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DOUTORAMENTO MESTRADO & ESTUDOS SÉRIE D 10 MARLENE C. R. NEVES O SILÊNCIO DIVINO NO JULGAMENTO DOS HOMENS BREVE REFLEXÃO SOBRE A IRRESTRITA MANUTENÇÃO DO SEGREDO RELIGIOSO NO PROCESSO PENAL

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DOUTORAMENTO

MESTRADO&ES

TUDO

S

SÉRI

E D

10

MARLENE C. R. NEVES

O SILÊNCIO DIVINO NO JULGAMENTO DOS HOMENSBREVE REFLEXÃO SOBRE A IRRESTRITA MANUTENÇÃO

DO SEGREDO RELIGIOSO NO PROCESSO PENAL

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EDIÇÃOInstituto Jurídico

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

COORDENAÇÃO EDITORIALInstituto Jurídico

Faculdade de Direito Universidade de Coimbra

CONCEPÇÃO GRÁFICA | INFOGRAFIAAna Paula Silva

[email protected]

www.fd.uc.pt/ institutojuridicoPátio da Universidade | 3004-528 Coimbra

ISBN 978-989-8787-26-2

© AGOSTO 2015

INSTITUTO JURÍDICO | FACULDADE DE DIREITO | UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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Doutoramento

Mestrado

E S T U D O S

&

SÉRIE D | 10

MARLENE C. R. NEVES

O SILÊNCIO DIVINO NO JULGAMENTO DOS HOMENSBREVE REFLEXÃO SOBRE A IRRESTRITA MANUTENÇÃO

DO SEGREDO RELIGIOSO NO PROCESSO PENAL

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O SILÊNCIO DIVINO NO JULGAMENTO DOS HOMENSBREVE REFLEXÃO SOBRE A IRRESTRITA MANUTENÇÃO DO

SEGREDO RELIGIOSO NO PROCESSO PENAL*

Marlene C. R. Neves

RESUMO: Este pequeno estudo analisa o regime jurídico da pro-va testemunhal no nosso Código de Processo Penal, em particular a forma como o segredo profissional pode legitimamente obstar a um depoimento verdadeiro e completo e quais são as suas ex-cepções quando existe uma razão suficiente para o revelar. Con-tudo, há uma excepção a estas excepções: o segredo religioso. Ba-seados na confidencialidade da confissão, os ministros do culto não podem revelar informações de que tomaram conhecimento no exercício da sua profissão. Mas se entendermos o conceito de ministro da religião como uma vulgar profissão, a par da estrutu-ra hierárquica das diversas religiões, ousamos perguntar: o núme-ro 5 do artigo 135.º é uma solução actual e justa? Esta é a questão que estudámos.

DESCRITORES: processo penal; prova testemunhal; segredo profissional; segredo religioso; confissão; ministro do culto.

* Com ressalva de pontualíssimas alterações, o presente artigo corres-ponde ao trabalho final do Seminário Especializado “Direito Processual Penal e Constituição”, do Curso de Doutoramento em Direito, na área de especialização em Ciências Jurídico-Criminais, leccionado pelo Senhor Professor Doutor José de Faria Costa no ano lectivo 2012/2013.

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THE DIVINE SILENCE IN THE TRIAL OF MEN

A BRIEF REFLECTION ABOUT THE UNRESTRICTED MAINTENANCE OF RELIGIOUS SECRET IN CRIMINAL PROCEEDINGS

Marlene C. R. Neves

ABSTRACT: This brief paper analyses the legal discipline of tes-timonial proof in our Criminal Procedure Code, particularly the way professional secrecy can legitimately prevent a true and com-plete testimony and which are the exceptions when there is a su-fficient cause for revealing it. However, there is one exception to these exceptions: the religious secret. Based on the confidentiali-ty of confession, ministers of religion can not be required to dis-close informations brought to their knowledge in the exercise of their profession. But if we undertstand the concept of minister of religion as a common profession, together with the hierarchi-cal structure of the various religions, we have to ask: is the num-ber 5 of article 135.º a current and fair solution? This is the ques-tion addressed in this study.

KEYWORDS: criminal proceedings; testimonial proof; professional se-crecy; religious secret; confession; minister of religion.

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O Silêncio Divino no Julgamento dos Homens

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Pródromo

A compreensão do passado é um alicerce fundamental para que o processo penal possa cumprir uma das suas nobres finalida-des: aplicar a justiça ao caso concreto. Este desiderato encerra em si uma busca permanente da verdade, uma procura que se renova com a multiplicação dos julgamentos que, diariamente, animam os nossos tribunais, palcos privilegiados de conhecimentos pretéritos, narrados por actores comuns e com respeito por regras pré-deter-minadas, as quais nem sempre permitem que se conte tudo o que se sabe. E, quando assim é, o silêncio impõe-se, fruto de um segredo que perpassa, de forma quase inatacável, várias profissões, como os médicos e os advogados. Se o enredo processual o justificar, o sigilo pode, porém, ser quebrado. Todavia, à luz da actual malha normati-va, há um ofício que, pela sua índole intimista, permanece uma ex-cepção; referimo-nos aos ministros do culto e ao regime totalmen-te confidencial que permeia as informações que recebem enquanto profissionais. Aferir a (im)pertinência desta solução legal é o exer-cício analítico-reflexivo que nos propomos a desenvolver nas pró-ximas linhas, nas quais, e depois de uma brevíssima alusão geral à prova testemunhal, perquiriremos se o seu fundamento reside, ainda hoje, na grande conquista que foi o reconhecimento da liberdade re-ligiosa, pedra-angular de uma comunidade pluriconfessional como a nossa, ou se, diversamente, a recusa em testemunhar por parte de um sacerdote se traduz, num Estado secular como o nosso, num particular dever deontológico.

I. A prova testemunhal em Direito Processual Penal

§ 1. A testemunha como meio de prova

O processo penal visa apurar se determinada pessoa é ou não responsável pela prática do(s) crime(s) pelo(s) qual(ais) fora acusada (e/ou pronunciada) e, em caso afirmativo, qual(ais) a(s)

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consequência(s) jurídica(s) que lhe deve(m) ser aplicada(s). A sua natureza (potencialmente limitadora de direitos fundamentais das pessoas) e singular conexão com o Direito Penal reivindicam uma definição rigorosa dos trâmites jurisdicionalmente admissíveis1, o que conduz a que a verdade que através dele se procure não seja absoluta mas somente aquela que é considerada “processualmente válida”2, com preterição de determinados meios de prova e de ob-tenção de prova.3

A prova testemunhal, frequente nas nossas instâncias judi-ciais, consiste no depoimento prestado por uma pessoa que é alheia à factualidade possivelmente criminosa que norteia o julgamento e em relação à qual se pretende averiguar a sua ocorrência. A teste-

1 Como nos informa José de Faria Costa, “enquanto manifestação do poder sancionatório do Estado, [o processo penal] deve (…) apresentar garantias precisas que se impõem em um Estado de direito democrático” (Noções fundamen-tais de Direito Penal (Fragmenta iuris poenalis), 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, 40) e que são capitais no difícil mas necessário equilíbrio entre as suas conflituantes finalidades. (Sobre o fim do processo penal cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, reimpr. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, 40-50).

2 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 194. 3 A prova, na sua acepção mais ampla e compreensiva dos conceitos

referidos (cfr. Paulo de Sousa Mendes, “As proibições de prova no processo pe-nal”, in Maria Fernanda Palma, coord., Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coimbra: Almedina, 2004, 134), deve, assim, ser “obtida com li-mites que bebem a sua razão de ser na dignidade da pessoa [(]humana[)]” (José de Faria Costa, (“Um olhar cruzado entre a Constituição e o processo penal”, in AA.VV., A Justiça nos dois lados do Atlântico (Teoria e prática do processo criminal em Portugal e nos Estados Unidos da América), Lisboa: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 1998, 196). Permitam-nos, no contexto desta singela nota, uma breve explicação sobre os parênteses que colocámos no último termo da citação. É usual lermos, em textos doutrinais e jurisprudenciais, a expressão “dignidade da pessoa humana”. Não negando a importância do seu conteúdo, parece-nos, porém, redundante referir-se que a pessoa é humana. Dignidade da pessoa (ou do ser humano) é, a nossos olhos, suficiente, uma vez que – e tendo em conta que o vocábulo “humana” não se apresenta, aqui, como um adjectivo – toda a pessoa é forçosamente humana. Admitir uma cisão entre pessoas humanas e não humanas pode conduzir-nos a conclusões em que a bondade e compassividade de determinados sujeitos pode privilegiá-los nos seus direitos, prejudicando aqueles que adoptam uma atitude mais egoísta. Uma destrinça que é, de todo, inadmissível para o Direito.

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O Silêncio Divino no Julgamento dos Homens

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munha não é, portanto, alguém que teve participação no delito4; se o fosse, e consoante a sua intervenção, o ser humano em causa teria de ser considerado como assistente (ou lesado) ou como arguido e as declarações por este realizadas seguem uma regulamentação dis-tinta daquela que disciplina o meio de prova que curamos.5

O depoimento de uma testemunha incide, por regra, sobre circunstâncias factuais que foram percepcionadas na primeira pes-soa, ou seja, sobre “factos de que possua conhecimento directo”6.

4 No mesmo sentido, vide Manuel Simas Santos – Manuel leal-Henri-ques – João Simas Santos, Noções de processo penal, 2.ª ed., Lisboa: Rei dos Livros, 2011, 200; e o art. 133.º do Código de Processo Penal (CPP). Note-se, porém, que este tema pode ser interpretado de outro modo e a Lei de Protecção de Testemu-nhas (Lei n.º 93/99, de 14 de Julho) pode ser, na al. a) do seu art. 2.º, um apoio (frágil, a nossos olhos) para tal.

5 Contrariamente a Henrique eiras, que considera que “o Código [de Processo Penal] vigente não faz essa distinção [entre declarantes e testemunhas]” (Processo Penal Elementar, 7.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2008, 143), pensamos que o nosso CPP oferece um regime distinto para a prova testemunhal e as declara-ções de alguns intervenientes processuais (em particular, do arguido, do assis-tente e das partes civis), conforme resulta da leitura dos art.’s 128.º e s. e 140.º e s., respectivamente. Paulo de Sousa Mendes vai ainda mais longe (porventura, demasiado) ao asseverar que “o suspeito, seja qual for a fonte e a consistência da imputação e ainda que não se justifique constituí-lo como arguido, acaba tendo uma posição processual própria que resulta de não poder intervir no processo noutras vestes, designadamente como testemunha” (“Os direitos e os deveres do arguido”, in Paulo Otero – Fernando Araújo – João Taborda da Gama, org., Estudos em Memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, 820). Releve-se que o arguido possui, pela sua posição, um esta-tuto singular, com deveres e direitos próprios (art.’s 60.º e s. do CPP), nos quais alguns AA. enquadram, pela irresponsabilidade da falsidade de suas palavras, o direito a mentir, como decorrência do princípio nemo tenetur se ipsum accusare (cfr. Marcus Renan Palácio dos Santos, “Princípio nemo tenetur se detegere e os limites a um suposto direito de mentir”, in <www.pgj.ce.gov.br> (consultado em 27 de Junho de 2013), 14 e s.). Ainda que não refutemos que ele não está obrigado a colaborar activamente para a descoberta da verdade, entendemos que, “embora a mentira do arguido não seja sancionada penalmente [isto é, não configure um delito autónomo], também não é um direito que lhe assiste, pelo que a tentativa de enganar a investigação e de prejudicar gravemente outra pessoa cuja responsa-bilidade é menor [ou inexistente] representa uma conduta processual censurável” (ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Outubro de 2006, relativo ao proc. n.º 06P3163, relatado por Santos Carvalho).

6 Art. 128.º, n.º 1, do CPP.

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Repudiam-se, neste contexto, os burburinhos do vulgo (art. 130.º, n.º 1, do CPP) e o testemunho indirecto só é admitido em casos ex-cepcionais, quando “a inquirição das pessoas indicadas não for pos-sível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilida-de de serem encontradas”7.

Em princípio, qualquer um de nós, detentor das suas facul-dades mentais, pode testemunhar.8 Como escreveu Cesare Becca-ria, “todo o homem razoável, isto é, que tenha uma certa conexão nas suas próprias ideias e cujas sensações sejam conformes às dos outros homens, pode testemunhar”9. Admite-se, portanto, que as crianças e adolescentes possam, apesar de juridicamente incapazes, contar, em tribunal, o que presenciaram; existem, contudo, regras próprias quanto à sua audição, nomeadamente se o menor tiver que depor sobre delitos de natureza sexual (art. 131.º, n.º 3, do CPP) ou se a sua idade for inferior a 16 anos (art. 349.º do mesmo Código).10

Apesar de não serem sujeitos processuais mas meros inter-venientes, assiste às testemunhas o conjunto de direitos e deveres que se enumeram no art. 132.º do CPP, dos quais destacamos o de-ver de comparecer às diligências para as quais forem convocadas e a prestação de juramento com a correlativa obrigação de dizer a ver-dade. No que toca ao primeiro, a apresentação da testemunha no julgamento corresponde à concretização dos princípios da oralidade e da imediação do processo penal11; o comparecimento de uma pes-soa que foi arrolada como testemunha possibilita que o julgador e os sujeitos processuais (maxime o arguido e o seu defensor) tenham

7 N.º 1 do art. 129.º, in fine, do CPP. Registe-se que esta forma de teste-munhar não pode ser confundida com o depoimento por meio de procurador, o qual é, ao abrigo do n.º 1 do art. 138.º daquele Código, proibido.

8 Cfr. art. 131.º, n.º 1, do CPP.9 Dos delitos e das penas, trad. José de Faria Costa, 2.ª ed., Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 2007, 85.10 Sobre o testemunho de menores vide Nuno Castro Luís, “Das testemu-

nhas”, in Manuel Monteiro Guedes Valente, coord., I Congresso de Processo Penal – Memórias, Coimbra: Almedina, 2005, 357-380, 359-366.

11 Sobre os princípios citados, vide, entre muitos, Paulo Pinto de AlBu-querque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011, 59-60.

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contacto directo com ela, interrogando-a sobre o que consideram pertinente para a descoberta da verdade (ou para a defesa da sua po-sição processual).12 No que se refere ao juramento de quem vai tes-temunhar, este consubstancia-se na formulação do n.º 1 do art. 91.º do CPP: “Juro, por minha honra, dizer toda a verdade e só a verda-de”. Esta pequena locução, que traduz um dever de falar com vera-cidade, é um marco distintivo entre a prova testemunhal e as decla-rações do assistente, do lesado e do arguido, as quais não são prece-didas de juramento.13 Uma diferença que se repercute na responsa-bilização penal em caso de mendacidade, mais precisamente quanto ao preenchimento do tipo legal de crime: as falsas declarações pres-tadas por assistente, partes civis e arguido (este, recorde-se, apenas quanto à sua identidade) integram-se na infracção criminosa previs-ta e punida pelo art. 359.º, n.º 2, do CP, enquanto que o incorrecto depoimento de uma testemunha corresponde ao delito tipificado no art. subsequente.14 Apesar de partilharem o nobre objectivo de reali-zação da justiça material, a desproporção nas suas molduras penais é evidente: no primeiro caso, o agente pode ser punido com multa ou com um período de cárcere até 3 anos; no segundo, a pena abstracta sanciona a mendaz testemunha com multa até 600 dias ou com um

12 A inquirição de testemunhas em julgamento rege-se pelo disposto nos art.’s 348.º e s. do CPP.

13 Cfr. art.’s 140.º, n.º 3 (arguido) e 145.º, n.º 4 (assistente e parte civis), do CPP. Sublinhe-se, a este propósito, que o arguido apenas tem a obrigação de responder com autenticidade às perguntas que lhe forem feitas sobre a sua iden-tidade (art.’s 61.º, n.º 3, al. b), e 141.º, n.º 3, e 342.º, todos do CPP e, ainda, art. 359.º, n.º 2, in fine, do CP), mas não existe tal obrigação sobre as questões atinen-tes aos factos que lhe são imputados (art.’s 61.º , n.º 1, al. d), 343.º, n.º 1, e 345.º do CPP). Como referiu eduardo correia, “sa déposition [de l’inculpé] n’exige ni compromis d’honneur ni serment, et n’est même pas obligatoire, puisqu’il peut, contrairement à ce qui se passe pour les témoins (…), refuser de faire sa déposi-tion (…), ou déposer faussement sans tomber en crime” (“Les preuves en droit pénal portugais”, Revista de Direito e Estudos Sociais, 14 (1967) 48). Quanto ao as-sistente e às partes civis, não obstante não realizarem juramento, encontram-se obrigadas a falar com verdade (art. 145.º, n.º 2, do CPP e art. 359.º, n.º 2, do CP).

14 Para alguns esclarecimentos sobre os crimes em questão, cfr. Paulo Pinto de AlBuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2008, 844-850.

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momento de reclusão que pode chegar aos 5 anos. A possibilidade de a testemunha mentir não pode, apesar do dever de verdade que sobre ela impende, ser ignorada e o tribunal pode, à luz do princípio da livre apreciação da prova15, atribuir-lhe menor ou maior credibili-dade, consoante a avaliação que dela faça.16-17

Como resulta das linhas antecedentes, quando presenciamos a prática de um delito e somos arrolados como testemunhas somos obrigados, via de regra, a dizer o que sabemos. Esta regra contém, contudo, excepções: os parentes do arguido podem recusar-se a de-por (art. 134.º do CPP) e os profissionais sujeitos a sigilo podem, também, escusar-se de o fazer (art. 135.º, n.º 1, do CPP). É sobre estas nuances na disciplina jurídica atinente à prova testemunhal que nos dedicaremos doravante.

§ 2. Os familiares do arguido e a sua faculdade de recusa em depor

O n.º 1 do art. 134.º do CPP dispõe que: “Podem recusar-se a depor como testemunhas:

15 Determina o art. 127.º do CPP que: “Salvo quando a lei dispuser di-ferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre con-vicção da entidade competente.” Para mais informações sobre este princípio ju-rídico-processual, vide Paulo Saragoça da Matta, “A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, in Maria Fernanda Palma, coord., Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coimbra: Almedina, 2004, 239 e s.

16 Maria Clara calHeiros esclarece-nos que o testemunho é um meio de prova de difícil valoração, na medida em que “é habitualmente valorado com base na experiência do julgador, no conhecimento psicológico, até mesmo a partir de factores pessoais, profissionais, do nível intelectual e moral das testemunhas, etc.” (“Prova e verdade no processo judicial. Aspectos epistemológicos e metodológi-cos”, Revista do Ministério Público, 114 (2008) 82).

17 Como o arguto leitor já reparou, temos centrado o nosso discurso na testemunha, não fazendo qualquer alusão à figura do perito. Pela economia do presente trabalho eximimo-nos a uma análise aprofundada sobre o mesmo, relevando apenas que não o consideramos como uma testemunha, atentas as par-ticularidades do seu estatuto que se traduzem numa outra forma de juramento (art. 91.º, n.º 2, do CPP) e no facto de as declarações por ele prestadas serem, na verdade, esclarecimentos quanto às perícias que realizou (art. 158.º do CPP). Cfr. igualmente o art. 350.º do CPP.

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a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2.º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;

b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorri-dos durante o casamento ou a coabitação.”

Esta norma tutela, assim, o que, em 1977, a Corte Cons-titucional italiana designou, para a sua paralela, o “sentimento familiare”18, um salutar ambiente entre aqueles que partilham laços de parentesco ou afinidade e que, por esse facto, devem ter a facul-dade de optar entre nada dizer ou prejudicar, com as suas palavras, os seus familiares.19 Além do conflito interior da testemunha/fami-liar, poder-se-ia criar, na ausência de tal brecha, uma suspeita de fal-sidade do depoimento dado. Para evitar que se origine tal descon-fiança, não se admite o depoimento indirecto sobre o recusante, isto é, está vedada qualquer produção de prova que assente nas declara-ções de alguém que ouviu dizer algo a outra pessoa, familiar do ar-guido, e que se nega legitimamente a depor.20 E cabe ao tribunal (ou a entidade diversa que inquira a testemunha antes do julgamento), sob pena de nulidade das declarações prestadas, advertir antecipada-mente a pessoa que partilha laços familiares com o arguido sobre a faculdade que lhe assiste de poder, por tal razão, recusar o seu tes-temunho, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 134.º do CPP.

A recusa de depoimento de uma testemunha com esteio na disposição jurídico-normativa que inaugura este § corresponde, rei-tera-se, à protecção dos vínculos sanguíneos e/ou afectivos de um determinado agregado familiar. Esta possibilidade é, se bem com-preendemos as coisas, uma faculdade própria das testemunhas que

18 Apud D. Siracusano, et al., Diritto processuale penale, vol. I, 2.ª ed., Giuffrè, Milão, 1996, 389.

19 Como escreveu Carlos climent durán, “los parientes del acusado no están obligados a declarar en contra del mismo porque los lazos familiares se hallan en contraposición con la verdad, hasta el punto de que dificilmente cabe pensar que una personna vaya sacrificar a un familiar por mantener a toda costa la verdad” (La prueba penal, Tirant lo Blanch, Valencia, 1999, 162).

20 Esta é a conclusão que se retira da leitura conjugada dos artigos 129.º, n.º 1, e 134.º do CPP.

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se encontrem nas situações referidas supra, não decorrendo, por isso, do direito ao silêncio do arguido21. Expliquemo-nos melhor: com es-teio no singular direito a não responder ao que lhe for perguntado, a pessoa sobre a qual recai uma acusação e/ou pronúncia22 pode, que-rendo, nada dizer sem que esta sua atitude a desfavoreça. Poder-se-ia equacionar, deste modo, se a recusa em depor de um familiar seria uma consequência deste direito ao silêncio do arguido.23 Não nos pa-rece, porém, que este seja o exercício reflexivo que melhor se adeqúe à recusa de depoimento do familiar. Esta possibilidade é, como já o dissemos, própria da testemunha e da sua especial ligação ao argui-do. E se dúvidas ainda se conservarem, repare-se que a declinação em depor quando, do seu testemunho, possa dimanar a sua respon-sabilização penal é um direito que lhe assiste (conforme disposto no n.º 2 do art. 132.º do CPP) sem a advertência prévia do mesmo. Ora, se não há indicação da possibilidade de não depor quando a testemu-nha se cala porque, falando, corre o risco de se auto-incriminar (e de passar a ser, portanto, arguida), a recusa de depoimento prevista no art. 134.º e a advertência que nele se prevê não pode ser corolário do direito ao silêncio daquele que é criminalmente imputado.

21 O direito ao silêncio, como concretização do privilégio contra a auto--incriminação (mas não se confundindo inteiramente com este), reporta-se à “[não] colaboração do arguido na sua incriminação através de declarações sobre os factos que lhe são imputados” (Lara Sofia Pinto, “Privilégio contra a auto-incriminação versus colaboração do arguido (Case study: revelação coactiva da password para de-sencriptação de dados – resistance is futile?)”, in Teresa Pizarro Beleza – Frederico de Lacerda da Costa Pinto, coord., Prova criminal e direito de defesa (Estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal), Coimbra: Almedina, 2010, 109), como decorre, entre outros normativos, da al. d) do n.º 1 do art. 61.º do CPP.

22 Não ignoramos que o arguido possa ser constituído como tal na fase de inquérito, mesmo até a seu pedido (cfr. art.’s 58.º e 59.º do CPP). Todavia, para o presente contexto, interessa-nos somente o arguido que, em sede de julgamen-to, pode legalmente remeter-se ao silêncio.

23 Uma interpretação sugestionada pela inclusão das testemunhas (e o dever que o tribunal para com elas tem de as recordar que, sendo familiares do arguido, podem não depor) no período textual que Sofia Saraiva de Menezes, dedica ao “dever de advertência do direito ao silêncio” (“O direito ao silêncio: a verdade por detrás do mito”, in Teresa Pizarro Beleza – Frederico de Lacerda da Costa Pinto, coord., Prova criminal e direito de defesa (Estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal), Coimbra: Almedina, 2010, 130).

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§ 3. O sigilo profissional: breve alusão ao seu regime

Como referimos supra, o carácter reservado de determina-das informações que são confidenciadas a determinados profissio-nais pode escusar o depoimento destes como testemunhas, invo-cando-se, para o efeito, e com esteio no n.º 1 do art. 135.º do CPP, o sigilo profissional, o qual se apresenta como um verdadeiro limite à prova testemunhal e, consequentemente, um legítimo obstáculo à descoberta da verdade.

Para saber se existe ou não segredo profissional é necessário, antes de mais, de compreender o próprio conceito de sigilo.24 An-tónio de Sousa Madeira Pinto considera que segredo corresponde “[à] reserva de qualquer facto não publicamente conhecido, de que, por qualquer modo, nos inteiramos e que, no interesse de determi-nadas pessoas, não devemos transmitir a terceiros”25. Estritamente conexo com o conceito de segredo encontramos, destarte, a priva-cidade, direito fundamental26 que cada um de nós, pelo facto de ser-mos pessoas, possuímos e que se consolida numa limitação do con-teúdo informacional a que terceiros podem aceder e/ou transmitir. Porque nem todos têm de saber tudo sobre nós, por muito públi-ca que a nossa pessoa seja; há sempre um espaço de intimidade que é só nosso, “uma vertente de nós que se assume e se quer opaca, que é mesmo uma condição indispensável para um desenvolvimen-to equilibrado da personalidade humana”27. Saber qual a informação

24 Diego Fajardo Maranha Leão de souza, com apoio na sua raiz etimo-lógica, entende que “[o] segredo é a informação, o dado da realidade que se pre-tende ver protegido ou ocultado e o sigilo é a forma através da qual é efectivada essa protecção” (“Sigilo profissional e prova penal”, in <www.instititutoasf.com.br> (consultado a 20 de Maio de 2013). 5). Conquanto não refutemos que a sua etimologia é diversa (segredo provém do desenvolvimento da expressão latina secretum, enquanto que sigilo deriva de sigillu), não acompanhamos, porém, tal di-cotomia e os vocábulos em causa são, para nós (e para vários dicionários comuns da nossa língua), sinónimos. Além disso, não é, cremos, a existência de sigilo que limita ou impossibilita a divulgação de conhecimentos sobre outrem; é sim, ao invés, o seu carácter pessoalíssimo, do qual deriva um dever de silêncio que, para determinados ofícios, se designa por sigilo profissional.

25 “O segredo profissional”, Revista da Ordem dos Advogados, 19 (1959) 38.26 Cfr. art. 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).27 José de Faria Costa, “As telecomunicações e a privacidade: o olhar

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que possui carácter sigiloso e quem pode ser o seu fiel depositário são questões que carecem de uma avaliação casuística, dependendo, desde logo, do teor daquele conhecimento.28

O exercício de determinadas profissões carece de conheci-mentos muito pessoais. A índole privada de tal informação, que fica adstrita ao segredo profissional29, justifica a sua não revelação a ou-trem, ainda que este seja um poder democraticamente instituído. Aliás, não será supérfluo frisar que é pelo facto do poder judicial ser uma manifestação de um governo plural que o mesmo respeita os direitos fundamentais dos cidadãos, o que, no caso que nos ocupa, se prende com a existência de limites à produção da prova testemu-nhal fundados no sigilo profissional. Como o legislador consagrou no n.º 1 do art. 135.º do CPP, “os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de institui-ções de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos”.30 Logo, existe um núcleo de ofícios que, pelo con-

(in)discreto de um penalista”, in José de Faria Costa, Direito Penal da Comunicação (Alguns escritos), Coimbra: Coimbra Editora, 1998, 159.

28 Para algumas reflexões sobre a noção de segredo e a relação transpa-rência versus opacidade no seio da qual aquele se move, vide José de Faria Costa, “Os meios de comunicação (correios, telégrafo, telefones ou telecomunicações), o segredo e a responsabilidade penal dos funcionários” in José de Faria Costa, Di-reito Penal da Comunicação (Alguns escritos), Coimbra: Coimbra Editora, 1998, 94-97.

29 Embora não seja uma matéria pacífica, não nos repugna que o segredo profissional abarque não só os factos de que alguém tomou conhecimento no exercício das suas funções, mas também aqueles que chegaram ao seu conheci-mento por causa do seu ofício. Não se olvide, também, que o regime de buscas e apreensões realizadas num consultório médico ou num escritório de advogados rege-se por normas especiais que se estribam no sigilo destes profissionais, de acordo com os art.’s 177.º, n.º 5, e 180.º do CPP. (Sobre este aspecto cfr. João Luís Rodrigues Gonçalves, “Segredo profissional (Algumas considerações sobre segredo médico e segredo profissional do advogado)”, Revista do Ministério Público, 76 (1998) 74-76).

30 Apesar de o presente trabalho se circunscrever ao segredo profissional no processo penal, não podemos deixar de notar que o mesmo é tutelado no âm-bito do Direito Processual Civil, apresentando-se como uma recusa legítima em depor (cfr. art. 519.º, n.º 3, al. c) do antigo Código de Processo Civil (CPC) e art. 417.º, n.º 3, al. c) do novo CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que entrou em vigor a partir de 1 de Setembro do presente ano, conforme art. 8.º

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tacto directo com dados privados de outras pessoas, ficam subme-tidos a uma disciplina jurídica especial, baseada na relação de con-fiança que se estabelece entre o titular da informação e aquele que a recebe. O fundamento do segredo profissional é, por outras pala-vras – rectius, nas palavras de um exemplo jurisprudencial nacional – “o corolário do indispensável princípio da confiança que subjaz à relação que se estabelece entre os particulares e toda aquela panóplia de profissionais mencionados no art. 135.º do CPP, desde os minis-tros da religião, aos advogados, médicos e demais profissionais”31/32.

O segredo profissional, não obstante ser um dever deonto-lógico33, não é absoluto e pode ser destruído em nome de outros va-lores. Deste modo, se a escusa em depor se arrimar na confidencia-lidade que o sigilo profissional pressupõe, deve avaliar-se a sua legi-timidade (art. 135.º, n.º 2, do CPP). Caso se conclua que tal recusa é ilegítima, um tribunal superior àquele onde corre o processo no qual se nega o testemunho (ou o plenário, no caso do processo estar a ser tramitado numa das secções do Supremo Tribunal de Justiça)

daquele diploma) e, sequentemente, não observando, de forma lícita, o dever de colaboração para a descoberta da verdade (cfr. art. 618.º, n.º 3, do antigo CPC e art. 497.º, n.º 3, do CPC vigente).

31 Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-05-2007, citado em magis-trados do ministério PúBlico do distrito judicial do Porto, Código de Processo Penal – Comentários e notas práticas, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, 360. Com similar entendimento cfr. Hilda garrido suárez, “Confiabilidad y abogacía: prin-cipios deontológicos”, Anuario de Filosofia del Derecho, 28 (2012) 178.

32 A relação de confiança, conexa com o teor da informação que se par-tilha, é, inclusivamente, protegida no próprio Direito Penal, por meio da incrimi-nação de violação de segredo (art. 195.º do CP), um tipo legal de crime que tutela a privacidade, “protege[ndo]-a contra a traição [itálico do A.]” (Manuel da Costa Andrade, “Anotação ao artigo 195.º do Código Penal (Violação de segredo)”, in Jorge de Figueiredo Dias, dir., Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, 771). Evoquem-se, também, a este propósito, as palavras de eduardo Correia aquando da elaboração do actual CPP: “a pu-nição da violação do segredo profissional (…) é o correlativo indispensável de todas as profissões que assentam numa relação de confiança” (“Actas das Sessões da Comissão Revisora do Projecto da Parte Especial do Código Penal”, Boletim do Ministério da Justiça, 287 (1979) 16).

33 A título de exemplo, veja-se o art. 87.º do Estatuto da Ordem dos Advoga-dos e o art. 85.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, respectivamente, quanto a advogados e a médicos.

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pode, depois de auscultar “o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa”34, decidir que o recusante tem de prestar o seu depoimento. O juízo que preside a esta decisão assenta numa ponderação de valores conflituantes e a decisão de quebra do sigilo profissional tem, in casu, que se revelar “justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse pre-ponderante, nomeadamente tendo em conta a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos”35.

A regulamentação abreviadamente apresentada sobre a que-bra de segredo profissional demonstra que este não é absoluto e pode ceder perante outros valores que se mostrem predominantes. Salvaguardado desta regulamentação fica, todavia, o segredo religio-so, com decorre do n.º 5 do art. 135.º do CPP. Manuel Lopes maia gonçalves afirmou que a quebra do sigilo profissional “só não se aplica, por razões óbvias, ao segredo religioso”36. Diversamente da exegese deste A., não vislumbramos, com limpidez, o fundamento desta excepção. O “«medo» intelectual do óbvio”, que com José de Faria costa37 partilhamos, não nos permite tomar nada como axio-mático; é, ao invés, um ponto de partida para, num estado similar

34 Teor do n.º 4 do art. 135.º do CPP. Como mera ilustração refira-se que, se em causa estiver um médico, será a Ordem dos Médicos a entidade a ser ouvida. Isto desde que o profissional da Medicina se apresente em tribunal como um clínico e não como um perito, uma vez que, quanto a este, a questão do sigilo não se coloca (até porque, como afirmámos supra, as suas declarações não podem ser tidas como um testemunho comum). Diversamente do que acontece com o médico que nos acompanha com regularidade e em quem confiamos a nossa saúde, temos tendência a olhar com alguma desconfiança para aquele que se nos surge como perito.

35 Redacção do n.º 3 do art. 135.º do CPP. Como foi dito pelos nossos tribunais, “a quebra do sigilo profissional impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do sigilo profissional deve ou não ceder perante outros interesses, designadamente o da colaboração com a realização da justiça” (ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16 de Dezembro de 2009, referente ao proc. n.º 132/08.7JAGRD-C.C1, relatado por Brízida martins).

36 Código de Processo Penal Anotado, 17.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, 371.37 “A análise das formas (ou a análise das “formas do crime”: em especial a ten-

tativa)”, Revista de Legislação e Jurisprudência, 139 (2010) 298, n. 36.

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ao do helénico thaumázein38, se indagar o que parece evidente e, no contexto deste estudo, perguntar se a justificação deste desvio ainda tem, nos nossos dias, razão de ser, o que faremos de seguida.

II. O segredo religioso

§ 1. O conceito de ministro do culto num cenário religioso plural

O recorte compreensivo do conceito de ministro do culto é uma tarefa complexa no seio de uma comunidade diversificada nos seus credos39, como é aquela em que nos inserimos. Fruto da con-quista da liberdade religiosa40 e da secularização do Estado41, assiste--se, hodiernamente, a uma presença de múltiplas religiões42 que se

38 Termo grego que significa espanto, o qual pode definido, nas pala-vras de Paulo Ferreira da cunHa, como “o assombro do Homem perante o que desconhece, o que não compreende, que o maravilha ou amedronta, e pretende conhecer, desvendar” (Filosofia do Direito, Coimbra: Almedina, 2006, 29-30).

39 Para uma leitura informativa sobre as várias confissões religiosas (e outros movimentos), vide Karl-Heinz OHlig, Religião: Tudo o que é preciso saber, trad. Teresa Toldy e Marian Toldy, Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2007.

40 Sobre a evolução da liberdade religiosa cfr. Jónatas E. M. MacHado, “A Constituição e os movimentos religiosos minoritários”, Boletim da Faculdade de Direito, 72 (1996) 213 e s.

41 Portugal operou uma cisão com a Igreja e é hoje um Estado laico, secular ou não confessional. Não existe, actualmente, uma religião estatal e disso ninguém duvida. Opiniões dissonantes surgem, contudo, quando se discute se o nosso país é um Estado religiosamente neutro; a favor desta tese temos, ad exemplum, Helena vilaça, Da Torre de Babel às Terras Prometidas (Pluralismo Religioso em Portugal), Santa Maria da Feira: Edições Afrontamento, 2006, 149; contra este entendimento pronunciou-se Paulo Pulido adragão, A liberdade religiosa e o Estado, Coimbra: Almedina, 2002, 476.

42 A noção de religião, intrincada pela variedade de credos e pelo seu carácter intimista, tem vindo a ser objecto de várias delimitações conceptuais, como se pode observar com a leitura de Jónatas E. M. MacHado, Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva (Dos direitos de verdade aos direitos dos cidadãos), Coimbra: Coimbra Editora, 1996, 208-220. Conquanto não nos debrucemos, de modo aprofundado, sobre esta questão, pensamos que se pode acolher a noção de Piero Bellini: “il vocabolo «religione», nella accezione più lata, sta a indicarei l complesso delle relazioni fra l’uomo e la Divinità, dalla quale il primo sente e sa di dipendere e alla quale tributa atti di culto” (“Confessione religiose”, in AA.VV.,

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vão, de modo paulatino, afirmando e granjeando o seu reconheci-mento como (mais) uma forma de culto.43 Em consequência, minis-tro de culto não pode ser sinónimo de padre, bispo ou sacerdote; ele pode, também, ser um pastor, um rabino ou um imã, consoante a confissão religiosa em causa.44 Em comum possuem, contudo, uma vida de dedicação ao estudo e interpretação dos “livros sagrados”, a realização de sacramentos, o aconselhamento e instrução dos devo-tos e oração à divindade na qual reside a sua fé. Posto isto, cumpre--nos interrogar se é imperioso que uma pessoa, para ser ministro de uma confissão religiosa, tenha de ter cumprido determinada forma-ção. E a resposta parece-nos positiva, o que permite excluir como ministros do culto os voluntários que, pela sua fé, participam (v.g., recitando partes do texto sagrado) ou auxiliam as cerimónias religio-sas (e.g., recolhendo donativos).45

Enciclopedia del Diritto, vol. 8, Giuffrè, 1961, 926). O sentimento religioso pode ser a génese para a criação de um grupo social, juridicamente existente, o qual se denomina como confissão religiosa.

43 Um fenómeno que Luís Aguiar santos apelidou de “«cissiparidade fragmentária», isto é, (…) um processo através do qual [uma comunidade religio-sa] só aumenta o seu número de fiéis desmultiplicando-se numa série cada vez maior de grupos autónomos” (“A transformação do campo religioso português”, in Carlos Moreira Azevedo, dir., História Religiosa de Portugal, vol. III, Rio de Mou-ro: Círculo de Leitores e Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 2002, 456).

44 Como resulta do n.º 1 do art. 15.º da Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho, e suas alterações), “ministros do culto são as pessoas consi-deradas como tais segundo as normas da respectiva igreja ou comunidade religiosa”.

45 Quanto à Igreja Católica, em particular, temos o dever de nos ques-tionar se os monges e freiras, que fazem da religião a sua profissão, podem ser, também, considerados como ministros do culto. Numa perspectiva histórica, a re-clusão destes eclesiásticos poderia suportar uma negativa ao problema em causa; nos nossos dias temos, todavia, dúvidas. As freiras não se isolam em conventos e podem ter actividades regulares com os fiéis, contribuindo assim para a divulga-ção da doutrina professada. Mais controverso se revela, ainda, o problema dos au-xiliares que, recentemente, desempenham funções tradicionalmente reservadas a um padre. Pense-se, por exemplo, no ajudante (pessoa comum e, não raras vezes, casada) que acompanha, em vez do sacerdote, o defunto à sua última morada. Su-blinhe-se que, nesta situação, a pessoa que realiza a cerimónia é, verdadeiramente, mais do que um ajudante e não pode ser equiparada àquela que canta na missa ou passa o saquinho para recolher uns trocados.

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Tendo várias actividades a seu cargo, não será despiciendo perguntar por qual(/ais) dela(s) o ministro do culto fica obrigado a sigilo, mormente se não esquecermos que o segredo religioso nas-ceu de um princípio de confidencialidade total do sacramento da confissão (católica)46 – que remonta ao Concílio de Trento – e que, duas décadas antes de findar o século XVI, se declarou, em Paris, que “os padres não são obrigados a depor sobre os factos de que tenham tido conhecimento sob o segredo de confissão”47. Tradicio-nalmente, o segredo religioso confunde-se com o segredo da con-fissão48, o que, em termos históricos, se compreende mas que nos surpreende se olharmos, com actualidade, para a sociedade plural em que estamos inseridos e onde a confissão, além de não ter o va-lor de outros tempos, não é um sacramento partilhado por todas as confissões religiosas. Temos para nós, por conseguinte, que o segre-do religioso tem, hoje, um conteúdo mais amplo do que aquele que resulta da confissão sacramental, incluindo nele outras informações que o ministro do culto, enquanto tal, adquire no e pelo exercício da sua profissão. Uma conclusão que extraímos do n.º 1 da Base XIX da antiga Lei da Liberdade Religiosa (que, a propósito do sigilo reli-gioso, nos comunica que “os ministros de qualquer religião ou con-fissão religiosa devem guardar segredo sobre todos os factos que lhes tenham sido confiados ou de que tenham tomado conhecimen-to em razão e no exercício das suas funções, não podendo ser inqui-

46 Como já se percebeu, o termo “confissão” é polissémico, podendo ser usado como admissão da responsabilidade pela prática de determinados factos (confissão do arguido), agregação religiosa (confissão religiosa) ou sacramento (a confissão do penitente no catolicismo). Este sentido é aquele que, neste ponto do trabalho, nos interessa reter. Mais esclarecimentos sobre a confissão (católica) co-lher-se-ão em João Francisco Marques, “Confissão, in AA.VV., Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. I, Rio de Mouro: Círculo de Leitores e Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 2000, 445-459 e, do mesmo A., “Rituais e manifestações de culto”, in Carlos Moreira Azevedo, dir., História Religiosa de Portugal, vol. II, Rio de Mouro: Círculo de Leitores e Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 2000, 517-601.

47 Apud Rodrigo Santiago, Do crime de violação de segredo profissional no Código Penal de 1982, Coimbra, 1990, Dissertação para o exame do Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 19.

48 Cfr. Paolo Tonini, La prova penale, 4.ª ed., CEDAM, Verona, 2000, 125.

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ridos sobre eles por nenhuma autoridade”) e do n.º 2 do art. 16.º da vigente Lei da Liberdade Religiosa (o qual dita que “os ministros do culto não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras auto-ridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério”).49

§ 2. A liberdade religiosa como fundamento da absoluta permanência do segredo religioso(?)

Ao asseverarmos que o segredo religioso se aproxima do se-gredo profissional, adiantámos que o seu fundamento não pode re-sidir, quanto a nós, na liberdade religiosa. Este entendimento não é, contudo, pacífico. Fernanda Palma assinou uma crónica de opinião, num jornal nacional, na qual afirmou que “atendendo ao valor da liberdade religiosa, em caso algum pode um ministro religioso ser obrigado a depor”50. Parece-nos, porém, que este raciocínio parte do erróneo pressuposto de que a liberdade religiosa é que tutela o segrego dos padres e similares. Se olharmos para a História da hu-manidade, constataremos que o segredo da confissão nasceu, curio-samente, numa altura em que a liberdade religiosa, a existir, era uma heresia de uns quantos pensadores.

A liberdade religiosa é uma conquista da Modernidade que ainda hoje permanece nos textos constitucionais de muitos Esta-dos51 e diplomas consagradores de direitos humanos fundamentais. Pode ser descrita como “o direito[/liberdade] de o homem ter ou não ter religião, de ter esta ou aquela, e de a praticar só ou acompa-nhado por outras pessoas”52. É uma liberdade feita de liberdades: de crença, de culto, de exercício de funções religiosas, de participação

49 Não se ignore também o art. 12.º da Concordata celebrada entre a Igreja Católica e o Estado Português.

50 “Levantando o segredo”, publicado no jornal Correio da Manhã de 3 de Junho de 2012, consultado no seu website no dia 22 de Maio de 2013.

51 Portugal não é excepção. Cfr. art. 41.º da CRP.52 António Leite, “A religião no direito constitucional português”, in Jorge

Miranda, coord., Estudos sobre a Constituição, vol. II, Lisboa: Petrony, 1978, 265. Para mais desenvolvimentos sobre o assunto, vide Arturo Carlo Jemolo, “Religione (Libertà di)”, in AA.VV., Novissimo Digesto Italiano, vol. 15, Torino: VTET, 1968, 370-374.

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em cerimónias públicas,…, sendo, também, “a liberdade das confis-sões religiosas”53. Embora o Estado seja laico, mais do que uma ati-tude passiva, de mera contemplação, exigem-se-lhe as medidas ne-cessárias para que, num tratamento igualitário, os devotos das várias confissões religiosas possam, por sua livre vontade, praticar os seus actos de fé. Deste modo, a liberdade religiosa é uma liberdade de ex-pressão de uma reverência, que se quer público e não em segredo.

Não vislumbramos, em face do exposto, alicerce suficiente para considerar o sigilo religioso como decorrente da liberdade re-ligiosa.

§ 3. O ofício da fé e a confiança dos crentes

A interpretação que fazemos do segredo religioso permite que o consideremos como um tipo de segredo profissional que per-tence aos ministros do culto. Estes ficam obrigados a não divulgar determinadas informações porque as mesmas lhes foram transmiti-das num contexto onde a confiança na profissão que desempenham impera. Não negamos que se confia num sacerdote porque o vemos como representação terrena de uma governação transcendente que, amiúde, é desejada. Mas, mais do que isso, ele apresenta-se como al-guém que faz da fé (e da sua divulgação) o seu ofício. Ser ministro do culto é uma profissão a tempo inteiro, mas nem por isso deixa de ser um ofício remunerado. A liberdade de escolha de profissão será, destarte, o valor jurídico-constitucional (consagrado no art. 47.º, n.º 1, da CPR) que, numa das suas dimensões, subjaz ao sigilo profissio-nal do ministro do culto.54

Ao percepcionarmos o segredo religioso nos termos expos-tos (isto é, um segredo mais extenso do que aquele que resulta da confissão e que se considera como profissional), causa-nos alguma obstupefacção o conteúdo do n.º 5 do art. 135.º do CPP e a irres-trita manutenção deste sigilo. O tratamento igualitário entre cren-

53 Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2010, 909.

54 Neste sentido, cfr. J. J. Gomes CanotilHo – Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 653.

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tes de diferentes confissões religiosas e a protecção da relação de confiança que é comum a outros profissionais são os motivos que nos impelem a questionar a bondade daquela norma. Mais: ousamos mesmo admitir que nem o segredo religioso (entendido aqui como aquele que deriva do sacramento confessional) deve ser absoluto55, sob pena de se criar um reduto onde a Justiça (terrena) não pode entrar e os responsáveis, metafisicamente confessos, pela prática de infracções criminosas ficariam impunes porque dos seus actos não se pode fazer prova. Saliente-se – para desfazer quaisquer confusões que possam existir – que a relatividade do segredo religioso que pro-pugnamos diz respeito ao ministro do culto que, no processo penal, actue como testemunha; se, diversamente, ele for o arguido, não está em causa qualquer segredo religioso mas sim o seu direito ao silên-cio, corolário do privilégio da proibição da auto-incriminação.56

A quebra do segredo religioso pode, a nossos olhos, seguir, com as devidas adaptações, o regime geral nesta matéria. O mesmo é dizer que, escusando-se o ministro do culto a depor em juízo, o tribunal pode, em primeiro lugar, avaliar a (i)legitimidade da decisão do sacerdote. Concluindo que a recusa de testemunho é ilegítima, o ministro do culto pode ser obrigado a depor, uma conduta que se justificará pelo predomínio da procura da verdade material e conse-quente realização da Justiça sobre outros valores menos relevantes.57

55 Opinião igualmente partilhada pelos magistrados do ministério Pú-Blico do distrito judicial do Porto, Código de Processo Penal – Comentários e notas práticas, ob. cit., 360.

56 A reflexão que deixámos em texto pode parecer desnecessária. Toda-via, a leitura de alguma literatura estrangeira (sobretudo francesa) inculcou-nos a sensação de que há AA. a defender – quanto a nós, incorrectamente – a quebra do segredo religioso como forma de se provar, nos casos de abusos sexuais perpetra-dos por padres em menores, a sua culpa. Alguns doutrinadores chegam mesmo a afirmar que, sempre que o ofendido tiver menos de 15 anos de idade, o sigilo não se pode manter. É, porém, nossa convicção que a simples referência a uma idade, sem nada mais (como, v.g., o tipo de crime que pudesse estar em causa), é critério insuficiente para destruir o sigilo; a quebra deste, a verificar-se, deve fundar-se, como já se referiu anteriormente, numa genuína e legítima supremacia de um dos interesses em causa sobre os demais.

57 Não nos chocaria, portanto, que, em vez do actual art. 135.º do CPP, a nossa ordem jurídica contivesse um preceito legal similar ao art. 200.º do CPP italiano, que trata de forma uniforme os profissionais sujeitos a segredo.

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Como não existe um organismo representativo da profissão, pensa-mos que a audição a que alude o n.º 4 do art. 135.º do CPP pode ser realizada pela Igreja ou comunidade religiosa que certifica o minis-tro. Uma solução que, atenta a sua estrutura hierárquica, permite a emissão de pareceres por pessoas que ocupam, na sua carreira pro-fissional, um lugar superior.

Não obstante parecer simples, a regulamentação que pos-sibilita que o segredo se destrua (e com ele se aniquile a relação de confiança que o baseava) pode, na sua aplicação concreta, ocasionar situações complexas em que a verdade material tem de ceder peran-te outros valores (como a privacidade). Ainda assim, cumpre ao jul-gador apreciar se, na situação concreta (e sempre dentro do seu ho-rizonte), o testemunho do ministro do culto pode auxiliar a desco-brir o que se passou, ainda que tal revelação possa originar respon-sabilidade penal de outras pessoas.

Conclusão

Raro é o julgamento que se realiza sem a audição de teste-munhas. Estas são um meio de prova que se traduz num relato, fei-to na primeira pessoa, sobre circunstâncias que presenciaram e que podem ser relevantes para apurar a existência de um crime e sua res-ponsabilidade. Todavia, nem sempre os factos de que têm conheci-mento são comunicados ao tribunal. Laços familiares, não incrimi-nação e existência de um segredo profissional são as razões que po-dem fundamentar a recusa em depor.

O sigilo religioso é, na interpretação que dele fazemos, um tipo de segredo profissional e corresponde a um conceito mais amplo do que o segredo de confissão, génese daquele. Apesar de a nossa or-dem jurídica salvaguardar, em termos absolutos, a confidencialidade das informações que os ministros do culto possuem sobre terceiros, não nos repugna que, numa futura alteração do CPP, o n.º 5 do seu art. 135.º desapareça, aplicando-se, mutatis mutandis, o regime de que-bra de segredo profissional nos termos gerais. Não sendo a situação mais recorrente, cremos que casos há em que o conhecimento de um sacerdote pode contribuir para que o julgamento dos homens se reali-ze e a impunidade não reine a coberto de um silêncio divino.

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