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Paisagens entre a cidade e o rio:

Reflexões acerca dos instrumentos de proteção do patrimônio no caso do rio

Cotinguiba, em Laranjeiras-SE

Lucas Fellipe Oliveira Freire

Mayanna Pinheiro de Souza**

Resumo A cidade de Laranjeiras foi formada em um ponto de união de dois vales, sendo

delimitada pelo rio Cotinguiba. Teve seu conjunto arquitetônico e paisagístico tombado

pelo IPHAN em 1996. Na área protegida, há aproximadamente 500 edificações

tombadas pelo valor arquitetônico e histórico atribuído ao conjunto que expressa a força

da arquitetura colonial, mas também onde praças e ruas alinham-se obedecendo ao

traçado fluvial. O presente trabalho pretende refletir acerca dos instrumentos de

proteção do patrimônio no caso do rio Cotinguiba, problematizando o papel da profunda

relação entre o meio natural e os arranjos socioculturais que viabilizaram o

desenvolvimento social e econômico da cidade – uma das principais produtoras de

açúcar do País entre os séculos XVIII e XIX. A despeito do fim da pujança econômica,

levada a termo pela derrocada da economia colonial, a relação entre cidade e rio são

refletidas até hoje na urbe marcada por um intenso comércio de escravos que deixou

uma forte influência nas manifestações da cultura popular tradicional. As reflexões

serão feitas à luz de dois recentes instrumentos que vêm tentando superar dicotomias

conceituais na gestão do patrimônio no tocante à relação entre o patrimônio material e

imaterial, entre o natural e o cultural, a saber: a Chancela da Paisagem Cultural

Brasileira (Brasil, 2009) e a World HeritageConvention (UNESCO, 1992).

Palavras-chave: Cotinguiba, Laranjeiras, patrimônio cultural, patrimônio natural,

paisagem.

INTRODUÇÃO

A Zona do Cotinguiba abrange uma área de cerca de 232,5 Km² e seu rio

principal mede 51 Km de extensão, banhando predominantemente quatro municípios:

Areia Branca, Riachuelo, Laranjeiras e Nossa Senhora do Socorro, sendo sua nascente

em Serra Comprida, no município de Areia Branca e seu escoamento no rio Sergipe.

Graduando do curso de Museologia, pela Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail:

[email protected].

** Graduanda do curso de Museologia, pela Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail:

[email protected].

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A maior parte de sua extensão se encontra na cidade de Laranjeiras, cuja

ocupação fica em torno de 45,81% (SANTOS e ARAÚJO, 2012).

De acordo com o vigário Philadelpho J. de Oliveira,

Laranjeiras nasceu de uma flor.

[...] À margem esquerda do rio Cotinguiba, existia uma laranjeira,

debaixo da qual os primitivos habitantes, cantando ao som da viola os

amores felizes ou infelizes, descansavam do rigor do sol aguardando a

hora das viagens. Laranjeiras nasceu aos acordes da música e entre as

flores. (OLIVEIRA, 1981)

Metáforas a parte, o trecho demonstra que havia em torno do rio um fluxo de

viajantes que consequentemente contribuíram com o desenvolvimento da região, além

de demonstrar as bases culturais que posteriormente iriam render à cidade a alcunha de

Athenas Sergipana. Para Santos e Araújo, além da boa localização do rio, a terra fértil e

o clima contribuíram para o crescimento das vilas e do comércio de Sergipe D’el Rey,

tornando aquela região uma das principais produtoras de açúcar da província e do país.

Das três grandes regiões do Estado, a Zona do Cotinguiba, (...) foi a

região mais importante entre os séculos XVIII e XIX, esse fato se deu

em virtude da fertilidade dos solos, ao clima adequado e à

possibilidade de transporte da produção açucareira através das bacias

hidrográficas dos rios Sergipe e Japaratuba, atraindo proprietários com

recursos e crédito para a compra de terras e a construção de engenhos,

ao tempo em que viabilizou a conversão de antigos agricultores e

criadores voltados para o abastecimento do mercado interno, em

senhores de engenho, com consequente expansão da agro- indústria

açucareira. (SANTOS e ARAÚJO, 2012)

Portanto a relevância do rio Cotinguiba não só se direciona à formação da cidade

de Laranjeiras, mas também ao desenvolvimento econômico do país nos séculos XVIII

e XIX.

Tendo em vista toda essa importância histórica, a cidade de Laranjeiras teve o

seu reconhecimento localatravés do Decreto Governamental nº 2048, em 12 de março

de 1971, que elevaria a cidade à Monumento Histórico, sendo tombadapelo Governo do

Estado de Sergipe e mais tarde, o reconhecimento nacional em 1996 pelo IPHAN

(Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que lhe concederia o

tombamento como Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico(BRASIL, 2005,

p. 391).

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Partindodesse instrumento de proteção patrimonial que é o

tombamento,conferido pelo IPHAN, levanta-se algumas questões acerca do processo de

salvaguarda desse patrimônio “Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico” no qual se

insere a urbe de Laranjeiras e principalmente no que condiz à sua interação entre meio

sociocultural e meio natural, no caso do rio Cotinguiba que, como já citado, teve grande

importância no desenvolvimento da cidade.

Segundo o dicionário do patrimônio cultural do site do IPHAN,

tombamento é um instrumento jurídico criado por lei federal –

Decreto-lei nº 25 de 1937 (DL 25/37) – que tem por objetivo impor a

preservação de bens materiais, públicos ou privados, aos quais se

atribui valor cultural para a comunidade na qual estão inseridos.

Para um bem ser tombado, segundo o Decreto-lei nº 25/37,além de ter o

reconhecimento de sua excepcionalidade histórica, artística, estética, bibliográfica ou

científica por parte da comunidade em qual faz parte,

§ 1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados

parte integrante dopatrimônio histórico o artístico nacional, depois de

inscritos separada ou agrupadamentenum dos quatro Livros do Tombo

[...] (BRASIL, 1937, p. 1).

Os quatro Livros do Tombo citados, são espécie de categorias que o bem inscrito

deve se encaixar, eles são: o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico;

Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo das Belas Artes; Livro do Tombo das Artes

Aplicadas. Sendo o primeiro, o qual a cidade de Laranjeiras foi listada. A inscrição em

um desses livros, ou seja, o tombamento tem como função garantir não só a

representatividade da comunidade que a elegeu, como também a garantia de sua

proteção como vemos no seu artigo 17:

Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser

destruidas, demolidasou mutiladas, nem, sem prévia autorização

especial do Serviço do Patrimônio Histórico eArtistico Nacional

[atualmente IPHAN], ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena

de multa de cincoenta por cento do dano causado.

Parágrafo único. Tratando-se de bens pertencentes á União, aos

Estados ou aosmunicípios, a autoridade responsável pela infração do

presente artigo incorrerápessoalmente na multa. (BRASIL, 1937, p.4)

Portanto, a imposição por meio de lei federal deveria garantir uma melhor

administração e preservação do patrimônio, mas, na falta de mais clareza quanto às

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delimitações dessa lei, no que se refere à cuidados com o patrimônio natural, como o

Rio Cotinguiba, foram criados no decorrer dos anos outros instrumentos que deveriam

ampliaresses cuidados, um deles é a chancela de Paisagem Cultural Brasileira.

A chancela de Paisagem Cultural Brasileirafoi um instrumento criado pelo

IPHAN, em 2009, com o intuito de promover uma preservação mais ampla do território,

levando em consideração a interação entre sociedade e meio ambiente. Nela, se escolhe

um território com base na sua importância cultural e valor estético que confere àquela

sociedade ao qual pertence uma identidade peculiar, o que se aplicaria à cidade de

Laranjeiras, que cresceu acompanhando os limites dados pelo Rio. Sendo assim,

partindo da ideia de que não há uma ação efetiva de preservação do Cotinguiba, como

parte do centro histórico de Laranjeiras, essa chancela poderia ser utilizada como mais

um instrumento que garantisse a preservação do Rio, além do já citado Decreto-lei

nº25/37?

Logo, o objetivo desse trabalhoé tentar não sódebater as confluências entre o

cultural e natural, trabalhandoo conceito de paisagem cultural,bem como analisar a

chancela de Paisagem Cultural Brasileira e o Decreto-lei nº 25/37,problematizando suas

contradições e o não cumprimento de suas recomendações no que tange às políticas e

ações preservacionistas hoje, quando se trata do rio Cotinguiba, que como parte

delimitante do espaço da cidade e tão importante para a história de Laranjeiras, foi

praticamente reduzido à função de esgoto.

CULTURAL E NATURAL: UMA DISCUSSÃO CONCEITUAL

Desde as primeiras convenções e tratados que tinham como foco pensar,

legitimar e proteger o patrimônio, principalmente a partir do século XIX1, com a

emergência de se utilizá-lo como instrumento na formação de uma identidade nacional,

como José Reginaldo Gonçalves afirma em seu livro “A retórica da perda” (1996, p.89),

ao defender a ideia de que o risco iminente de se perder o patrimônio é um discurso

utilizado pelas elites intelectuais, como forma de legitimara identidade de uma etnia ou

1Constituição Federal da Suíça, de 1874; lei japonesa sobre a Preservação de Sítios Históricos e

Pitorescos e dos Monumentos Naturais, de 1919; lei de 02/04/1930 da França. Mais informação ver:

SCIFONI, S. A Construção do Patrimônio Natural. 2006. 293 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana)

– Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006.

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nação, por meio de instrumentos de Estado sob o título de patrimônio cultural, criaram-

se critérios que delimitaram esses bens culturais citando de maneira tímida o patrimônio

natural.

No Brasil, o Decreto lei 25/1937 que prevê o tombamento do patrimônio

histórico e artístico nacional, já debate acerca do tombamento de paisagens e sítios

naturais. Em seu artigo 1º inclui-se que,

Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos

bensmóveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de

interêsse público, quer porsua vinculação a fatos memoráveis da

história do Brasil, quer por seu excepcional valorarqueológico ou

etnográfico, bibliográfico ou artístico.

[...]

§ 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são

também sujeitos atombamento os monumentos naturais, bem como

os sítios e paisagens que importeconservar e proteger pela feição

notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados

pela indústria humana. (BRASIL, 1937, p. 1, grifo nosso)

Ou seja, com base em um debate que já vem se arrastando em anos, neste

documentoexistem lacunas e contradições na aplicação dessas leis que, apesar de

tocarem em termos como “paisagem” e “bens naturais”, dão prioridade unicamente

abens edificados, só havendo uma maior mobilização a respeito de ações que levassem

em consideração uma proteçãodos bens naturais, na década de 1970, época em que se

debate a sustentabilidade dos recursos naturais.

Sendo assim, o que se consolidou como um paradigma para delimitar o que éum

patrimônio natural, tem como principal modelo a Convenção do Patrimônio Cultural e

Natural (Recomendação de Paris), promovida pela UNESCO em 1972, cujas definições

de patrimônio cultural e natural foram instauradas da seguinte forma:

Art. 1.º Para fins da presente Convenção serão considerados como

património cultural:

Os monumentos. – Obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura

monumentais, elementos de estruturas de carácter arqueológico,

inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal

excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;

Os conjuntos. – Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em

virtude da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem têm

valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da

ciência;

Os locais de interesse. – Obras do homem, ou obras conjugadas do

homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse

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arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista

histórico, estético, etnológico ou antropológico.

Art.2.º Para fins da presente Convenção serão considerados como

património natural:

Os monumentos naturais constituídos por formações físicas e

biológicas ou por grupos de tais formações com valor universal

excepcional do ponto de vista estético ou científico;

As formações geológicas e fisiográficas e as zonas estritamente

delimitadas que constituem habitat de espécies animais e vegetais

ameaçadas, com valor universal excepcional do ponto de vista da

ciência ou da conservação;

Os locais de interesse naturais ou zonas naturais estritamente

delimitadas, com valor universal excepcional do ponto de vista a

ciência, conservação ou beleza natural. (UNESCO, 1972)

Criado estes critérios delimitativos entre uma categoria e outra, abre-se uma

discussão sobre a criação de uma lista que identificasse, catalogasse e apresentasse os

patrimônios de caráter excepcional universal, a Lista do Patrimônio Mundial.

Entretanto, há de se pensar numa problemática importante, dentre estes critérios

que segregaram essesbensnas categorias cultural e natural.Tratam-se dos mesmos como

elementos antagônicos, o que no contexto mundial, tal concepção já estava caindo em

desuso, se analisarmos as próprias definições dos artigos citados da Recomendação de

Paris, seria no mínimo complicado escolher um bem que de fato fosse

exclusivamentenatural ou cultural, uma vez que esses limites vêm sendo questionados

ao longo da tradição ocidental, como afirma Sandra Pelegrini (2006, p. 115-116):

As relações entre a natureza e a cultura, desde a Antiguidade clássica,

vêm sendo cotejadas por intermédio de uma série de diferenciações

que, em última instância, buscam celebrar as singularidades do

prodígio humano frente aos desígnios da natureza. Apesar de

permeadas por interpretações que, de certa forma, tendem a tratar

essas duas acepções como categorias antagônicas, as concepções de

natureza adquiriram um sentido particular no engendramento da

sociedade humana. A acepção de natureza, ora rivalizando com a arte,

ora competindo com a técnica, tendeu a cristalizar-se na historiografia

como pressuposto da negação das conexões do homem com o estado

natural.

Todo bem cultural veio da exploração de um recurso natural e a própria

necessidade de se preservar um bem natural vem de uma emergência cultural, portanto,

ao se estabelecer a separação nestes critérios, não se levou em consideração a interação

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entre eles, como se fosse muito claro os limites entre um e outro, não havendo nenhuma

problematização. Para Rafael Winter Ribeiro,

Essa divisão refletia a ideia de que, para muitos dos conservacionistas

da natureza, quanto menos interferência humanahouvesse numa área,

melhor ela seria qualificada; assim também, para muitosarquitetos,

historiadores da arte e outros cientistas das áreas humanas, os

monumentose estruturas, prédios e ruínas, eram vistos como

fenômenos isolados(FOWLER, 2003). Na verdade, essa concepção

refletia a própria origem bipartida da preocupação com o patrimônio

mundial, oriunda de dois movimentos separados: um que se

preocupava com os sítios culturais e outro que lutava pela conservação

da natureza (RIBEIRO, 2007, p. 38).

Ao longo do século XX, e com o acúmulo de vários escritos que criticavam essa

concepção bipartida de patrimônio culturalfoi gestadauma outra categoria que abarcasse

tantos os bens naturais como culturais, diminuindo as lacunas deixadas pelas outras

duas categorias, esse novo conceito é chamado de paisagem cultural.

Fruto de discussões desde 1931 com a Carta de Atenas (mesmo não sendo

mencionada de forma direta) einstaurada na 16ª sessão da Convenção do Patrimônio

Mundial, ocorrido em Santa Fé, Estados Unidos, em 1992, a inclusão da paisagem

cultural na Lista de Patrimônio Mundial,serviu como elemento que corrigiria a

concepção binária e excludente da Convenção de 1972, esta um pouco mais crítica que

as outras categorias, foi incluída como critério avaliativo justamente por levar em

consideração uma interação entre homem e natureza na forma de paisagem,por

compreendê-la como palco de várias manifestações da sociedade no decorrer da história

(RIBEIRO, 2007, 38), criando uma esperança para a solução de problemas em torno das

classificações do patrimônio, na Lista de Patrimônio Mundial.

Nesta convenção também foram delimitadas a definição de três categorias de

paisagem cultural: paisagens claramente definidas; paisagem evoluída organicamente

(esta subdividia em paisagem relíquia ou fóssil e paisagem contínua) e paisagem

cultural associativa2.

2 As definições a seguir foram tiradas de Rafael Winter Ribeiro, no seu livro “Paisagem Cultural e

Patrimônio”, 2007.

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Paisagens claramente definidas consistem em paisagens que foram criadas com

o intuito de o serem, como jardins e praças, isto é, paisagens propositalmente

planejadas.

Quanto às paisagens evoluídas organicamente, são definidas por paisagens que

nasceram de forma natural seguindo necessidades sociais, econômicas e culturais,

podendo ser divididas em duas subcategorias paisagem relíquia ou fóssil, que consiste

em paisagens que já foram construídas em um determinado tempo, porém os vestígios

desse passado ainda são visíveis; e paisagem contínua, que indica àquelas passagens

geralmente ligadas às comunidades tradicionais, cujos elementos do passado ainda estão

vivos na comunidade, porém, demonstrando as mudanças constantes no decorrer do

tempo.

Já a última categoria, paisagem cultural associativa, leva em consideração a

paisagem que tem um apelo simbólico para a comunidade, paisagens que mesmo não

tendo sofrido ações diretas do homem, tem um significado simbólico forte para a

comunidade, geralmente são lugares que há manifestações religiosas.

Estas definições, como todas as recomendações das várias cartas patrimoniais

servem como parâmetros para leis preservacionistas dos Estados signatários da Unesco,

sabendo que a nomeação de bens na escala de patrimônio mundial só é efetiva se houver

primeiro um reconhecimento local e que o bem a ser listado se encaixe em pelo menos

uma destas categorias.

Dessa forma, poderíamos pensar o Rio Cotinguiba como elemento integrante e

indissociável do centro histórico de Laranjeiras? Haja vista que o desenvolvimento do

núcleo urbano deu-se a partir e através da exploração do Rio, tornando-o parte

integrantedesta paisagem e encaixando-a na categoria de paisagens evoluídas

organicamente.

Em 2009, instaura-se no Brasil, no âmbito do IPHAN, a “Chancela da Paisagem

Cultural” que é consideradacomo

[...] uma porção peculiar do território nacional, representativa do

processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e

aciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores. (IPHAN,

2009, p. 13)

Constando também que,

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Sua finalidade é atender o interesse público por determinadoterritório

que faz parte da identidade cultural do Brasil. A paisagemchancelada

pode usufruir do título desde que mantenha as característicasque a fizeram merecer esta classificação, sendo, por

isso necessário desenvolverum Plano de Gestão. (IPHAN, 2009, p.18,

grifo nosso)

Levando em consideração a discussão dos autores e baseado nos instrumentos de

proteção instituídos pelos documentos apresentados, entendemos que o Centro Histórico

de Laranjeiras bem como o trecho do rio Cotinguiba que o atravessa formam um

conjunto representativo da integração do homem ao meio. A portentosa economia de

outrora, mantida pela exploração da cana de açúcar nos vales férteis e densamente

irrigados, que proporcionou os traços singulares da urbanização desse sítio bem como

de suas edificações, o arruamento delineado pelo contorno fluvial, o processo de

decadência econômica que permitiu a preservação do sítio, todos esses elementos

podem ser estruturados de forma a entender que a ocupação humana e aquela porção de

meio-ambiente formam uma paisagem cultural única. E que, por isto, deveria ser assim

considerada, protegida, reconhecida e divulgada.

Desta forma, poderíamos então entender que o Centro Histórico de Laranjeiras e

o trecho do rio Cotinguiba que o atravessa poderiam ser reconhecidos e chancelados

comopaisagem evoluída organicamente na categoriarelíquia ou fóssil, pois a mesma,

apesar de degrada, ainda preserva resquícios de um tempo em que era importante

historicamente.Poderíamosutilizar essa chancela como instrumento de reconhecimento e

salvaguarda do rio?

ESTUDO DE CASO

A cidade de Laranjeiras teve seu tombamento reconhecido pelo IPHAN em

1996.Segundo o documento de tombamento definitivo consta a definição como

“Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico da Cidade de Laranjeiras” sendo

reconhecido que:

Ficam sujeitos ao prévio exame e aprovação da 8ª Coordenação

Regional do IPHAN todos os projetos que visem a alteração dos bens

integrantes deste conjunto, ficando igualmente condicionados à prévia

análise da entidade federal os projetos relacionados à vizinhança da

área tombada, a fim de se proteger a sua visibilidade e ambiência.

(IPHAN, 1996, Apud.: MACHADO, 2012, p. 142)

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Já no programa Monumentaque é um projeto que visa um auxílio que garanta a

revitalização e a manutenção de cidades históricas tombadas pelo IPHAN, em seu 3º

caderno técnico que abrange todas essas cidades das regiões Norte, Nordeste e Centro-

Oeste, constam dossiês com todas as informações de seus sítios, entre eles o da cidade

de Laranjeiras,em que na parte que se refere às relações espaciais e contexto urbanodiz

que,

A Área Tombada compreende quase toda a área urbana da Cidade, que

foi formada em um ponto de união de dois vales, sendo delimitada

pelo Rio Cotinguiba. O desenvolvimento se dá em um eixo paralelo ao

Rio, mas a partir de um espaço maior, formado por uma volta em um

trecho do mesmo. O arruamento é irregular, típico das cidades

coloniais brasileiras. [...]

[E que] Apesar de alguns prédios estarem excluídos da área tombada,

estes não são em número significativo. Desta forma, pode-se

considerar o tombamento abrangente à toda a cidade, especialmente

considerando a data da inscrição, 1996, a partir da qual não teria

ocorrido um crescimento muito acentuado da povoação. (BRASIL,

2005, p. 393-394, grifo nosso)

Também, há menção sobre o caráter do entorno paisagístico, no Decreto-lei

25/1937, já citado, este teve influências da primeira Carta Patrimonial, a Carta de

Atenas de 1931, que mesmo tratando exclusivamente do patrimônio arquitetônico já

trazia em seu bojo uma preocupação com o entornodo conjunto arquitetônico.Na parte

que enfoca a “valorização dos monumentos”, consta que:

A conferência recomenda respeitar, na construção de edifícios, o

caráter e a fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança dos

monumentos antigos, cuja proximidade [deve ser objetos] de cuidados

especiais.

Em certos conjuntos, algumas perspectivasparticularmente pitorescas

devem ser preservadas.

Deve-se também estudar asplantações e ornamentações vegetais

convenientes a determinados conjuntosde monumentos para lhes

conservar o caráter antigo (IPHAN, 2004,p. 2).

De acordo com estes documentos citados, percebe-se que portempos, mesmo em

contextos diferentes,existem debates, uma preocupação com a interação entre os

elementos tombados e sua vizinhança.Partindo do significado de paisagem como sendo

a confluência entre elementos culturais e naturais, pode-se dizer que essa vizinhança

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que engloba o monumento histórico é uma paisagem cultural. Mas por que não há uma

efetividade na aplicação desses instrumentos? A chancela da paisagem cultural seria o

instrumento mais adequado para a proteção das relações entre ocupação humana e meio

ambiente naquele sítio?

OUTRAS PROBLEMÁTICAS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em vários momentos na leitura desses documentos percebem-se lacunas e

incoerências e uma tentativa incessante de se compartimentar, de se categorizar e

encaixar o patrimônio em um modelo único, mesmo que se tenha escrito que deve-se

“levar em consideração a comunidade local”. Quando essa compartimentação foi

questionada e problematizada, criaram-se outras categorias para minimizar os efeitos

“do mal” anterior, mas será que funcionou? O que a criação da categoria paisagem

cultural tem a acrescentar nas várias concepções de patrimônio, se as outras categorias

(cultural e natural) não foram anuladas? Subtende-se então que ainda há uma

compartimentação.

Quanto à aplicabilidade desses conceitos e políticas públicas de salvaguarda do

patrimônio, no caso do rio Cotinguiba, fica claro que como sendo considerado parte do

perímetro tombado da cidade de Laranjeiras e levando em consideração todos os

documentos que garantem a proteção do centro histórico, bem como o seu entorno, este

deveria ter feito parte dos bens a serem protegidos e revitalizados, independente da

chancela de Paisagem Cultural Brasileira. Mas a falta desse cuidado só demonstra a

velha concepção binária de que patrimônio cultural é diferente do natural e que esta

deve-se submeter à primeira, pois a natureza sempre será serva do homem.

A partir da análise dos documentos e discussão com os autores que debatem essa

problemática, concluímos por hora que a chancela da paisagem cultural pode ser um

importante instrumento para a preservação das relações ser humano/meio. Mas que os

documentos e leituras que tivemos acesso apontam que o caminho mais efetivo para a

preservação do Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico (que inclui, no nosso

entendimento, tanto os bens edificados quanto o entorno e o próprio rio)talvez seja

garantir a efetividade dos efeitos do tombamento como instrumento de preservação.

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REFERÊNCIAS

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cultural e natural. 17ª sessão. Paris (França). 17 de outubro a 21 de novembro. 1972

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