da

religião cristã e da cultura e costumes portugueses como um todo.

Mesmo após a morte de Xavier, é evidente que o trabalho não cessou.

Devido, porém, aos limites deste trabalho, sua análise nos leva apenas até o ano

marcado por este acontecimento. Ainda que seja curta a delimitação temporal que

58

compreende nosso estudo podemos por meio dele afirmar, fundamentalmente, que

a Companhia de Jesus realizou um verdadeiro processo educacional e pedagógico

neste período da história do colonialismo português na Ásia.

59

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60

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