osvaldo dragún - ao violador

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AO VIOLADOR AO VIOLADOR (AL VIOLADOR) OSVALDO DRAGÚN

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teatro argentino contemporâneo

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Page 1: Osvaldo Dragún - Ao Violador

AO VIOLADORAO VIOLADOR

(AL VIOLADOR)

OSVALDO DRAGÚN

Page 2: Osvaldo Dragún - Ao Violador

PERSONAGENSPERSONAGENS

POR ORDEM DE ENTRADA EM CENA

ÁRVORE 1

ÁRVORE 2

ELE, ALDO, ALAIN

HOMEM MADURO

VELHO (RIN-TIN-TIN)

ELA

SOGRA

UM

DOIS

TRÊS

QUATRO

SACERDOTE

AMIGA

GRAVADOR

MESTRE

PROFESSOR

MÉDICO

2

Page 3: Osvaldo Dragún - Ao Violador

CINCO

ATO ÚNICOATO ÚNICO

PALCO VAZIO. CICLORAMA. DUAS ÁRVORES. UMA JÁ VELHA, DE

TRONCO GROSSO. OUTRA, JOVEM, TRONCO FINO E ESBELTO.

ESTÃO SENDO SACUDIDAS POR UM TEMPORAL. ESTOURAM

RELÂMPAGOS E TROVÕES. A ÁRVORE VELHA TEM UM DE SEUS

GALHOS APONTADO PARA LONGE. A ÁRVORE JOVEM TEM UM

GALHO INCLINADO EM DIREÇÃO A TERRA.

ÁRVORE 1 (A Jovem)

- Que temporal de merda!

ÁRVORE 2 (A velha)

- Calma. Calma.

ÁRVORE 1 (Olha-a, enquanto se sacode toda.)

- Baixa esse galho.

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Page 4: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 2

- Se baixo o galho, fico desarmada. E ainda não me podaram. (Olha para

ela) E você, está fazendo o quê com esse galho caído?

ÁRVORE 1

- É posição ioga. Não está caído. Está em relaxamento. (Olha-a) Não

cansa você ficar sempre apontando naquela direção?

ÁRVORE 2

- Quem nasce com o galho alto, deve morrer como galho alto.

ÁRVORE 1

- E o que é que tem lá?

ÁRVORE 2

- O mesmo que aqui. (Olha-a) Que é que tem aqui?

ÁRVORE 1

- O mesmo que lá, acho.

ÁRVORE 2

- Então está tudo bem. Nada mudou.

ÁRVORE 1

- Ah, não? E o temporal? Por que um temporal desses, assim, de

repente? Não, alguma coisa deve ter mudado ente aqui e lá.

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Page 5: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 2

- O clima. Nada mais que o clima.

ÁRVORE 1

- Mas um temporal desses...

ÁRVORE 2 (Interrompe furiosa.)

- Não enche! É o clima!

(ESCUTAM-SE METRALHADORAS AO LONGE)

ÁRVORE 1 (Inquieta)

- Que é isso?

ÁRVORE 2

- Pássaros carpinteiros. No Paraguai.

ÁRVORE 1

- Ah, bom. Está longe. Como dizia o papai, “está sobrando madeira pro

gasto.”

ÁRVORE 2

- Você verificou as raízes hoje?

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Page 6: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 1

- Estão.

ÁRVORE 2

- Já sei que estão, pombas! Mas, como?

ÁRVORE 1

- Igual a ontem...

ÁRVORE 2

- Assim está bom. Vermes?

ÁRVORE 1 (Sem lhe dar importância)

- Pss!

ÁRVORE 2

- Não se considere enterrada.

ÁRVORE 1

- E o temporal?

ÁRVORE 2

- Já falei pra não me encher com esse temporal. É o clima.

(ESCUTA-SE UMA SIRENE DE POLÍCIA AO LONGE.

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Page 7: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 1 (Assustada)

- Que foi isso?

ÁRVORE 2

- Carnaval. Vem vindo, vem vindo.

ÁRVORE 1

- Você tem resposta para tudo...

ÁRVORE 2

- Sou mais velha. Calma, calma.

ÁRVORE 1 (Olha em torno, nervosa.)

- Não vejo a hora em que venham nos podar. Durante o ano crescem

coisas na gente que depois ficam sobrando...

ÁRVORE 2

- Calma, calma.

(A SIRENE SOA MUITO PRÓXIMA.)

ÁRVORE 1 (Mais assustada)

- Que é isso?

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Page 8: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 2

- Carnaval. Calma.

(SOAM METRALHADORAS)

ÁRVORE 1

- Escuta!...

ÁRVORE 2

- Pássaros carpinteiros no Paraguai.

(O TEMPORAL GANHA MAIS INTENSIDADE.)

ÁRVORE 1

- Estou sendo toda sacudida!

ÁRVORE 2

- O clima. Calma.

ÁRVORE 1

- Calma a puta que te pariu calma! Aqui está acontecendo alguma coisa!

ÁRVORE 2 (Finalmente em dúvida.)

- Te parece?

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Page 9: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 1

- Te parece, te parece. Menos mal que afinal você percebeu!

ÁRVORE 2 ( Menos segura)

- Calma, calma... Que é que pode ser, hein?

ÁRVORE 1

- Você é mais velha. Me diz você.

ÁRVORE 2

- Ah... me diz você. A gente diz fácil “me diz você”. Agora todos dizem.

Mas, e o motivo? Onde é que está o motivo? Hein? Onde? Antes não. Antes se

dizia. Mas com motivo. E agora, o motivo? Hein?... Você entende?

ÁRVORE 1

- Porra nenhuma...

ÁRVORE 2

- Você é muito jovem, viu.

(DESENCADEIAM-SE AS FÚRIAS. AS ÁRVORES TREMEM.

ÁRVORE 1 (Aterrorizada)

- Eu não quero morrer!

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Page 10: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 2 (Furiosa)

- Aqui ninguém vai morrer. Nós crescemos em terra boa. Terra negra.

Jovem. Pouco trabalhada. Nós temos alicerces...

ÁRVORE 1 (Vê alguém chegar de longe)

- Aí vem vindo alguém, parece...

ÁRVORE 2 (Olhando)

- Deve ser o Rin-Tin-Tin. Está na hora.

(ENTRA ELE. NOTA-SE QUE ESTÁ PERSEGUIDO. ESTÁ OFEGANTE,

ATERRORIZADO. NÃO SABE PARA ONDE IR. TRAZ UMA ESPÉCIE DE

BASTÃO COM UM PEDAÇO DE PANO NA PONTA, COMO UMA

BANDEIRA. MAS NÃO O USA COMO BASTÃO. EM SUAS MÃOS, MAIS

PARECE UMA ARMA.)

ÁRVORE 1

- Não é ele... Não mijou em nós...

ELE

- Pra onde é que eu vou? Não me resta nenhum lugar... Se me agarram,

me matam! E eles têm razão... têm razão! Mas eu não quis fazer aquilo. Nunca

quis. Por que eu nasci assim? por quê? Se a única coisa que eu quero são cinco

dias de trabalho e dois de descanso, como todo mundo. A única coisa que eu

quero é ter um expediente de dois turnos e uma hora para almoço, como todo

mundo. E agora, se me pegam... e eles têm razão. Têm razão. (Canta)

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Page 11: Osvaldo Dragún - Ao Violador

“Pobre minha mãe querida

quantos desgostos lhe dei...”

(OUVEM-SE MUITO PRÓXIMAS AS METRALHADORAS. ELE SE

ENCOLHE E GEME COMO UMA CRIANÇA ATERRORIZADA. ELES

VÊM AÍ!)

ÁRVORE 2

- Ei! Oi! Você! (Ele se volta. Olha.) Vem! Se esconde!

ÁRVORE 1

- Que é que você está fazendo? Não se meta nisso! Vá lá saber quem é

esse cara...

ÁRVORE 2

- Agente vê que é uma boa pessoa. Canta tangos, como os da minha

geração. (Para Ele.) Vem! Se esconde! (Ele hesita. Mas quando escuta mais

perto as metralhadoras, corre em direção às duas árvores.) Tapa ele.

ÁRVORE 1

- Mas...

ÁRVORE 2

- Esconde ele! Calma, calma.

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Page 12: Osvaldo Dragún - Ao Violador

(AS DUAS ÁRVORES O ENVOLVEM E COBREM. A ÁRVORE 2 PIA

DURANTE TODA A CENA SEGUINTE. PI-PI-PI! PI-PI-PI!... ENTRAM O

VELHO E O HOMEM MADURO. VESTEM UMA ESPÉCIE DE

UNIFORME. TAMBÉM TRAZEM BASTÕES, MAS USANDO-OS COMO

BASTÕES. E TRAZEM OS PANOS NO PESCOÇO, COMO LENÇOS.

CONTINUAM PROCURANDO EM TODAS AS DIREÇÕES. VÃO EM

DIREÇÃO ÀS ÁRVORES MAS ESTAS GIRAM, SEMPRE OCULTANDO

ELE. NÃO O ENCONTRAM. A ÁRVORE 2 CONTINUA PIANDO.)

HOMEM MADURO

- Que estranho! Os passarinhos cantando, em meio à tempestade.

VELHO

- É que nós temos um país inacreditável. E aí? Está vendo ele?

HOMEM

- Não, eu lado nenhum. Está muito escuro... (A Árvore 2 agora trina

como um pássaro.) Você está ouvindo o pio dos pintos, apesar da tempestade?

Que país esse, Deus!

VELHO

- Futuro, meu filho. Futuro!

HOMEM

- Uma pena a tempestade...

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Page 13: Osvaldo Dragún - Ao Violador

VELHO

- O clima, meu filho.

HOMEM

- Mas um temporal desses...

VELHO (Aborrecido)

- Não enche com o temporal. É o clima. Mas quando nós o agarramos,

tudo vai voltar à normalidade.

HOMEM

- Escapa sempre, o filho-da-puta...

VELHO

- A partir de hoje isso vai acabar. Com o nome nos jornais, todos já

sabem quem é o Violador. Acabaram os mistérios... ele não vai escapar mais!

Hoje começou o fim do Aldo!

(DE UM DOS GALHOS DA ÁRVORE 2 PENDE UM CARTAZ COM UMA

SÓ PALAVRA: ALDO)

HOMEM

- O senhor parece muito seguro...

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Page 14: Osvaldo Dragún - Ao Violador

VELHO

- Calma, meu filho. Calma. Seguro, a morte. Eu, calmo. Eu tenho uma

larga experiência com Violadores. E tirei minhas duas boas conclusões.

Primeira: o perigo de um Violador são os filhos. Ao Aldo nós não demos

oportunidade. As pobres meninas abordaram a tempo. Segunda: um Violador

não pode deixar de Violar. E, por isso mesmo, cai. (A Árvores 2 pia e trina)

Escuta, escuta! Pássaros e frangos! Futuro, meu filho! Futuro! E diante disso,

não tem Violador que importe. Vamos, é preciso continuar procurado. (Vão

saindo)

HOMEM

- O senhor é um sábio...

VELHO

- Velho, só isso. E esse país, que é inacreditável.

(SAEM AMBOS. LOGO DEPOIS DE TEREM SAÍDO, A ÁRVORE 1

EMPURRA ALDO COM FORÇA.)

ÁRVORE 1

- Some daqui. Então você é o Violador... o que nos trouxe esse temporal

de merda. E a gente morrendo de medo, sem entender nada, e tudo por culpa tua.

Some daqui.

ELE

- Vou pra onde? Me perseguem por todos os lados.

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Page 15: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 1

- Vá para outro país.

ÁRVORE 2

- Calma...

ELE

- Não quero morrer...

ÁRVORE 1

- Eu também não quero morrer. Mas eu não sou um Violador.

ÁRVORE 2

- Calma...

ÁRVORE 1 (Para Arvore 2)

- Está se vendo que você não tem filhas jovens. Eu tenho uma no

Botânico. É um Violador. E não existe nada mais filho-da-puta que um

Violador.

ELE

- Já sei. Mas que é que eu posso fazer, se eu nasci para ser Violador? A

senhora, nasceu para ser árvore?

ÁRVORE 1 (Surpresa)

- Hein?

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Page 16: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELE

- Nasceu para ser árvore? (Para Árvore 2) A senhora, nasceu para ser

árvore?

ÁRVORE 2

- Claro. Ou não se nota?

ELE (Para a Árvore 1)

- E a senhora?

ÁRVORE 1 (Confusa)

- Eu... sei lá pra que eu nasci. Mas aqui estou.

ELE

- Mas gosta de ser árvore...

ÁRVORE 1

- Ah, sim. Isso sim.

ELE

- Mas eu não gosto de ser Violador. Não quero ser Violador. Não quero

violar. Me assustam o temporal, os raios, os trovões, cada vez que eu violo. E

toda gente atrás de mim, me perseguindo... me perseguindo.. (Cai de joelhos e

canta.)

“Pobre minha mãe querida quantos desgosto lhe dei...”

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Page 17: Osvaldo Dragún - Ao Violador

(CHORA BAIXINHO. AS DUAS ÁRVORES SE OLHAM. PAUSA.)

ÁRVORE 2 (Filosófica)

- A condição humana!

ÁRVORE (Olha para Ele, perturbada. Está arrependida.)

- Você... Ei, você... no chora, viu... (Ele continua choramingando.)

Vamos, vai!

ÁRVORE 2 (Olhando para longe.)

- Aí vem alguém, acho...

(ELE SE LEVANTA DE UM SALTO E SE APÓIA NA ÁRVORE 2,

ESCONDENDO O ROSTO.)

ÁRVORE 1

- Rin-Tin-Tin?

ÁRVORE 2

- Espero que seja! É um bom cão.

(ENTRA RAPIDAMENTE ELA. TRAZ UMA CAPA DE CHUVA

AMARELA, DE PLÁSTICO, BOTAS PRETAS E UMA SOMBRINHA DE

MUITAS CORES.. OLHA EM TORNO.)

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Page 18: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELA

- Que noite!

ÁRVORE 1

- Não. Também não mijou na gente.

ELA (Procura com o olhar.)

- Não acredito que exista um mecânico aqui... (Vê Ele. Aproxima-se.)

Desculpe... é daqui?

ELE (Esconde o rosto.)

- Não... mais ou menos...

ELA

- Sabe se aqui por perto tem oficina mecânica? O meu carro quebrou...

ELE (Sempre ocultando o rosto)

- Não...

ELA

- Não sabe ou não tem nenhuma oficina?

ELE

- Não.

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Page 19: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELA

- Não. Definitivo. Mais que uma opinião, parece uma recusa. Niet. Por

acaso, o senhor entende alguma coisa de carburador? O meu molhou, com o

temporal...

ELE

- Não.

(ELA TENTA VER SEU ROSTO. ELE ESCONDE.)

ELA

- Por acaso, o senhor me conhece?

ELE

- Não.

ELA

- Ah. Me pareceu. Tudo mundo que eu conheço me vira as costas.

ELE (Vai dizer-lhe “Porque não vai à merda”.)

- Por quê...

ÁRVORE 2 (Cortando-o)

- Calma. Calma.

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Page 20: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELE (Seu tom se torna doce e abatido.)

- Por quê?

ELA

- Por quê, por quê! Por que eu vivo a minha vida, não a que os outros

querem que eu viva. Eu não me adapto. Eu sou. Os meus amigos odeiam o

temporal. Eu adoro. Meus amigos adoram o equilíbrio. A mim, me cansa. Me

dopa, mas... eu sou profissional.

ELE

- Profissional de quê?

ELA

- Como, de quê? Profissional. O senhor é profissional?

ELE

- Profissional de quê?

ELA

- Parece biruta. Profissional é profissional. Tem alguma coisa que faz

com amor, com entrega, com tudo, alguma coisa que não consegue deixar de

fazer?

(ELE SEGURA COM FORÇA O BASTÃO E COLOCA-O COMO SE FOSSE

UM ENORME PÊNIS. FALA ENTREDENTES, QUASE EM JÚBILO.)

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Page 21: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELE

- Sim!...

(COMEÇA A GIRAR EM DIREÇÃO A ELA QUANDO É CONTIDO PELA

ÁRVORE 2.)

ÁRVORE 2

- Calma, calma.

ELE (Perde o entusiasmo. Para Ela.)

- Não... (Dá as costas para Ela e acaricia suavemente o bastão.)

ELA

- Eu sim. (Súbito Ela agarra a cabeça dele.) Abre a boca.

ELE (Oculta o rosto.)

- Não!...

ELA

- Abre a boca, estou dizendo! (Obriga-o a abrir a boa. Olha.) Dois pré-

molares. Um canino.

ÁRVORE 1

- Que é isso?

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Page 22: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 2 (Sóbria e filosófica)

- A vida traz surpresas, as surpresas trazem a vida...

ÁRVORE 1

- Por quê?

ÁRVORE 2 (Entediada.)

- Bom, então não traz. Tanto faz!

ELA (Para Ele, que está com a boca aberta.)

- Esse aparelho vai cair, meu amor. Cair em pedaços. (Fecha-lhe a boca

com um golpe. Ele começa a buscar algo no chão com o olhar. O aparelho de

dentes caiu). Eu sou odontóloga. Parece triste. Mas não. É pela boca que a gente

come. É pela boca que a gente cospe. É pela boca que a gente come. É pela boca

que a gente vomita. Uma boa boca é uma boa base, meu amor. (Ela avança para

frente. Ele se agacha, procurando no chão.) Eu adoro temporal. E os amigos que

se danem. (Volta-se para Ele. Vê que Ele está procurando alguma coisa no chão)

Que é que você está fazendo, aí embaixo?

ELE (Fala como se não tivesse dentes)

- Me caiu o...

ELA

- Deixa eu ajudar... (Vai em direção a Ele.)

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Page 23: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELE (Rápido)

- Não! (Encontra o aparelho e coloca-o, de costas para Ela.)

ELA

- Você tem vergonha.

ELE

- Não...

ELA

- Sim, você tem vergonha. Igual a todos homens. Olha pra mim...

ELE

- Não...

ELA

- Me olha, estou dizendo. (Faz com que Ele volte o rosto, sorri.) Você é

bonito. Te falei antes que você é bonito?

ELE

- Não...

ELA

- Bom, você é bonito. (Pausa curta. Olha-o bastante.) Te incomoda que

eu seja independente, não é?

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Page 24: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELE (Vai dizer “Por que você não pára de me encher o saco?”) Por quê?

ELA

- Por que isso incomoda todos os homens, lá no fundo. Ainda que seja

bem, bem no fundo, bem dissimulado por um verniz de modernidade...

incomoda! O machismo colhido de vocês não agüenta que uma mulher seja

independente, que se baste a sim mesma. Você ficou incomodado porque eu te

vi sem dentes...

ELE

- Não...

ELA

- Diz a verdade, porra!

ELE

- Sim.

ELA

- Claro. (De repente, pega uma das mãos dele e leva-a a um de seus

seios.) Se você me toca... está certo. Os meus peitos parecem que foram feitos

para os homens porem as mãos neles... (Obriga-o a esfregar a mão em seu seio.)

Mas se eu toco aqui... (De repente, ela pega com força nos órgãos sexuais dele.

Ele, tomado pela surpresa, se dobra em dois e assobia.) Viu? Isso está errado. Se

pressupõe que, porque eu só mulher, eu não devo tocar em você. Foi por isso

que eu me tornei profissional. Para ser independente. Para viver a minha vida

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Page 25: Osvaldo Dragún - Ao Violador

como me der na cabeça. Para... (Interrompe-se assustada. Ele se voltou para Ela

de um salto. Esgrime o bastão como um grande pênis. Ela olha-o aterrorizada.

Recua) Aldo! É você... Aldo! (Agora fala como uma menina pequena.) Mame!...

Mamãe!... Ele avança na direção de Ela.) Mamãezinha!... (Enfia o bastão nela.

Ela fica montada no bastão. Ambos bailam a dança da violação com a música do

“Barbeiro de Sevilha”. Finalmente, Ele vai conduzindo-a para fora da cena.)

ÁRVORE 1 (Para Arvore 2.)

- Você viu o que ele fez? Você o salvou. E agora? Pobre garota! Podia

ter sido a minha filha...

ÁRVORE 2

- Calma, calma...

ÁRVORE 1

- Calma uma ova! E se pensarem que nós tivemos alguma coisa com

isso?

ÁRVORE 2

- Nós somos de madeira. não temos nada a ver com nada, a não ser com

o equilíbrio natural. A natureza nos colocou na terra para isso. Nós temos o

privilégio de ser as protetoras do equilíbrio. (Pausa.) Temos que salvá-lo... ainda

que seja dele mesmo.

ÁRVORE 1

- Salvar quem?

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Page 26: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 2

- Esse pobre garoto. Temos que restabelecer o equilíbrio natural, assim

acaba esse temporal de merda.

ÁRVORE 1

- Mas, pode me dizer o que é que você tem na cabeça? Ele é um

Violador! Ele trouxe o temporal! Por mim, que matem ele!

ÁRVORE 2

- Não, tronco, não. A morte é equilibrada quando vem naturalmente...

Nós temos a obrigação de fazer que esse garoto fique velho e morra em sua

cama, como um...

(INTERROMPE-SE AO ESCUTAR QUE CHEGA ALGUÉM GEMENDO.

PAUSA CURTA. ENTRA ELE. SOLUÇA. AO LONGE, VOLTAM OS

RUÍDOS DAS METRALHADORAS.

ELE

- Porque que eu fiz? Eu não queria... Eu juro a vocês que eu não quis.

Era inteligente. Era... culta. Era...moderna. era... profissional. Tudo que eu

sempre gostei numa mulher... Mas é inútil. Quando a gente nasce pra alguma

coisa... E eu...

ÁRVORE 2 (Interrompe-o)

- Não. Você, quem diz que é você, não. Há alguma coisa sua que nasceu

para isso. Mas você, não!

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Page 27: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELE (Olha-a surpreendido.)

- Alguma coisa... o quê?

ÁRVORE 2

- Me diz, o que é que os jornais publicaram para que todo mundo saiba

que você é o Violador?

ELE (Lembra. Pausa.)

- Meu nome...

ÁRVORE 2

- Claro. E o teu nome qual é?

ELE (Olha-a. aponta o cartaz)

- Aldo...

ÁRVORE 2

- Claro. Foi o teu nome que nasceu para Violador. Você não. O teu

nome.

ELE (Surpreso e confuso.)

- O meu nome?

ÁRVORE 2

- O teu nome. Você, não. O teu nome.

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Page 28: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELE

- E o que eu faço sem nome?

ÁRVORE 2

- Não seja indecente! Ninguém pode viver sem nome. Mas se pode

escolher outro...

ELE

- Para quê?

ÁRVORE 2

- Para ser outro!

ELE

- Outro nome, mas não outro.

ÁRVORE 2

- Outro nome é ser Outro. Quando as pessoas começarem a te chamar de

outro nome, você vai se sentir outro. Vai acreditar que é outro. Vai pentear o

cabelo de outro.

ELE

- Mas... eu sempre fui... Aldo, não é? “Você é o Aldo, nenê”; “Esse é o

Aldo!”, “Lá vai o Aldo!”... Isso deve querer dizer alguma coisa, não?

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Page 29: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 2

- Claro que quer dizer alguma coisa! Orgulho! É isso que quer dizer.

Nada mais que orgulho! Como é que nós nos chamamos? Árvores. Nem

Mariazinha nem Ana. Arvores. Todas iguais. Assim é que deve ser. Iguais. Mas

você não quer ser igual. É por isso que você se agarra no teu Aldo. Por orgulho.

E foi o orgulho que te levou a isso. Olha! (Aponta o cartaz) Não te dá vergonha?

À vista de todos. Diferente. Único. Que nojo! Mas você insiste. Quer continuar

sendo Aldo. Bem, se você quer...

ELE

- Não! Não! Não... (Pausa. Geme) Eu quero ser outro... igual...

parecido... Por favor! Eu quero ser outro!...

(CHEGA BEM PRÓXIMO O RUÍDO DAS METRALHADORAS)

ÁRVORE 1

- Então te apressa, porque se te agarrarem, você vai ser ninguém.

(ELE OLHA EM TORNO, DESESPERADO. AS METRALHADORAS

ESTÃO MUITO PRÓXIMAS. ELE TIRA O CASACO. OLHA-O.

ESTRANGULA-O COM FÚRIA, MAS COM DOR. PENDURA-O NOS

GALHOS DA ÁRVORE 2. OLHA-O ARQUEJANTE. CAI DE JOELHOS.

AGORA SE APÓIA NO BASTÃO, COMO SE FOSSE UM BASTÃO, E ATA

O PANO NO PESCOÇO, COMO UM LENÇO. ENTRAM O VELHO E O

HOMEM MADURO. PROCURAM. VÊEM O CASACO PENDURADO. O

VELHO SE APROXIMA.)

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Page 30: Osvaldo Dragún - Ao Violador

VELHO

- Quem é?

ELE (Ajoelhando, murmura.)

- Noi.1

VELHO (Aproxima-se dele.)

- E você, como se chama, meu filho? (Corrige). Conimdent vous vous

appelés, mon fie?

ELE

- Alain...

VELHO

- Não se escuta, meu filho. Jemecoont fas!

ELE (Grita)

- Alain! (Com a mão, traça no ar o “Z” do Zorro.)

HOMEM

- Não disse! Tinha que vir um francês.

VELHO

- Mesmo que seja francês... venha aos meus braços, meu filho! Neste

país há lugar para todos! (O Velho lhe estende os braços. Ele olha-o. sorri feliz.

1 O autor utiliza, a partir deste momento, frases em francês deliberadamente errado (N. do T.)

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Page 31: Osvaldo Dragún - Ao Violador

E com um salto pula para os braços do Velho, como se fosse um menino que

encontrou o pai.) Eu me sinto muito orgulhoso de eu você pertença à nossa

comunidade.

(O VELHO SAI LEVANDO-O NOS BRAÇOS. O HOMEM MADURO

SEGUE-OS. O TEMPORAL ACABA. LUZES COLORIDAS INUNDAM O

PALCO.)

ÁRVORE 2

- Voltou o equilíbrio. Pi-pi-pi. Pi-pi-pi.

ÁRVORE 1 (Trina como um pássaro. Súbito, vê chegar alguém.) Aí vem vindo

alguém.... (As duas olham. Entra um Velho com uma barba tão grande que se

arrasta pelo chão. Apoia-se num bastão. E se detém. Olha em torno. Pausa. Não

vê ninguém. Vai em direção às Árvores. Levanta um apta e urina nas Árvores.

Em seguida sai. Árvore 1 fala, assombrada.) Rin-Tin-Tin!

ÁRVORE 2 (Filosófica e sábia)

- Como passa o tempo! Pausa prolongada. Em seguida as duas Árvores

trocam de posição no palco. Passagem de tempo.

ÁRVORE 1

- Três anos! (Trina como um pássaro.)

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Page 32: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 2

- A Paz de Deus! Pi-pi-pi. Pi-pi-pi.

ÁRVORE 1

- A minha filha já está mais alto que o umbuzeiro.

ÁRVORE 2

- Umbuzeiro? Ralé! Pura plebe!

ÁRVORE 1 (Generosa)

- Não, é uma boa árvore.

ÁRVORE 2

- Pode ser... mas que fique no campo.

ÁRVORE 1

- E os seus netos? Como estão?

ÁRVORE 2

- Altíssimos. De cima deles se pode avistar o mar.

ÁRVORE 1

- Incrível!... Que terra a nossa!

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Page 33: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 2

- A melhor. Aqui a gente pode nascer, crescer e morrer em paz.

ÁRVORE 1

- E casar.

ÁRVORE 2

- Ah, claro! Melhor, onde?

(OUVEM-SE CANTOS E RISOS.)

ÁRVORE 1 (Olha a distância)

- Ei... estão vindo.

ÁRVORE 2

Já? Não escutei os sinos.

ÁRVORE 1

- Ta-lam! Ta-lam! Ta-lam! Ta-lam! Ta-lam!

ÁRVORE 2

- Agora sim (Filosófica) Ser testemunha do amor me reafirma na

convicção da imortalidade.

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Page 34: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 1 (Concorda sem pensar)

- Ah, sim... (Corta. Pensa.) Por quê?

ÁRVORE 2 (Aborrecida)

- Bem, então não. Você tem sempre que estar fazendo perguntas?

(ENTRA CANTANDO O CORTEJO NUPCIAL. O SOGRO É O VELHO.

TRAZ UMA CARTOLA. ENTRA A SOGRA. ENTRAM 1,2,2 E 4. TODOS SE

APÓIAM EM BASTÕES. ENTRA O HOMEM MADURO. TRAZEM

GRINALDAS.)

VELHO

- Ser testemunha do amor me reafirma na convicção da imortalidade.

SOGRA

- A minha menina estava lindíssima.

UM

- Corte o cordão umbilical, minha querida, e com ele faça um pulôver.

(QUATRO VAI EM DIREÇÃO A ÁRVORE 1 PARA PENDURAR A

GRINALDA. CRAVA UM PREGO. A ÁRVORE 1, SENTINDO A DOR, LHE

DÁ UM GOLPE COM UM GALHO NA CABEÇA, EU FAZ COM QUE ELE

CAMBALEIE.

34

Page 35: Osvaldo Dragún - Ao Violador

QUATRO

- Perdão (Ata a grinalda num galho da Árvore 1.)

HOMEM

- O noivo parecia um pouco assustado.

SOGRA

- É francês.

VELHO

- E o que isso tem a ver?

SOGRA

- Nada. Mas é francês.

TRÊS

- Apesar de ser francês, tudo transcorreu em ordem (Três á autoritário)

SOGRA (Seca e automática)

- Nada. Nada. Nada... Mas é francês. Francês! Francês!

QUATRO

- Então é francês. Não tinha me dado conta. Como não falo francês.

35

Page 36: Osvaldo Dragún - Ao Violador

SOGRA (Aos guinchos)

- Estão chegando! Estão chegando! Estão chegando!

(AS DUAS ÁRVORES CANTAROLAM A “MARCHA NUPCIAL”, TRINAM

E PIAM. A SOGRA QUER SUBIR NA ÁRVORE 2. A ÁRVORE 2 BELISCA-

A. ELA PULA E DÁ UM GRITO.)

SOGRO

- Que aconteceu?

SOGRA

- Um espinho.

QUATRO

- Estão chegando os franceses.

TRÊS (Seco)

- Ele é! Ele é! Ela não! Ela não!

(CHEGAM ALAIN – ALDO -, E ELA. ELA É A MESMA GAROTA DA

CAPA DE CHUVA COLORIDA E DAS BOTAS DE BORRACHA.

CONTINUA USANDO-AS, MAS AGORA VESTE UM GORRO BRANCO.

DIANTE DELES VEM O SACERDOTE. AS ÁRVORES CANTAROLAM A

“MARCHA NUPCIAL”. TODOS APLAUDEM OS NOIVOS. O

SACERDOTE SE DETÉM E VOLTA-SE PARA OS NOIVOS. SILÊNCIO.)

36

Page 37: Osvaldo Dragún - Ao Violador

VELHO

- Ser testemunha do amor me reafirma na minha convicção da

imortalidade.

ALAIN

- Quest que ce?

VELHO

- Meu genro, já faz três anos que você está aqui conosco. Como é que

você vai se entender coma minha filha?

ALAIN

- Ques que ce?

ELA

- Não se meta na nossa vida, papai. Alain e eu nos entendemos muito

bem.

VELHO

- Ah, juventude independente e arisca. Mal rompe a casca e já quer ser

ovo.

ÁRVORE 1

- Alain? Mas... esse não é?...

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Page 38: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 2

- É, não é, foi, será. Não pergunte quem é quem, e não ficarás sabendo

quem é quem.

ÁRVORE 1

- Mas é... É. Já estou começando a ser toda sacudida!

ÁRVORE 2

- Não é. Já não é. Calma, calma...

SACERDOTE

- Irmãos! Filhos!... O que os homens unem, que Deus não ouse separar.

VELHO

- Não era o contrário?

SACERDOTE (Corrigindo-se rapidamente.)

- O que os Deus homens, não unem separa... Perdão, mas em latim eu

sabia. Esse idioma é confuso para falar a sério.

VELHO

- É o idioma de todos. Somos todos iguais. Queremos que todos

entendam tudo.

SACERDOTE

- Mas... um pouco de mistério!...

38

Page 39: Osvaldo Dragún - Ao Violador

VELHO

- Não deve haver mistério numa comunidade como a nossa. O mistério é

o pai da desigualdade. O violador do equilíbrio...

ALAIN (Assustado ao escutar “violador”.)

- Quest que ce? Quest que ce?

SACERDOTE

- Mas, o mistério de Deus...

VELHO

- Ah, não. Esse sim, claro. Mas é preciso não exagerar, senhor. Imagine

só se cada um resolvesse ter um mistério... Não íamos saber em que estavam

pensando. Poderiam chegar a violar a nossa paz comunitária.

ALAIN (Outra vez assustado ao escutar Violar)

- Quest que ce? Quest que ce?

SOGRA

- Fique tranqüilo, meu genro. Meu marido está assentando as bases.

Como são inquietos esses franceses!

ELA

- Não fale assim, mami! Alain é igual a todos nós.

39

Page 40: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ALAIN (Exaltando em sua necessidade de igualdade.)

- Sim! Sim! Sim!

SACERDOTE

- Então... que se compreenda?

VELHO

- Por favor. É conveniente.

SACERDOTE (Resignado, grita rapidamente e sem convicção)

- Meus filhos... eu os declaro marido e mulher.

(TODOS SE ABRAÇAM E SE BEIJAM. VÃO SAINDO. SOMENTE FICAM

O VELHO, O SACERDOTE E O HOMEM MADURO.)

VELHO

- Viu com custa pouco ser claro?

SACERDOTE (Não muito feliz.)

- Sim... mas...

ÁRVORE 1

- Ta-lam! Ta-lam! Ta-lam! Ta-lam!

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Page 41: Osvaldo Dragún - Ao Violador

SACERDOTE

- Eu preciso ir embora. Tenho que confessar um dos casos de violação.

HOMEM

- Ainda continua com o problema?

SACERDOTE

- Ainda. O pior é que não sabe qual é o problema. Nem eu tampouco.

HOMEM

- Não estará?... (Faz sinais de gravidez.)

SACERDOTE

- De três anos? A verdade é que já não se lembra se houve violação, se

quis que houvesse, ou se quer agora. Ele se aborrece.

VELHO

- E para que se confessa?

SACERDOTE

- Para não esquecer que se aborrece. É como atar um nozinho no dedo.

VELHO

- Não entendo...

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Page 42: Osvaldo Dragún - Ao Violador

SACERDOTE

- Ah. Viu como não é suficiente falar o mesmo idioma para a gente se entender?

(Vai saindo. Murmura.) CUANTICUM ILICITUM PARTHENUM EST

JACTA ECTIBUM ...

VELHO

- Senhor!

SACERDOTE (Volta-se)

- Hein?... (Ele se dá conta de que falou latim.) Ah... desculpe-me! É

que... o hábito faz o monge.

HOMEM

- E como está a menina, essa?

SACERDOTE

- Que menina?

HOMEM

- A menina, essa... a que foi violada. A que o senhor vai confessar.

SACERDOTE

- Não é uma menina. É um professor universitário. Tem setenta anos.

(O SACERDOTE SAI)

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Page 43: Osvaldo Dragún - Ao Violador

VELHO

- É melhor ter certeza de que abortou.

HOMEM

- Quem? O professor?

VELHO

- É.

HOMEM

- Mas... é um homem.

VELHO

- E daí? Melhor ter certeza.

HOMEM (Olha-o. pausa. Admirado)

- O senhor é um sábio!

VELHO

- Velho, só isso, meu filho. Velho.

(O HOMEM MADURO SAI. O VELHO FICA SÓ. PAUSA. COMEÇA A

FALAR DE FRENTE PARA O PÚBLICO. APENAS SE PERCEBE QUE

SUA MÃO DIREITA COMEÇA A MOVER-SE, COMO SE ESTIVESSE SE

MASTURBANDO)

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Page 44: Osvaldo Dragún - Ao Violador

NOITE LIVRE. Numa vida agitada como nossa, Noite livre é desafogo

da alma.

(FORMANDO UM BLOCO COMPACTO, ENTRAM TODOS OS HOMENS

NO CORO. COLOCAM-SE ATRÁS DO VELHO. TRAZEM SEUS BASTÕES

E MOVEM APENAS SUAS MÃOS DIREITAS. COM AS BOCAS

FECHADAS, EMITEM UM SOM COMO DE UM ENXAME.

INTERROMPEM-SE DE REPENTE. O VELHO E O HOMEM MADURO,

UM DIANTE DO OUTRO.

VELHO

- Eu creio no futuro.

HOMEM

- Eu também. Mas com certas restrições.

VELHO

- Restrições, sim. Mas não restrição total.

HOMEM

- Ah, não. Restrição total, não. Restrição, sim. Restrição total, não.

VELHO

- Isso é positivo.

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Page 45: Osvaldo Dragún - Ao Violador

HOMEM

- Eu sou positivo. Mas com restrições.

VELHO

- Ou seja, que poderíamos dizer que acreditamos no futuro.

HOMEM

- Poderíamos. Mas com restrições.

(VOLTAM À FRENTE. RETORNA O SOM SURDO. CONTINUAM

MOVENDO MUITO SUAVEMENTE AS MÃOS DIREITAS. O SOM É

MAIS UMA VEZ INTERROMPIDO. APARECE ALAIN NO LADO

ESQUERDO. É VISTO POR ELES.

VELHO

- Aproxime-se, genro.

ALAIN

- Quest que ce?

VELHO

- NOITE LIVRE. A latrina onde cagamos nossas indiferenças. (Todos

riem com estrondosas gargalhadas. Agora são como um grupo de bêbados que

se abraçam com força, como se estivessem diante do balcão de uma uisqueira.

Alain olha-os) Uma rodada para os amigos! Essa é minha, hein? (Cada um

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Page 46: Osvaldo Dragún - Ao Violador

sacode o copo com a mão que segura o bastão – a esquerda. A direita continua

movendo-se muito lentamente. Um está diante de Dois. Cessa o ruído.)

UM

- Estou só, irmão...

DOIS

- Eu não.

(TRÊS E QUATRO, UM DIANTE DO OUTRO.)

QUATRO

- Somos demasiado ocidentais.

TRÊS (Seco)

- Somos demasiado chineses. Cui-da-do.

CINCO (Só)

- Os heróis... as estátuas... o pampa infinito...

HOMEM

- Mas com restrições, hein?

VELHO

- Restrições, sim. Mas restrições total, não.

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Page 47: Osvaldo Dragún - Ao Violador

DOIS (Grita, muito bêbado.)

- Outra rodada para os amigos. É minha.

(DO LADO, PERTO DE ELE ESTÁ ALAIN, APARECE ELA.)

ELA

- Meu amor...

ALAIN (Volta-se. Vê Ela)

- Qui?

ELA (Arruma a gravata dele)

- Estão te esperando.

ALAIN

- Oui. Mais... (Vai dizer “se você quer, eu fico”.)

ELA

- Não. Você tem que ir. Se você fica sempre comigo, vão pensar que nós

temos alguma cosia que esconder. Eu nunca te contei que eu sonhava todas as

noites, quando era pequena?

ALAIN

- Non.

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Page 48: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELA

- Eu queria crescer, queria ser... “grande”. Queria ser profissional. Então,

uma noite eu sonhei que o meu carro quebrava no meio do bosque, e que era

violada...

ALAIN (Assustado, interrompe.)

- Quest que ce? Quest que cest?

ELA

- Nada. Foi um sonho. Mas eu descobri que o melhor é não ter nada que

esconder.

(ENTRA A SOGRA)

SOGRA

- Vamos, filhinha, que estão nos esperando.

ELA

- Já vou, mamãe. (Para Alain) É nossa NOITE LIVRE.

ALAIN

- Oui...

ELA

- O teu nome me encanta. Gosto muito dele. É tão bom, tão doce, tão

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Page 49: Osvaldo Dragún - Ao Violador

carinhoso. Eu sempre sonhei que ia me apaixonar por um homem assim. (Alain

olha-a. aproxima-se dela. Pausa. Suas mãos a percorrem lenta e suavemente,

quase sem tocá-la. Ela ri, confusa). Que está acontecendo? Por que você me olha

como se eu fosse um... um mapa?

ALAIN

- Je... Eu...

SOGRA

- Nada de segredos, filha.

ELA

- Por favor, mamãe. Que segredos! Quem é que vai pensar em te

segredos aqui. (Volta-se para Alain.) Você ia me dizer que...

ALAIN

- Non.

ELA (Ri)

- Não é uma opinião. É uma recusa. Non! Niet!

(SAI RINDO, ACOMPANHANDO A SUA MÃE. ALAIN VOLTA-SE. OLHA

O GRUPO DE AMIGOS. FORMA UM BLOCO COMPACTO. MOVEM-SE

APENAS DE UMA MANEIRA OSCILANTE, PENDULAR. SUAS BOCAS

FECHADAS EMITEM UM SOM COMO DE UMA COLMEIA. ALAIN VAI

SE APROXIMANDO. ELE SE DETÉM. E FINALMENTE SE INTRODUZ

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Page 50: Osvaldo Dragún - Ao Violador

NO MEIO DO GRUPO, QUE SE FECHA AO REDOR DELE, COMO SE O

TIVESSE TRAGANDO. SÚBITO, SILÊNCIO. UM DIANTE DE ALAIN.

UM (Que é psicanalista)

- Estou só, irmão.

ALAIN

- Oui.

UM

- Você se deu conta de que estou estou só?

ALAIN

- Non.

UM

- Estou só. (Choraminga) Sou psicanalista. O cofre da solidão dos

demais. E solidão só pode ser igual a solidão. Mas eu gosto de estar só!

(Choraminga)

ALAIN

- Oui.

UM

- Você se deu conta de que eu gosto de estar só?

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Page 51: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ALAIN

- Non.

UM

- É a minha plantinha. Eu rego ela todos os dias. E quando vejo a

manada de crianças rumo à escola, eu grito... EU ESTOU SÓ! SÓ! SÓ!

DOIS

- Não bebe mais.

UM (Para Alain)

- Não beba, meu irmão. A bebida nos iguala a todos. Resgate sua

solidão?

ALAIN (Ríspido, assustado)

- Non.

UM

- Me agradam os pontos de vista, meu irmão. Passe pelo meu consultório

qualquer dia desse. (Bebe um copo de um trago. Pausa. Choraminga.

DOIS

- Não bebe mais, bobão. A tua mulher vai se zangar é comigo.

UM

- Eu tranqüilizo ela, não se preocupe. Sabe como?

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Page 52: Osvaldo Dragún - Ao Violador

(TODA A TODA OBSERVA ATENTAMENTE. UM ESTENDE SEU DEDO

MAIOR PARA CIMA E FAZ UM GESTO DE ENFIÁ-LO EM ALGUM

LUGAR.)

DOIS

- Nela...?

UM

- Não. Em Mim.

(TODOS RIEM EM GARGALHADAS.)

TRÊS (Seco)

- Outra rodada para os amigos. Minha.

QUATRO

- Dele!

(BEBEM. APERTAM-SE AINDA MAIS. EMPURRAM-SE, BRINCANDO,

MAS NÃO DESFAZEM O BLOCO. EMITEM RUÍDOS COM AS BOCAS

FECHADAS. RUÍDOS QUE DEVERIAM SER RISOS E CANTOS. MAS

SÃO SOMENTE RUÍDOS DE UMA COLMEIA DE ABELHAS. ALAIN

ESTÁ PERTURBADO. SENTE-SE EMPURRADO, MANUSEADO. FAZ

INÚTEIS ESFORÇOS ATÉ QUE CONSEGUE SAFAR-SE DO GRUPO.

AFASTA-SE INCOMODADO. PASSA UMA MÃO PELA ROUPA, COMO

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Page 53: Osvaldo Dragún - Ao Violador

SE TIRASSE O PÓ. OLHA-OS MOVE SUA MÃO DIREITA IGUAL A

ELES. O GRUPO PÁRA IMEDIATAMENTE.)

TRÊS (Seco e autoritário)

- A gente pode saber o que você está fazendo?

QUATRO

- O quê?

ALAIN (Confundido, aponta que só faz o que fazem os demais.)

- Mais...

TRÊS

- Você tem liberdade para fazer o que lhe der na cabeça, mas não

sozinho. Aqui tudo se faz entre todos. À luz do sol. Não temos nada a esconder.

Você tem alguma coisa a esconder?

QUATRO

- Tem alguma coisa?

ALAIN (Assustado)

- Non! Non!

TRÊS

- Então... venha! Fique igual!

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Page 54: Osvaldo Dragún - Ao Violador

QUATRO

- Fique igual!

(ALAIN VACILA. APROXIMA-SE DO GRUPO. ESTE, COM UM

MOVIMENTO, TRAGA-O. VOLTA O SOM DAS BOCAS FECHADAS E O

MOVIMENTO PENDULAR, SUAVE, ENQUANTO BEBEM E MOVEM

LENTAMENTE A MÃO DIREITA. O MOVIMENTO AUMENTA DE

INTENSIDADE. CADA VEZ MAIS. ALAIN TAMBÉM. MAS, DE

REPENTE, ALAIN COMEÇA A FAZÊ-LO COM A ESQUERDA.

IMEDIATAMENTE O GRUPO PÁRA. OLHANDO-O. OLHAM-SE ENTRE

ELES. SURPRESOS. RIEM. E AGORA TODOS COMEÇAM A MOVER A

MÃO ESQUERDA. O MOVIMENTO É RÁPIDO.

VELHO

- Eu acredito no futuro.

HOMEM

- Eu também. Mas com certas restrições.

VELHO

- Restrições, sim. Restrição total, não.

HOMEM

- Ah, não. Restrições, sim. Restrição total não.

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Page 55: Osvaldo Dragún - Ao Violador

VELHO

- Isso é positivo.

HOMEM

- Eu sou positivo. Mas com restrições.

CINCO

- Os heróis... as estátuas... o pampa infinito...

HOMEM

- Mas com restrições.

(MOVEM A MÃO ESQUERDA A TODA VELOCIDADE. A ÁRVORE 1 DÁ

AS HORAS.)

ÁRVORE 1

Tam. Tam. Tam. Tam. Tam. Tam. Tam. Tam. Tam. Tam. Tam.

(O BLOCO VAI SAINDO, BASTANTE COMPACTO, CADA UM

MOVENDO A MÃO ESQUERDA A GRANDE VELOCIDADE. ALAIN

CONSEGUE DESPRENDER-SE. FICA SÓ. SUA MÃO ESQUERDA SE

MOVE A TODA VELOCIDADE E QUANDO A MASTURBAÇÃO ESTÁ A

PONTO DE ATINGIR O AUGE, ALAIN CORRE EM DIREÇÃO À

ÁRVORE 2 E SE AJOELHA.

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Page 56: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ARVORE 2 (Forte)

- Não su-je as ár-vo-res.

ALAIN (assustado, fica de pé com um salto.)

- Desculpe, eu não vi o letreiro.

(CORRE, MOVENDO SUA MÃO AGITADAMENTE. SAI DE CENA.

PAUSA. ESCUTA-SE SEU GRITO DE PRAZER, VINDO DE FORA.

PAUSA.)

ARVORE 1

- Você se sente orgulhosa de sua obra?

ÁRVORE 2

- Que obra?

ÁRVORE 1

- Esse aí. Alain! Confia nele? Eu, não. Para mim, está histérico. Você no

viu como ele procura ficar sozinho?

ÁRVORE 2

- Eu acredito no futuro.

ÁRVORE 1

- Eu acredito nas formigas. Cada vez que vejo “esse aí”, começam a

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Page 57: Osvaldo Dragún - Ao Violador

caminhar em mim!

ÁRVORE 2

- Tenha cuidado. Quem procura temporal, colhe tempestades.

ÁRVORE 1

- Não mencione “temporal”. Eu disse “formigas”. Quando ouço

“temporal”, me sacudo inteira.

ÁRVORE 2

- De formigas para temporal, a única diferença é o vento. Respire, não

assopre.

ÁRVORE 1

- Não entendo uma porra...

ÁRVORE 2

- Você pagou ingresso?

ÁRVORE 1

- Não...

ÁRVORE 2

- Então, está se queixando de quê?

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Page 58: Osvaldo Dragún - Ao Violador

(ENTRA UMA VELHA VELHÍSSIMA, TODA ENCURVADA, APOIANDO-

SE COM DIFICULDADE EM SEU BASTÃO. AVANÇA LENTAMENTE.

ELA SE DETÉM. OLHA EM TORNO. NÃO VÊ NINGUÉM. VAI EM

DIREÇÃO ÀS ÁRVORES. URINA NELAS E SAI.

ÁRVORE 1 (Assombrada)

- Lassie!

ÁRVORE 2 (Emocionada)

- Que bela dupla que eles forma! Que país, meu Deus! Que país!

(ENTRA ALAIN. CAMINHA PENSATIVO. OLHA EM TORNO. TEM

PROBLEMAS, CLARO.)

ÁRVORE 1

- Aí está. Outra vez o esquizofrênico. Ah!

ÁRVORE 2

- Pss! É francês!

ÁRVORE 1

- Certo.

(ALAIN MIRA EM TORNO DE SI. DEITA-SE NO CHÃO. ENCOSTA UMA

ORELHA NA TERRA. DE REPENTE, PARECE ESCUTAR ALGUMA

COISA. PRESTA MAIS ATENÇÃO. SOBRESSALTA-SE. OLHA À

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Page 59: Osvaldo Dragún - Ao Violador

DISTÂNCIA. ERGUE-SE E SE ESCONDE ATRÁS DA ÁRVORE 2. PAUSA.

ENTRAM ELA E SUA AMIGA. ELA SE DETÉM. OLHA EM TORNO.)

ELA

- Aqui eu tive um sonho quando era pequena.

AMIGA

- Nem me interessa. Você não contou a ninguém, espero.

ELA

- A Alain.

AMIGA

- Fez mal.

ELA

- É francês. Não entende.

AMIGA

- Por isso. Depois vão traduzir no estrangeiro e imagina o que vão

escrever do teu sonho. São muito estranhos. Fazem coisas sozinhos, sem que

ninguém os veja. Me contaram que às vezes se fecham em salas, em bibliotecas,

em...

ELA

- Havia um temporal.

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Page 60: Osvaldo Dragún - Ao Violador

AMIGA

- Quando?

ELA

- No meu sonho.

AMIGA

- Não me conta, por favor. Além disso, aqui não tem temporal desde o

tempo de...

(ALAIN SE ASSUSTA E, SEM QUERER, BELISCA A ÁRVORE 2. ELA

GRITA.)

ÁRVORE

- É proi-bi-do mal-tra-tar as ár-vo-res.

AMIGA (Assustada)

- Que foi isso?

ELA

- Nada. Aqui não pode acontecer nada que a gente não veja.

AMIGA

- Me escuta... você acredita nessa história de Chapeuzinho Vermelho?

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Page 61: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELA

- Não.

AMIGA

- Eu também não. Melhor a gente ir embora.

ELA

- No meu sonho ele me viola...

AMIGA

- Vamos! (Arrasta-a por um braço.) Só gosto de árvore pra fazer fogo.

(Saem)

ÁRVORE 1 (Grita para ela)

- Enfia uma árvore bem quentinha no...

ÁRVORE 2 (Cortando-a)

- Calma, calma.

(ALAIN DÁ UM SALTO E SE OCULTA ATRÁS DE UMA DAS ÁRVORES.)

ALAIN

- Estou esperando.

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Page 62: Osvaldo Dragún - Ao Violador

SACERDOTE

- Onde você está?

ALAIN

- Vou estar onde? No confessionário.

SACERDOTE

- Claro.

(VAI OCUPAR SEU LUGAR ATRÁS DA OUTRA ÁRVORE, MAS AO

PASSAR PELO LOCAL ONDE ESTÁ ALAIN QUER VÊ-LO. ALAIN SE

OCULTA. O SACERDOTE INSISTE E ALAIN VOLTA A OCULTAR-SE.

APÓS ESTE JOGO, O SACERDOTE RENUNCIA, SUSPIRA E OCUPA

SEU LUGAR. SENTA-SE NO CHÃO. ALAIN FAZ O MESMO.)

SACERDOTE

- Você não quer que eu te veja.

ALAIN

- Não.

SACERDOTE

- Por que você veio?

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Page 63: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ALAIN

- Porque... porque o senhor acredita no mistério.

SACERDOTE (Assustado.)

- Não conte isso a ninguém!

ALAIN

- Eu lhe prometo. É segredo de confissão.

SACERDOTE

- Você tem razão. Eu tinha me esquecido. Às vezes eu esqueço quem

sou. Nunca lhe acontece isso?

ALAIN

- Às vezes. Mas eu insisto.

SACERDOTE

- Em quê?

ALAIN

- Em não ser.

SACERDOTE

- Está bem. Eu faço o mesmo. Mas há vezes que... Um dia desses eu

estava parado, diante de uma cruz. O cara também ESTAVA LÁ. CHEIO DE

PREGOS. E espinhos. E, não sei como, eu comecei a sangrar.

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Page 64: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ALAIN

- Era Cristo.

SACERDOTE

- Quem? Onde?

ALAIN

- O cara na cruz.

SACERDOTE

- Claro. Me parecia mesmo. Você vê o que eu te digo? Eu esqueço quem

sou... onde estou... quem está comigo... e você?

ALAIN

- Eu entendo eles. Eles, não.

SACERDOTE

- Vamos, não me venha agora com a história de que tua mamãe e teu

papai não te compreendem.

ALAIN

- Não, não, sério. Não me compreendem.

SACERDOTE

- Por quê?

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Page 65: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ALAIN

- Idioma diferente.

SACERDOTE

- Isso é verdade. Quem entende um advogado? Um médico? Um...

(Interrompe-se) Não vai contar isso a ninguém, não é?

ALAIN

- Que coisa?

SACERDOTE

- Isso. Que eu me esqueço o rosto e me vou...

ALAIN

- Já lhe disse que não. Estamos em confissão.

SACERDOTE

- E me fazia muita falta. Se você não chega, eu rebento. Então, você

acredita no mistério...

ALAIN

- Como o senhor.

SACERDOTE

- Sorte que temos o latim. Você tem algum problema de conjugação?

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Page 66: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ALAIN

- Não. De violação.

SACERDOTE

- Bom, os idiomas foram feitos para serem violados. Só que o latim é a

mãe, e a mãe não se pode...

ALAIN (Corta.)

- Eu , sim.

SACERDOTE

- Você sim, o quê?

ALAIN

- Tenho ganas de violara tudo.

(O SACERDOTE SE SURPREENDE. INCLINA O CORPO PARA A

FRENTE PROCURANDO VER-LHE O ROSTO, MAS ALAIN LEVA O

CORPO PARA TRÁS.

SACERDOTE

- Eu imagino que você está falando do latim...

ALAIN

- Não.

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Page 67: Osvaldo Dragún - Ao Violador

SACERDOTE

- Eu, sim. Some daqui. Você me iludiu. Fazia tanto tempo que eu não

falava com ninguém sobre latim. Octopus miraculus actinus. É isso o mistério.

Meu amado e saudoso mistério. Hipócrita! Eu pensei que havia encontrado

companhia.

ALAIN

- E encontrou companhia. Não se dá conta? (Joga-se no chão com a boca

para baixo.) O seu mistério e o meu, se são mistério, são também o mesmo. Sabe

o que é o mistério?

SACERDOTE

- O latim.

ALAIN

- Qual? Esse idioma falso, absurdo, inventado pelo senhor só para o

senhor?

SACERDOTE

- O quê?...

ALAIN

- É sim. O seu falso latim e os meus desejos de violar tudo são o

mistério. O mistério é isso que uma pessoa deve fazer sozinho, só, sem apoio,

porque é a nossa vergonha, o que nos separa da luz do sol, o que nos faz

desiguais, o que nos corrompe, por orgulho, por vaidade. Por isso eu vim lhe

67

Page 68: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ver, por isso eu quis escutar a sua confissão...(O Sacerdote levanta-se,

aterrorizado, e avança na ponta dos pés na direção de Alain, que não percebe.) E

por isso eu quero que escute a minha... meu pai, minha mãe, a luz do sol, a

mulher que eu amo e que não posso possuir diante de todos porque eu tenho

necessidade de me enterrar com ela debaixo da terra, os dois sozinhos, sujos de

toda a sujeira, para...

SACERDOTE (Chegou perto dele.)

- O francês!

(ALAIN SE VOLTA, SURPRESO. CONTINUA DEITADO NO CHÃO.

OLHA-O. PAUSA.)

ALAIN

- Que pena! (Pausa) Venha. (O Sacerdote vacila, em seguida se deita

junto de Alain.) É preciso sobreviver. Eu pensei que o senhor era diferente.

(Estrangula-o. O Sacerdote morre. Alain se levanta. Pausa curta.)

ÁRVORE 1 (Tremendo de medo)

- T..t..a..an..T..t..t..tt.a.a..an..an..T..t..t..ta..a..a..an..

(ENTRAM TODOS COMO UM CORTEJO. VÃO EM DIREÇÃO A ALAIN E

O SACERDOTE)

ALAIN

- Mataram ele

68

Page 69: Osvaldo Dragún - Ao Violador

TRÊS (Depois de uma pausa)

- Procurem o assassino!

CINCO

- Procurem! Digo... procuro!

(SAI CORRENDO.)

TRÊS

- Sem pressa . e tratem ele bem. Está no código. (Olha para o céu) Matou

à luz do sol. É um assassino, não um violador.

(CINCO SAI. TODOS – MENOS ALAIN – CARREGAM O CORPO DO

SACERDOTE E SAEM. ALAIN OLHA-OS. PAUSA. VAI SEGUI-LOS.

QUANDO ESTÁ PARA COMEÇAR A SAIR, SE DETÉM E COMEÇA A

RECUAR, CAMINHANDO PARA TRÁS. ENTRA UM – O ANALISTA.)

UM

- Finalmente você veio. Me alegro. Gosto dos seus pontos de vista.

(Golpeia as mãos. Entram atores que fazem as duas poltronas) Comece.

gravador!

(ENTRA UM ATOR E FICA ENTRE ELES, SENTADO NO CHÃO. ALAIN

ABRE A BOCA COMO SE FALASSE.

69

Page 70: Osvaldo Dragún - Ao Violador

GRAVADOR

- Parle vous français?

UM

- Mais oui!

(DURANTE TODA ESTA CENA ALAIN FARÁ COMO SE FALASSE E O

GRAVADOR REPETIRÁ SEU TEXTO – TOM METÁLICO.)

GRAVADOR

- Que sorte! Vou precisar, doutor.

UM

- Off corse!

GRAVADOR

- São os meus sonhos.

UM

- Yes.

GRAVADOR

- Eu sonho que... violo.

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Page 71: Osvaldo Dragún - Ao Violador

UM

- What?

GRAVADOR

- Violo.

UM (Mais alto)

- What?

GRAVADOR (Grita)

- VIOLO! Lo-lo-lo! (Como um eco.)

UM (Grita)

- What?

ALAIN

- Vio...! (Quer ficar de pé, mas a poltrona impede-o e faz com que se

recoste outra vez. Pausa. Alain fecha os olhos. Sonha.)

GRAVADOR

- Minha mãe e eu.

(ENTRAM ALAIN MENINO – ATOR COM CALÇA CURTA E LASSIE, A

MÃE. DO OUTRO LADO, O MENINO JOGA COM O BASTÃO, USANDO-

O PARA BATER NUMA PEDRINHA IMAGINÁRIA. POR ENQUANTO O

BASTÃO APONTA PARA O CHÃO)

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Page 72: Osvaldo Dragún - Ao Violador

MÃE

- Eu te olho e tremo. Carne da minha carne. Todo meu amor. MEU nenê.

(Beija-o com força.) Perdoa, eu te arranquei uma orelha. (Mostra-a. Guarda-a

em seu bolso) Que linda orelinha que tem o meu nenê. Se fosse mais jovem,

tenho certeza de que se apaixonaria por mim. Bom... não importa. Há outras

maneiras de se viver. MEU nenê (Beija-o) Perdoa, eu te arranquei um olhinho.

(Ri. Mostra-lhe. Guarda no bolso.) Que lindos olhinhos tem o meu nenê. Agora

a escola. Depois o colégio... a universidade... o futuro! Que época mais incrível

essa em que coube ao MEU nenê viver! (Beija-o e abraça-o) Perdoa, eu te

arranquei um bracinho. Que lindos bracinhos que tem o meu nenê. (Guarda o

braço em sua roupa.) Todo mundo vai saber que é o Aldo... o nenê da mamãe. O

MEU Aldo. Aldo. Aldo. (Abraça-o e beija-o com força.) Perdoa, eu te arranquei

a língua. (Mostra-a. Come-a) Ummm, que linguinha linda que tem o meu

nenê!... E agora, me diz. O que é que o meu nenê quer comer? Hein? O que que

quer comer?

(ALDO OLHA-A. PAUSA HASTEIA O BASTÃO COMO UM ENORME

PÊNIS. ENFIA NELA. BAILAM A DANÇA DA VIOLAÇÃO E SAEM.)

ÁRVORE 1 (Aterrorizada)

- Lassie. Que fazem contigo, Lassie?

(DE FORA OUVE-SE O UIVO TRISTE DE LASSIE.)

GRAVADOR (Metálico)

- Meu mês-tre e eu.

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Page 73: Osvaldo Dragún - Ao Violador

(POR UMA LADO ENTRA O MENINO ALDO. USA O BASTÃO COMO

UMA LAPISEIRA GIGANTE. PELO OUTRO LADO ENTRA O MESTRE –

RIN-TIN-TIN.)

MESTRE

- Escreva o seu nome. (O Menino escreve.) Mais claro (O Menino

escreve.) Mais claro, por favor.

GRAVADOR

- Al-do

UM (Assustado quando escuta o nome)

- Quest que ce?

MESTRE

- Eu falei “mais claro”, para que se entenda. O Menino escreve.

GRAVADOR (Forte)

- AL-DO.

UM (Mais assustado)

- Mein Gott!

MESTRE

- Primeiro, aula de geografia. E isso tem um sentido. A geografia é o

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Page 74: Osvaldo Dragún - Ao Violador

conhecimento do mundo em que vivemos. Em que mundo você vive, Aldo? (O

Menino escreve) Em que mundo? Não se entende a letra.

GRAVADOR (Apenas murmura)

- ... casa...

MESTRE

- Com letra clara. Não se pode viver sem uma letra clara. Em que mundo

você vive? Mas que seu entenda!

GRAVADOR (Forte)

- MI-NHA-CA-SA.

PROFESSOR

- MINHA casa. SUA casa. Okei. Do qual podemos concluir que:

PRIMEIRO: O Universo tem três ambientes: sala, dois dormitórios, cozinha,

banheiro, toalete e dependências, com uma dimensão aproximada de setenta

metros quadrados. SEGUNDO: Não é necessário saber demasiado para conhecê-

lo, dadas as suas reduzidas dimensões. Eu, pelo menos, nunca tive necessidade

de saber demasiado. Também nem tive aspirações, porque em tão reduzido

espaço cósmico, cada aspiração pode provocar tremendos ventos enfurecidos

para os outros habitantes. Bom, sim, talvez um telefone... mas esse não é uma

verdadeira aspiração, senão uma expressão de nossa pintura barroca. Okey?

GRAVADOR

- OKEY.

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Page 75: Osvaldo Dragún - Ao Violador

PROFESSOR

- Agora Anatomia. Escreveu anatomia?

GRAVADOR

- A-a-a-n-n-a-tomia.

PROFESSOR

- Não é fácil, não é fácil. E tem se sentido. A anatomia é a geografia

individual do ocupante da geografia universal. Quem ocupa sua geografia

universal, vamos ver?

GRAVADOR (Murmura)

- ... Papai...

MESTRE

- Mais claro!

GRAVADOR

- Papai.

MESTRE (Grita)

- Papai. Claro que é o papai. E agora, escreva: em que trabalha seu pai?

GRAVADOR (Murmura)

S.s.s...apa..te..i..ro...

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Page 76: Osvaldo Dragún - Ao Violador

MESTRE

- Que é isso? Parece um pássaro carpinteiro. Trabalha em quê? Seja claro, estou

lhe pedindo, meu querido Aldo.

UM

- Quest que ce? Aldo? Pourquoi?

GRAVADOR

- Sapateiro.

MESTRE

- SAPATEIRO. O Sapateiro a seus sapatos. (Ri de sua piada) Perdoe-me,

esqueci que ainda não chegamos na Ironia. Sapateiro. Assim que a Anatomia

que você deve saber, aprender, recordar, fixar, never esquecer, meu querido

Aldo... diz que o homem, geografia individual da geografia universal...seu papai,

vamos... é um ser hu-ma-no... que mede um metro e quarenta e vive e morre

encurvado, que é a posição mais cômoda – sábia natureza! – para evitar as poças

de água e...

ALDO MENINO (Grita. Esgrime o bastão como um pênis, enfia no mestre, por

trás, e depois de bailar a dança da violação, tira-o do palco.)

UM (Muito assustado)

- Aldo? Aldo?

GRAVADOR

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Page 77: Osvaldo Dragún - Ao Violador

- Sonho. Sonho. Eu sempre sonho a mesma coisa, doutor.

ÁRVORE 1

- Era o Rin-Tin-Tin. Como ele se atreveu?

(FORA SE ESCUTA O UIVO TRISTE DE UM CÃO.

UM (Levanta-se silenciosamente.)

- Continue... continue... Alain não vê que o Médico se levantou.

GRAVADOR

- Por que eu tenho esses sonhos, doutor? Quem é... Aldo? Por que eu

sempre sonho que sou alguém chamado Aldo?

(O MÉDICO CAMINHA NA PONTA DOS PÉS E APROXIMA-SE DE UMA

DAS ÁRVORES.)

UM

- Está bem, mon ami... il n’y pas de problema... Tout ce bien... três

bien...

(CHEGA JUNTO À ÁRVORE 2.)

ÁRVORE 2

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Page 78: Osvaldo Dragún - Ao Violador

- TE-LE-FO-NE-PÚ-BLI-CO.

UM (Pega o telefone. Fala baixo.)

- Senhor comissário? Eu. (Para Alain) Tout ce très bien, très bien. (Ao

telefone) Não, por favor, não me pergunte agora por que tem comichão na

orelha direita e ontem tinha na esquerda. Eu tenho algo para o senhor... não, algo

não, alguém. E já que não imagina quem...

(CORTA, AO VER QUE ALAIN SE INCORPOROU E ESTÁ ESCUTANDO-

O. PAUSA. UM DESLIGA)

ÁRVORE 2

- CLICK!

UM (Procura rir.)

- Ah... os telefones... é como querer falar com um semáforo... Nenhum

dos dois funciona (Ri.)

ALAIN

- Venha. (Um se aproxima lentamente.) Deite-se (Um deita-se na

poltrona onde estava Alain) Que pena! Mas é preciso sobreviver. (Estrangula-o.)

ÁRVORE 1 (Aterrorizada).

- T..t..a..an..T..t..t..tt.a.a..an..an..T..t..t..ta..a..a..an.. T..t..t..ta..a..a..an..

(ENTRA O CORTEJO.)

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Page 79: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ALAIN (Aponta a Um.)

- Mataram ele.

TRÊS

- Procurem o assassino.

CINCO

- Procurem. Digo... Procuro. (Sai correndo.)

(AS POLTRONAS LEVAM UM COMO SE FOSSE UM FÉRETRO.)

VELHO

- É preciso encontrá-lo, senhor comissário.

TRÊS

- Vamos encontrá-lo. Mas não há motivo para alarmar-se. Olhe: tem

temporal? (Árvore 1 treme toda.) Raios? Trovões? Cai neve? Não. Tudo

continua normal. E sabe por quê? Porque um assassino não é um violador. Um

assassino é uma coisa normal. Mata, e seu ato termina com seu crime. Não

provoca conseqüências. Não é um fato anormal. Antinatural. Por isso está no

código. Ou o senhor prefere que eu o castigue me afastando do código?

VELHO

- É evidente que não. Eu escrevi o código. Mas a minha mulher e a

minha filha já não se atrevem mais sair à noite.

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Page 80: Osvaldo Dragún - Ao Violador

TRÊS

- Melhor para nós. (Em bolero) A noite é nossa, vida minha. (Ri)

HOMEM MADURO

- O senhor é um sábio.

TRÊS

- Não. Um policial, só isso, Policial.

(SAEM TODOS, MENOS ALAIN E O GRAVADOR, QUE CONTINUA

SENTADO NO CHÃO. ALAIN OLHA-O. APROXIMA-SE DELE E

COLOCA A MÃO EM SUA CABEÇA. O GRAVADOR FAZ UM RUÍDO

METÁLICO, COMO SE ESTIVESSE RETORNANDO A FITA. DETÉM-SE.

COMEÇA A FALAR LENTAMENTE.)

GRAVADOR

- Por que... tenho... esses... sonhos.. doutor? Quem...é ... Al...do? Por

que... sempre.... sonho... que... sou... alguém... chamado...Aldo?

(ALAIN PÁRA O GRAVADOR, QUE SAI DE CENA ROLANDO COMO

UMA BOLA. ALAIN FICA SOZINHO. JOGA-SE NO CHÃO COM A BOCA

PARA BAIXO. ESCUTA. FALA À TERRA.)

ALAIN

- Quem é Aldo? Quem foi... Aldo?

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Page 81: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 1 (Aterrorizada)

- Estou me mexendo.

ÁRVORE 2

- Calma. Calma.

ALAIN

- Quem? Quem? Quem sou eu? (Entra o Velho – Rin-Tin-Tin. Avança

lentamente, curvado, apoiado em seu bastão. Olha em torno. Não vê Alain nem

ninguém. Urina nas Arvores. Vai sair)

ÁRVORE 1 (Assombrada)

- Rin-Tin-Tin. Mas, ele não tinha...?

ÁRVORE 2

- Uma violação não acaba com os direitos.

(QUANDO RIN-TIN-TIN VAI SAIR APARECE ELA. O VELHO SE

DETÉM. ELA ESTÁ COM BARRIGA. ESTÁ GRÁVIDA. ENTRA O VELHO

– O PAI)

VELHO

- Tua mãe não vai vir. Tem medo. Não sei por quê.

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Page 82: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELA

- Não existem motivos?

VELHO

- Claro que não. Nós examinamos os dois cadáveres. Não tinham sinal

de violação. Não são necessárias medidas drásticas. Trata-se apenas de um

assassino, investigação de rotina.

ELA

- Alain está muito intranqüilo nos últimos dias.

VELHO

- Porque não entende. Explique a ele.

ELA

- Não entende. Alain.

ALAIN

- Quest que ce?

ELA (Ao Velho)

- Não entende.

VELHO (Olhando-a)

- Você está engordando.

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Page 83: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ELA

- É o clima.

VELHO

- Isso é verdade. Até o clima. Que país, meu Deus! (Beija-a. arranca-lhe

uma orelha) Perdão, te arranquei uma orelha. Que linda orelhinha que tem a

minha menininha! (Come a orelha e sai.)

(ELA VAI EM DIREÇÃO A ALAIN. MOSTRA A ELE UMA ROUPINHA

QUE ESTÁ FAZENDO)

ELA

- Gosta? Eu não sabia de que cor fazer... Será menina ou menino? Vai ter

um nome francês ou um que se entenda?

ALAIN

- Quest que ce?

ELA (Sorri e canta.)

- Quest que ce?

- Quest que ce?

- Quest que ce?

- Quest que ce?

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Page 84: Osvaldo Dragún - Ao Violador

Alain... hoje ninguém vai sair. É Noite Livre. Mas ninguém vai sair. Dizem que

anda um assassino por aí. Que é que nós podemos fazer, Alain? Falar? Eu já sei

que você...

ALAIN

- Tu parle français?

ELA

- Mais oui. Je suis professionel.

ALAIN

- Que sorte! Faz tempo que eu preciso falar com você.(Pausa) Eu te amo.

ELA

- Oui.

ALAIN

- Não. Eu te amo!

ELA (Sorri)

- Oui. Je perdu la plumme dans le jardin de ma...

ALAIN

- Deus. Como dizer eu te amo pra dizer que eu te amo? Como encontrar

o lugar que corresponde à gente... mas viajando de avião... e a gente sente a

necessidade de se jogar de pára-quedas, e que o pára-quedas não abra... cair... se

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Page 85: Osvaldo Dragún - Ao Violador

integrar... pertencer... crescer neste lugar como uma semente?... É realmente

MEU filho? ISSO vai ser MEU filho? (Aproxima-se de Ela. Ajoelha-se e apóia

sua cabeça na barriga crescida de Ela.)

ELA

- Je trouvé la plumme dans le jardin de ma...

ALAIN

- Filho meu! Eu prometo não te beijar pra não te arrancar a língua... não

te abraçar para não te roubar os braços...não te acariciar para no mudar o teu

nariz... Prometo!

ELA

- Alain! Quest que tu parle?

ALAIN

- Nós temos tempo. Anda um assassino por aí. Temos tempo. Eu nunca

pude falar com você, por que eu sou francês. Nunca te amar como queria. Me

esfregar em ti. Não fiz mais que me esfregar em ti, amor. Eu precisava te

romper, penetrar, destroçar, te jogar para o ar em mil pedaços de cores

sangrentas... Mas eu sou francês. Hoje nós temos tempo, amor. Anda um

assassino por aí. Nos temos tempo, não é verdade?

ELA (Confusa)

- Je perdu la tete... Pardon...la merde... Pardon... la plumme... Pardon.

Alain. Quest que ce?

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Page 86: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ALAIN

- Vamos pro bosque. (Toma-a pela mão e arrasta-a para o bosque.) Você,

nosso filho e eu. No bosque.

ÁRVORE 1

- Que é que está acontecendo? Estou começando a me sacudir...

ÁRVORE 2 (Um pouco assustada.)

- Calma, calma...

ÁRVORE 1

- Eu quero trinar e não posso. Os pássaros foram embora.

ÁRVORE 2

- É o clima. Mas voltarão as eternas andorinhas...

ÁRVORE 1

- Eu quero piar, mas os pios foram embora.

ÁRVORE 2

- É sábado inglês e já é mais de meio-dia. Calma, calma...

ÁRVORE 1

- Estou sacudindo. Estou dizendo pra você que eu estou sacudindo.

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Page 87: Osvaldo Dragún - Ao Violador

(ALAIN E ELA PERCORREM O BOSQUE E ELA AGORA AFASTA-SE

PARA O CENTRO DO PALCO.)

ALAIN

- Finalmente, outra vez o bosque. Você lembra? Foi aqui que o meu

sonho encontrou o teu sonho pela primeira vez... O meu sonho entrou dentro do

teu... partiu o teu pela metade.... inundou ele... Amor, que felizmente infelizes

nós fomos, amor. E agora, o quê? Temos tempo, amor. Anda um assassino por

aí. Temos tempo. Me diz: e agora... o quê? O que, pra nós três?

ELA (Sorri beatamente)

- Alain. Alain. (Canta)

- Quest que ce?

- Quest que ce?

- Quest que ce? (Acaricia-o.)

ALAIN

- Não... por favor...

(ELA RI. BEIJA-O E ARRANCA-LHE UMA ORELHA.)

ALAIN

- Não!

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Page 88: Osvaldo Dragún - Ao Violador

(ELA RI. MORDE-A E ARRANCA-LHE UM OLHO)

ALAIN (Uiva)

- Não!

(COM O QUE LHE RESTA, VOLTA-SE PARA ELA. AGORA ESGRIME O

BASTÃO COMO UM PÊNIS.)

ELA (Surpresa e assustada, se detém.)

- Mas ... não... tu... (Ele, como pode, semi destruído por Ela, tira o pano do

pescoço e ata-o como uma bandeira na ponta do bastão. Ela recua quando Ele

avança um passo) Não... não.. . Tu...Aldo... Então, o meu filho... Não. Não.

Papai. Mamãe. É... Aldo. Eu quero abortar. Eu quero abortar!

ALAIN (Agora Aldo em gozo.)

- Finalmente, meu amor. Finalmente, chegamos a nos conhecer. Eu te

amo! (Enfia nela o bastão. Giram selvagemente na dança da violação. Separam-

se.)

ELA (Angustiada)

- Um telefone. Por favor, um telefone.

(SAI CORRENDO. COMEÇA O TEMPORAL. RAIOS. TROVÕES. AO

LONGE, METRALHADORAS, SIRENES POLICIAIS, BOMBAS QUE

EXPLODEM. AS ARVORES SE AGITAM MORTAS DE MEDO.)

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Page 89: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ÁRVORE 1

- Eu não quero morrer!

ÁRVORE 2

- Calma, calma...

(ALAIN SE LEVANTA. ESTÁ ESGOTADO E ALEIJADO. MOVE-SE COM

DIFICULDADE. VAI EM DIREÇÃO ÀS ÁRVORES.)

ALAIN

- Por que que eu fiz isso? Eu não queria...

ÁRVORE 1

- Je ne comprende pas.

ÁRVORE 2

- Tanquilité, tranquilité.

ÁRVORE 1

- Tranquilité uma ova.

ALDO

- Ela... ela é tudo que eu quero.. por quê? Estou cansado... me perseguem...

Eu...eu só quero ser igual a todos.. viver como todo mundo... dois expedientes...

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Page 90: Osvaldo Dragún - Ao Violador

fim de semana livre...Desculpe. esse temporal me dá medo. Eu não quero

morrer! Por favor, me ajudem!

ÁRVORE 1

- Je ne comprende pas.

ARVORE 2

- Tranquilité, tranquilité... (Começa a cantar uma canção de ninar.)

Arroró2, petit

Arroró petit.

Arrorró petit

Arorró, arroró

ALDO

- Obrigado. Isso é tudo que eu preciso agora. Descansar... e depois.. . depois eu

irei lhe pedir perdão... Mas agora...

ÁRVORE 2 E ÁRVORE 1

Arroró, petit

Arroró petit.

Arrorró petit

Arorró, arroró

(ELAS PREPARAM UMA CAMA PARA ELE DESCANSAR. ELE COMEÇA

A SUBIR NAS ÁRVORES, COM GRANDE ESFORÇO.

2 Na Argentina, arroró é uma canção de ninar, como nosso “Nana, nenê”. (N. do T.)

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Page 91: Osvaldo Dragún - Ao Violador

ALDO

- Agora... só descansar, só isso... E por favor, não permitam que eu sonhe. Para

isso vocês tem espinhos, não é? Não permitam que eu sonhe!... Talvez eu já não

possa ser Alain... mas posso ser... Osvaldo... ou Tito... ou... André... ou Carlos...

ou ... Descansar! Enfim!

(DEITA-SE. ENTÃO AS ÁRVORES SE TRANSFORMAM NUMA FORCA.

ENFORCAM ALDO. APOIADO NUMA DELAS, SEU CORPO OSCILA.

MORREU. O TEMPORAL E OS RUÍDOS EXPLODEM COMO O PRÓPRIO

INFERNO. ENTRAM TODOS EM CENA, MENOS ELA. ESTÃO

PROCURANDO O VIOLADOR. DE REPENTE, CESSAM TODOS OS

RUÍDOS. MÚSICA CELESTIAL. LUZES DE LINDAS CORES. AS

ARVORES PIAM E TRINAM. VOLTOU A PAZ, A FELICIDADE, FOI

RESTAURADO O EQUILÍBRIO NATURAL. OS QUE ENTRARAM

MUDAM IMEDIATAMENTE DE ATITUDE. SEUS CORPOS PERDEM A

AGRESSIVIDADE. DÃO OS BRAÇOS. PASSEIAM. CHEIRAM AS

FLORES DOS JARDINS. O VELHO E O HOMEM MADURO SE DETÊM

DIANTE DO CORPO OSCILANTE DE ALDO.

VELHO

- Olhe que uvas incríveis que deram as colheitas de 76 até 80.

HOMEM

- Puro vinho de exportação.

VELHO

- Que país nós temos, meu Deus! Que país!

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Page 92: Osvaldo Dragún - Ao Violador

(VOLTAM-SE DE FRENTE PARA O PÚBLICO. COMEÇAM A JOGAR

GOLFE COM SEUS BASTÕES.)

HOMEM

- Sua filha já está passando bem?

VELHO

- Melhor que nunca. Emagreceu. É uma figurinha. Eu sempre digo:

ginástica é ginástica!

HOMEM

- O senhor é um sábio...

VELHO

- Velho, meu filho. Só isso. Velho!

FIM

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