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1 PAISAGEM SONORA ECLESIAL: UM ESPAÇO DE POLUIÇÃO SONORA? 1 Prof. Dr. Theógenes Eugênio Figueiredo 2 Pouco se tem falado sobre paisagem sonora no meio evangélico, muito menos da paisagem sonora eclesial. Talvez este conceito não seja conhecido, ou, a ele não se dê a devida importância. Entretanto, todas as pessoas que participam dos cultos de nossas igrejas encontram-se inseridas na paisagem sonora eclesial, mesmo que não se sintam confortáveis com a qualidade e a intensidade da massa sonora a todos impingida. A expressão paisagem sonora eclesial deve ser entendida como todo o som, interno e externo, existente no ambiente de culto. A paisagem sonora é impetuosa, atua diretamente na audição do indivíduo, sem que este possa se defender. Esta reflexão abordará as seguintes questões: O que é paisagem sonora?; Conclamação à sustentabilidade (“carta de Niterói”); “Ruído sagrado”, o que é isso?; A paisagem sonora eclesial versus um imperialismo sonoro?. 1. O que é paisagem sonora? A audição e a visão são dois sentidos básicos do ser humano que tiveram suas posições invertidas na escala de importância em relação á aquisição/entrada de dados (imagens auditivas e sonoras) na percepção humana. [...] o ouvido cedeu lugar ao olho, considerado uma das mais importantes fontes de informação desde a Renascença, com o desenvolvimento da imprensa e 1 Este estudo é baseado no livro A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora, de R. Murray Schafer, publicado pela Editora UNESP, São Paulo, em 2001. Optei pela transcrição de muitos trechos do livro, pois o seu autor foi muito feliz em suas colocações. 2 Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-MG), Mestre em Etnomusicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO). É Ministro de Música e atua como professor e assistente de coordenação no Curso de Música da Faculdade Batista do Rio de Janeiro (FABAT/Seminário do Sul). Madonna book, de Giorgione (1478/1510)

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1

PAISAGEM SONORA ECLESIAL: UM ESPAÇO DE POLUIÇÃO SONORA?1 Prof. Dr. Theógenes Eugênio Figueiredo 2

Pouco se tem falado sobre paisagem sonora no meio evangélico, muito

menos da paisagem sonora eclesial. Talvez este conceito não seja conhecido, ou, a

ele não se dê a devida importância. Entretanto, todas as pessoas que participam dos

cultos de nossas igrejas encontram-se inseridas na paisagem sonora eclesial, mesmo

que não se sintam confortáveis com a qualidade e a intensidade da massa sonora a

todos impingida.

A expressão paisagem sonora eclesial deve ser entendida como todo o som,

interno e externo, existente no ambiente de culto. A paisagem sonora é impetuosa,

atua diretamente na audição do indivíduo, sem que este possa se defender.

Esta reflexão abordará as seguintes questões: O que é paisagem sonora?;

Conclamação à sustentabilidade (“carta de Niterói”); “Ruído sagrado”, o que é isso?;

A paisagem sonora eclesial versus um imperialismo

sonoro?.

1. O que é paisagem sonora?

A audição e a visão são dois sentidos básicos

do ser humano que tiveram suas posições invertidas

na escala de importância em relação á

aquisição/entrada de dados (imagens auditivas e

sonoras) na percepção humana. “[...] o ouvido cedeu

lugar ao olho, considerado uma das mais

importantes fontes de informação desde a

Renascença, com o desenvolvimento da imprensa e

1 Este estudo é baseado no livro A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo

atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora, de R. Murray Schafer, publicado pela Editora UNESP, São Paulo, em 2001. Optei pela transcrição de muitos trechos do livro, pois o seu autor foi muito feliz em suas colocações. 2 Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-MG), Mestre em

Etnomusicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO). É Ministro de Música e atua como professor e assistente de coordenação no Curso de Música da Faculdade Batista do Rio de Janeiro (FABAT/Seminário do Sul).

Madonna book, de Giorgione

(1478/1510)

2

da pintura em perspectiva. Um dos mais evidentes testemunhos dessa mudança é o

modo pelo qual imaginamos Deus. Não foi senão na Renascença que esse Deus

tornou-se retratável3. Anteriormente ele era concebido como som ou vibração.

Antes da era da escrita, na época dos profetas e épicos, o sentido da audição era

mais vital que o da visão. A palavra de Deus, a história das tribos e todas as outras

informações importantes eram ouvidas, e não vistas.”4

Uma das características da audição, que também é seu diferencial, quando

comparada à visão, é a incapacidade de ser desligada à vontade. “Não existem

pálpebras auditivas. Quando dormimos, nossa percepção de sons é a última porta a

se fechar e é também a primeira a se abrir quando acordamos. [...] A única proteção

para os ouvidos é um elaborado mecanismo psicológico que filtra os sons

indesejáveis, para se concentrar no que é desejável. Os olhos apontam para fora; os

ouvidos, para dentro. Eles absorvem informação.”5

O campo de estudo tomado aqui é a paisagem sonora eclesial, porque

paisagem sonora significa ambiente sonoro; qualquer porção do ambiente sonoro

3 Dicionário Aulete Digital: “Artigo de dois gêneros. 1 Que se pode retratar ou representar por meio de

retrato [Antôn.: irretratável.]” 4 SCHAFER. R. Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual

estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Editora UNESP, 2001. Página 27. 5 Idem, página 28.

Madonna della Seggiola, de Raffaello Sanzio (Rafael). Alta Renascença. Óleo sobre madeira cortada em formato redondo (tondo). Mostra Maria abraçando Jesus sob o olhar devoto do jovem João Batista. Palácio Pitti, Florença.

A mais famosa pietà é, seguramente, a Pietà do Vaticano, esculpida em mármore por Michelangelo em 1499. Atualmente esta obra está localizada no interior da Basílica de São Pedro, em Roma.

3

que possa ser visto como campo de estudos. Em outras palavras, a paisagem sonora

eclesial é o ambiente sonoro ocorrente num culto dominical noturno numa Igreja

Batista, ou, evangélica.

Os batistas, de modo geral, têm aberto suas consciências para a questão da

sustentabilidade, tanto é, que no ano passado aprovou a “carta de Niterói”, na qual

afirma crenças, faz declarações e conclama o povo a ações. Excertos dessa carta e

alguns comentários fazem parte do próximo tópico.

2. Conclamação à sustentabilidade (“carta de Niterói”)

Durante a 91ª Assembleia da Convenção Batista Brasileira, realizada na

cidade de Niterói, no mês de janeiro do ano de 2011, foi elaborada a Carta de

Niterói. Alguns parágrafos do documento são destacados aqui, aqueles que servem

de fundamentação à presente reflexão.

“Carta de Niterói

Nós, batistas brasileiros, reunidos na cidade de Niterói (RJ), em janeiro de 2011,

CREMOS que:

- o Universo e o ser humano foram criados por Deus para a sua glória; a vida e o

Universo, em todos os sentidos, foram dados ao ser humano como um presente de

Deus;

- o Universo foi dado ao ser humano para a sua morada, sustento e para o

desenvolvimento de sua história de vida;

- o ser humano foi criado como um ser livre, mas, ao mesmo tempo, dependente da

soberania de Deus;

- Deus delegou ao ser humano a gestão sábia, criativa e sustentável de sua vida e da

natureza;

- depois da queda e rebeldia após a criação, o ser humano desvirtuou-se dos

propósitos divinos da criação e passou a gerir sem sabedoria a sua vida e a natureza,

sem se preocupar com a sua sustentabilidade;

[...]

Neste sentido, DECLARAMOS que: [...]

4

- os dilemas ambientais e ecológicos não afetam apenas o cosmos, mas também a

natureza humana e, neste sentido, o ser humano como um micro-cosmo também

tem prejudicado a sua saúde física, mental-emocional, social e espiritual pelo

inconseqüente e imediatista estilo de vida adotado;

- os cristãos, em geral, têm se preocupado mais com a redenção espiritual do ser

humano, nem sempre considerando o ser humano e a vida em todos os seus

aspectos.

[...]

Por fim, CONCLAMAMOS que:

- os cristãos de toda a Terra busquem compreender que o Evangelho todo é para

todo o ser humano e para o ser humano todo, incluindo a sustentabilidade da vida

humana e da natureza;

- cada ser humano assuma o compromisso de cuidar com sabedoria, criatividade e

sustentabilidade de sua vida, de seus relacionamentos e da natureza;

[...]

- os empreendimentos imobiliários sejam planejados e executados de modo a

preservar o meio ambiente e a transformar o Planeta Terra numa habitação segura

para a vida humana;

- que a educação ambiental e para a vida seja incluída na formação do sujeito

histórico desde a sua infância em nossa Nação.

[...]

Tudo isto para que conquistemos a VIDA PLENA E O MEIO AMBIENTE.

Niterói (RJ), 91ª Assembleia da Convenção Batista Brasileira, 25 de janeiro de 2011

Comissão da Carta de Niterói Mere Márcia Prado Bello Norton Riker Lages

Lourenço Stelio Rega (relator)”6

O primeiro ponto a ser destacado é que “Deus delegou ao ser humano a

gestão sábia, criativa e sustentável de sua vida e da natureza”. Em outras palavras, a

6 Disponível no endereço eletrônico http://vidaemeioambiente.wordpress.com/, acessado em 6 Fev 2011.

Destaques em negritos realizados por este autor.

5

vida de cada indivíduo se encontra, até certo ponto, sob o comando de cada um. A

queda do homem diante de Deus trouxe a possibilidade de uma gerência

negligente, insensata e irreflexiva do homem sobre sua própria vida.

O segundo ponto de destaque afirma que “os dilemas ambientais e

ecológicos não afetam apenas o cosmos, mas também a natureza humana e, neste

sentido, o ser humano como um micro-cosmo também tem prejudicado a sua saúde

física, mental-emocional, social e espiritual pelo inconseqüente e imediatista estilo

de vida adotado.”

Devemos incluir a paisagem sonora eclesial nos “dilemas ambientais” que

têm afetado “a sua saúde física, mental-emocional, social e espiritual” do ser

humano, pois o tempo de exposição a uma alta intensidade sonora é um fator de

diminuição/perda da audição. Este assunto será comentado mais adiante.

O terceiro destaque aponta para a urgência da conscientização e para a

imperiosa necessidade do cuidado que se deve ter com a paisagem sonora eclesial,

porque ”os cristãos, em geral, têm se preocupado mais com a redenção espiritual

do ser humano, nem sempre considerando o ser humano e a vida em todos os seus

aspectos.”

O quarto destaque é a afirmação de que “cada ser humano assuma o

compromisso de cuidar com sabedoria, criatividade e sustentabilidade de sua vida,

de seus relacionamentos e da natureza.”

O penúltimo destaque considera que “os empreendimentos imobiliários

sejam planejados e executados de modo a preservar o meio ambiente e a

transformar o Planeta Terra numa habitação segura para a vida humana.” Ao se

falar em empreendimentos imobiliários, devemos incluir os templos das igrejas.

Muitos, e porque não dizer a maioria, não possuem planejamento acústico,

tornado-se verdadeiros espaços de poluição sonora.

O último destaque que faço na “carta de Niterói” é a afirmação de “que a

educação ambiental e para a vida seja incluída na formação do sujeito histórico

desde a sua infância em nossa Nação”. Complementando essa declaração, incluo: a

começar com a educação auditiva.

6

Finaliza a carta de Niterói afirmando que “tudo isto para que conquistemos a

VIDA PLENA E O MEIO AMBIENTE.”

Resumindo, a sustentabilidade inclui o sentido da audição e a paisagem

sonora de uma igreja em culto.

Assumindo que a sustentabilidade exige ações responsáveis no concernente

à paisagem sonora eclesial, tanto dos líderes eclesiásticos quanto dos participantes

dos cultos, e, entendendo o que vem a ser paisagem sonora, pergunta-se: será que

as igrejas vêm produzindo um “ruído sagrado”?

3. “Ruído Sagrado”

O ruído é um dos sons presentes numa paisagem sonora. Os ruídos são

classificáveis, evolutivamente, assim:

a) “Som indesejado. The Oxford English Dictionary contém referências a ruído

como som indesejado datadas de 1225.

b) Som não-musical. O físico do século XIX Hermann Helmholtz empregou a

expressão ruído (noise) para descrever o som composto por vibrações não-

periódicas (o roçar das folhas) em comparação com o som musical, que consiste em

vibrações periódicas.

c) Qualquer som forte. No uso geral de hoje, ruído se refere com frequência a

sons particularmente fortes. Nesse sentido, uma lei sobre a redução do ruído proíbe

certos sons fortes ou estabelece seus limites permitidos em decibéis7.

d) Distúrbio em qualquer sistema de sinalização. Em eletrônica e engenharia,

ruído refere-se a qualquer perturbação que não faça parte do sinal, como a estática

em um telefone ou o chuvisco na tela da televisão.”8

“Ruído Sagrado” é definido como “qualquer som prodigioso9 (ruído) que seja

livre da proscrição [proibição] social. Originalmente o ‘Ruído sagrado’ refere-se a

7 “O decibel, como meio de estabelecer graus definidos de pressão sonora, só veio a ter um uso difundido a

partir de 1928.” (SCHAFER, R, Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Editora UNESP, 2001. Página 113). 8 SCHAFER. R. Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual

estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Editora UNESP, 2001. Página 256. 9 Som fora do comum, sobrenatural.

7

fenômenos naturais, como o trovão, erupções vulcânicas, tempestades etc., pois

acreditava-se que representassem combates divinos ou a ira dos deuses para com o

homem. Por analogia, a expressão pode ser estendida aos ruídos sociais que, pelo

menos durante certos períodos, têm escapado à atenção dos legisladores da

redução de ruído, como os sinos de igreja, o ruído industrial, a música pop

amplificada etc.”10

Um exemplo de “Ruído Sagrado” pode ser aquele que o pesquisador Samuel

Rosen estudou na paisagem sonora de uma tribo do Sudão e descobriu que o nível

sonoro daquele povoado estava abaixo de 40 dB na maior parte dos dias, excetos

pelas pesadas chuvas que caíam cerca de três vezes por semana durante seis meses

do ano, quando se ouvia os estrondos do trovão. Tal baixo nível sonoro podia ser

explicado pela ausência de superfícies altamente reverberantes, como paredes,

forros, chão ou mobiliário pesado. Entretanto, “os sons mais fortes (cerca de 100

decibéis) foram encontrados quando os habitantes do povoado estavam cantando e

dançando, o que ocorria, para a maior parte deles, ‘num período de cerca de dois

meses, durante a celebração da colheita da primavera’ (isto é, um festival

religioso).”11

As igrejas, portanto, produzem dominicalmente o “Ruído Sagrado”, pois

“celebram” a cada semana com sons

amplificados em níveis altíssimos de

decibéis. Não há lei, divina ou

humana, que controle os eventos

acústicos num culto, a não ser o bom

senso daquele que manipula os

aparelhos amplificados.

Para muitas igrejas cristãs

(protestantes e católicas), “o divino

era sinalizado pelo sino da Igreja. É

10

SCHAFER, 2001:368. 11

Idem, página 83.

A comunidade matoscostense comemorou o retorno das atividades do Sino da Igreja São João dos Pobres, como será chamado, em referência ao antigo nome da cidade.

8

um desenvolvimento tardio da mesma necessidade de clamor que antes havia sido

expressa pelo canto e pelo estrondo. O interior da igreja também reverberava com

os mais espetaculares eventos acústicos, pois o homem trouxe para esse lugar não

somente as vozes que se ouviam nos cânticos, mas também a mais ruidosa máquina

que até então ele havia produzido – o órgão. E ele foi planejado para fazer a

divindade ouvir.”12

Os ruídos fortes evocavam o temor e o

respeito nos primeiros tempos, e eles pareciam ser a

expressão do poder divino. “[...] esse poder foi

transferido dos sons naturais (trovão, vulcões,

tempestades) para os dos sinos da igreja e [para os

sons] do órgão de tubo. Chamei esse som [diz

Schafer] de Ruído Sagrado para distingui-lo de outro

tipo de ruído (com letra minúscula) que implica danos

e requer legislação sobre a sua diminuição. Esse ruído

sempre foi, basicamente, a turbulenta voz humana.

Durante a Revolução Industrial, o Ruído Sagrado

passou para o mundo profano. Então os industriais

detinham o poder e tinham permissão para fazer

Ruído por meio das máquinas a vapor e dos jatos de

vapor das fornalhas, do mesmo modo que,

anteriormente, os monges tinham sido livres para

fazer Ruído com o sino da igreja, ou J. S. Bach para

registrar seus prelúdios no órgão.”

Ruído e poder sempre estiveram associados e essa associação nunca foi

desfeita na imaginação humana. O poder “provém de Deus, para o sacerdote, para

o industrial e, mais recentemente, para o radialista e o aviador. O que é importante

perceber é que: ter o Ruído Sagrado não é, simplesmente, fazer o ruído mais forte;

ao contrário, é uma questão de ter autoridade para poder fazê-lo sem censura. [...]

12

Idem, página 83.

Órgão de tubos da PIB do Rio de Janeiro

9

Onde quer que o Ruído seja imune à intervenção humana, ali se encontrará um

centro de poder”13, um possível “Ruído Sagrado”.

A foto abaixo ilustra o poder, configurado pela grande capacidade de

produzir decibéis. Ao mesmo tempo, essa alta capacidade atua como um império –

domina todo o espaço sonoro –, todos são alcançados e dominados pela massa

sonora.

É esse tipo de imperialismo sonoro que acontece nos cultos evangélicos?

Imperialismo sonoro é o próximo tópico.

4. A paisagem sonora eclesial versus um imperialismo sonoro?

A Igreja utiliza a amplificação sonora durante os seus cultos. Todo som

produzido no “palco” é amplificado e, na maioria das vezes, essa amplificação é

controlada por pessoas não preparadas e não treinadas para exercer essa função.

O imperialismo sonoro praticado pela igreja caracteriza-se pela imposição de

uma intensidade e energia sonora a todos os presentes, e até mesmo ao público

externo ao templo, sem que possam se defender.

A palavra imperialismo foi primeiramente utilizada para se referir à extensão

de um império ou ideologia a partes do mundo remotas da fonte. “A Europa e a

América do Norte, nos últimos séculos, têm arquitetado várias estratégias

destinadas a dominar outros povos e sistemas de valores, e a subjugação pelo Ruído

tem desempenhado um papel considerável nesses esquemas. A expansão teve

lugar, primeiramente, na terra e no mar (trem, tanque, navio de guerra) e, depois,

no ar (aviões, foguetes, rádio). As sondas lunares [e espaciais] são a mais recente 13

Idem, páginas 114 e 115.

10

expressão da mesma confiança heroica que fez do Homem Ocidental um mundo de

poder colonial.”

É possível considerar a existência de perfis acústicos, isto é, atividades

humanas que produzem sons durante a sua execução. Esses perfis são classificados

como mais ou menos imperialistas. Por exemplo, “um homem com um alto-falante

é mais imperialista que outro que não o

possui, porque pode dominar o espaço

acústico. Um homem com uma pá não é

imperialista, mas um homem com uma serra

elétrica é, porque tem poder para

interromper e dominar outras atividades

acústicas na vizinhança. (Nesse sentido,

notamos que os homens que trabalham em

ambientes externos foram capazes de

melhorar notavelmente a sua posição, depois

de tomarem posse de ferramentas que

chamavam a atenção para eles. Ninguém

escuta um coveiro.)”14 Ou, “se os canhões

fossem silenciosos, nunca teriam sido

utilizados na guerra.”15

O gráfico abaixo informa a potência sonora dos diversos “centros de poder”,

tendo como parâmetro a quantidade de decibéis que produzem:

14

Idem, página 115. 15

Idem, página 115.

11

Tabela 116

Um dos poderes financeiros se encontra nas corridas de fórmula um. Uma

igreja que detenha um canal de televisão/rádio tem mais “poder” de divulgação e,

consequentemente, financeiro do que a outra que não possui esse meio de

comunicação/divulgação.

Em relação aos templos das

igrejas, quais são os seus formatos,

hoje? Na verdade, são verdadeiras

“caixas de sapatos”, nas quais o som se

encontra totalmente preso. Não existe

um projeto acústico, nem um

tratamento acústico.

Nos últimos anos foram

registradas muitas reclamações policiais e judiciais sobre a intensidade sonora

produzida nos cultos. Um exemplo é o seguinte:

De janeiro a abril [de 2011], a Seman (Secretaria do Meio Ambiente e Controle Urbano) de Fortaleza, capital do Ceará, autuou 121estabelecimentos que produzem barulho em excesso. Desse total, 56 são igrejas evangélicas, as campeãs absolutas em poluição sonora. Os bares ficaram em segundo lugar, com 45 reclamações justificadas, seguidos pelas caixas de som de veículos e pelos restaurantes. A Seman vai procurar cada uma das igrejas barulhentas para convencê-la a obedecer a lei e a respeitar o próximo. Mas o fará com muito jeito, para não ser acusada de intolerância religiosa. A expectativa de Júlio César

16

Idem, página 114.

12

Costa, assessor de fiscalização da secretaria, é de que os pastores entendam não estar havendo interferência na liberdade da prática dos cultos. “Estamos apenas querendo que a lei seja cumprida.” Disse que as igrejas que continuarem barulhentas serão punidas com multas de até R$ 4 mil. O que ocorre em Fortaleza se repete não só no Nordeste, mas nas

principais cidades brasileiras, com maior ou menor intensidade.17

Outro exemplo é:

Crescem denúncias de poluição sonora contra igrejas de Manaus. Só neste ano, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade recebeu 12,3% reclamações a mais de vizinhos sobre barulho do que no mesmo período de 2011. Em Manaus, três igrejas foram interditadas pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas), entre 1º de janeiro e 15 de março deste ano, por poluição sonora. Foram registradas 59 denúncias populares contra instituições religiosas nos primeiros 75 dias de 2012. Em 2011, 478 igrejas foram denunciadas à Semmas por poluição sonora e 36 foram notificadas. O chefe de fiscalização da Semmas, engenheiro Norberto Magno, afirmou que o quantitativo de denúncias entre janeiro e março de 2012 corresponde a 12,3% do total registrado no ano passado. Além das três igrejas interditadas, outras 13 foram notificadas. A Semmas não divulgou o nome das instituições. Norberto Magno ressalta que a fiscalização da secretaria, visa, principalmente a orientação dos responsáveis quanto à necessidade de licenciamento e modulação do som. “Muitas instituições alegam falta de recursos para implantação dos projetos acústicos”, destaca. A Semmas está formando um grupo de trabalho para prestar o apoio técnico às igrejas sobre os procedimentos necessários ao licenciamento. O pastor Aroldo Telles de Oliveira, da Igreja Evangélica do Avivamento Jesus é o Caminho, disse que gastou R$ 140 mil para fazer o isolamento acústico da igreja que dirige, na Avenida Constantino Nery, Centro. Ele chegou a ser preso em flagrante por poluição sonora, durante um culto matinal em maio de 2009. “Nós evangélicos sofremos preconceito por parte de alguns vizinhos que não gostam de Deus”.18

A paisagem sonora eclesial não deve ser imperialista. Em outras palavras, não

se deve impor aos participantes dos cultos, e até aos ouvintes involuntários que se

encontram do lado externo do templo, uma sonoridade agressiva à saúde.

O entendimento de sustentabilidade, que inclui a preservação do ser humano

em sua totalidade, abrange a administração dos níveis de intensidade e da

qualidade de todo o som que se impõe à audição dos participantes dos cultos. De

qualquer maneira, a igreja exerce um imperialismo sonoro que pode chegar à

17

http://padom.com.br/igrejas-evangelicas-sao-campeas-em-poluicao-sonora-em-fortaleza/, acessado em 16 Jun 2012. 18

http://www.radioc.com.br/a/index.php?option=com_content&view=article&id=2529:crescem-denuncias-de-poluicao-sonora-contra-igrejas-de-manaus-&catid=3:brasil, acessado em 16 Jun 2012.

13

poluição sonora e à insustentabilidade auditiva do seu público. Esta, com certeza,

traz malefícios à saúde.

4.1. Prejuízos à saúde

O ruído, ou o barulho, já era conhecido como causador de malefício à saúde,

especificamente a surdez, desde o ano de 183119.

Houve evolução no cuidado com a saúde auditiva no decorrer dos anos a

ponto de ser estabelecido “[...] que os sons acima de 85 decibéis, ouvidos

continuamente por longos lapsos de tempo, causam sério dano à audição. [...] A

exposição prolongada a sons acima dessa medida pode causar, a princípio, um

desvio temporário do limiar (TTS)20.

A tabela a seguir informa a quantidade máxima de horas a que deve ser

exposto um indivíduo para que não sofra algum malefício auditivo.

Tabela 221

19

Quando Fosbroke descreveu a surdez que ocorria entre os ferreiros, mas esse estudo permaneceu isolado até 1890, quando Barr [não J. S. Bach] pesquisou cem caldeireiros e descobriu que nenhum deles tinha audição normal. [...] O trabalho de martelar e rebitar peças de aço agrupadas produzia um ruído intenso, que resultava em uma forma de dano auditivo no qual ocorrer surdez para freqüências agudas. O termo [doença de caldeireiro] boilemakers disease entrou em uso pouco tempo depois, referindo-se a todos os tipos de perda auditiva industrial, embora sua prevenção só tenha sido seriamente levada em consideração nos países mais industrializados em 1970.” (SCHAFER, 2001:113). Schafer afirma que encontrou um estudo pioneiro sobre surdez industrial datado de 1713, de Bernardino Ramazzini, denominado Doenças dos trabalhadores. (Idem, página 113, nota de rodapé número 10). 20

O TTS [Temporary Threshold Shift] é uma elevação do limiar da audição, de modo que, após se haver sujeitado a uma experiência realmente ruidosa, todos os sons ouvidos posteriormente parecem ser mais tênues do que o usual. A audição normal retorna depois de algumas horas ou dias. Exposições posteriores podem ocasionar lesão coclear permanente, tendo como resultado um desvio permanente do limiar (PTS) [Permanent Threshold Shift]. Quando ocorre no ouvido interno, essa perda é incurável. 21

Idem, página 259.

14

A ameaça de perda auditiva amplia-se à medida que objetos elétricos e

eletrônicos são disponibilizados para compra e entram em nossa casa e nas igrejas.

“[...] alguns pesquisadores descobriram que a exposição a níveis de ruído

considerados baixos – 70 dBA durante dezesseis horas diariamente – pode ser

suficiente para causar perda auditiva. Esse nível é substancialmente mais baixo do

que o congestionamento de tráfego em uma rua movimentada.”22

Uma pesquisa demonstrou que crianças de escolas públicas apresentaram

um acentuado decréscimo de audição das frequências agudas à medida que

avançam nas séries escolares, “período em que estiveram expostos a bandas de

rock, motocicletas e outros ruídos ‘recreativos’”. Descobriu-se que a ”capacidade

auditiva dos calouros da faculdade que tinham assistido a shows de rock mostrava-

se frequentemente prejudicada, de forma semelhante à de uma pessoa de 65

anos”.23 Por isso, é pertinente a afirmação de que o trovão, a original Vox dei e o

Ruído Sagrado migraram para a banda de rock, passando, primeiramente, para a

catedral e, secundariamente, para a fábrica.

Não é novidade a afirmação de que as bandas musicais no estilo rock and roll

têm presença garantida nos cultos dominicais nas igrejas evangélicas e, muitas

vezes, produzindo poluição sonora, implicando em malefícios auditivos, tanto para

os músicos quanto para os participantes dos cultos.

22

Idem, página 260. 23

Idem, página 260.

15

Outros malefícios

podem ser produzidos

pela poluição sonora. O

som, por ser uma

vibração, afeta o corpo

de várias maneiras. “O

ruído intenso pode

causar dores de cabeça,

náuseas, impotência

sexual, redução da

visão, debilitação das

funções cardiovascular,

gastrintestinal e

respiratória. Mas os

ruídos não precisam ser

intensos para afetar o estado físico das pessoas durante o sono. Pesquisadores [...]

descobriram que ‘o nível de 35 decibéis pode ser considerado como o limiar para

que se tenham condições ótimas de sono’ e que ‘quando o ruído está no nível de 50

decibéis ... há intervalos realmente breves de sono profundo ... seguidos, ao

despertar, por uma sensação de fadiga acompanhada por palpitações’.”24

24

Idem, página 260.

16

A seguir, a tabela 3 mostra os possíveis efeitos negativos do impacto do ruído

sobre o corpo humano.

Tabela 3

Existia uma verdade de que há a perda da audição com o avanço da idade. O

conceito que se tinha era de que “a audição de qualquer pessoa tende a degenerar

um pouco com a idade. Isso acontece muito gradualmente e começa, em primeiro

lugar, com as freqüências agudas, que é a razão pela qual as pessoas mais velhas

muitas vezes se queixam de que ‘todos sussurram hoje em dia’. [...] Sempre se

considerou que a presbicusis25 era o resultado natural do envelhecimento, a

exemplo do cabelo grisalho e das rugas. [...] Um estudo numa tribo de africanos de

Mabaan, no Sudão, mostrou muito pouca perda auditiva causada por presbicusis. Os

africanos com 60 anos de idade tinham audição tão boa ou melhor do que a média

25

Perda gradual da acuidade auditiva em função da idade.

17

dos americanos com idade de 25 anos. Um otologista de Nova York, [...] sob cuja

supervisão o estudo foi feito, atribuiu essa capacidade auditiva superior dos

africanos ao seu ambiente isento de ruídos. Os sons mais fortes ouvidos em Mabaan

eram os das próprias vozes cantando e gritando durante as danças tribais.”26 Essa

pesquisa está colocando em dúvida a “verdade” da progressiva perda auditiva com

o aumento da idade do indivíduo e apontando para a poluição sonora como a

possível causa dessa perda auditiva.

Aos diversos locais foram indicados níveis de intensidade sonora, traduzidos

em decibéis, que são apropriados para produzirem um conforto auditivo. Esses

níveis foram estipulados pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT/NBR)

através da NBR/ABNT 10152, conforme a tabela que segue.

Finalizando este tópico, está comprovado cientificamente que a poluição

sonora faz mal à saúde do indivíduo. Será que a igreja, que se encontra tratando da

“sustentabilidade” espiritual, encontra-se provocando malefícios à saúde auditiva

do seu povo?

26

Idem, página 260-261.

18

5. Reflexões finais

A paisagem sonora eclesial deve ser convidativa. A paisagem sonora deve ser

atrair as pessoas por intermédio de sua qualidade técnica.

A paisagem sonora eclesial deve ser significante. A paisagem sonora eclesial

não deve funcionar como um meio de confusão mental ou meio propiciador de

êxtase. Cada som da paisagem sonora eclesial deve ser produzido livre de ruídos, o

que facilitará a sua percepção e interpretação. Havendo a interpretação, a

possibilidade de crescimento do indivíduo, nas diversas dimensões do ser humano,

será factível.

A paisagem sonora eclesial deve ser benéfica à saúde auditiva. Proporcionar

o bem estar auditivo aos participantes do culto deve ser uma busca constante da

liderança eclesiástica, um compromisso com a sustentabilidade humana e com a

diminuição, e porque não dizer, a eliminação da poluição sonora da paisagem

sonora eclesial.