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Carlos Fuser Os sentidos das atividades realizadas pelos alunos nas aulas de Arte: um estudo fenomenológico em uma escola da periferia de São Paulo. Mestrado em Educação: Psicologia da Educação Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC – SP 2005

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Page 1: Os sentidos das atividades realizadas pelos alunos nas ... · para os alunos, as atividades de desenho realizadas nas aulas de Arte. Foram realizadas observações de aulas de Arte

Carlos Fuser

Os sentidos das atividades realizadas pelos alunos nas aulas de Arte:

um estudo fenomenológico em uma escola da periferia de São Paulo.

Mestrado em Educação: Psicologia da Educação

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC – SP

2005

Page 2: Os sentidos das atividades realizadas pelos alunos nas ... · para os alunos, as atividades de desenho realizadas nas aulas de Arte. Foram realizadas observações de aulas de Arte

Carlos Fuser

Os sentidos das atividades realizadas pelos alunos nas aulas de Arte: um

estudo fenomenológico em uma escola da periferia de São Paulo.

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Educação: Psicologia da Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Heloísa Szymanski.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC – SP

2005

Page 3: Os sentidos das atividades realizadas pelos alunos nas ... · para os alunos, as atividades de desenho realizadas nas aulas de Arte. Foram realizadas observações de aulas de Arte

Banca Examinadora

____________________________________

____________________________________

____________________________________

Page 4: Os sentidos das atividades realizadas pelos alunos nas ... · para os alunos, as atividades de desenho realizadas nas aulas de Arte. Foram realizadas observações de aulas de Arte

Dedico este trabalho

à memória de meus avós,

Carlos, Lola, Sergio e Yvette;

à Márcia, esposa e amiga, e sua filha Cecília,

enteada predileta;

e aos meus filhos queridos,

Laura, Daniel e Beatriz.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Heloísa Szymanski, pela orientação competente e pela confiança que

em mim depositou.

Às Professoras Doutoras Maria Heloísa Corrêa de Toledo Ferraz e Laurinda Ramalho de

Almeida, pelas valiosas contribuições, comentários e sugestões por ocasião da qualificação.

Às Professoras Marina Marcondes Machado e Regina Célia Almeida Rego Prandini, pelas

valiosas sugestões e comentários, no início da pesquisa.

Aos Professores Mestre Nilson Salvetti e Doutor Marcos Antonio Lorieri, pela confiança e

apoio.

Aos participantes do programa de iniciação científica da PUC, Igor e Teresa, que me

auxiliaram na entrevista coletiva com os alunos da 6a. série D.

À CAPES, que financiou essa pesquisa.

À Marlene, pelo apoio permanente de mãe, sempre indispensável, e ao Dario (in

memoriam).

Ao Igor, irmão mais velho, pela importante ajuda no período que antecedeu o início deste

trabalho.

Ao meu pai, Fausto, e à Raquel, pelo incentivo e pelas sugestões.

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RESUMO

Esta dissertação apresenta uma pesquisa sobre os sentidos que têm,

para os alunos, as atividades de desenho realizadas nas aulas de Arte. Foram

realizadas observações de aulas de Arte em classes do Ensino Fundamental, em uma

escola municipal na periferia de São Paulo. A pesquisa incluiu conversas com alunos

e uma entrevista coletiva com uma turma da 6a. série, em que os alunos produziram

pequenos textos, além de entrevistas com a professora de Arte, a coordenadora

pedagógica, o diretor e a vice-diretora, e, também, a observação de atividades e obras

de alunos no pátio da escola.

O levantamento de dados e a análise seguiram os parâmetros da pesquisa

qualitativa fenomenológica e, para a interpretação, a principal referência teórica foi a

fenomenologia da existência, de Merleau-Ponty.

Concluiu-se com a verificação de que os sentidos vividos pelos alunos

nas suas atividades nas aulas de Arte dizem respeito ao contexto escolar, às atitudes

da professora e à criação artística como fenômeno que se configura no mundo social.

Revelaram-se sentidos “antiarte”, como o sentido burocrático de desenhar para obter

notas, o sentido de desenhar para evitar repreensões, além de atividades dirigidas no

sentido de agredir a professora. Mas predominaram, nas atividades das crianças,

diferentes sentidos identificados com a arte, tais como a busca de uma criação

artística expressiva e a intenção de mostrar a obra a outras pessoas. Desvelou-se

também o sentido de obter a aprovação e o acolhimento por parte da professora e de

familiares. E emergiram os sentidos de aulas de arte como atividade lúdica, como

preparação para uma atividade profissional, como exercício da liberdade e da revolta

e, também, da atividade artística como libertação e cura de limitações e sofrimentos

existenciais.

Palavras-chave: arte e educação, ensino de Arte, fenomenologia.

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ABSTRACT

This dissertation presents a research about the meaning that have, for the

students, the activities of drawing carried through in the lessons of Art. Observations

of lessons of Art in Basic Education classrooms had been carried through in a

municipal school in the periphery of São Paulo. The research included colloquies with

students and a press conference of the researcher with a group of sixth series where

the students had produced small texts, beyond interviews with the teacher of Art, the

pedagogical coordinator, the director and the vice-director, and, also, the observation

of activities and workmanships of students in the common area of the school.

The data-collecting and the analysis had followed the parameters of the

Phenomenological qualitative research and, for the interpretation, the main theoretical

reference were the phenomenology of the existence of Merleau-Ponty.

It was concluded with the verification of that the meaning lived for the

students in its activities in the lessons of Art say respect to the pertaining to school

context, to the attitudes of the teacher and to the considered artistic creation as a

phenomenon that is configured in the social world. "Anti-art" meaning had been

shown, as the bureaucratic meaning to draw to get notes, the meaning to draw to

prevent rebukes, beyond activities directed in the direction attacking the teacher. But

they had predominated, in the activities of the children, different felt identified with

the art, such as the search of an expressive artistic creation and the intention to show

the workmanship for other people. It had shown either the sense of get the approval

and the shelter on the part of the teacher and familiar. And had emerged the directions

of art lessons as playful activity, as preparation for a professional activity, as exercise

of the freedom and the revolt and, also, the artistic activity as freedom and cure of

limitations and existencial sufferings.

Key Words: art and education, teaching of Art, phenomenology.

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SUMÁRIO:

PARTE I – INTRODUÇÃO ................................................................................................. 1

Capítulo 1 - As aulas de Arte e a questão do sentido ........................................................... 2

1.1) O pesquisador e o ensino de Arte ................................................. 2

1.2) Algumas dificuldades .................................................................. 3

1.3) O sentido das atividades dos alunos ............................................. 5

1.4) A escola e o sentido vivido ........................................................... 6

1.5) Aulas de Arte, atividades de desenho ......................................... 10

PARTE II – FUNDAMENTAÇÃO .................................................................................... 12

Capítulo 2 – A história do ensino de Artes Visuais no Brasil ............................................ 13

2.1) Desenho geométrico e neoclassicismo ....................................... 13

2.2) A Escola Nova e a influência de Dewey ..................................... 17

2.3) Arte como expressão na Escolinha de Arte do Brasil ................. 21

2.4) O tecnicismo no ensino de Artes Visuais ................................... 27

Capítulo 3 – Os sentidos do ensino de Arte ........................................................................ 30

3.1) Os Parâmetros Curriculares Nacionais – Arte ............................ 31

3.2) Ana Mae Barbosa e a Proposta Triangular ................................. 33

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3.3) Fusari & Ferraz e a expressão artística na sociedade................... 36

3.4) Duarte Junior e a arte na formação plena do indivíduo .............. 38

3.5) Os professores de Arte ................................................................ 39

3.6) A pesquisa em ensino de Arte ..................................................... 41

3.7) Diversidade de sentidos .............................................................. 43

Capítulo 4 – Desenvolvimento e arte em Merleau-Ponty ................................................... 47

4.1) A criança e o desenvolvimento ................................................... 47

4.1.1- Noção de desenvolvimento ............................................. 48

4.1.2 - A Psicologia da Criança, segundo Merleau-Ponty ........ 57

4.1.3 – Merleau-Ponty e o desenho da criança .......................... 61

4.2) Pintura, corpo e Ser ..................................................................... 63

4.2.1 – Arte, vivência e aprendizado ......................................... 68

PARTE III – A PESQUISA ................................................................................................ 72

Capítulo 5 – Método ............................................................................................................ 73

5.1) A pesquisa qualitativa fenomenológica ...................................... 73

5.2) Procedimentos e instrumentos de coleta de dados ...................... 75

5.3) Análise dos dados ....................................................................... 78

Capítulo 6 – A pesquisa: o sentido vivido e as aulas de Arte ............................................. 80

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Capítulo 7 – A professora e a escola ................................................................................... 85

7.1) O ambiente escolar ...................................................................... 85

7.1.1 – Síntese dos registros de observação .............................. 85

7.1.2 - Tematização ................................................................... 89

7.2) Sônia, a professora de Arte ......................................................... 90

7.2.1 – Síntese das entrevistas ................................................... 90

7.2.2 - Tematização ................................................................... 92

Capítulo 8 – As aulas de Arte e as atividades dos alunos ................................................... 94

8.1) Mônica e o vampiro .................................................................... 94

8.1.1 – Registros de Observação ............................................... 94

8.1.2 - Tematização ................................................................... 96

8.2) A gravura de Aldemir Martins .................................................... 99

8.2.1 – Registro de Observação ................................................. 99

8.2.2 - Tematização ................................................................. 101

8.3) Aldemir Martins na 7a. série ..................................................... 103

8.3.1 – Registro de Observação ............................................... 103

8.3.2 - Tematização ................................................................. 105

8.4) O círculo cromático .................................................................. 106

8.4.1 – Registro de Observação ............................................... 106

8.4.2 - Tematização ................................................................. 107

8.5) A classe de Educação de Jovens e Adultos ............................... 108

8.5.1 – Registro de Observação ............................................... 108

8.5.2 - Tematização ................................................................. 109

8.6) O Coelho Pernalonga ................................................................ 109

8.6.1 – Registro de Observação ............................................... 109

8.6.2 - Tematização ................................................................. 111

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8.7) As frisas e as Olimpíadas .......................................................... 113

8.7.1 – Registro de Observação ............................................... 113

8.7.2 - Tematização ................................................................. 114

Capítulo 9 – A palavra dos alunos .................................................................................... 116

9.1) Uma conversa com duas meninas ............................................. 116

9.1.1 – Registro da Entrevista ................................................. 116

9.1.2 - Tematização ................................................................. 119

9.2) Entrevista coletiva ..................................................................... 121

9.2.1 – Resumo do Registro de Observação .......................... 121

9.2.2 – Os textos dos grupos ................................................... 122

9.2.3 – Tematização ................................................................ 123

9.3) As redações ............................................................................... 124

9.3.1 – Para quem eu gosto de mostrar os meus desenhos ...... 124

9.3.2 – O que eu penso e sinto quando estou desenhando ...... 126

9.3.3 – Do que eu não gosto nas aulas de Arte ....................... 128

9.3.4 – Como eu participo das aulas de Arte ........................... 130

Capítulo 10 – Síntese dos dados ........................................................................................ 132

10.1) A arte na EMEF ...................................................................... 132

10.2) A professora e as aulas de Arte ............................................... 133

10.3) O sentido das aulas para os alunos .......................................... 139

Capítulo 11 – Discussão e algumas conclusões ................................................................ 148

11.1) Arte, escola e aulas de Arte .................................................... 148

11.2) Os sentidos ‘antiarte’ .............................................................. 151

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11.2.1 – O sentido burocrático ................................................ 151

11.2.2 – Desenhar para evitar repreensões .............................. 153

11.2.3 – Agredir a professora .................................................. 154

11.3) Os sentidos para a arte ............................................................ 155

11.3.1 – Ser aceito pela professora .......................................... 155

11.3.2 – Mostrar a obra ........................................................... 155

11.3.3 – Criação artística ......................................................... 158

11.3.4 – Criação como expressão ............................................ 161

11.3.5 – Acolhimento, cuidado e pertencimento ..................... 162

11.3.6 – Arte como atividade .................................................. 163

11.3.7 – Arte como diversão e como profissão ....................... 165

11.3.8 – Aula de Arte como liberdade e rebeldia .................... 166

11.3.9 – Arte como libertação e cura ...................................... 167

PARTE IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 168

Capítulo 12 – Arte na aula de Arte .................................................................................... 169

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 176

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Parte I – INTRODUÇÃO

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CAPÍTULO 1 – As aulas de Arte e a questão do sentido.

1.1) O pesquisador e o ensino de Arte.

A ligação entre o pesquisador e a arte nasceu com os figurinos de teatro e

os desenhos expressionistas que habitaram seu lar, desde a primeira infância. A

experiência escolar entrou em contradição com essa vivência logo na sexta série, quando

a professora de Educação Artística exigiu que o sombreado dos desenhos fosse feito

conforme os manuais de desenho clássico. Outro estranhamento ocorreu no Segundo

Grau, quando a professora apresentou um ateliê em que diversos materiais encontravam-

se espalhados um tanto caoticamente e simplesmente comunicou que cada aluno deveria

fazer o que quisesse.

Na faculdade, cursando Licenciatura em Educação Artística, o pesquisador

teve acesso aos primeiros livros de Ana Mae Barbosa e pôde descobrir novos

significados nessas duas experiências com aulas de Arte na escola. A primeira

professora, que exigia que o sombreado dos desenhos fosse realizado exatamente da

mesma forma por todos os alunos, foi percebida como uma professora que seguia o

método tradicional no ensino de Arte. Visando a cópia de modelos preestabelecidos, ela

seguia tendências que vinham do neoclassicismo, presentes na escola brasileira desde o

século XIX. A segunda professora passou a ser vista como praticante de uma

combinação entre as tendências de ensino de Arte conhecidas como laissez-faire e

tecnicista.

Por ocasião dos primeiros estágios em classes de educação infantil, como

professor de Pintura e Modelagem de crianças de quatro, cinco e seis anos de idade, o

pesquisador pôde redescobrir o ensino escolar de Arte. Nesse momento, colocou-se o

desafio de descobrir caminhos adequados para o ensino de Arte na escola, desafio vivido

até os dias de hoje, passados 25 anos.

Nos anos 80, tempo de atuação junto a movimentos sociais e sindicais,

estiveram presentes a atividade artística e a educação. Grafite, histórias em quadrinhos,

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semanas culturais, mostras de arte e diversas publicações alternativas faziam parte de

atividades cotidianas ao lado de quem lutava por melhores condições de vida.

No início dos anos 90, incentivado pela presença de Paulo Freire à frente da

Secretaria Municipal de Educação, o pesquisador volta à sala de aula e assume a

disciplina Educação Artística na Escola Municipal de Primeiro Grau Prof. Linneu

Prestes, no bairro de Santo Amaro, zona Sul de São Paulo, com classes de quinta a

oitava séries do ensino fundamental, além de classes de jovens e adultos no ensino

supletivo. Ali, renovou-se a ligação com a arte-educação e aprofundou-se o

compromisso com a educação, que apontou para o curso de Pedagogia, realizado na

Faculdade de Educação da USP. Nessa época, o pesquisador aproximou-se das propostas

da artista plástica Fayga Ostrower (1983).

Em 2002, amplia-se a experiência em arte-educação, dessa vez na Escola

Municipal de Ensino Fundamental Célia Regina Lekevicius, uma das famosas escolas

“de latinha”, localizada em um conjunto habitacional de moradores de baixa renda, junto

a uma favela. E, logo a seguir, também em uma escola particular de classe média alta no

município de Santo André.

Nessa experiência como professor de Arte, em salas de aula com crianças

de diferentes idades, em diferentes ambientes e classes sociais, foi possível identificar

muitas diferenças e, também, muitos problemas semelhantes.

São apresentados, a seguir, alguns desses problemas, observados na

experiência docente do pesquisador.

1.2) Algumas dificuldades.

Antes mesmo de entrar em sala de aula surgem dificuldades específicas

com as quais o professor de Arte tem que se defrontar: o ensino de Arte não é

reconhecido na escola no mesmo patamar de importância das outras disciplinas. A

disciplina Arte tem um status próprio, de certa forma inferior. É considerada como

atividade complementar e auxiliar e não como algo importante por si mesmo. Os

professores das outras matérias têm a expectativa de encontrar nas aulas de Arte apoio

para realizar a parte manual de suas atividades, como confeccionar mapas, gráficos e

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cartazes, compreendendo o professor de Arte como seu auxiliar. A comunidade escolar -

incluindo diretores, coordenadores e funcionários - pressiona o professor de Arte para

exercer o papel de decorador da escola e, muitas vezes, organizador de festas, em datas

comemorativas como Dia da Árvore, Dia das Mães, entre outras.

Em uma classe de adultos, no ensino supletivo, na qual havia se

estabelecido uma relação madura, enriquecida com amizade e colaboração, um aluno,

elogiando o professor, complementou os elogios com a observação de que era “uma

pena que (o professor) não lecionasse outra disciplina, como matemática ou português”.

Alguns alunos expressam a visão de que a aula de Arte é uma espécie de

diversão sem maior importância. Muitas vezes o pesquisador encontrou alunos que

mostravam displicência nas aulas de Arte justificando que “Educação Artística não

reprova”. Mesmo depois da implantação do sistema de ciclos na rede municipal de São

Paulo, visto como um sistema em que não existe reprovação em nenhuma disciplina, a

aula de Arte prosseguiu relegada pelos alunos à condição de disciplina de segunda

categoria.

As exigências de freqüência e de realização regular das atividades

propostas foram recebidas com estranheza, pois a aula de arte era compreendida,

especialmente por adolescentes de sétima e oitava séries, como uma aula apenas “para

relaxar”, em que não havia compromisso com nada.

Um colega, também professor de Arte, mostrou ao pesquisador as pinturas

realizadas pelos alunos no ano anterior e comentou que os alunos não valorizavam os

trabalhos, pois nem ao menos haviam ido buscá-los no final das aulas.

Na pré-escola mencionada, uma mãe de aluno, que parava seu carro em

frente à escola para buscar seu filho, ordenou que o menino jogasse fora o objeto

modelado em argila que ele, orgulhoso, lhe mostrava, “para não sujar o estofamento”.

Nas reuniões escolares com os pais, eles, muitas vezes, não se interessam

pelas aulas de Arte e, quando a mencionam, se limitam às reclamações relativas à

compra do material de Arte. Muitos alunos não trazem para a escola o material

necessário para as aulas de Arte, mesmo após o professor enviar bilhetes ao responsável

e em situações em que o poder aquisitivo das famílias não representava impeditivo. Mas,

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algumas vezes, os pais mostraram-se preocupados com o fato de seu filho estar

“gostando demais” de desenhar e pintar, pois essa profissão “não dá dinheiro”.

Essas reflexões levaram à consideração da questão do sentido do ensino de

Arte na escola. Arte na escola para quê? Qual o sentido de insistir em uma prática que

parece ser apenas tolerada e, muitas vezes, rejeitada?

O episódio relatado a seguir ajudou a direcionar ainda mais a busca de

sentido, focando essa busca de sentido na atividade do aluno. O sentido percebido pelos

estudantes nas atividades das aulas de arte pode mudar muito, influenciando de formas

diferentes seu comportamento e seu aprendizado.

1.3) O sentido das atividades dos alunos.

Uma experiência em sala de aula provocou a reflexão sobre o sentido das

aulas de Arte na prática dos alunos. O plano de aula previamente elaborado foi

modificado em função de uma solicitação dos alunos que instituía um novo sentido

para suas atividades.

O planejamento previsto pelo professor/pesquisador, para nove classes do

ensino fundamental, baseava-se no estudo dos elementos visuais, além de pintura em

guache. Depois de algumas semanas e após uma primeira exposição das pinturas dos

alunos, eles fizeram uma solicitação. Queriam fazer pintura em tela, acrescentando que

gostariam de “pintar pra valer”. Essa solicitação apareceu associada à intenção de

fazer dessas pinturas um presente para o Dia dos Pais e, também, à solicitação de que

o trabalho deveria ser com tema livre, isto é, que suas atividades não fossem limitadas

por prescrições do professor.

O planejamento foi mudado, incorporando o pedido dos alunos, pois se

desvelara um novo sentido para a produção artística dos alunos. Pintar “pra valer”

significava, ao mesmo tempo, utilizar o melhor material, ficar livre para pintar o que

quisessem e colocar a pintura no seu círculo de relações pessoais. Aparecia, assim, um

novo sentido para as atividades realizadas em sala de aula, mais amplo e pessoal,

ultrapassando o caráter de atividade escolar.

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A grande maioria dos alunos aderiu a essa atividade, em que se

mostraram muito comprometidos com suas obras, cobrando insistentemente o

momento de levar as pinturas para casa - o que foi feito após a documentação

fotográfica dos trabalhos realizados.

Não há, evidentemente, novidade na produção de um presente para o Dia

dos Pais nas aulas de Arte. O que chamou a atenção foi que a mudança no sentido da

atividade apareceu acompanhada de mudanças na atitude geral dos alunos. O

entusiasmo, o comprometimento, a exigência de liberdade para criar, a solicitação do

uso de um material de melhor qualidade (além da tela, foi utilizada tinta acrílica).

E a sutil indicação, na expressão “pra valer”, de que o que havia sido

realizado até agora não era considerado, ainda, arte, em seu sentido pleno: haviam sido

realizadas atividades orientadas pelo professor, exercícios voltados para a aplicação

expressiva e criativa dos elementos visuais. Para os alunos, eram atividades com

sentido de exercício escolar; talvez interessantes, mas, ainda, exercícios escolares.

A arte “pra valer”, ao contrário, era compreendida como uma atividade

livre, em que cada um poderia fazer o que quisesse. E, ao mesmo tempo, deveria estar

ligada à vida e à relação com o outro, no caso, à convivência familiar.

Nesse episódio evidenciou-se que o sentido, para o aluno, da atividade

que ele realiza distingue-se dos sentidos projetados pelo professor. Na medida em que

é o aluno que realiza sua atividade, é o sentido que ele vivencia que permite a

compreensão da atividade. É ali, no sentido vivido pelo aluno, que o ensino de Arte,

em grande medida, se realiza. A compreensão desses sentidos integra a compreensão

das relações que, nas aulas de Arte, estão sendo estabelecidas entre a criança e a arte.

1.4) A escola e o sentido vivido.

A dimensão do sentido implica perguntar pela intencionalidade das

crianças e jovens na realização das atividades nas aulas de Arte. Refere-se ao momento

da vivência em seu contexto: enquanto realiza suas atividades nas aulas de Arte, qual é

o sentido, para o aluno, dessas atividades?

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E, considerando que toda atividade existe em um contexto, como o

contexto da aula é percebido pelo aluno e integra o sentido de sua atividade?

Os professores de Arte, assim como os pesquisadores, concebem

diferentes objetivos para as aulas de Arte. A cada época, em diferentes contextos

sociais e sob influência de diferentes concepções didáticas, psicológicas ou filosóficas,

as atividades de Arte na escola são desenvolvidas pela instituição escolar como um

meio para atingir um determinado fim. Esse fim é concebido como algo posterior à

realização das atividades e externo aos seus resultados práticos imediatos. Essa

finalidade do ensino de Arte é concebida como um conjunto de objetivos que serão

atingidos após anos de atividades. As aulas são concebidas como instrumentos para

chegar a esses objetivos.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais – Arte, indicam, entre os objetivos

do ensino de arte, que, “ao final do ensino fundamental” os alunos devem ser capazes

“expressar e saber comunicar-se em artes, mantendo uma atitude de busca pessoal e/ou

coletiva, articulando a percepção, a imaginação, a emoção, a sensibilidade e a reflexão,

ao realizar e fruir produções artísticas” (BRASIL, 2000, p. 53). Por sua vez, os

professores, em sua atuação nas escolas, definem seus objetivos e esperam, de alguma

forma, que as atividades que propõem nas aulas proporcionem uma certa aproximação

dos alunos com esses objetivos.

Com sua atenção voltada para os objetivos educacionais, as autoridades

escolares e os professores podem perder de vista a vivência do aluno.

Ao buscar o sentido da conduta dos alunos nas aulas de Arte, não

perguntamos pelo objetivo educacional estabelecido pelo professor, pela autoridade

escolar ou pelos pesquisadores. O sentido da atividade dos alunos deve ser buscado no

próprio aluno, na criança ou jovem, que participa da aula e das atividades

desenvolvidas em sala de aula. O sentido está na intencionalidade dos estudantes na

realização dessas atividades e proporciona uma visão da compreensão que a criança

tem de sua atividade.

A pesquisa do sentido deve revelar o que é a aula de Arte para o principal

interessado, que é o aluno. Implica descobrir qual a compreensão que o estudante tem

dessas aulas.

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Para buscar o sentido das aulas de Arte deve-se considerar o contexto em

que elas se realizam: como é a aula, o que é proposto ao estudante, como ele

compreende o conjunto da situação que ele está vivendo e como ele realiza a atividade.

A importância dessa questão relaciona-se, evidentemente, com a questão

dos objetivos, mas não se reduz a ela. A questão dos objetivos é, de certa forma,

exterior aos estudantes, na medida em que eles não participam de sua determinação.

Os professores e as autoridades de ensino não podem determinar tudo o que irá

acontecer nas aulas. Os alunos articulam seus próprios sentidos, na sua atividade. Os

professores configuram as linhas gerais de uma situação, mas o sentido desta situação

para os alunos não está sob seu controle.

Um professor pode, por exemplo, determinar que vai apresentar aos

alunos as características do impressionismo e mostrar aos seus alunos algumas

reproduções de obras de Monet. Ele pode, por exemplo, ter como objetivo a

“articulação entre percepção e reflexão na fruição das obras de arte” (BRASIL, 2000,

pág. 53). Mas, se essa atividade aparecer para os alunos com o sentido de uma espécie

de tarefa escolar desinteressante e eles realizarem essa atividade com má-vontade,

dispersão, desatenção ou incômodo, em uma atitude desleixada ou debochada, esse

objetivo, pretendido pelo professor e pela autoridade educacional, possivelmente não

será atingido. Talvez, nesse caso, o resultado seja oposto ao objetivo, com o

desenvolvimento de uma rejeição às pinturas, ao impressionismo ou até mesmo à obra

de Monet. Essa situação hipotética pode parecer extrema, mas não é estranha à

realidade da escola. É claro que, em uma situação como essa, há nuances, e não parece

que todos os alunos tenham, nesse tipo de atividade, o mesmo comportamento. Daí a

importância de estudar o quê, do ponto de vista dos alunos, acontece nas aulas de Arte.

Os objetivos estabelecidos pela autoridade educacional e pelos

professores remetem ao sentido do planejamento escolar, mas não determinam o

sentido das aulas para os alunos. O sentido das atividades do aluno só pode ser

encontrado na sua própria vivência, pois é dele a atividade. Saber quais são os sentidos

vividos pelos alunos nas aulas de Arte pode ajudar a verificar se existe alguma

correspondência entre aqueles objetivos e aquilo que acontece na prática vivida pelos

estudantes em sala de aula.

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Na investigação do sentido das aulas de Arte na atividade dos alunos, a

aula de arte deve ser entendida como um fenômeno, como algo que se manifesta para o

olhar do pesquisador. Nessa manifestação estão presentes os estudantes e, também, os

professores e a metodologia que adotam, além da totalidade do contexto escolar:

aulas de Arte na escola não são o mesmo que aulas de Arte no museu, no ateliê de um

pintor, na faculdade, em um curso particular ou em casa. Na escola, as aulas de Arte

entram em relação com esse contexto escolar, sua disciplina, suas regras, seus valores

e todo o ambiente da escola.

E as aulas de Arte, por sua vez, não são o mesmo que as outras aulas, das

outras disciplinas ou matérias: elas têm a sua história própria, suas referências sociais e

culturais, seu espaço e seu horário próprios, seus professores, que não são iguais a um

modelo de professor, mas que são professores de Arte e não de outras matérias, com

seu próprio perfil e sua intencionalidade própria de professor de Arte. O contexto

social também está presente: os valores e preconceitos relativos à arte, que se

manifestam na sociedade, fazem parte, também, do contexto em que os estudantes

estão imersos quando realizam as atividades de arte, na escola.

A questão do sentido da atividade do aluno em sala de aula tem, com

certeza, importância para todas as disciplinas e não apenas no ensino de Arte, pois

pode contribuir para uma compreensão mais ampla das dificuldades com que se

debatem os professores para verem atingidos seus objetivos e realizadas suas

expectativas de educadores.

No ensino de Arte essa importância é mais direta e de mais fácil

compreensão. Afinal, a Arte diferencia-se das demais disciplinas por seu forte

componente prático, de tal modo que não pode ser compreendida apenas pelo domínio

de informações ou conhecimentos. No desenvolvimento da articulação entre

percepção, imaginação, emoção, sensibilidade e reflexão para realizar e fruir

produções artísticas (BRASIL, 2000, p.53), não basta informar ao estudante sobre as

características, por exemplo, do cubismo: se ele não vivenciar, de algum modo, a

criação ou a fruição de obras cubistas, esses objetivos não serão atingidos.

No desvelar-se do fenômeno, na descoberta do sentido das atividades

realizadas na aula de arte para os estudantes que dela participam, poderemos

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compreender de que forma essa aula se realiza. Na descoberta do como e do para quê

o estudante conduz sua atividade na aula de Arte, na busca da compreensão que ele

tem dessa atividade, na revelação da intencionalidade que ele imprime às suas

atividades nas aulas de Arte - poderemos descobrir qual o sentido que a aula tem para

os alunos e assim, perceber o que, para eles, são essas aulas.

1.5) Aulas de Arte, atividades de desenho.

Considerando que são muitas as modalidades artísticas e que podem ser

diferentes os sentidos nas diferentes atividades artísticas realizadas na escola - música,

teatro, dança, fotografia, modelagem, desenho e pintura, entre outras – destacamos

que esse estudo é focado no ensino de Artes Visuais, especialmente artes plásticas,

área de atuação do pesquisador. Desse modo, foi buscado um contexto escolar em que

essa modalidade artística fosse abordada pelo professor, resultando em uma pesquisa

em que todas as atividades observadas estavam mais próximas ao desenho e, de certo

modo, à pintura, do que a outras linguagens artísticas.

Utilizaremos, muitas vezes, as expressões “ensino de Arte” e “aulas de

Arte”. O leitor, pelo contexto, poderá perceber facilmente se é feita referência à arte

em geral ou às artes visuais, especialmente ao desenho e à pintura. Todas as vezes que

nos referirmos a este estudo, à pesquisa realizada e às aulas observadas, estaremos nos

referindo às artes visuais, especialmente ao desenho.

O leitor poderá, eventualmente, ampliar o sentido das discussões

apresentadas para outras linguagens artísticas. Mas não temos a pretensão de indicar

quais comentários, conclusões ou sentidos desvelados pela pesquisa podem referir-se

ou adequar-se de algum modo também a outras atividades artísticas. Uma pretensão

como essa extrapolaria os limites desse estudo. O foco da pesquisa e as discussões

apresentadas limitam-se, portanto, às atividades de artes visuais, especialmente ao

desenho e à pintura, no contexto observado.

Na busca do sentido das atividades de Arte na escola, explicitar-se-á e

considerar-se-á, no capítulo segundo, a história do ensino de Artes Visuais no Brasil,

com diferentes influências que se manifestam no agir dos professores. No capítulo

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terceiro serão apresentados, sem a pretensão de esgotar as fontes, diferentes sentidos

que se expressam entre aqueles que, de alguma forma, levam o ensino de Arte até a

escola: autoridades educacionais, autores, pesquisadores e professores. A principal

referência desse trabalho é Merleau-Ponty, com sua psicologia da criança e sua visão

fenomenológica do sentido de Ser, que será estudado no quarto capítulo,

“Desenvolvimento e arte em Merleau-Ponty”.

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Parte II – FUNDAMENTAÇÃO

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CAPÍTULO 2 – A história do ensino de Artes Visuais no Brasil.

Esse capítulo aborda a história do ensino de Artes Visuais no Brasil,

especialmente do Desenho e da Pintura, mostrando brevemente as diferentes propostas

que marcaram sua presença na escola brasileira. Seu estudo é importante porque indica

os sentidos do ensino de Arte que chegam, pela tradição, aos professores, à escola e à

sociedade, integrando o contexto em que as atividades dos alunos se realizam.

2.1) Desenho geométrico e neoclassicismo.

Havia, no Brasil, até a chegada da Missão Francesa em 1816, uma arte

inspirada em modelos europeus que se diferenciou em um estilo próprio. Marcada,

inicialmente, pela influência dos modelos renascentistas e, logo a seguir, pelo barroco e

rococó, constitui-se um barroco brasileiro, emocional, sensual e rústico. Nessas

manifestações artísticas havia a marcante presença das camadas populares, com

mestiços e mulatos iniciando-se na prática artística através das missões jesuíticas

(BARBOSA, 1995).

A educação, controlada pelos jesuítas até sua expulsão em 1759, estava

focada na gramática, na retórica e nas humanidades. As atividades manuais não eram

consideradas dignas de homens livres e, portanto, destinavam-se apenas a escravos e

índios. As escolas dos jesuítas estavam voltadas para as classes dirigentes e filhos dos

colonos, excluindo os mulatos e pardos. Sua atuação catequética junto aos índios

propiciou que a música, o canto e as artes plásticas européias formassem aqui seus

artistas e seu público. As esculturas e pinturas eram inspiradas principalmente em

artistas renascentistas, com a presença, posterior, da influência do barroco. Também

figuras relacionadas à cultura indígena eventualmente faziam-se presentes (FERRAZ,

1983, p. 34-38).

A arte brasileira, assim, iniciou-se com a atividade de artistas oriundos das

camadas mais pobres da população, especialmente mestiços, formados em oficinas de

artesãos e sob influência dos padres jesuítas.

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Com as reformas pombalinas, introduziu-se o ensino de Geometria e de

Desenho Artístico nas escolas brasileiras. O Seminário Episcopal de Olinda, fundado em

1800 em substituição ao Colégio Real dos Jesuítas, incluía o Desenho em seu currículo.

Praticava-se o desenho com modelo vivo, mas o modelo servia apenas como referência

visual, pois a representação gráfica deveria seguir a idealização de perfeição dos padrões

neoclássicos.

Com a chegada da Missão Francesa, os ideais, regras e padrões rígidos do

neoclassicismo consolidaram sua presença na arte brasileira e no ensino de Arte nas

escolas. Mas esse processo deixou seqüelas: havia uma certa animosidade contra os

artistas franceses, identificados que eram com o bonapartismo. A pesquisadora Ana Mae

Barbosa percebe no choque dos padrões neoclássicos com a tradição mais popular do

barroco brasileiro uma das origens do preconceito vigente no Brasil em relação à arte,

identificada como um mero adorno, próprio de gente afetada:

Afastando-se a arte do contacto popular, reservando-a para the happy few e os talentosos, concorria-se, assim, para alimentar um dos preconceitos contra a arte até hoje acentuado em nossa sociedade, a idéia de arte como uma atividade supérflua, um babado, um acessório de cultura. (BARBOSA, 1995, p. 20)

No século XIX e primeiras décadas do século XX o ensino de Arte na

escola primária e secundária brasileira limitava-se ao ensino de Desenho. A influência

do neoclassicismo, além do desenho da figura humana idealizada, trouxe também o

desenho de ornatos, inspirados principalmente na arquitetura.

No final do século XIX, época do surgimento da indústria nacional, o

grande crescimento industrial dos EUA causou admiração no país, de tal modo que

muitos políticos e educadores defenderam que o Brasil ampliasse o ensino de Desenho

nas escolas e incorporasse, como americanos, ingleses, austríacos e franceses, o desenho

industrial. O desenho artístico e o desenho industrial foram propostos como

complementares e necessários ao desenvolvimento do gosto e da técnica, de forma a

criar condições para o aperfeiçoamento da indústria nacional.

Nesse processo, tiveram ampla presença as forças políticas liberais, com

Rui Barbosa à frente, que defendeu insistente e meticulosamente, inclusive em seus

pareceres parlamentares e campanhas políticas, a importância do ensino do Desenho

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artístico e técnico para o desenvolvimento industrial do país. Os liberais viam no ensino

de Desenho uma importância muito grande na formação para o trabalho, que incluía os

aspectos técnicos e artísticos implicados na indústria e, também, o desenvolvimento da

inventividade, que deveria objetivar-se com o desenho.

Rui Barbosa, inspirando-se na metodologia adotada na Áustria e na

Inglaterra, formulou uma série de recomendações para o ensino de Desenho na escola

primária brasileira, algumas delas com grande influência nas duas primeiras décadas do

século XX: nunca fazer correções no próprio desenho do aluno; iniciar pelo desenho à

mão livre de formas geométricas; orientar o desenho para a estilização das formas;

reduzir as formas naturais a elementos geométricos; utilizar a rede estigmográfica para

fazer reproduções; iniciar o desenho de modelos por estudos comparativos de suas

partes e do todo; utilizar o desenho com tempo pré-determinado; utilizar o Desenho

como auxiliar a outras disciplinas. Rui Barbosa priorizava o desenho à mão livre e

opunha-se, no ensino primário, ao desenho geométrico com régua e compasso. O aluno

deveria copiar à mão livre os desenhos executados à sua frente pelo professor

(BARBOSA, 1995, p. 58-60).

O romantismo também influenciou o ensino de Arte no Brasil desde o

século XIX, trazendo as práticas do desenho de expressão, desenho de invenção e

desenho de modelos naturais. As idéias românticas da arte como educação do

sentimento e formação moral influenciaram liberais brasileiros como André Rebouças.

A identificação da beleza natural com elevados sentimentos morais embasava a prática

de desenhar frente à natureza, introduzida no Brasil ainda no século XIX.

Em 1882 é publicado o primeiro manual de Desenho Geométrico do país.

Escrito por Abílio César Pereira Borges e dirigido às escolas primárias, é reeditado

seguidamente até 1959. Esse manual transpôs para o Brasil o método de Walter Smith,

implantado nos EUA, que concebia o desenho geométrico como o principal fundamento,

necessário tanto para o desenho industrial como para o desenho artístico. Os estudos de

Desenho iniciavam-se pelas linhas retas, passando, em seguida, aos ângulos e figuras

geométricas, seguindo para o desenho de linhas curvas, sólidos geométricos e objetos

simples, e concluindo por elementos arquitetônicos inspirados na tradição neoclássica.

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O positivismo de Augusto Comte também influenciou a educação brasileira

e teve em Benjamim Constant sua maior expressão. Benjamim empreendeu reforma

educacional que prestigiou a formação científica. À Arte era atribuído o papel de

contribuir com o estudo das ciências. As aulas de Desenho, conforme os educadores

positivistas, deveriam propiciar um melhor entendimento das idéias e dos conceitos.

Predomina o desenho geométrico com instrumentos e a expressão estética passa a ser

baseada na cópia de estampas, prática amplamente difundida durante muitos anos. Do

ponto de vista estético, o positivismo toma a forma de uma estética realista, segundo a

qual a concepção de evolução mental do homem para a ciência corresponde, na arte, à

tendência evolucionista para o realismo. A arte, para os positivistas, também deve

colaborar para a coesão social, expressando valores gerais da coletividade que propiciem

a superação do individualismo.

Essas influências não retiraram do currículo escolar o desenho de ornatos,

trazido pela Missão Francesa, que permanece sendo amplamente praticado na escola

secundária. O desenho industrial propriamente dito, “baseado na expressão direta dos

objetos fabricados pela máquina” (BARBOSA, 1995, p. 71) não chega a difundir-se

amplamente, predominando a prática do desenho de ornamentos de influência

neoclássica, presente fortemente na arquitetura e, também, nos padrões para a indústria.

A Reforma Carlos Maximiliano, de 1915, buscou disciplinar e padronizar a

educação brasileira, ampliando a fiscalização e o rigor nos exames de admissão e

vestibulares. Quanto ao ensino de Desenho, implantou uma prática citada até hoje como

responsável pela desvalorização do ensino de Arte na escola: dispensou a exigência de

nota mínima nos exames de Desenho, no mesmo momento em que aumentou a

exigência de notas e exames para as demais disciplinas. Acelerou-se, então, o processo

de aproximar o estudo de Desenho à Geometria, na tentativa de valorizar a disciplina.

Muitos daqueles que defendiam que se priorizasse o valor estético do Desenho acabaram

se submetendo a uma estética geometrizante.

Nos anos 20, o ensino de Arte na escola primária paulista recebe a

influência das pedagogias modernas e da psicologia, voltando-se para o desenho do

natural, abolindo os ornatos e as cópias e implantando a modelagem e a xilogravura. São

influências de técnicas pedagógicas norte-americanas e da Psicologia pedagógica.

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A partir de 1914, o professor Ugo Pizzoli, de Modena, Itália, convidado

para assumir a cadeira de Psicologia Aplicada à Educação criada na Escola Normal de

São Paulo, ministrou vários cursos e instalou o laboratório de Psicologia. Pizzoli

desenvolveu, juntamente com professores brasileiros, pesquisas sistemáticas em

Psicologia da Criança que contribuíram para a importante influência da psicologia

moderna sobre a prática pedagógica no Brasil, inclusive no ensino de Arte. Desses

trabalhos destacam-se o de Adalgiso Pereira e de Carlos Gomes Cardim, que estudaram

o grafismo infantil. As pesquisas de Ugo Pizzoli e os estudos realizados sob sua

orientação contribuíram para a superação dos métodos tradicionais baseados quase que

exclusivamente na cópia e para a disseminação de uma postura de respeito ao desenho

da criança:

Podemos concluir que a aproximação inicial do Desenho com a Psicologia no Brasil resultou principalmente na configuração de uma atitude de respeito para com o grafismo da criança, na idéia do desenho infantil como um produto interno refletindo a organização mental da criança, a estruturação de seus diversos aspectos e seu desenvolvimento. (BARBOSA, 1995, p. 111 e 112)

O ensino de Arte em São Paulo, a partir da década de 20 do século passado,

passou a considerar aspectos como a coordenação motora e o desenvolvimento da

criança, a valorizar a busca de modelos mentais ou internos, a imaginação, os temas do

cotidiano e as preferências da criança. A Semana de Arte Moderna de 1922, e as

influências do expressionismo e das correntes da arte contemporânea, contribuíram para

introduzir os “métodos de ensino de Arte baseados no deixar fazer que valorizava o

expressionismo e espontaneísmo da criança” (BARBOSA, 1995, p. 112). Mas as

mudanças modernizantes no ensino de Arte na escola brasileira só aparecem com maior

impulso e de forma mais ampla com o Movimento da Escola Nova.

2.2) A Escola Nova e a influência de Dewey.

O Movimento Escola Nova caracterizou-se por uma série de reformas

educacionais realizadas no país entre 1927 e 1935 em meio a uma ampla discussão de

caráter liberal-democrático e desenvolvimentista. Com esse movimento o Brasil

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acompanha, a seu modo, a tendência de renovação educacional amplamente difundida

no mundo, a partir da Europa e Estados Unidos. Inspirado principalmente em Dewey,

Claparède e Decroly, teve em Anísio Teixeira sua maior expressão (BARBOSA, 2001).

No Rio de Janeiro, o Movimento Escola Nova empreendeu mudanças no

ensino de Arte fundamentadas em proposições de Nereu Sampaio e tiveram ampla

influência em todo o país.

Nereu Sampaio parte de pesquisas sobre o desenho espontâneo da criança,

como as de Luquet, para encontrar em Dewey o reconhecimento do real “valor

educativo da linguagem gráfica das crianças” (SAMPAIO apud BARBOSA, 2001, p.

78). A concepção de auto-expressão em Dewey está distante das concepções de ensino

da Arte como livre expressão das emoções e como preservação de uma espontaneidade

individual. Para Dewey, o aluno deve fazer um trabalho de observação da natureza,

enquanto o professor, ao mesmo tempo em que trabalha para manter o interesse e

respeita a espontaneidade, deve fazer sugestões e avaliar o trabalho do aluno. Mas,

enquanto Dewey valoriza a imaginação como superação da experiência comum,

Sampaio adota um viés positivista, subordinando a imaginação à observação e

concebendo um ensino de Arte que incorpora a espontaneidade, mas subordina-a à busca

da representação realista. A importância da observação e o respeito à espontaneidade

integram, em Nereu Sampaio, um contexto em que a manutenção do interesse deve

impulsionar o desenvolvimento em direção à inteligência reflexiva.

Sampaio introduz diversos procedimentos, alguns inspirados em Dewey,

como o de propor um desenho de uma árvore e, em seguida, indicar para o aluno a

observação detalhada de árvores, comparando-as com o seu desenho para, finalmente,

desenhar árvores novamente, realizando um trabalho mais rico em detalhes. Segundo

Sampaio, o desenho direto da observação só deveria iniciar-se aos 10 anos de idade. O

processo que integra observação com livre expressão, espontâneo-reflexivo, proposto

por Nereu Sampaio e implantado no Rio de Janeiro na reforma comandada por Fernando

de Azevedo entre 1927 e 1929, teve ampla difusão no país e até hoje é utilizado em

escolas brasileiras.

Outra reforma, integrada ao Movimento Escola Nova, foi realizada em

Minas Gerais, conhecida como Reforma Francisco Campos. Em 1929, vem para o

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Brasil, juntamente com equipe de grande prestígio contratada na Europa, M. Artus

Perrelet, que orientou o ensino de Arte, nessa Reforma. Perrelet trabalhava no Instituto

Jean-Jacques Rousseau, em Genebra, que se tornou famoso pelas pesquisas em

epistemologia genética empreendidas por J. Piaget e que adotava, à época, uma postura

eclética com relação aos métodos pedagógicos (BARBOSA, 2001, p. 104 e 105).

Na concepção de conhecimento de M. Artus é atribuída grande importância

ao movimento, que deve referenciar também o desenho. O desenho é concebido como

uma expressão simbólica da própria vida em movimento, uma expressão intelectual da

experiência. Sua abordagem caminha entre a epistemologia pragmática deweyiana e um

certo recorte fenomenológico. A experiência integra o conhecimento com a vida, pois o

conhecimento simbólico “tem que tornar-se parte de seu organismo” (PERRELET apud

BARBOSA, 2001, p.110). Além disso, para Artus Perrelet, o desenho resulta “da

comunhão do indivíduo com o mundo e, mais especificamente, com o objeto para o qual

dirige sua atenção” (BARBOSA, 2001, p. 111).

A metodologia de ensino de Desenho trazida por Perrelet parte do estudo

da expressividade e do simbolismo de elementos gráficos, “seu propósito é sistematizar

o valor e a significação das linhas” (BARBOSA, 2001, p. 114). Por exemplo, no estudo

da linha curva, concebida como elemento de grande importância, Perrelet sugere que se

explique às crianças sua expressividade tomando exemplos da vida e da natureza,

realizando exercícios em que as curvas do corpo fiquem evidentes. O corpo é sempre

utilizado: “O uso da expressão corporal é ponto de partida de todas as aulas de Perrelet

porque, segundo ela, o corpo é a primeira forma de conhecimento” (BARBOSA, 2001,

p. 118). A representação não tem um papel importante, sendo mais importante a

expressão do desenho, devendo ser evitada a valorização excessiva da perfeição do

grafismo e comentários de designação das figuras desenhadas. Perrelet, ao contrário,

“reforça a importância de ampliar o significado do objeto que está sendo desenhado e de

flexibilizar a significação do elemento gráfico” (BARBOSA, 2001, p. 119). O corpo, o

sentimento, a percepção, a observação criteriosa e sensível do espaço circundante e o

movimento serão utilizados para o estudo dos elementos do desenho, como as linhas, as

cores, o espaço, o ritmo, as texturas, a luz e a sombra. A observação serve à expressão:

“captar e conferir expressividade aos elementos do desenho e dos objetos é a

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preocupação central de seu estudo” (BARBOSA, 2001, p. 125). Perrelet combateu

veementemente a geometrização no ensino de desenho. O método de M. Artus alcançou,

à época, prestígio significativo, ampliado com publicação de seu livro (O desenho a

serviço da educação. Rio de janeiro, Editora Vilas Boas & Cia, s/d) e de diversos artigos

e entrevistas na imprensa. A atuação das professoras que estudaram com Perrelet em

Minas Gerais estendeu a influência de suas propostas.

A proposta de simplificação expressiva do desenho através da vivência e da

imaginação, foi substituída, na Reforma de 1931, pelo procedimento de cópia com base

em formas simplificadas e padronizadas, desenhadas pelo professor. Era o desenho

pedagógico, uma contrafação da proposta de Perrelet, que obteve ampla penetração nas

escolas brasileiras, especialmente entre as professoras dos quatro primeiros anos do

ensino fundamental, através das orientações que recebiam no chamado Curso Normal.

Conforme ressaltado por Ana Mae Barbosa, o Movimento da Escola Nova

referenciou-se em Dewey, mas adotou uma interpretação redutora de suas concepções.

Assim aconteceu também nas reformas empreendidas em Pernambuco e em São Paulo.

A concepção de instrumentalidade da arte, que Dewey fundamentou na estética e seu

caráter necessariamente educativo ligado à educação da percepção, foi dirigida pelo

Movimento Escola Nova para a instrumentalidade educacional no apoio às lições das

diferentes matérias. A idéia de arte como significado foi reduzida à idéia de arte como

conhecimento, que colocou a arte como forma de elaboração de conhecimento

discursivo, como complemento e apoio ao conceito - desconsiderando-se a concepção

deweyiana de arte como experiência que contém significados para além do

conhecimento.

O aspecto estético, nas concepções filosóficas de Dewey, permeia toda a

experiência, de modo que toda experiência assume um aspecto formal, como uma

estrutura (BARBOSA, 2001, p. 156-158). Mas, na Escola Nova, assim como na Escola

Progressiva nos EUA, a concepção de Dewey de arte como experiência consumatória foi

entendida como arte como experiência final.

Nos métodos propostos pela Escola Nova destaca-se a proposição de que as

lições devem desenvolver-se a partir de um projeto, um tema ou um problema. No

planejamento das atividades escolares, uma das disciplinas escolares situava-se como

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principal referência da experiência empreendida, fornecendo os conceitos centrais.

Procurava-se, também, ampliar a compreensão da experiência com o estudo da

incidência das demais matérias na experiência, geralmente na parte final das atividades.

A arte aparece sempre entre essas matérias complementares, no final do projeto, e nunca

como eixo central da experiência, no qual alternam-se as demais disciplinas escolares:

A arte está sempre entre as “outras disciplinas”, enquanto aritmética, geografia, história e história natural se revezam como sede da experiência central. São disciplinas propositoras de experiência, enquanto a arte é meramente responsiva. (BARBOSA, 2001, p. 150)

Havia, também, a aula de Desenho, com seu próprio horário. Para essas

aulas, a metodologia adotada pelas reformas da Escola Nova orientava os professores a

respeitar a capacidade técnica e a interpretação da criança. As orientações do professor

deveriam ser feitas tendo por referência o desenho realista, sendo que as correções

deveriam guiar a observação do aluno para que nos próximos trabalhos apresentasse

uma representação mais fiel da realidade. Praticava-se o desenho espontâneo orientado

pelo tema e, também, o desenho de observação. Havia, também, o desenho de

imaginação, o desenho com tema livre, o desenho de interpretação de histórias, o

desenho de ilustração de trabalhos escritos e o desenho de apoio a outras disciplinas.

Todos essas práticas permanecem presentes nas escolas brasileiras até os dias atuais.

2.3) Arte como expressão na Escolinha de Arte do Brasil.

Em 1948, por iniciativa do caricaturista Augusto Rodrigues, foi criada, no

Rio de Janeiro, a Escolinha de Arte do Brasil, orientada, principalmente, pela intenção

de fazer a educação através da arte, fundamentando a atividade artística na livre

expressão. Essa proposta rapidamente difundiu-se pelo Brasil constituindo um

movimento, o MEA – Movimento Escolinhas de Arte, com dezenas de Escolinhas de

Arte que foram sendo criadas pelo país, nas principais capitais e em muitas cidades do

interior. Nas palavras de Noemia Varela, fundadora, em 1953, da Escolinha de Arte do

Recife:

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Na minha ótica, é um movimento de organização não-formal, alternativo, saído do ventre da Escolinha de Arte do Brasil, refletindo, por isso mesmo, o que tem de inconcluso e criativo o projeto de educação criadora desenvolvido por essa Escolinha. E, nesse sentido, a partir de 1948, posso dizer que o Movimento Escolinhas de Arte – MEA atravessa a própria arte-educação que vem sendo construída, no afã visionário de se fazer inovadora, de chegar a um agir e um saber desejosos e possíveis de recriação, no âmago do processo educativo brasileiro. (VARELA apud AZEVEDO, 2000, p.27)

O Movimento Escolinhas de Arte chegou a cerca de “140 escolinhas

espalhadas ao longo do território nacional” (AZEVEDO, 2000, p. 25) e constituiu-se

como um movimento não oficial e, portanto, não integrado ao sistema escolar brasileiro.

Mas teve uma grande influência em toda a arte-educação do país: pelas diferentes

Escolinhas de Arte passaram, participando dos ateliês e cursos, além de milhares de

crianças e adolescentes, muitas professoras e futuras professoras que levaram as práticas

e propostas do MEA para escolas de todo o país. Desse modo, podemos considerar que,

de 1948 até o início da década de 1970, com a criação das licenciaturas em Educação

Artística, o MEA constitui-se na principal nova influência sobre o ensino de Arte no

Brasil.

O Movimento Escolinhas de Arte incorporou muitas concepções

educacionais da Escola Nova. Helena Antipoff, assistente de Claparède em Genebra que

veio para o Brasil em 1929, contratada pelo Governo de Minas Gerais para organizar o

Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento em Belo Horizonte, foi uma

grande apoiadora e inspiradora da Escolinha de Arte do Brasil, entrosada que estava

com “as idéias e a prática de Augusto Rodrigues” (BRASIL, 1980, p. 19). O próprio

Anísio Teixeira, principal liderança do Movimento Escola Nova, apoiou ativamente a

Escolinha de Arte do Brasil: professores de todo o Brasil que iam ao Rio de Janeiro

participar dos cursos de aperfeiçoamento do INEP (Instituto Nacional de Estudos e

Pesquisas Educacionais, órgão do MEC que foi dirigido por Anísio Teixeira de 1952 a

1964), faziam os estágios em Arte-Educação na Escolinha de Arte do Brasil

(AZEVEDO, 2000, p. 63). Além disso, “Anísio era presença constante nos cursos,

conferências, exposições, almoços e festividades da Escolinha. Mobilizava recursos

humanos e financeiros nos vários momentos em que a EAB esteve perigando”

(BRASIL, 1980, p. 62). Esses e outros educadores do Movimento Escola Nova

constituíram-se em grande influência sobre os fundadores da Escolinha de Arte do

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Brasil e participantes do MEA de todo o país, que se apropriaram, assim, de concepções

inspiradas em Dewey, Claparède e Decroly, conformando, no Movimento Escolinhas de

Arte, a tendência de uma educação ativa, democrática, centrada no aluno e no seu

interesse, propiciadora da expressão do aluno e voltada para o desenvolvimento pleno da

individualidade. É o próprio Anísio Teixeira quem esclarece os objetivos da Escolinha

de Arte:

a) a vivência e a alegria de criar, de realizar, por si só, sem auxílio alheio, algo de concreto e que é valorizado pelo adulto (que o expõe);

b) a possibilidade de exprimir desejos, preocupações, alegrias, conflitos, inquietudes [...];

c) adaptação ao real – a suas limitações exigidas pela necessidade de lidar com instrumento e material fixados que importam em dificuldades a vencer [...];

d) a capacidade de melhor compreender a si próprio e aos demais, pela penetração no mundo subjetivo que a arte permite;

e) o espírito de disciplina, adquirido na situação real mais favorável, pois que a disciplina estética do ritmo, da proporção, do equilíbrio é uma disciplina natural [...];

f) o desenvolvimento de aspectos da personalidade que na educação tradicional são inteiramente abandonados, relativos à sensibilidade, ao sentimento, à emoção. (TEIXEIRA apud BRASIL, 1980, p. 63)

O Movimento Escolinhas de Arte, recebeu sua maior influência de Herbert

Read (AZEVEDO, 2000, p. 53). Herbert Read visa, em sua proposta de educação pela

arte, a reconstituição da unidade psicológica primordial do homem, destruída pela nossa

civilização. Tal unidade, que se estabelece em um outro modo de pensar, seria a “fonte

de harmonia social e de felicidade individual”. Read, diante de

[...] uma consciência dividida, um mundo feito de forças discordantes, um mundo de imagens divorciadas da realidade, de conceitos divorciados da sensação, da lógica divorciada da vida [...] [em que] mesmo a nossa arte foi invadida por atitudes intelectuais que destroem a sua vitalidade orgânica [...] [sugere] em oposição a toda a tradição lógico-racionalista [...] um processo mental que atinge a sua mais elevada eficácia na criação da obra de arte[...] que defende a unidade primária da percepção e do sentimento [...] [e que] se desenvolve na unidade de sensibilidade e razão. (1982, p. 90)

A concepção de Herbert Read de educação pela arte projeta o sentido de

uma reorganização cultural que liberte o homem da fragmentação psicológica trazida

por um pensamento exclusivamente lógico. Seu objetivo é uma valorização do

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sentimento, da sensibilidade e da percepção que, juntamente com a razão, deveriam

constituir o próprio núcleo do pensamento humano.

O caminho para isso é a educação através da arte. Sua proposta pretende

alcançar a harmonia social através da obtenção de uma “superioridade moral e

intelectual” que dispense as formas mais autoritárias de educação, pois, para ele, a

educação autoritária produz um comportamento instável, baseado no medo e “a

verdadeira disciplina é um modelo espontâneo de comportamento” que encontra na

educação estética o seu melhor caminho. Na proposta de Read, o professor deve “criar a

atmosfera de espontaneidade duma feliz indústria infantil”, em que a única exigência é

uma relação adequada entre professor e aluno. Nessa relação, o professor deve adotar,

ao mesmo tempo, o seu próprio ponto de vista e o ponto de vista do aluno, de modo a

levar a relação para a compreensão e para a reciprocidade, evitando a mera amizade,

pela qual o aluno é levado a adotar o ponto de vista do professor (READ, 1982, p. 349-

350 e 354).

Nesse processo, o aluno deve ter condições para realizar a atividade de

livre expressão, que é compreendida por Read como uma expressão “relativamente

indireta e aparentemente não destinada a assegurar a satisfação de uma necessidade

imediata”, que ocorre na espontaneidade, ou seja, sem constrangimento. Essa ausência

de constrangimento não é absoluta, pois o autor considera que há um certo

constrangimento no próprio ato de comunicação (READ, 1982, p. 136 e 138).

A livre expressão, para Read, não é o mesmo que ‘auto-expressão’,

considerado por ele um termo “confuso”, porque a “auto-expressão é sempre expressão

social”. Para Read, “a expressão não é uma expansão por si só, ou o correlativo

necessário da percepção: é essencialmente uma abertura que exige resposta de outros”.

As crianças não usam seus desenhos “como a expressão de suas imagens perceptuais,

nem dos seus sentimentos reprimidos, mas antes como um ‘sensor’, uma extensão

espontânea para o mundo exterior, à primeira tentativa, mas capaz de se tornar no fator

dominante no ajustamento do indivíduo à sociedade”. Pela livre expressão, a arte

estabelece, já “à primeira tentativa” uma relação do indivíduo com o mundo, que

deveria, para o autor, exercer um papel muito mais importante, colocando em prática a

sua proposta de educação pela arte (READ, 1982, p. 200).

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Outro importante pesquisador em arte-educação que influenciou o

Movimento Escolinhas de Arte foi Viktor Lowenfeld. Para ele, a educação artística é

essencial na educação e pode significar “a diferença entre um indivíduo criador e

flexível e um outro que não tenha capacidade de aplicar o que aprendeu, carente de

recursos íntimos e com dificuldades no estabelecimento de relações com seu meio”. Os

autores não querem “dar a impressão de que a humanidade é salva pelo mero

desenvolvimento de um bom programa de criação artística” (LOWENFELD e

BRITTAIN, 1977, p. 18).

Mas acreditam que “os indivíduos perderam, em grande parte, sua

capacidade de identificação com o que fazem [...]. É muito difícil alguém identificar-se

com seu trabalho, quando este nada mais é do que um meio para ganhar dinheiro.

Atualmente, é raro encontrar alguém que sinta prazer no trabalho em si”. Há uma grave

perda de identidade, pois os indivíduos perdem sua capacidade de saber o que pensam e

dizer o que sentem. Desse modo, tornam-se incapazes para “ajudar a reconstruir o

mundo”, com graves incidências sobre o próprio sistema democrático (LOWENFELD e

BRITTAIN, 1977, p. 26-27). O sistema educacional deveria viabilizar a constituição da

identidade, mas não consegue por estar voltado apenas para a evolução intelectual:

A função do sistema escolar parece consistir em criar pessoas que possam armazenar fragmentos de informação e depois possam repeti-los a um sinal dado [...] Nossa tendência para a concentração no desenvolvimento da capacidade de regurgitar fragmentos de informação pode estar enfatizando, indevidamente, um só fator no progresso humano [...] As aptidões de interrogar, de procurar respostas, de descobrir forma e ordem, de repensar, de reestruturar e encontrar novas relações, são qualidades que não são, de um modo geral, ensinadas [...]. (LOWENFELD e BRITTAIN, 1977, p. 15)

Para os autores, essas aptidões, relacionadas a procurar e descobrir

respostas, são justamente aquelas que se desenvolvem através de um bom programa de

educação artística. A educação, então, permite uma compreensão sobre o próprio uso

dos conhecimentos adquiridos. Para isso, a criança deve expressar-se através da arte. A

“expressão criadora” proporciona a “autêntica expressão do eu”, através da “auto-

identificação com a experiência revelada”. O indivíduo expressa sua própria

experiência, realizando a sua auto-identificação, que “abrange as mudanças sociais,

intelectuais, emocionais e psicológicas” que se operam em seu íntimo. Por isso, a

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imitação e a cópia são totalmente desaconselhadas, pois levariam a criança à

dependência e à subordinação, inviabilizando a expressão. Ao mesmo tempo, a auto-

expressão não deve ser confundida com “um conjunto de emoções não-estruturadas ou

incontroladas” (LOWENFELD e BRITTAIN, 1977, p. 27 a 30). O desenho é uma

“oportunidade de desenvolvimento emocional”, mas o grau desse desenvolvimento está

relacionado diretamente com a intensidade com que a criança se identifica com sua obra.

As repetições, cópias e os desenhos estereotipados “expressam um tipo inferior de

estado emocional”. A criança deve ser encorajada a superar essa prática, pois, quando os

desenhos começam a ser significativos para a criança, há, concomitantemente, um

desenvolvimento emocional no rumo da flexibilidade do pensamento, da imaginação e

da ação, ampliando as possibilidades de ajustamento da própria criança ao seu meio. O

ajustamento não é mera adaptação, no sentido de subordinação, mas capacidade criadora

com a criança sentindo-se “emocionalmente livre e desinibida” (LOWENFELD e

BRITTAIN, 1977, p. 37-40).

A educação artística que proporciona a expressão criadora contribui,

também, para o desenvolvimento intelectual, físico, perceptual, social, estético e criador.

Isso, no entanto, só é possível se a criança puder realizar “a seleção daqueles aspectos do

seu meio, com que ela se identifica, e a organização desses aspectos em um novo e

significativo todo” (LOWENFELD e BRITTAIN, 1977, p. 50).

Lowenfeld e Read foram as principais referências do Movimento

Escolinhas de Arte e da tendência no ensino de Arte conhecida como “moderna”, “de

livre expressão”, “de auto-expressão” ou “baseada na expressão”.

No processo de divulgação dessas idéias ocorreram distorções advindas

de múltiplas influências culturais e de excessiva simplificação, que resultaram na

tendência que ficou conhecida como laissez faire, em que as noções de espontaneidade

e expressividade recebem uma interpretação estreita e reduzida, aparecendo como

prática descompromissada e irrefletida, um mero “deixar fazer”, sem orientação,

elaboração ou discussão (BARBOSA e SALES, 1990, p. 6), muito criticada.

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O sentido de ensino de Arte como expressão continua presente até os dias

de hoje e aparece em diferentes propostas contemporâneas para o ensino de Arte,

embora sem o caráter de centralidade que recebe no Movimento Escolinhas de Arte.

2.4) O tecnicismo no ensino de Artes Visuais.

Em 1o. de abril de 1964 um golpe militar depõe o presidente João Goulart

e põe fim a 19 anos de experiência democrática no Brasil. Os educadores socialistas e

muitos entre os democratas são intensamente perseguidos. Milhares são demitidos e

impedidos de lecionar e outros são expulsos do país. Paulo Freire e Anísio Teixeira

estão entre eles. O intenso debate que havia sobre os rumos para a educação brasileira

foi interrompido. A ditadura militar centraliza as decisões e reprime duramente aqueles

que se opõem. A educação brasileira é enquadrada no projeto político da ditadura que

se instalou e permaneceu no poder político por mais de 20 anos, ficando sob a égide da

Doutrina da Segurança Nacional, desenvolvida na Escola Superior de Guerra,

fundamentada no binômio segurança e desenvolvimento.

Havia, nesse binômio, um certo grau de iniciativa mudancista no nível

institucional. Mas eram mudanças pré-determinadas pelo governo, sem nenhuma

participação organizada dos profissionais de educação ou da sociedade. As mudanças

eram implementadas de cima para baixo, de forma centralizada, sem debate político,

sem participação popular, aumentando a exploração econômica das camadas

populares, ampliando a concentração de renda, empobrecendo amplos setores de classe

média e aprofundando os laços de dependência geopolítica e econômica em relação

aos EUA.

Na educação, a implementação do modelo de segurança e

desenvolvimento trouxe uma série de mudanças, destacando-se as abaixo

mencionadas:

- Ampliação do acesso a todos os níveis de ensino, como forma de atender às

necessidades de contratação de mão-de-obra pelas empresas.

- Manutenção do alto grau de seletividade em todos os níveis de ensino.

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- Redução dos padrões salariais do professorado, especialmente no ensino

público.

- Sucateamento das escolas públicas nos níveis fundamental e médio, com

redução da qualidade de ensino.

- Crescimento do ensino privado nos níveis fundamental e médio, garantindo

uma educação diferenciada às elites dominantes.

- Vinculação maior e mais direta da educação com os interesses econômicos

e empresariais.

- Combate à organização estudantil e à atuação sindical independentes, com

o fechamento de entidades como a UNE (União Nacional dos Estudantes) e

proibição de sindicatos de funcionários públicos.

- Assessoria da USAID (Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento

Internacional), que participou, através de convênios com o MEC, da

reforma educacional brasileira, não só no âmbito federal, mas também dos

sistemas estaduais.

Entre essas medidas, destaca-se a ênfase no ensino tecnicista, em

oposição ao tradicional ensino humanista que predominava na escola pública

brasileira.

O ensino tecnicista promoveu, ao mesmo tempo, o enfraquecimento do

papel do professor e da iniciativa do aluno. As metodologias de ensino implementadas

buscavam enfatizar a técnica de ensino, apoiada no livro didático e no ensino

apostilado. Havia a preocupação com o controle da autoridade escolar sobre o

professor e, ao mesmo tempo, buscava-se tolher a iniciativa do aluno, que deveria ser

formado como um trabalhador disciplinado e obediente. As metodologias tecnicistas

eram utilizadas, também, como uma forma de aumentar a eficiência do ensino, isto é,

de ensinar mais conteúdo em menos tempo e com menores gastos.

No âmbito do ensino de Artes Visuais, a tendência tecnicista expressa-se,

principalmente, em atividades programadas nas quais os resultados são previamente

estabelecidos. Nas palavras de Ferraz e Siqueira, os conteúdos são “mastigados” pelos

livros didáticos (FERRAZ e SIQUEIRA, 1987, p.41), ou seja, as aulas de Arte não

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deixam espaço para interpretação, para a descoberta e para a invenção. O aluno deve

executar algumas tarefas prescritas pela professora, pelos livros didáticos ou por

apostilas (FUSARI e FERRAZ, 1993, p. 37-39), sem margem de escolha e sem

criatividade.

Mesmo o chamado desenho livre tem seu sentido distorcido, pois, muitas

vezes, é apresentado como prêmio ou recreação. Modelos pré-impressos são

apresentados para atividades de cópia e de colorir. Atividades programadas de recorte,

colagem e dobra, além do uso de uma grande diversidade de materiais também

caracterizam a tendência tecnicista no ensino de Arte. Os alunos devem aprender

superficialmente as técnicas de uso de uma grande variedade de materiais com

procedimentos padronizados (FERRAZ e FUSARI, 1999, p. 32).

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CAPÍTULO 3 – Os sentidos do ensino de Arte.

O estudo dos sentidos do ensino de Arte - tal como eles se expressam nas

propostas e discursos dos pesquisadores, autores, autoridades do sistema escolar e

educadores da área - é um modo de aproximação com a experiência da aula de Arte.

Essa experiência é vivida pelos alunos e pelo professor. O professor

imprime o rumo geral da atividade, com seu discurso, com as proposições que faz aos

alunos e com os comentários que faz em relação à atividade dos alunos. Mas ele não

faz isso de forma isolada, pois carrega, em seu discurso e em sua prática, as propostas

e o discurso dos educadores e autores em ensino de Arte com que teve contato.

Além do professor, toda a comunidade escolar carrega essas influências.

Os professores de Arte anteriores, que já não estão na aula com aqueles alunos,

deixaram sua marca, sua influência. Os professores das outras disciplinas também se

manifestam sobre o ensino de Arte. Da mesma forma, familiares, direção e equipe

técnica das escolas, funcionários operacionais, outros alunos, irmãos e outras crianças.

Todos, em diferentes graus e sob diferentes interpretações, se manifestam sobre ensino

de Arte e incorporam, em algum nível, discursos e propostas dos pesquisadores,

autores, autoridades do sistema escolar e educadores da área. Esses discursos e essas

propostas, carregados dos sentidos neles expressos, chegam aos alunos por todos esses

caminhos e não exclusivamente pelo seu professor no momento da aula.

Por isso, seu estudo nos ajuda a compreender o discurso da criança e os

sentidos em que ela realiza sua atividade. Esses sentidos não são uma vivência

exclusivamente pessoal. A vivência combina a experiência vivida com uma

multiplicidade de referências culturais apropriadas pelos sujeitos, cada um a seu modo.

Desse modo, os sentidos vivenciados pelas crianças não estão desvinculados dos

sentidos que existem na sociedade e que se relacionam com a realidade vivida em sala

de aula.

A tradição e as proposições contemporâneas chegam às crianças de modo

genérico e indiferenciado, através das relações sociais em que se manifestam os

sentidos percebidos, as opiniões, os preconceitos e as expectativas. Não é possível

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prever, ou rastrear, as diferentes influências que chegam às crianças. Mas podemos ter

em conta os sentidos expressos na tradição e nos discursos contemporâneos.

Abaixo, apresentamos um breve percurso nos discursos contemporâneos,

que incorporam elementos da tradição e os projetam em novos contextos, constituindo

o contexto vivenciado pelos alunos, auxiliando na compreensão dos sentidos por eles

vivenciados.

3.1) Os Parâmetros Curriculares Nacionais - Arte.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei 9.394, de

20/12/1996 (SAVIANI, 2001), no seu artigo 26, que trata da base nacional comum dos

currículos do ensino fundamental e médio, estabelece, em seu parágrafo segundo, que

o “ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da

educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. O

MEC publicou orientações curriculares para todas disciplinas, entre elas os Parâmetros

Curriculares Nacionais para o ensino de Arte (PCN-Arte), que se constituem na

principal referência curricular oficial para o ensino de Arte, no Brasil.

Os PCN-Arte para o ensino fundamental foram elaborados pela Secretaria

de Educação Fundamental do Ministério da Educação. São dois textos independentes,

sendo o primeiro referente às séries iniciais, ou seja, primeira a quarta séries do

Ensino Fundamental (BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais: Volume 6 – Arte,

2000), e o segundo referente às quatro últimas séries (BRASIL, Parâmetros

Curriculares Nacionais/Arte: quinta a oitava séries, 1998).

Os dois textos, em sua parte introdutória, apresentam algumas diferenças

quanto ao sentido do ensino de Arte.

Os PCN-Volume 6 (BRASIL, 2000), destacam que o ensino de Arte deve

proporcionar o “desenvolvimento do pensamento artístico e da percepção estética, que

caracterizam um modo próprio de ordenar e dar sentido à experiência humana”. O

aluno deverá, desenvolvendo “sua sensibilidade, percepção e imaginação [...] realizar

formas artísticas”, além de apreciar e conhecer as obras produzidas tanto por ele, como

pelos colegas e pelos artistas nas diferentes culturas. Nesse processo, o aluno poderá

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compreender a “relatividade dos valores”, valorizando o que lhe é próprio e abrindo-se

“à diversidade da imaginação humana”. Assim, será propiciada ao aluno uma

compreensão do mundo na sua “dimensão poética”, incorporando a “dimensão do

sonho” que, através da “sonoridade instigante da poesia, das criações musicais, das

cores e formas, dos gestos e luzes”, faz parte do “sentido da vida”. Sem esses aspectos,

a “aprendizagem será limitada” (BRASIL, 2000, p. 19-21). Há, aqui, a proposição do

ensino de Arte no sentido de propiciar a vivência da arte como experiência estética e

poética. Ela é necessária para dar sentido à própria vida. Sem isso, a própria vida é

“limitada”. A aprendizagem de Arte proporciona a ampliação da própria vida, ou seja,

uma vida mais plena.

Já os PCN focados nas séries quinta a oitava (BRASIL, 1998), embora

reproduzam algumas frases do documento citado acima, destacam o ensino de Arte

como “apropriação de conteúdos imprescindíveis para a cultura do cidadão

contemporâneo”. Aqui, os sentidos do ensino de Arte, de um modo geral, remetem à

relação do indivíduo com a sociedade. A arte, aqui, não aparece para dar novos

sentidos à existência, mas para aproximar o indivíduo do contexto social em que vive.

É o ensino de Arte no sentido de melhor integrar o indivíduo na sociedade. Nesse

documento a imaginação é mencionada apenas em geral, ela é “humana”, isto é, “da

humanidade” e não mais do sujeito - e aparece para ser “entendida em sua

diversidade” e não mais para ser desenvolvida ou praticada. O desenvolvimento da

sensibilidade não aparece nesse texto, que dá ênfase aos aspectos cognitivos: “a

realização de trabalhos pessoais [...] se dá mediante a elaboração de idéias, sensações,

hipóteses e esquemas pessoais que o aluno vai estruturando e transformando, ao

interagir com os diversos conteúdos [...]”. O aluno deverá desenvolver sua percepção

no sentido de compreender as mudanças que ocorrem na sociedade e na natureza,

adaptando-se a elas. Essa percepção deverá ser “crítica”. É nesse contexto que a

dimensão poética aparece nessa publicação: compreender que há um movimento de

transformação permanente, exigindo “flexibilidade” para que possa realizar-se a

“inserção e participação na sociedade” (BRASIL, 1998, p. 20-21).

Cabe destacar que essas observações não significam uma avaliação ou um

posicionamento sobre as propostas didáticas e metodológicas e sobre os planos de

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ensino constantes dos dois documentos, mas, apenas, uma interpretação dos sentidos

de ensino de arte expressos na parte a eles correspondente, ou seja, o capítulo de

“Introdução” dos dois textos. Como se trata de documentos publicados por instância

política, é legítimo considerar os sentidos ali expressos como a intencionalidade

oficialmente estabelecida por órgão político, isto é, o Ministério da Educação, quanto

ao ensino de Arte no país.

3.2) Ana Mae Barbosa e a Proposta Triangular.

Ana Mae Barbosa é, sem dúvida, a mais influente autora e pesquisadora

de ensino de Arte, no Brasil. A proposta de Ana Mae ficou conhecida como

Metodologia Triangular. Atualmente é designada como Proposta Triangular,

(BARBOSA, 1998, p. 33). A expressão Triangular refere-se aos três eixos do ensino

de arte: criação, contextualização e leitura da obra de arte. Esse terceiro aspecto é

chamado, também, de apreciação ou de análise da obra de arte. No início, a Proposta

Triangular previa uma contextualização histórica da obra de arte. Ana Mae,

posteriormente, substitui a “história da arte” pela proposição de uma

“contextualização” ampla e flexível, que pode ser histórica, mas também pode ser

“social, psicológica, antropológica, geográfica, ecológica, biológica [...]” (BARBOSA,

1998, p. 37).

São muitos os sentidos do ensino de Arte expressos na extensa obra de

Ana Mae Barbosa. De modo geral, a autora remete os sentidos à questões de ordem

social e cultural.

As “classes baixas”, para a autora, devem se “orgulhar de seu ego

cultural”, mas não devem viver em “guetos culturais”. Devem buscar “acesso aos

códigos da cultura erudita”, como condição para a “mobilidade social”. Esse aspecto,

no entanto, não deve significar a exclusão, da escola, da cultura das classes baixas, que

não deve ser segregada. Capazes de construir sua identidade como grupo e manter seu

“orgulho”, as classes baixas estarão preparadas para o domínio dos “códigos

dominantes – os códigos do poder”, condição para a ascensão social (BARBOSA,

1998, p. 15). Aqui, o sentido de constituição de uma identidade cultural de grupo ou

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classe, está colocado na perspectiva de um outro sentido, o sentido de democratização

de oportunidades, através do ensino de Arte.

A expressão pessoal na educação está relacionada a questões de ordem

social e cultural, pois ela é “um importante instrumento para a identificação cultural e

o desenvolvimento”. As artes permitem um maior conhecimento da realidade e o

desenvolvimento da capacidade crítica, da imaginação e criatividade. Aqui, há dois

sentidos para o ensino de arte: um deles é o sentido de integração social: “a arte

capacita um homem ou uma mulher a não ser um estranho em seu meio ambiente nem

estrangeiro em seu próprio país. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o

indivíduo no lugar ao qual pertence” (BARBOSA, 1998, p. 16). O outro é o sentido de

contribuir com a mudança e o desenvolvimento, pois a criatividade conduz a mudanças

na “realidade analisada”. A arte é um modo de conhecer e analisar a realidade e a

criatividade, elemento de mudança.

A autora lembra ainda que a mídia nos impõe imagens com as quais

aprendemos “inconscientemente”, devido a nossa “incapacidade de ler essas imagens”.

Desse modo o ensino de Arte, ao “ensinar a gramática visual e sua sintaxe”, além de

“tornar as crianças conscientes da produção humana de alta qualidade”, prepara-as

para avaliar todo tipo de imagem (BARBOSA, 1998, p.17). Aqui, há muitos sentidos,

mas o que se destaca é que o ensino de arte deve ensinar a “ler imagens”. Essa leitura

é uma habilidade cognitiva que se realiza pelo domínio de uma gramática e de uma

sintaxe. Ser capaz de “ler imagens” é indispensável para “tomar consciência” da

“produção humana de alta qualidade” e para evitar as imposições da mídia. A leitura

de imagens é uma habilidade cognitiva que deve ser desenvolvida e que tem valor por

si só. O acesso à cultura erudita e a avaliação consciente das mensagens da mídia são

importantes, mas são como que aplicações dessa habilidade.

Apreciar, educar os sentidos e avaliar a qualidade das imagens produzidas pelos artistas é uma ampliação necessária à livre-expressão, de maneira a possibilitar o desenvolvimento contínuo daqueles que, depois de deixar a escola, não se tornarão produtores de arte. (BARBOSA, 1998, p.18)

Aqueles que deixam a escola e não se tornam artistas tiveram a

oportunidade de desenvolver as habilidades de fluência, flexibilidade, elaboração e

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originalidade, que são, para a autora, os “processos básicos da criatividade”. As

práticas da “apreciação e da decodificação”, assim, cumpriram seu papel de

“possibilitar o seu desenvolvimento contínuo”, através do desenvolvimento dessas

habilidades. Aparece, assim, o ensino de arte no sentido do desenvolvimento de

habilidades psicológicas ou comportamentais.

Ana Mae destaca também que o ensino de Arte, especialmente a

“educação da apreciação”, é importante para o desenvolvimento cultural do país na

medida em que esse desenvolvimento só pode acontecer quando existe um público

capaz de entender a produção artística de alta qualidade. A arte-educação deve fazer a

“mediação entre arte e público” (BARBOSA, 1998, p.18). Desse modo, o ensino de

Arte tem, também, o sentido de formar um público para os artistas do país e para os

museus.

A escola deve preparar a criança para ir ao museu, que fará a ligação da

criança com “a herança cultural que deveria pertencer a todos, não somente a uma

classe econômica e social privilegiada” (BARBOSA, 1998, p. 19). Aparece aqui o

sentido do ensino de arte para a democratização social através da apropriação, pelos

“alunos de classe pobre”, da “herança cultural” histórica. Essa democratização

prepara o “consumidor de arte crítico”. O ensino de Arte, na escola e nos museus, tem,

portanto o sentido de formar o consumidor de arte. Não qualquer consumidor, mas um

consumidor crítico, capaz de entender e avaliar uma produção artística de alta

qualidade.

A arte está ligada, para a autora, ao desenvolvimento - que engloba o

crescimento sócio-econômico individual e o enriquecimento cultural do país. Mas, nos

trechos mencionados acima, aparece também um sentido da arte como formação da

identidade nacional brasileira. Esse sentido é expresso mais claramente quando a

autora afirma que sem “conhecimento de arte e história não é possível a consciência de

identidade nacional” (BARBOSA, 1999a, p.33).

O ensino de arte tem, também, o sentido de preparação para as

profissões artísticas. Ana Mae menciona a existência de um grande número de

profissões ligadas à atividade artística e que esses profissionais “poderiam ser mais

eficientes se conhecessem, fizessem arte e se tivessem desenvolvido sua capacidade

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analítica através da interpretação de trabalhos artísticos em seu contexto histórico”

(BARBOSA, 1998, p. 19). Segundo a autora, “mais de 25% das profissões neste país

estão ligadas direta ou indiretamente às artes e seu melhor desempenho depende do

conhecimento de arte que o indivíduo tem” (BARBOSA, 1999a, p. 31).

Reconhecendo que a arte também está ligada ao “subjetivo, à vida interior

e à vida emocional”, a autora frisa, no entanto, que esses aspectos devem estar

subordinados ao tratamento da arte como conhecimento (BARBOSA, 1998, p. 20).

Mas, atribui alguma importância psicológica ao ensino de Arte, especialmente na

adolescência, “por razões catárticas e emocionais que incluem a saúde mental e o

desenvolvimento do processo criador” (BARBOSA, 1999a, p. 31). Declarando

preferir “as razões pragmáticas da arte na escola”, recorre a Regina Machado, para

essa discussão:

É preciso que o adolescente tenha possibilidade de se apoderar do ser único que ele é, das suas aptidões, sonhos, angústias e indagações; penso que isto ele pode conseguir se puder EXPRESSAR ou construir, de forma significativa, a reflexão sobre seu “assombrar-se de ser”. É preciso ter espaço e condições que me permitam, se eu tenho quinze anos, confrontar-me com quem eu sou enquanto individualidade, no momento em que eu a descubro como minha....A arte então cumpriria um importante papel nesse sentido, possibilitando ao indivíduo, através de sua expressão, confrontar-se com suas crises. (MACHADO apud BARBOSA, 1999a, p.29 e 30).

O ensino de Arte, aqui, aparece no sentido de cura e desenvolvimento

psicológico, ligados à expressão e à criação.

Para crianças em fase de alfabetização, a atividade artística,

especialmente as artes plásticas, pode facilitar o desenvolvimento psicomotor e

desenvolver a discriminação visual. Além disso, “a leitura social, cultural e estética do

meio ambiente vai dar sentido ao mundo da leitura verbal” (BARBOSA, 1999a, p.28).

Aqui, o sentido do ensino de Arte é o apoio ao processo de alfabetização.

3.3) Fusari e Ferraz e a expressão artística na sociedade.

A abordagem histórico-crítica - que preconiza a valorização da escola, a

aquisição pelos alunos dos saberes socialmente significativos e o compromisso com a

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transformação da sociedade - foi adotada como principal referência pedagógica por

Ferraz e Fusari.

Para as autoras, a arte existe no movimento dialético entre o homem e o

mundo, incorporando representação do mundo cultural e expressão dos sentimentos. A

expressão é gerada pelo sentimento e este se origina na tensão entre “forças de ordem

interna e externa: são relações entre o sujeito e as coisas, o subjetivo e o objetivo, o ser

sensível e o símbolo”. E a obra se completa nas relações sociais, “no contato com as

pessoas” (FUSARI e FERRAZ, 1993, p. 19).

O sentido geral da educação está na “preparação de indivíduos que

percebam melhor o mundo em que vivem, saibam compreendê-lo e nele possam atuar”.

Inclui, portanto, o conhecimento teórico e o prático. Nesse contexto, o ensino de Arte

deve incluir conhecimento e vivência. As autoras concebem a arte e seu ensino escolar

como um conhecimento e também como uma atividade. A expressão está voltada para o

social e aparece como atuação do indivíduo no meio social em que vive, com base no

conhecimento e na compreensão (FUSARI e FERRAZ, 1993, p. 20). Nessa concepção,

expressam-se diferentes sentidos.

Há um sentido de aquisição de conhecimentos sobre Arte, pois o seu

ensino escolar deve aproximar os estudantes do “legado cultural e artístico da

humanidade, permitindo, assim, que tenham conhecimento dos aspectos significativos

de nossa cultura, em suas diversas manifestações”. Esse conhecimento não se resume à

arte erudita, pois os professores de Arte devem conhecer a “arte vinculada à vida

pessoal, regional, nacional e internacional”, de modo a combinar “as influências

artísticas da comunidade local com as tendências nacional e internacional” (FUSARI e

FERRAZ, 1993, p. 49), incluindo as manifestações artísticas no cotidiano e “todas as

linguagens consideradas como meios de comunicação e expressão” (FERRAZ e

FUSARI, 1999, p. 44).

Esse estudo e vivência de vários aspectos da cultura, tanto das culturas

tradicionais locais, como da mídia e da herança histórica e erudita, devem ser exercidos

em uma perspectiva crítica, de modo que os estudantes “ultrapassem o senso comum e

adquiram posicionamentos mais críticos” (FUSARI e FERRAZ, 1993, p. 58). Deve

haver uma educação de sua capacidade de julgar e avaliar todas as produções artísticas e

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38

comunicativas (FERRAZ e FUSARI, 1999, p. 44). Para as autoras o ensino de Arte tem

o sentido de desenvolvimento de uma postura crítica em relação aos produtos e

atividades artísticas e aos meios de comunicação.

O ensino de Arte deve, também, concorrer para que os alunos “elaborem

uma cultura estética e artística que expresse com clareza a sua vida na sociedade”

(FUSARI e FERRAZ, 1993, p. 49). Essa elaboração é um processo transformador que

envolve as sensibilidades e os saberes práticos e teóricos. Aqui é expresso o sentido de

ensino de Arte como compromisso com uma ação social crítica e transformadora

através da arte, que se torna possível na medida em que os alunos tenham

conhecimentos sobre Arte, construam uma visão crítica sobre os meios de comunicação

de massa e demais produções artísticas e aprendam a expressar com clareza a sua vida

na sociedade.

3.4) Duarte Junior e a arte na formação plena do indivíduo.

Duarte Junior coloca a ênfase no sujeito. O ensino de Arte, para o autor,

contribui para que o indivíduo desperte para o “seu próprio processo de sentido” e

possa elaborar sua “visão de mundo”. Nesse processo, em uma civilização

eminentemente racional, os jovens podem apropriar-se de “sua maneira particular de

sentir” (DUARTE JUNIOR, 1983, p.65-66). Há, desse modo, no ensino de Arte, um

sentido de apropriação de si através da atenção do indivíduo ao seu modo de sentir.

Estimulando a expressão e permitindo, pela arte, o contato com símbolos do

sentimento, o ensino de Arte propicia a “educação do sentimento”, pois a educação

tradicional tem tratado apenas da “educação do pensamento”.

A sociedade não é esquecida. O autor não aborda a sociedade como um

“social genérico” mas posiciona-se sobre essa sociedade em que vivemos, situando o

papel do ensino de Arte como ainda mais importante na medida em que “o mundo dos

negócios” reserva poucos momentos para os sentimentos e a “nossa civilização

racionalista” pretende banir a imaginação, “por ver nela uma fonte de erros”

(DUARTE JUNIOR., 1983, p.66-67). Desse modo, a arte adquire um sentido

contestatório e transformador: “a arte permite que, além de se despertar para sentidos

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diferentes, se perceba ainda o quão distante se encontra nossa sociedade de um estado

mais, equilibrado, lúdico e estético” (DUARTE JUNIOR., 1983, p. 68).

A arte é, também, o melhor meio para que o indivíduo possa obter uma

visão do “todo cultural em que estamos”, pois, situando-se no nível do sentimento,

permite que o “sentimento da época” seja vivenciado, pois a “avalanche de

significados, de conhecimentos” não proporciona uma visão de totalidade de nossa

cultura. Através dessa compreensão do mundo cultural, o indivíduo pode compreender

melhor o sentido “da vida que é vivida aqui e agora”. Há, portanto, um sentido de

integração social, mas essa se dá pela compreensão do indivíduo do “sentimento da

época”, como modo de sentir comum, e pela compreensão do seus sentimentos, que

não precisam ser os mesmos partilhados pelos seus contemporâneos. A arte, portanto,

permite que aconteça um determinado modo de integração do indivíduo à sociedade

tal, que a especificidade do indivíduo seja mantida, pois ele torna-se capaz de

distinguir entre o “sentimento da época” e seus próprios sentimentos. Para o autor, a

compreensão de outras épocas e outras culturas é também importante. O conhecimento

de outras épocas amplia a compreensão da própria época em que o indivíduo está

vivendo, cumprindo, então, a arte o papel de viabilizar, pela “arte pretérita da cultura

onde vivo”, acesso ao modo de sentir em outras épocas (DUARTE JUNIOR., 1983, p.

70). A arte, através do acesso aos sentimentos, também pode proporcionar acesso às

culturas estrangeiras. Nesse aspecto, o autor alerta para a possibilidade de nos

tornarmos “agentes invasores: instrumentos de dominação a serviço de prioridades

econômicas estrangeiras”, passando a produzir uma “arte amorfa, inexpressiva e sem

vida” (DUARTE JUNIOR., 1983, p. 71). Aparece aqui o sentido de arte como

construção de uma identidade cultural dos povos e das nações.

3.5) Os professores de Arte.

Prandini (2000) estudou os sentidos de ensino de Arte para professores de

uma escola pública da região central de São Paulo. A pesquisadora destaca que existe

uma espécie de busca de funções para as aulas de Arte, pois sua importância e

significado não são questões resolvidas nem para os professores de Arte, nem para os

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demais profissionais de ensino – todos procuram alguma utilidade para as aulas de

Arte. O ensino de Arte aparece aqui no sentido da perplexidade, da inutilidade e do

desafio à compreensão. Enquanto isso, “a disciplina está morta” (PRANDINI, 2000,

p. 211). Há um amesquinhamento do próprio professor de Arte, cuja compreensão do

ensino de Arte reduz a importância e até mesmo a necessidade da disciplina: os

professores pesquisados acreditam que o objetivo do ensino de Arte é “desenvolver o

potencial criativo, através do ensino de técnicas que permitam ao aluno expressar-se,

valorizando o que ele é capaz de fazer”. Esse potencial criativo aparece como uma

espécie de capacidade ou habilidade inata, que alguns têm, outros, não. Portanto, como

uma espécie de vocação. Essa habilidade é percebida pelos professores como algo

inato. Portanto, o professor não tem nada a fazer - a não ser disponibilizar ao aluno a

oportunidade de, por sua própria conta, desenvolver essa habilidade que já nasceu com

ele, cuidando para não atrapalhar “o potencial criativo do aluno” (PRANDINI, 2000,

p. 210).

Moraes (2002) também percebeu esse enfraquecimento dos significados

de ser professor de Arte e estudou o modo como uma atividade criativa coletiva pode

contribuir para a “construção ou reconstrução” da identidade profissional do professor

de Arte:

[...] conceber a educação como um processo criador equivale ao encontro de um sentido para a docência pelo reconhecimento de que é capaz de intervir na realidade [...]. Durante o desenvolvimento do seu projeto, o professor reflete sobre o trabalho artístico, ao mesmo tempo que pode reavaliar as suas práticas e concepções de ensino. Novos significados são atribuídos à docência em Arte, do mesmo modo que a compreensão do ser professor de Arte é redimensionada [...] uma das mudanças que podem ser observadas diz respeito à concepção e à prática da auto-expressão, que deixa de ser confundida com o espontaneísmo e reconquista a sua importância como forma legítima de construção e expressão da singularidade. (MORAES, 2002, p. 213-214)

A arte, aqui, está no sentido de construção da identidade profissional do

professor de Arte, que pode revalorizar a auto-expressão no ensino de Arte com o

sentido de construção e expressão da singularidade.

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3.6) A pesquisa em ensino de Arte.

Foram selecionados alguns trabalhos, pesquisas nos níveis de mestrado e

doutorado, que tratam do ensino de Arte:

Oliveira (2001) analisou a história da Escola Municipal de Iniciação

Artística – EMIA, em São Paulo, e sua singularidade em proporcionar iniciação

artística para crianças de 5 a 12 anos de idade.

Iavelberg (1999) investigou o papel que a leitura dos PCN Artes Visuais

pode representar para a formação de professores do Ensino Fundamental, indicando

em que graus e condições essa leitura pode promover transformações nas práticas dos

professores.

Martins (1999) estudou diferentes aspectos envolvidos na formação de

educadores para o ensino de Arte, especialmente a formação contínua em projetos que

aproximem a prática educativa da prática artística, na vivência dos educadores de arte.

Franco (1998) estudou a vida profissional dos professores de Arte,

destacando as limitações de sua formação, o choque que enfrentam quando chegam à

sala de aula, as diferentes posturas existentes no sistema escolar perante o ensino de

Arte e o orgulho dos professores de Arte com sua profissão.

Brito (1997) pesquisou a visão que os alunos do Ensino Fundamental e

Médio têm das aulas de Arte. Entrevistou 40 alunos de duas escolas localizadas nas

cidades do Rio de Janeiro e Niterói e, orientada pela teoria das representações sociais,

concluiu que o núcleo da representação social que os alunos fazem das aulas de Arte é

constituído pela arte considerada como produção, como conhecimento e como

diversão.

Os trabalhos acima mencionados não focaram, de modo especial, o

sentido do ensino de Arte e não foi possível aprofundar esse estudo nesses textos. Por

outro lado, as pesquisas relacionadas a seguir foram destacadas por desvelarem

diferentes sentidos para o ensino de Arte, contribuindo para uma maior aproximação

com o foco desse estudo.

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Araújo (2003) pesquisou o olhar inicial de alunos de 8a. série de uma

escola de Goiás através da observação de uma pintura selecionada e de entrevistas com

cerca de 30 adolescentes. Concluiu que os olhares iniciais já “são prenhes e plenos de

significações” (ARAÚJO, 2003, p. 155). O olhar é compreendido como percepção

primordial do mundo, através da qual “compreendemos quem somos e o mundo que

nos cerca”. Desse modo, a educação do olhar que deve ser proporcionada pelo ensino

de Arte tem o sentido de ampliar essa percepção, proporcionando que o sujeito possa

“perceber mais o mundo” e a si mesmo (ARAÚJO, 2003, p. 36-38). Araújo propõe o

ensino de Arte como “uma inter-relação dos processos realizados na vivência

professor-aluno-arte” (ARAÚJO, 2003, p.171) em que a arte, como dimensão estética

e como encantamento, proporciona o desenvolvimento do aluno pela ampliação de

suas possibilidades de existência e por proporcionar novas possibilidades de

conhecimento e reconhecimento de si, do outro e do mundo. O ensino de Arte, para a

autora, é encontro intersubjetivo no mundo com o sentido de ampliar as possibilidades

de Ser-no-mundo-com-o-outro.

Benedetti (2001) realizou um estudo em que verificou que as aulas de

Arte podem desencadear mudanças na cultura escolar. Na medida em que um bom

trabalho realizado nas aulas de Arte se relacione adequadamente com outras

disciplinas, dinamizando a “produção sócio-cultural e artística da escola”, podem

ocorrer mudanças na escola no sentido da “desburocratização das relações humanas e

profissionais” e instaurando “um espaço lúdico, uma realidade envolvente que acolhe

os sujeitos em questão, tornando viável sua atividade criadora” (BENEDETTI, 2001,

p. 187-188). Há, aqui, o sentido do ensino de Arte como desencadeador de processos

de transformação e desburocratização do ambiente escolar.

Palhares (2001) relata uma pesquisa-intervenção em uma escola

municipal de São Paulo em que o ensino de Arte teve o sentido de contribuição para a

melhoria geral do ensino, na escola. O projeto, que contou com a participação da

FAPESP, MAC-USP e ECA-USP, foi fundamentado em atividades de arte-educação e

desencadeou uma série de discussões e atividades, envolvendo principalmente os

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professores. O resultado foi uma mudança na escola, com melhoria nas relações entre

professores e alunos e no relacionamento dos alunos com as atividades escolares

(PALHARES, 2001, p. 80 e 81). A arte, no decorrer da pesquisa, foi integrada a um

processo compreendido pela pesquisadora como educomunicação, em que a arte-

educação se mesclou aos campos da comunicação e da educação (PALHARES, 2000,

p. 107).

Rocha (1999) pesquisou a formação em ensino de Arte de professoras do

Ensino Fundamental I, suas aulas de Arte para crianças de 1a. a 4a. série e a

compreensão que elas têm dessas aulas. Verificou que sua formação não contempla

adequadamente o ensino de Arte, reforçando a teoria do “dom” ou habilidade inata. O

sentido do ensino de Arte, para as professoras primárias, é relacionado à

possibilidade da arte contribuir para o aprendizado de conteúdos das outras

disciplinas, valorizando a ilustração e circunscrevendo a avaliação estética a

referências naturalistas (ROCHA, 1999, p. 109-110).

Buoro (1994) apresenta uma experiência de ensino de Arte na escola,

fundamentada na utilização de pinturas modernas e contemporâneas como referências

para um ensino de Arte em que o aluno não seja “mero reprodutor de técnicas” nem

deixado meramente solto e entregue “às suas emoções”. Para a autora, o ensino de

Arte deve ter o sentido de sensibilizar o olhar da criança e “ampliar seu repertório

imagético”, através da leitura das obras de arte. Desse modo, convergindo para a

Proposta Triangular de Ana Mae Barbosa, Buoro propõe que o ensino de Arte leve ao

“reconhecimento visual dos elementos estruturais da linguagem plástica”, de modo a

descobrir “na singularidade de cada composição... o conteúdo por eles revelado”. O

sentido do ensino de Arte, aqui, realiza-se no aprendizado da linguagem plástica

(BUORO, 1994, p.2-3, 40 e 152).

3.7) Diversidade de sentidos.

Podemos perceber que diversos sentidos são expressos nos documentos

oficiais e nas publicações sobre ensino de Arte. Ao mesmo tempo, nas pesquisas

realizadas com professores e sobre a prática do ensino de Arte, novos sentidos vão se

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desvelando. Resumidamente, os sentidos para o ensino de Arte descobertos nos textos

estudados são:

- propiciar a vivência da arte como experiência estética e poética;

- integrar o indivíduo na sociedade;

- constituir a identidade cultural dos grupos e classes sociais;

- democratizar oportunidades de ascensão social;

- contribuir para a mudança social e o desenvolvimento;

- ensinar a ler as imagens;

- defender-se das imposições da mídia;

- conhecer a produção artística de alta qualidade;

- desenvolver as habilidades da fluência, flexibilidade, elaboração e

originalidade;

- formar o público para os artistas do país e para os museus;

- formar o consumidor de arte;

- promover a democratização, pelo acesso dos mais pobres à herança

cultural;

- formar a identidade nacional brasileira;

- preparar para o exercício das profissões ligadas à arte;

- propiciar aos adolescentes a superação de suas crises psicológicas;

- apoiar o processo de alfabetização das crianças;

- adquirir conhecimentos sobre arte;

- desenvolver uma postura crítica em relação à arte e à comunicação;

- empreender uma ação social transformadora;

- propiciar aos indivíduos a apropriação psicológica de si, a formação

da identidade e o autoconhecimento;

- educar os sentimentos;

- criticar e contestar os valores e práticas sociais vigentes;

- abrir novas perspectivas de vida social;

- conhecer outros povos e outras civilizações;

- desenvolver o potencial criativo inato;

- construir e expressar a singularidade;

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- contribuir para a melhoria do ensino, na escola;

- desencadear processos de desburocratização e transformação no

ambiente escolar;

- ampliar a percepção e as possibilidades de Ser no mundo com o outro;

- contribuir para a aprendizagem dos conteúdos das outras disciplinas;

- ensinar a linguagem plástica.

Não deve causar estranheza essa multiplicidade de sentidos para o ensino

de Arte expressos nos diversos textos da área ou por professores. Apareceriam muitos

outros sentidos se acrescentássemos aqui os diferentes sentidos que se manifestam no

estudo da história do ensino de Arte no Brasil. Ocorre essa diversidade porque o

sentido é o próprio modo humano de existir e ele manifesta a diversidade das intenções

e modos de ser no mundo. Os diferentes autores, as autoridades educacionais e os

pesquisadores apresentam diferentes proposições para o ensino de Arte porque os

sentidos que percebem na atividade didática do professor de Arte relacionam-se com

seu próprio modo de ser, compreender o mundo, a arte e educação – que são muito

diferentes.

Os diferentes sentidos irão, com certeza, projetar diferentes práticas

educacionais, diferentes métodos de ensino de Arte e diferentes discursos sobre Arte,

que irão se manifestar na escola e na sala de aula, relacionando-se com os alunos. Não

é objetivo desse trabalho pesquisar essas relações. Por isso, não buscamos realizar uma

organização ou classificação dos sentidos que descobrimos, tarefa interessante, que

remeteria a importantes discussões de ordem filosófica e sociológica, mas que

extrapolaria os limites desta pesquisa. No entanto, sua consideração será útil na

conclusão geral deste trabalho.

Nosso objetivo é situar a questão do sentido no ensino da Arte e informar

o estudo dos sentidos percebidos pelos alunos, que recebem, nas relações sociais

dentro e fora da escola, a influência das diferentes visões existentes sobre arte e ensino

de Arte. O sistema educacional brasileiro, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional, está apto a conviver com diferentes visões pedagógicas, inclusive,

portanto, sobre ensino de Arte, especialmente quando a lei determina (em obediência

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ao estabelecido pela própria Constituição) que o ensino será ministrado com base,

entre outros, nos princípios do “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas” e

da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte

e o saber” (Conforme artigo 3o da lei 9.394, de 20/12/1996. SAVIANI, 2001). Nesse

contexto, os professores de Arte têm ampla liberdade para constituir sua identidade

profissional.

Mas, para isso, deverão superar não apenas as dificuldades próprias de

cada unidade escolar, mas, principalmente, as limitações auto-impostas através de uma

compreensão de atividade artística referenciada em uma compreensão do

desenvolvimento psicológico baseada nas noções de “aptidão inata”, “vocação” e

“habilidade natural”. Essa compreensão foi amplamente superada por diferentes

abordagens da Psicologia do Desenvolvimento, mas ainda é amplamente disseminada

no senso comum de nossa sociedade e na cultura escolar. Prandini (2000) chamou a

atenção para essa importante questão e os caminhos para a superação dessa concepção

devem ser estudados mais profundamente pela pesquisa em formação de professores.

No entanto, acreditamos que o conhecimento do sentido que têm as atividades de arte

para os alunos poderá contribuir para que os professores de Arte possam descobrir

novos sentidos, mais amplos e pedagogicamente mais criativos, na arte e na atividade

artística e para que os pesquisadores possam conhecer um pouco mais sobre as aulas

de Arte como fenômeno psicológico e social.

Referenciar-se em uma noção de desenvolvimento psicológico que liberte

o professor das amarras da visão inatista é fundamental para propiciar uma abertura

para novos sentidos de ensino de Arte.

No próximo capítulo será estudada a noção de Merleau-Ponty de

desenvolvimento psicossocial da criança, e também a pontyana noção de arte como

modo de Ser no mundo, em que sujeito e mundo se encontram pela percepção e se

recriam mutuamente na criação artística.

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CAPÍTULO 4 – Desenvolvimento e arte em Merleau-Ponty.

4.1) A criança e o desenvolvimento.

Questões como desenvolvimento, aprendizagem, conhecimento,

sociabilidade e afetividade fazem parte da prática educativa e devem integrar uma

compreensão ampla do processo de ensino e aprendizagem. Educadores recorrem, de

diferentes formas, à psicologia. Mesmo quando não mencionam explicitamente teorias

da psicologia da educação, os educadores incorporam muitas de suas noções. Nesse

caso, essas noções aparecem separadas do referencial teórico em que foram elaboradas e

surgem na forma de pressupostos apenas referenciados, na abordagem genérica do senso

comum ou como preconceitos que norteiam as propostas pedagógicas.

O mesmo se dá no ensino de arte. Piaget é citado como referência

importante em muitos estudos sobre arte e educação. Vygotsky e Wallon, entre outros

autores, também são citados. Mas, muitas vezes, os estudos sobre ensino de arte, assim

como as propostas pedagógicas, não explicitam as concepções de desenvolvimento e

aprendizagem incorporadas, ou suas referências na psicologia da criança.

A educação que pretende uma aprendizagem efetiva considera a criança em

seu próprio mundo e dialoga com a criança no universo de sua vida e de sua

compreensão. O ensino de Arte, em especial, que envolve um forte componente prático

e vivencial, talvez precise ainda mais dessa compreensão do mundo da criança e do

adolescente, sob risco de buscar implementar um certo sentido ao processo de ensino e

aprendizagem e, no entanto, o sentido vivenciado pelos alunos ser muito diferente,

distanciando o processo de ensino-aprendizagem dos objetivos e dos sentidos propostos

pelos educadores.

Não se pretende aqui fazer uma análise das concepções psicológicas

presentes nos estudos e pesquisas em arte e educação, mas apenas explicitar as

referências e noções de psicologia que norteiam esse estudo.

Serão apresentadas algumas considerações, referenciadas em Merleau-

Ponty. Tais considerações buscam explicitar alguns princípios gerais para uma

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psicologia em que a compreensão da criança e seu desenvolvimento possam partir do

mundo e da vivência da criança, escapando à tentação de interpretar a experiência da

criança com base em referências próprias dos adultos.

4.1.1 - Noção de desenvolvimento.

A questão de como as crianças tornam-se adultos é um problema central

para a educação e envolve a noção de desenvolvimento. Desenvolvimento implica na

coexistência de duas situações aparentemente contraditórias: movimento e permanência.

A simples noção de mudança não significa necessariamente desenvolvimento. Podem

acontecer mudanças superficiais e quantitativas que não configuram uma nova situação.

Para que haja desenvolvimento é preciso que ocorra a dissolução da situação anterior e a

constituição de uma nova situação (MERLEAU-PONTY, 1990, p.7-9).

Mas isso não basta para compreender a noção de desenvolvimento: não

dizemos que uma tribo de índios que se incorporou à nossa civilização desenvolveu-se!

A mudança pode ser caótica ou destrutiva e, nesse caso, não pertinente à noção de

desenvolvimento. Desenvolvimento envolve a mudança de uma situação para outra em

uma dinâmica de relação entre a situação antecedente e a seguinte. Envolve uma relação

entre a situação anterior e a nova situação. Essa conexão entre a situação anterior e a

nova situação estabelece um elemento de permanência ou continuidade, não

referenciada na dinâmica e nas questões próprias da nova situação, que devem ser

diferentes da situação anterior, mas no fato de que a nova situação tem uma história, isto

é, constituiu-se a partir e através da situação anterior. Seu passado existe como passado

constituinte do presente.

O desenvolvimento incorpora esse aspecto de continuidade, pois a situação

anterior, embora dissolvida pela nova situação, não se torna inexistente. Transforma-se

no passado da situação nova. Não lhe é totalmente estranha. Da mesma forma, a situação

nova, que ainda deverá ser constituída, não é totalmente estranha à situação atual, pois a

situação atual, através da sua dinâmica de transformação, projeta, antecipa ou prefigura

a situação futura.

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49

É essa característica de um presente que contém seu passado e projeta o

futuro que permite compreender a noção de transição como elemento do

desenvolvimento.

Há movimento, mudança efetiva, com o estabelecimento de nova situação

que institui uma nova dinâmica de relações. Para se considerar que houve

desenvolvimento não basta uma mudança apenas quantitativa, é necessário que se

apresente uma nova forma, com novas relações. É preciso que exista uma nova situação

e uma nova conduta, que são instituídos em um processo de transição.

Desenvolvimento é uma “noção paradoxal, pois ela não supõe nem

continuidade absoluta, nem descontinuidade absoluta, ou seja, que o desenvolvimento

não é nem uma adição de elementos homogêneos, nem uma seqüência de etapas sem

transição” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 7).

As transformações que caracterizam o desenvolvimento não estão

subordinadas aos aspectos fisiológicos ou à aquisição de conhecimentos. É a própria

vivência que configura as possibilidades de mudança:

Não é nem o corpo, nem a consciência que produz o desenvolvimento, mas é a existência entendida como o conjunto das configurações das condutas possíveis para um indivíduo num dado momento. ( MERLEAU-PONTY, 1990, p. 50)

Com isso, coloca-se a questão da ordem do desenvolvimento, isto é, o que

permite que se manifeste uma certa ordem no desenvolvimento, com o aparecimento de

situações semelhantes em sujeitos diferentes?

Essas situações, que se apresentam tantas vezes de forma semelhante que

chegam a configurar uma normalidade ou uma fase, são assim semelhantes na medida

em que ocorrem em um mundo de relações também semelhantes, um mundo que se

apresenta para muitas crianças tão mais semelhante quanto mais elas vivem em um

mesmo ambiente cultural, que é social e histórico.

As pessoas, os pais ou outros adultos que convivem com a criança vivem

em uma cultura e através deles essa cultura chega à criança pelas das situações vividas.

O papel de pai e de mãe em sua relação com os filhos é compartilhado culturalmente e

institui semelhanças que estabelecem situações semelhantes no cotidiano e na história de

vida das crianças.

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50

Dessa maneira, mesmo sem ser determinado fisiologicamente, o

desenvolvimento das crianças pode apresentar tantas semelhanças. E, ao mesmo tempo,

tantas diferenças, pois a situação que vive a criança, mesmo num quadro geral de

semelhanças culturais, nunca é idêntica. Podem ou não ocorrer certas fases ou etapas, as

quais podem ou não apresentar características consideradas típicas.

A resposta à questão colocada acima, relativa ao aspecto de ordem no

desenvolvimento, com isso relaciona-se com a cultura ambiente, que constitui o mundo

em que a criança está imersa. A criança não se desenvolve conforme determinações

fisiológicas.

Também não se trata de mero condicionamento externo. O seu meio de

desenvolvimento está nos pais a sua volta – ou outros adultos – e na cultura que chega a

ela através deles. Mais do que um condicionamento, esse é um processo dinâmico, em

que a criança “cria seu desenvolvimento sob a direção da cultura ambiente. É pelo

exercício da vida, a criação de si para si, que a criança torna-se adulto” (MERLEAU-

PONTY, 1990, p. 43).

Há uma intenção, como um motivo interno, dado em uma busca, em uma

projeção de uma nova situação. A criança desenvolve-se nesse assumir um

comportamento cujo sucesso nem sempre está assegurado em seu organismo e que não

está elaborado pelo pensamento. Ela busca, procura, interroga o mundo e identifica

outros modelos para sua conduta. O desenvolvimento está nessa busca, nesse projetar-se

para novas condutas que, realizadas, permitem distinguir uma nova situação e novos

significados.

O meio do desenvolvimento não é pois nem o corpo – porque não poderíamos estimar o elemento interior da conduta - nem a consciência, pois não compreenderíamos como ela se integra cada vez mais. É um terceiro elemento: a estrutura total da conduta”. (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 49)

Esse terceiro elemento inclui, também, a atividade, o contexto e a situação,

e a intencionalidade. A compreensão dos fenômenos de regressão, de retorno a condutas

anteriores ou da falta de uma conduta nova podem dispensar o recurso a fatores externos

ao próprio desenvolvimento, pois a nova conduta não precisa ocorrer em todos os

aspectos do comportamento ao mesmo tempo.

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51

Para Merleau-Ponty, as fases ou estádios de desenvolvimento não são

determinantes do próprio desenvolvimento, mas ordens de grandeza, pois, mesmo sendo

aproximativamente previsíveis em sua relação com fatores fisiológicos e a cultura, não

têm valor para compreender o desenvolvimento da criança, referindo-se a uma visão

geral da infância e não tendo utilidade para discernir o dinamismo individual do

desenvolvimento.

O desenvolvimento está sempre em causa pelo projetar-se da criança no

futuro. Mesmo nas paradas momentâneas em um determinado estádio atuam “mudanças

quantitativas no sentido de mudanças qualitativas”, pois há uma apropriação da nova

conduta. Na conduta há um aspecto de estabilização ou parada aparente que é próprio de

uma certa estabilização, que envolve a busca de uma apropriação plena e da resolução

de uma situação em um determinado sentido. Esse momento é, ao mesmo tempo, um

momento de “latência e incubação”, pois “todo equilíbrio de pensamento contém em si

mesmo um fermento de evolução” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 11, 50 e 20,

respectivamente).

Para compreender o fenômeno do desenvolvimento e as diferenças entre

crianças e adultos é importante considerar o fenômeno da percepção. Não há uma

compreensão que se faça isolada do mundo. A percepção de estímulos do meio não é

passiva e o raciocínio lógico não é única forma de organizar a relação com o mundo. Há

um campo perceptivo, no qual nada do que é percebido pode ser percebido

isoladamente. Dessa forma, com ajuda da psicologia da Gestalt e apoiado na sua

fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty destaca que na própria percepção das

coisas há um fenômeno de organização, um “pôr em relação” os diferentes objetos

percebidos. A diferença entre perceber dois ou cinco objetos é qualitativa, pois institui-

se um “[...] um fenômeno de nível, onde a impressão e a distância dos objetos são mais

bem determinadas” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 10). A percepção relaciona,

transforma as propriedades do conjunto de objetos e institui diferentes níveis

perceptivos. É, portanto, uma percepção ativa e dinâmica, que configura o âmbito do

vivido, no qual o mundo é percebido e vivenciado com uma compreensão anterior ao

raciocínio.

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Há, também, no desenvolvimento das crianças, um outro aspecto,

relacionado com a percepção e o conhecimento: a afetividade, que não está subordinada

ao conhecimento e interfere na própria percepção. Estudos realizados em sujeitos que

apresentam rigidez psicológica (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 64-67) indicaram que a

sua percepção pode ser marcadamente afetada por suas características emocionais,

apresentando-se, em muitos casos, dificuldades em perceber fenômenos de transição. A

forma rígida e pouco afeita a perceber ambigüidades e matizes na sociedade e no

relacionamento interpessoal relaciona-se com o campo perceptivo e a capacidade de

perceber nuances, transições e ambigüidades visuais. Há uma relação entre o modo de

viver socialmente e a maneira de perceber as coisas do mundo. Não se trata de

estabelecer uma causalidade, pois não se podem separar os dois fenômenos, percepção e

modo de vida, que se manifestam simultaneamente no indivíduo que se desenvolve. São

fenômenos correlatos, próprios do ser em situação no mundo.

Também o desenvolvimento do conhecimento e a aquisição da linguagem

estão ligados à afetividade. Estudo de casos (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 67-68) de

ciúme no nascimento de irmão mostrou a aquisição simultânea de vários tempos verbais

em um único dia. O nascimento de um irmãozinho, e a própria expectativa desse

nascimento, obriga a criança a uma reestruturação da sua relação com o mundo. A

compreensão dos tempos verbais aparece de repente, mas não do nada, nem do

amadurecimento fisiológico, nem do acúmulo de informações lingüísticas, nem do

desenvolvimento do raciocínio: aparece nas contingências da vida, na reestruturação do

meio humano. Os tempos verbais, ouvidos nas conversas dos pais e cujas diferenças em

relação aos outros tempos não eram percebidas, são agora veículos de compreensão de

novas relações interpessoais. Adquirem sentido, percepção específica e uso ao mesmo

tempo. Não são explicados. São, ao mesmo tempo, compreendidos e instrumentos de

compreensão. São vividos. Há um aprendizado, mas não é, primeiramente, um

aprendizado intelectual, mas sim uma reestruturação das relações com o outro. O

desenvolvimento intelectual, nesse caso, foi impulsionado pela reestruturação das

relações com o outro. Há um fenômeno de descentração, mas uma descentração vivida

em uma relação com o outro e não intelectual. A inteligência aparece na relação com o

mundo como um tipo de intersubjetividade. Não se trata, também aqui, de um fenômeno

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de causalidade entre inteligência e intersubjetividade. Trata-se de dois aspectos do

fenômeno de desenvolvimento da criança que vive a sua vida (MERLEAU-PONTY,

1990, p. 68).

Para Merleau-Ponty, não é o raciocínio que determina a assimilação da

língua. A criança não pensa a língua. Merleau-Ponty compreende o uso da língua pela

criança como um instrumento lingüístico para relacionar-se com o mundo, para conduzir

suas relações com o outro. Nesse processo, “ [...] conhecimento é efeito mais que causa”

(MERLEAU-PONTY, 1990, p. 64). Utilizando a língua, a criança apropria-se de uma

conduta. “Aprender a falar é aprender a representar um certo número de papéis, a

assumir condutas das quais se é inicialmente espectador” (MERLEAU-PONTY, 1990,

p. 67).

O outro tem, na psicologia de Merleau-Ponty, um papel fundamental. É na

relação com o outro que a criança descobre seu próprio corpo. Ela percebe as ações do

outro em seu sentido (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 71). O bebê, cuja consciência de si

e do próprio corpo é ainda fragmentada, percebe muito cedo, por exemplo, o sentido do

sorriso e sorri. Isso não acontece através de uma tomada de consciência do que significa

o sorriso. Ela sorri por imitação e vive o sentido do sorriso como benevolência

(MERLEAU-PONTY, 1990, p. 70).

A rapidez e a facilidade com que isso acontece não é passível de

compreensão com a utilização da noção clássica de psiquismo e sinestesia, em que as

sensações são exclusivas e individuais e o corpo é apreendido exclusivamente a partir

das suas próprias sensações. O outro, desse modo, só pode ser entendido com base em

um complexo sistema de quatro termos em que a criança estabelece uma analogia entre

o seu corpo percebido como objeto e as sensações que ela tem de seu próprio corpo, de

um lado, e, de outro, o corpo do outro que ela percebe e as sensações que o outro tem de

si. Por essa noção clássica, a experiência do outro e das sensações que o outro tem, só

podem ser deduzidas a partir das próprias sensações (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 70).

Esse entendimento é próprio do logicismo que supõe que o desenvolvimento está

submetido ao pensamento e entende o indivíduo como um em si totalmente separado do

outro.

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Para Merleau-Ponty, a experiência do outro é, desde cedo e de forma muito

mais imediata, familiar à criança que percebe a si mesma na relação com a experiência

do outro. Encontra-se o outro na conduta e no sentido que é descoberto. Há um esquema

de postura pelo qual a criança conhece seu corpo na relação com o outro e com o meio.

Os atos dos outros podem ser interpretados imediatamente pelo próprio corpo. A

imitação é expressão dessa interpretação, um apropriar-se do ato na descoberta de seu

sentido.

Pela reforma da noção de psiquismo, substituída pela de conduta, e da noção de sinestesia, substituída pela de esquema de postura, o problema do conhecimento do outro pode ser resolvido; tem-se, então, um sistema de dois termos – meu comportamento, o comportamento do outro – que constituem um todo. (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 71)

A percepção do mundo e do outro permite que a criança se perceba no

mundo e com o outro, um mundo em que a cultura chega até ela pelos atos do outro.

Nessa relação com o outro se destacam as relações parentais:

As relações da criança com seus pais constituem a matriz de suas relações com os adultos. Os pais são os sustentáculos, os pontos cardeais da vida infantil. Os demais adultos são eles próprios considerados como personagens parentais[...]. As relações com os pais são mais do que relações com duas personagens apenas, elas são relações com o mundo. Os pais são os mediadores das relações com o mundo. (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 132. Grifo do autor)

É na relação com os pais que se manifestam as relações sociais. As relações

com os pais, que realizam o papel parental conforme ele aparece em dada sociedade,

estruturam as relações da criança com o outro, tanto nas características pessoais de seus

pais como nos elementos culturais. A cultura realiza a mediação entre os fatos

psicológicos e os fatos sociais. Ela se expressa nas relações interpsicológicas e, na

educação das crianças, em primeiro lugar nas relações parentais. As relações parentais

não são de modo algum naturais, mas relacionadas aos elementos sociais e históricos

expressos na cultura. Em cada sociedade as relações assumem formas características,

imbricadas com a cultura. Isso não impede a existência de uma questão universal: os

pais são, para seus filhos, a imagem de seu futuro e as crianças trazem para os pais as

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imagens de sua infância. As relações entre criança e adulto são marcadas por um

fenômeno de identificação.

Esse sentido de relação com o outro, que é dado na constituição

psicológica da criança, indica o sentido social do desenvolvimento e uma relação entre o

psicológico e o sociológico. É através dela que o cultural vai integrar a psicologia da

criança (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 134-136).

A relação entre o psicológico e o sociológico no desenvolvimento da

criança deve ser tratada com um cuidado especial. Os psicólogos, muitas vezes, tendem

a reduzir o social ao aspecto interpsicológico, desconsiderando a presença da dimensão

institucional. De outro lado, algumas análises sociológicas podem levar à considerar o

homem como objeto inerte, mero joguete de relações parentais e sociais.

O fenômeno cultural constitui um fundo social e histórico que tem presença

original nos fenômenos psicológicos, constituindo uma incidência anterior e posterior às

relações parentais. Contém as relações parentais, sem reduzi-las a ser somente sua

expressão. Essa incidência é mais do que um contexto passivo ou quadro delimitador de

espaço e menos do que um poder determinante e manipulador. Presença permanente e

cambiante, figura ou fundo, constituinte e constituído, as formas do fenômeno social

projetam-se para as relações interpessoais e para a psicologia do indivíduo sem,

contudo, determiná-las plenamente, pois também recebem, em cada contexto, a projeção

dos sentidos das condutas dos indivíduos e das relações interpessoais.

Merleau-Ponty destaca que é preciso “levar em consideração os fenômenos

psicológicos e os fenômenos sociais, sem todavia reduzir um ao outro” (MERLEAU-

PONTY, 1990, p. 51). Destaca ainda a presença do social no psicológico:

Há invasão do social até no corporal: sinais, símbolos instituídos, lágrimas. Não se trata de reduzir o indivíduo ao coletivo, o indivíduo transforma as instituições, mas não podemos isolar numa vida individual um único fato que não seja igualmente da competência da sociologia. (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 55)

As fronteiras entre psicologia e sociologia são cambiantes e imprecisas.

Mas há uma ambigüidade permanente, pois indivíduos e sociedade são fenômenos que

se relacionam e se condicionam mutuamente, mas são fenômenos de totalidade que não

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podem ser reduzidos um ao outro. O indivíduo é uma totalidade dentro de outra

totalidade, a sociedade.

Algumas noções abordadas podem sugerir alguma semelhança, em certos

aspectos, entre a concepção pontyana de desenvolvimento e outras abordagens

psicológicas: o surgimento de formas novas motivadas pelas fases anteriores; a

correlação indissolúvel entre maturação e aprendizagem e entre fatores fisiológicos e

psicológicos; a ocorrência de fenômenos de patamares em que períodos de relativa

estabilidade contêm fatores atuantes que irão produzir novas mudanças; a consideração

do papel psicológico do meio cultural. Mas há uma psicologia da criança própria de

Merleau-Ponty, referenciada na fenomenologia de Husserl e fundamentada na pontyana

fenomenologia da percepção, que pode ser caracterizada por uma abordagem própria de

três questões: da percepção, como elemento primordial da relação com o mundo e

fundamental para a compreensão do conhecimento; de conduta, como elemento de

integração dos fatores fisiológicos, psicológicos e sociais e que fundamentam o sentido

do processo de desenvolvimento; e a importância da noção do âmbito do vivido que

dispensa a noção de inconsciente e coloca inevitavelmente a conduta no mundo e na

relação com o outro. O mundo é o mundo das relações interpessoais e, também, o

mundo cultural, do social e do histórico. A conduta propriamente humana é

compreendida através da noção fundamental do sentido, que estabelece uma conexão

entre o passado e o futuro através da projeção, da antecipação, da finalidade. Configura-

se, assim, um presente histórico, próprio e pleno de possibilidades.

Essas noções podem ajudar na compreensão da escola, da arte e das aulas

de Arte e estarão presentes na pesquisa que empreendemos, manifestando-se na

compreensão do pesquisador sobre os fenômenos observados. Aqui, cabe destacar que o

professor é um outro significativo para a criança. Ele, de certo modo, também estabelece

uma mediação entre a criança e o mundo. Constitui-se, ele também, em um “filtro

através do qual o mundo é compreendido” (SZYMANSKI, 2003). Mas, enquanto os

pais, ou os adultos significativos que os substituem, são, conforme indicado por

Merleau-Ponty, os “sustentáculos” e os “pontos cardeais da vida infantil”, o professor

vai encontrar uma criança que já tem uma identidade em constituição, tendo constituído

para si um mundo no qual se localiza (SZYMANSKI, 2003). Desse mundo fazem parte

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a escola e a arte, de cuja compreensão, pelas crianças, fazem parte os sentidos

vivenciados no contato com a cultura social, em todas as suas formas. A criança percebe

o professor, sua fala, sua atividade e as atividades por ele propostas para ela como um

dos muitos mundos possíveis. Esse mundo do professor passa a integrar o mundo da

criança nos sentidos que ela projeta no contexto da escola e da aula. Durante a vivência

escolar a criança continua a relacionar-se com a família (SZYMANSKI, 2003) e com o

contexto cultural mais geral que a ela chega pelos mais diferentes meios. A relação da

criança com a arte, portanto, não se dá apenas nem inicialmente no contexto das aulas de

Arte.

Destacamos, a seguir, alguns princípios gerais para a compreensão da

criança e de sua psicologia, propostos por Merleau-Ponty:

4.1.2 – A Psicologia da Criança, segundo Merleau-Ponty.

O primeiro cuidado na Psicologia da Criança diz respeito à grande

distância existente entre o observador, adulto, e o observado, a criança. Há uma

tendência para destacar na criança apenas as diferenças existentes em relação ao adulto.

Há, também, dificuldade em discernir o que é o comportamento da criança e o que é

reação da criança à atitude do adulto, pois ela responde muito prontamente à presença do

adulto. Perde-se, desse modo, o sentido de sua conduta e a percepção do mundo que ela

tem. Cada fato demonstra o que a criança é e, ao mesmo tempo, o que o adulto pensa da

criança e como ele a trata (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 215). Os adultos tendem a

compreender o comportamento da criança com base na sua concepção de criança, isto é,

com base mais nas concepções vigentes na sociedade sobre o que é ou o que deve ser a

criança do que na observação da conduta da criança em seu contexto (MERLEAU-

PONTY, 1990, p. 216-217).

Ao levar para a criança questões que ela mesma não faz, acaba-se por

considerar a criança a partir de fórmulas e suposições do adulto. O observador,

referenciado em um pensamento lógico que não é próprio da criança, pode chegar a

conclusões que constituem apenas a sua visão a respeito da criança. Não há necessidade

de acreditar que a criança considere que o pensamento é uma coisa material, só porque

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responde que o pensamento situa-se na garganta ou na respiração. “Existe na criança

uma noção de corpo fenomênico indiviso em pensamento e extensão” (MERLEAU-

PONTY, 1990, p. 227). As questões do seu corpo, como pensamento e voz, estão

referenciadas, para a criança, em uma situação que é vivida como um interior e não

como objeto. Levando-se à criança questões sem ligação com a sua situação,

desconsidera-se seu universo, insiste-se em uma avaliação referenciada no adulto e foge-

se da compreensão da própria criança.

Não há, na criança, a busca de uma explicação total e suficiente, como é

típico do cientista. Não podemos deduzir das respostas das crianças uma concepção

infantil de mundo, pois não há, na criança, a busca de uma explicação total e suficiente

para os fenômenos. Não existe uma representação do mundo. O que é próprio da criança

é, justamente, a variabilidade, o polimorfismo, a transformação. Merleau-Ponty fala em

um polimorfismo infantil (MERLEAU-PONTY, 1990, 220), com a coexistência de

muitas possibilidades e uma grande variabilidade de formas. Desse modo, em relação

ao adulto, não há na criança nem um outro absoluto, totalmente diferente do adulto, nem

um mesmo, igual, mas menor e incompleto. É próprio do pensamento da criança

apresentar muitas ambigüidades, não podendo, portanto, ser caracterizado por uma

forma única, estável.

Por outro lado, Merleau-Ponty destaca que o pensamento da criança tem

diferenças, mas também pode, em muitos momentos, assemelhar-se ao do adulto. Não

há um abismo intransponível entre o adulto e a criança. Há situações próprias da criança,

mas elas podem ser relacionadas com o mundo adulto e pelo adulto compreendidas. A

criança, por sua vez, se projeta no mundo do adulto, vivendo uma prematuração, isto é,

vivenciando antecipadamente questões não postas pelo seu cotidiano, mas que ela

observa na vida dos adultos. Ela procura compreender o que vê e pode vivenciar, a seu

modo, situações típicas dos adultos (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 220-221).

A mentalidade infantil tem uma dimensão original e diferenciada em

relação ao adulto, mas isso não deve levar a excluir os adultos da educação nem levar a

considerar a criança como submersa em um mundo infantil alheio ao mundo do adulto e

em uma mentalidade infantil impermeável ao adulto (MERLEAU-PONTY, 1990, p.

218). A mentalidade infantil é diferente da mentalidade do adulto, mas não é fechada

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sobre si mesma. Há um fenômeno de identificação. A criança identifica nos adultos o

seu destino. Ela vê a si própria nos pais, que são seu modelo. Ela acredita que será como

eles. Essa relação implica em fenômenos de imitação, mas não é mera imitação: existe

uma tensão entre a criança, que não pode viver como o modelo, e o modelo – o adulto.

Na identificação da criança com os pais, a idade adulta surge como uma espécie de

perfeição, e a infância, como imperfeição (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 220).

As descrições do comportamento da criança podem muito facilmente

conformar-se mais à concepção e aos preconceitos que temos sobre o que é a criança e

como ela deve ser do que ao que observamos. “A própria idéia de representação do

mundo supõe a possibilidade de encontrar na criança uma tese sobre o mundo”

(MERLEAU-PONTY, 1990, p. 227). Questões amplas, complexas inclusive para o

adulto, próprias da cosmologia, podem levar as crianças a dar respostas animistas. Mas

em relação a questões de sua convivência, a criança sabe se mostrar razoável e se

aproximar bastante do pensamento adulto. Merleau-Ponty cita experimentos de Huang

que chegam a resultados diferentes dos de Piaget (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 257-

260). Esses experimentos não têm uma resposta correta a priori que será comparada com

a resposta da criança e questionam “sobre o que se passa na mente da criança”

(MERLEAU-PONTY, 1990, p. 257). Buscam o que a criança pensa questionando sobre

coisas e não sobre idéias. Apresentam fatos e observam a reação da criança diante

desses fatos. E concluem que as respostas da criança são racionais, no sentido comum da

expressão, que elas formulam hipóteses, mostram flexibilidade, procuram explicações

naturais. Não são respostas típicas de um cientista, de um físico, mas a criança “resiste

energicamente às explicações mágicas...” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 259). Assim,

Merleau-Ponty mostra que não há porque atribuir à criança um pensamento mágico, em

oposição a uma pretensa objetividade absoluta do adulto.

O universo da criança não é compreendido pela via do universo do adulto.

A percepção é diferente. A situação - que inclui a experiência anterior, o contexto

emocional e a intenção – interfere na percepção. Apesar de estímulos idênticos (formas,

cores, movimentos, imagens), a percepção não é a mesma. Há uma estrutura diferente

em que tudo é percebido de outra forma, com uma outra relação figura-fundo e com

outra noção de espaço e de tempo. A questão não é de falta de atenção; há uma outra

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atenção, de outro tipo. O universo de cores da criança é diferenciado e não está contido

pelo do adulto. Há uma outra estruturação, menos diferenciada, mais confusa. Do

mesmo modo, no problema da constância das grandezas dos objetos, a regulação

perceptiva não precisa ser interpretada negativamente, com base na comparação com a

constância intelectual. “Para compreender a verdadeira percepção da criança, é preciso

representar-se uma ordem que não é uma ordem racional, mas que também não é o

caos” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 229).

A criança vive o mundo no contato direto e inteiro de seu corpo com o

mundo, sem estabelecer separação entre corpo e pensamento ou entre os diferentes

sentidos. O universo do adulto não permite, por si só, a compreensão do universo da

criança. Há uma percepção diferente do espaço e do tempo. Há diferentes

intencionalidades e, muitas vezes, os sentidos das atividades não são os mesmos. Não há

como compreender o desenho da criança com base em comparações com o desenho de

perspectiva, pois o desenho de perspectiva é uma elaboração cultural e não um elemento

da percepção.

A psicologia da criança, segundo Merleau-Ponty, deve evitar dicotomias

artificiais, não existentes na situação, que é vivida em sua totalidade: falar e

compreender não são funções separadas; o motor e o perceptivo estão encadeados no

comportamento. A oposição entre inato e adquirido, referente ao comportamento, deve

ser substituída pela noção de conduta em situação. Não há aptidão que não seja relativa

a uma situação e não existe um único fenômeno psicológico que não seja, também,

cultural. Não há razão para opor maturação e aprendizagem, pois toda maturação

orgânica depende também de uma certa aprendizagem. Do mesmo modo, as funções

motora e perceptiva não podem ser separadas, assim como o fisiológico e o

psicológico andam juntos (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 225-227).

Para Merleau-Ponty, o desenvolvimento é um processo complexo e o

comportamento de cada criança não pode ser compreendido com base em traços

genéricos de uma natureza infantil. Deve-se considerar que o desenvolvimento

psicológico de cada criança é sempre singular e envolve processos aparentemente

contraditórios, como as noções de inato e adquirido, psicológico e social, aprendizagem

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e maturação, cognitivo e afetivo - que na conduta constituem uma totalidade

(MERLEAU-PONTY, 1990, p. 224-227).

4.1.3 – Merleau-Ponty e o desenho da criança.

O desenho, para a criança, é algo diferente do que é para um adulto

arquiteto. Ela não busca nos dar uma explicação do mundo. “A criança desenha como

se canta”. Por outro lado, a criança apresenta uma grande proximidade com o seu

desenho, não admitindo, em certos casos, que o desenho seja sequer copiado, dizendo:

“é o meu desenho, não o seu” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 261-262).

O seu desenho não pretende resumir ou explicar a coisa desenhada, como

o adulto que, quando faz o desenho de perspectiva, elabora uma visão temporal: um

único instante, um único ponto de vista. A criança não pretende fazer a anotação de

uma perspectiva, mas uma aproximação, uma mediação, uma introdução à coisa.

Merleau-Ponty adverte que estudos como os de Luquet, que pressupõem

um princípio realista para o desenho da criança, compreendem as características do

desenho infantil como imperfeições. O desenho é defeituoso, errado, porque a criança,

por desatenção ou incapacidade sintética, não faz aquilo que o adulto espera, não

apresenta correspondência com um modelo, com os padrões estabelecidos para fazer o

único desenho verdadeiro: o desenho realista, baseado na perspectiva renascentista.

Desse modo, a compreensão se faz pelo negativo, na comparação com um adulto

referenciado no desenho de perspectiva. Nessa interpretação, a criança poderia fazer o

verdadeiro desenho, se pudesse prestar atenção suficiente (MERLEAU-PONTY, 1990,

p. 263).

Essa conclusão fundamenta-se na noção da constância do objeto, já

refutada suficientemente pela Teoria da Forma, que compreende que, na percepção, há

sempre uma estruturação do campo perceptivo, mas o modo em que ocorre essa

estruturação não é sempre o mesmo. As crianças percebem as coisas de um modo

diferente, há uma outra atenção, uma outra estruturação de campo. Desse modo, o

desenho das crianças é um primeiro modo de estruturar as coisas e não uma

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estruturação imperfeita que desde o início seria feita no mesmo sentido da que faz o

adulto (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 264).

O desenho de perspectiva pretende fazer uma representação ponto por

ponto do objeto. Desse modo, é apenas “a relação pontual de uma profundeza sobre

um plano” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 265). Ao passo que, se o desenho for

considerado como uma marca do objeto no papel e não um substituto do objeto, outras

possibilidades podem ser consideradas como legítimas, como o assentamento de uma

figura sobre a outra, como é feito por crianças.

“No desenho de assentamento o signo não substitui a coisa, ele só é uma simples introdução à coisa e representa as faces tais como elas são vistas de todos os pontos de vista. Há aí uma vontade de mostrar que todos os lados são quadrados porque ‘tudo está ao mesmo tempo na coisa’. O desenho me transporta na coisa pelo que ela é em si mesma, enquanto há pouco o desenho substituía a coisa, um equivalente manejável desta” (p. 265-266).

O desenho de perspectiva corresponde a uma determinada concepção de

expressão, própria da pintura italiana renascentista, em que a pintura era compreendida

como um modo de rivalizar e substituir a natureza. Para isso, apoiava-se em técnicas

como a perspectiva. Por outro lado, o impressionismo, desde Manet, propõe mostrar o

contato pessoal com a coisa e não a própria coisa. Não se pretende uma imitação, mas

um registro indicativo “[...] de uma relação que vivemos com a coisa, um registro do

eco que o objeto desperta em nós.” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 266)

O desenho da criança é, ao mesmo tempo, mais objetivo e mais subjetivo

que o do adulto. É subjetivo porque pretende mostrar o contato pessoal da criança com

a coisa, mas é objetivo porque pretende mostrar a presença real da coisa. O desenho de

perspectiva do adulto é mais objetivo na sua correspondência com a coisa a partir de

um dado ponto de vista, mas não dá acesso à situação vivida nem à coisa em sua

unidade total. O desenho de perspectiva e o desenho da criança são dois casos

particulares, com dois diferentes modos de expressão (MERLEAU-PONTY, 1990, p.

267).

O desenho, para a criança, não tem o sentido de imitação. A incapacidade

sintética não pode explicar certas composições figurativas feitas pela criança, tão

desproporcionais em relação ao desenho realista. A criança faz, no desenho, uma

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abordagem ativa e afetiva da coisa. Ela busca desenhar a experiência que tem com a

coisa e, para isso, sente-se livre para simbolizar. As chamadas distorções ou

imperfeições são esquemas simbólicos dessa experiência. E a configuração desses

símbolos relaciona-se com o todo cultural em que a criança vive (MERLEAU-

PONTY, 1990, p. 268).

O modo de desenhar da criança expressa suas relações com as coisas, seu

contato com a visibilidade do mundo e sua relação com os outros. As relações da

criança com o mundo não são as mesmas que a do cientista que contempla e analisa os

objetos. Para compreender o desenho da criança devemos ultrapassar a pretensão de

separar aspectos sensoriais de outros não sensoriais e conceber a percepção em relação

afetiva e total com o mundo: “toda qualidade (por exemplo: quente, frio, úmido etc.) é

reveladora de um certo modo de sincronização do sujeito encarnado com o mundo

[...]” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 269)

4.2) Pintura, corpo e Ser.

Merleau-Ponty concebe a percepção como elemento fundamental da

compreensão e do sentido. Questiona a noção de consciência de si como produto puro

do pensar – o cogito de Descartes – e o pensamento empirista que concebe a

consciência como constituída pela incidência de fenômenos externos através dos

órgãos sensoriais.

Essas duas abordagens, a primeira própria da filosofia idealista e a

segunda característica do empirismo científico, fundamentam-se na separação entre

sujeito e objeto operada pela filosofia clássica. Essa separação radical, que concebe

sujeito e objeto como realidades distintas e com existência independente, leva a operar

uma redução de uma à outra em todo o momento de reaproximação, ou seja, em todo

relacionamento entre sujeito e objeto. No pensamento subjetivo, tudo é consciência.

No empirismo científico, tudo é objeto (CHAUÍ, 1984, p. X).

A superação dessa dicotomia passa pela percepção. Há uma dimensão de

relação do homem com o mundo que é anterior às representações dadas pela

consciência. Esta relação está no mundo do vivido e é alcançada pela percepção.

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A percepção institui a existência do homem no mundo. É uma existência

prévia, anterior ao cogito, onde o corpo se reconhece em um mundo sensível. A arte da

pintura encontra-se nessa dimensão, na qual o mundo se apresenta para a percepção,

mas não sofre a cobrança de uma prática objetivante, operada pelo tecnicismo

empirista, nem a imposição de alguma correspondência com uma representação, com

uma idéia ou modelo lógico, próprias do pensamento subjetivista, idealista ou

logicista. O estudo do olhar e a investigação fenomenológica da pintura ajudam a

esclarecer essa identidade primordial entre o homem e o mundo.

Ver e olhar estão superpostos. A visão tem movimento, o movimento do

olhar que perscruta o mundo. Com a visão, o corpo recebe o mundo. Mas uma visão

que apenas recebesse os estímulos do mundo seria uma visão enlouquecida, perdida

entre milhões de luzes. A visão liga o corpo ao mundo através de seu movimento, que

é o olhar. Na visão, o corpo recebe o mundo. No olhar, o corpo se lança sobre o

mundo. O olhar é projetivo.

Com a visão, o corpo descobre e reconhece o mundo, colocando-o ao

alcance. O visível e a mecânica do movimento não são uma decisão do pensamento,

mas a seqüência da visão. Aquele que vê aproxima-se do mundo pelo olhar, mas não

se apropria do que vê – ele “toca” o mundo e se deixa tocar. Com o olhar, ele abre-se

para o mundo e, ao mesmo tempo, procura o mundo, projeta-se nele. O pensamento

não conduz o olho. Quando sobrevém o pensamento, o olhar já se moveu. O corpo

não é movido, move-se!

O reconhecer o próprio corpo permite o reconhecimento do mundo. A

visão só pode reconhecer o mundo a partir do em si do corpo. É nessa relação corpo-

mundo que a visão pode descobrir o mundo. E faz isso com base em uma espécie de

identidade primordial entre o corpo e o mundo.

O corpo é vidente e visível, vê a si mesmo (MERLEAU-PONTY, 1984a,

p. 88). Enquanto o pensamento pensa transformando as coisas em pensamento,

constituindo conceitos e reduzindo as coisas aos conceitos, o corpo coloca-se no

mundo, toca-se, se vê naquilo que vê. A visão acontece imersa no mundo, percebendo

o corpo como um si entre as coisas. Não há divisão entre o ser que vê e a visão. É um

si entre coisas, é uma das coisas e as coisas são um prolongamento do corpo, pois elas

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estão ao seu redor e a visão toma posse do mundo para o corpo, sem domá-lo,

apropriá-lo, reduzi-lo a si.

O corpo humano é muito mais que uma soma de funções. Só existe um

corpo humano quando aquele que vê torna-se visível para si e se sabe visível para o

mundo, quando o corpo que sabe de si reflete a si mesmo no mundo. Há um tomar

ciência, um saber de si e do mundo pelo corpo, que é anterior ao pensamento. O corpo

se coloca no mundo com um sentido de si na relação com o mundo. O corpo próprio,

que se coloca no mundo e só no mundo pode se reconhecer, é o fundamento do ser

humano.

A pintura aborda o enigma do corpo porque nasce da inspeção do mundo

feita pelo corpo. Na pintura o olhar vê mais do que aquilo que é visível, pois o que

existe de invisível deve-se tornar visível para manifestar-se na pintura. O calor ou o

frio, o medo ou a alegria, todas as sensações e sentimentos, a expectativa do que vem e

a falta do que se foi podem, na pintura, aparecer para o mundo.

Fala-se em cópia do real, o que é uma impropriedade. O desenho não é

uma cópia. Para fazer uma cópia de um vaso de flor teríamos que obter um vaso igual

e plantar uma planta da mesma espécie. E mesmo assim não seria uma cópia: a planta

não cresceria exatamente na mesma forma e disposição. O desenho, assim como a

pintura, também não é uma segunda coisa ou um substituto das coisas. Admiramos na

pintura coisas que em si mesmas não são consideradas como espetáculo. A pintura nos

traz a marca das coisas no corpo do pintor, uma certa visão do interior do corpo do

pintor e a aparência do mundo como imagem para um corpo.

Nossos olhos são muito mais do que receptores. A visão aprende vendo,

aprende por si mesma. O olho recebe o impacto do mundo e a pintura o restitui pelos

traços da mão ao visível. “A pintura jamais celebra outro enigma a não ser o da

visibilidade” (MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 91).

O corpo que olha institui um duplo fenômeno: o mundo vem até o corpo

que olha e o corpo vai até o mundo. O mundo se faz mundo pelo olhar, e o ser se faz

ser pelo mundo. Ambos se constituem mutuamente como coisas semelhantes, como se

feitos do mesmo material. O ser-no-mundo se faz pela percepção.

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O pintor busca na montanha os meios visíveis para ela se fazer montanha

aos seus olhos – e aos nossos! A “interrogação da pintura visa a essa gênese secreta e

febril das coisas em nosso corpo” (MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 92).

O pintor submerge no mundo e as coisas se fazem nele através da visão.

Pela visão o mundo se manifesta no corpo. Não é apenas o pintor que pinta, mas é

também o mundo que se pinta pelo corpo do pintor. A pintura realiza de modo mais

evidente a unidade do mundo: é a unidade do ser com o mundo, através da visão e do

corpo que pinta. O mundo não apenas é visto pelo olho que vê, mas ele se manifesta,

pela visão, no corpo daquele que vê. A pintura devolve ao mundo o próprio mundo que

se vê pelo olho do pintor e se manifesta pelo corpo que pinta. O corpo, desse modo, vê

e é visto, ao mesmo tempo. O pintor é parte do mundo que pinta. A visão realiza a

reflexividade do mundo.

A concepção idealista cartesiana aborda a pintura como a representação

do objeto, através de sua figura. Para essa concepção, é o pensamento que realmente

constrói a imagem da coisa com base nos estímulos fornecidos pela figura. A pintura,

desse modo, passa a ser uma espécie de texto que é lido pelos olhos, e a semelhança é

estabelecida pelo pensamento. Essa concepção não pode explicar o sentimento das

coisas através da pintura, pois a semelhança não é propriamente vista, mas é concebida

pelo pensamento. Para o pensamento cartesiano as coisas não pertencem a um mundo

geral e a um mundo privado, ao mesmo tempo: existe apenas um pensamento externo,

que não faz parte do mundo, e que decifra os sinais dados no corpo. A visão continua

inexplicável, assim como as analogias e o sentimento de presença de algo que não

existe. A pintura, pela concepção cartesiana, é apenas uma espécie de posse

intelectual, um artifício para proporcionar, através de sinais suficientes, a visão de um

objeto como se fosse o próprio objeto. Desse modo, evidentemente, a pintura não pode

passar de uma frivolidade, uma espécie de truque do pensamento. A pintura é reduzida

a desenho, o desenho é considerado apenas como perspectiva e a perspectiva como a

única projeção verdadeira do espaço. São ignoradas as cores e a mensagem sem

conceito que elas proporcionam, mesmo sem ter relações reguladas com as

propriedades das coisas (MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 95-96).

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A profundidade do espaço tem algo de paradoxal: vejo objetos que estão

atrás, isto é, que não vejo! Essa superposição não faz parte das coisas e não faz parte

de sua definição: ela exprime a relação das coisas que estão no mundo com uma das

coisas, o meu corpo. Mas o espaço de Descartes é o espaço absolutamente definido,

totalmente positivo. Ao conceber um espaço totalmente pré-determinado, existente

independentemente de qualquer ponto de vista, passou a trabalhar com um pensamento

de espaço e não com o espaço real do mundo vivido. O espaço cartesiano tem uma

existência ideal, independente do mundo. Plenamente definido em suas três dimensões,

o espaço cartesiano é exterior ao mundo, pois está “ [...] além de todo o ponto de vista,

de toda latência, de toda profundidade, sem nenhuma espessura verdadeira [...]”

(MERLEAU-PONTY, 1984a p. 97).

Esse mesmo pensamento vai fazer das técnicas do Renascimento um

modelo de perfeição, como se fossem as únicas verdadeiras, aprisionando o desenho

na perspectiva e em um modelo específico de perspectiva, instituída como única

verdadeira. Mas não há perspectiva verdadeira, pois todo desenho incorpora uma

deformação na medida em que não pode existir projeção exata do mundo existente em

um espaço bidimensional. A pintura não pode ser reduzida a uma técnica e sua

linguagem nada tem de natural. O estilo incorpora o autor e o contexto. A perspectiva

do renascimento é apenas um momento, uma maneira de pintar entre muitas outras.

O pensamento não estabelece, não constrói ou realiza a visão. A

compreensão do espaço se inicia com o corpo que sabe de si e estabelece um lugar

fundamental e primordial, um aqui ontológico, capaz de dar sentido a todos os outros

lugares no espaço, os ali das coisas do mundo. Esse lugar inicial é o lugar da

consciência, o seu corpo. Esse corpo não é, para a consciência, apenas um objeto entre

outros objetos. É a sua casa e sua morada. A consciência pensa a partir do corpo. A

unidade entre corpo e pensamento reconhece o lugar e o espaço do corpo a partir do

qual a distância exterior pode ser compreendida (MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 98-

99).

A visão não pode ser entendida como pensamento, pois o que tem de

pensamento é de um pensamento unido a um corpo. Ela tem, em si, o poder de

manifestar o mundo antes de todo o pensamento. Referencia-se no corpo para mostrar

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o mundo e receber o mundo. A luz é uma ação à distância, em que o mundo age sobre

o corpo e o corpo age sobre o mundo.

A primeira compreensão do mundo, em que o Ser pode se saber no

mundo e pelo mundo saber de si, se dá pela percepção. O ser-no-mundo se sabe no

mundo pela percepção. Mais do que isso: ele só pode existir com um ser e em um

mundo pela percepção. Não há um corpo passivo que recebe do mundo a sua

conformação, nem uma inteligência fundante que estrutura o mundo a partir de uma

idéia pré-existente e metafísica, descoberta pelo pensamento. Só pela percepção pode

existir um corpo no mundo, um corpo capaz de saber de si e de saber do mundo.

A percepção antecipa o sentido de ser no mundo, pois é um abrir-se

primordial para o mundo e o primeiro projetar-se no mundo capaz de instituir um em si

e um mundo. Nessa abertura já existe um sentido por onde poderá realizar-se uma

compreensão.

O mundo é aquilo que vemos, é o percebido, está na dimensão do

sensível. A percepção é o contexto primordial da compreensão. O inteligível não

domina o sensível, mas acontece imerso no mundo do sensível.

4.2.1 – Arte, vivência e aprendizado.

Para Merleau-Ponty, a arte se fundamenta no âmbito do vivido. É,

portanto, em primeiro lugar, vivência. A obra de arte não é criada pelo pensamento,

mas, na relação do corpo com o mundo, pela percepção. Estamos, portanto, no âmbito

do vivido, da existência, do mundo sensível. A percepção funda esse mundo, fazendo

do Ser um ser-no-mundo e instituindo a existência do Ser no âmbito do vivido. Daí a

dificuldade do pensamento cartesiano em lidar com a arte, pois ele situa a existência

no pensamento que, para a fenomenologia da existência, só pode existir a partir de um

corpo e de sua existência no mundo pela percepção, que é anterior ao pensamento.

A obra de arte advém desse mesmo mundo que habitamos, que é

apropriado pela percepção do artista, recriado pelo seu corpo e devolvido ao mundo

pela obra criada. O mundo da arte não está em um mundo metafísico de idéias, mas no

mundo que habitamos. Fundada no âmbito do vivido, é um modo de habitar o mundo:

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Emprestando seu corpo ao mundo é que o pintor transforma o mundo em pintura. Para compreender essas transubstanciações, há que reencontrar o corpo operante e atual, aquele que não é um pedaço de espaço, um feixe de funções, mas um entrelaçado de visão e de movimento. (MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 88)

Originada na relação entre corpo e mundo, a arte não se submete ao

pensamento. Aquilo que chamamos de cognitivo, a inteligência e o conhecimento, ou o

âmbito do inteligível, é, na arte, instrumento da relação com o mundo. Nessa relação, o

sentido é instituído no próprio movimento do corpo para o mundo e do mundo para o

corpo. “A alma pensa segundo o corpo e não segundo ela própria” (MERLEAU-

PONTY, 1984a, p. 99). A pintura, para Merleau-Ponty, desafia o pensamento

cartesiano que, em tudo e por tudo, sempre coloca o pensamento em primeiro lugar:

“[...] não se vê como um Espírito pudesse pintar” (MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 88),

ao passo que o “pintor não pode consentir em que nossa abertura ao mundo seja

ilusória ou indireta” (MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 108), como supõe a metafísica

cartesiana, para a qual a imagem é formada pelo pensamento. É, portanto, no âmbito

do vivido que a arte pode ser compreendida, pois ela é modo do corpo habitar o mundo

e não conhecimento conceitual, idéia ou manifestação do pensamento. Nesse sentido,

arte é vivência.

Essa vivência se manifesta não apenas no momento da criação, mas

naquilo que é chamado de fruição, apreciação, contemplação ou observação da obra de

arte. Esse fenômeno se inicia no momento da criação: o artista perscruta a obra, no

próprio movimento de criação, buscando os gestos que sua sensibilidade estética pede,

no rumo da completude da criação. Mas é no testemunho do outro que a obra se

realiza:

A obra que se cumpre não é, logo, a que existe em si como coisa, mas a que atinge o espectador, convidando-o a retomar o gesto que a criou e, saltando mediações, sem outro guia que não o movimento da linha inventada, a alcançar o mundo silencioso do pintor, ora proferido e acessível. (MERLEAU-PONTY, 1980b, p. 150)

Também o espectador não pensa a obra. Ele só consegue aproximar-se da

obra se “retomar o gesto que a criou”. Não é o pensamento que dirige esse gesto, pois,

para Merleau-Ponty, o espectador não tem “outro guia que não o movimento da linha

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inventada”. É esse mergulhar na obra “saltando mediações” que permite “alcançar o

mundo silencioso do pintor”.

Dufrenne, filósofo que, como Merleau-Ponty, também partiu das

investigações de Husserl, aprofundou a pesquisa fenomenológica em estética, inclusive

a respeito da experiência do espectador, ou fruidor, da obra de arte. Para ele,

[...] a percepção estética procura a verdade do objeto, assim como ela é dada inteiramente no sensível. O espectador, que é todo olhos e todo ouvidos, entrega-se sem reservas à epifania do objeto e a intenção perceptiva culmina numa espécie de alienação comparável à alienação do criador que se sacrifica às exigências da criação. (DUFRENNE, 2002, p. 50-51)

A obra criada só pode existir na presença do espectador. E este, de certo

modo, também é um criador. Para a fenomenologia da existência, a fruição da obra de

arte é um gesto que se realiza na intenção perceptiva, um mergulhar “sem reservas”

que “salta mediações”. O espectador dirige-se pela sensibilidade. Nos trechos citados,

ele busca o “mundo do pintor” (Merleau-Ponty) ou a “verdade do objeto” (Dufrenne).

Tanto no momento da criação como no olhar do espectador é a

sensibilidade que dirige o Ser. É um corpo, situado na dimensão pré-reflexiva da

existência, que se dirige para a criação da obra através dos gestos do pintor ou do olhar

do espectador. Esse olhar também é gesto, também é corpo e também cria, ou recria, a

obra. Não é a inteligência, ou o conhecimento, que dirige o fenômeno artístico.

Diremos, neste estudo, referindo-nos a essa questão de modo sucinto, que a arte é

vivência. É no âmbito do vivido que o corpo, na sua intencionalidade perceptiva e

dirigido por sua sensibilidade, cria e recria a obra de arte no gesto do artista ou do

espectador.

Finalmente, o aprendizado. É um corpo que se dirige para a arte em um

dos possíveis modos de habitar o mundo. Nessa relação, o corpo realiza um gesto

carregado de sentido, dirigido pela sensibilidade estética. Nesse mesmo gesto, ao

mesmo tempo se institui como corpo que cria e institui a obra de arte. Essa

compreensão distancia-se de qualquer noção que pretenda situar a arte fora da história

ou da vida social, pois a percepção sensível e estética que dirige a relação com a obra

de arte só pode existir em alguma forma. Não há existência sem forma e a própria

percepção, que institui a existência do ser no mundo, se manifesta no sujeito de algum

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modo, entre infinitos modos possíveis. O sujeito desenvolve seu modo de perceber, sua

percepção sensível e estética, na relação com o mundo, que é um mundo cultural. Esse

desenvolvimento pressupõe também a aprendizagem. O corpo que vê e escuta, o corpo

que dirige sua sensibilidade para a pintura ou para a música, é um corpo que aprendeu

a ver e escutar em um mundo cultural, portanto social e historicamente constituído.

Há um aprendizado do olhar. O olhar é gesto do corpo. Olhar para a obra

de arte é um certo tipo de olhar. Há, nele, uma certa intencionalidade que institui o

sujeito como criador e como espectador da obra de arte. Sem essa intencionalidade,

nada pode acontecer. O homem que olha o quadro avaliando se ele irá caber em uma

determinada caixa, para transportá-lo, não pode ser, nesse gesto, um espectador ou um

fruidor. O mero cair ocasional da tinta sobre o papel não institui a pintura como obra

de arte. Há uma intencionalidade, uma atitude, um modo de olhar, um movimento do

corpo com certo sentido. Há um sentido artístico que habita o próprio gesto que se

projeta para a arte, na criação ou na fruição. Esse gesto, esse olhar, é aprendido na

cultura. E esse aprendizado também é vivência. Não é um pensamento que pode

instituir o modo de olhar para a arte. É o próprio corpo que olha, vivendo por si o que

ele percebe e intui na cultura, e nesse olhar, aprende como olhar. Há um projeto, uma

pré-configuração, que orienta o gesto. O corpo procura na arte o que ele pode

encontrar, conforme as indicações que ele vivencia no olhar do outro, nas indicações

do mundo cultural. Nessa vivência de sua relação com a arte o corpo aprende a olhar e

encontra seu estilo de criar e seu gosto de espectador e fruidor: “ [...] precoce ou tardia,

espontânea ou formada no museu, em todo o caso a sua visão só aprende vendo, só

aprende por si mesma” (MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 89, grifo nosso).

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Parte III – A PESQUISA

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CAPITULO 5 – Método.

5.1) A pesquisa qualitativa fenomenológica.

A crítica ao referencial positivista foi o ponto de partida para o

surgimento do paradigma qualitativo em pesquisa científica, que abrange na mesma

denominação diferentes concepções de conhecimento. Segundo Alda Judith Alves-

Mazzotti, três aspectos comuns podem ser destacados para configurar o campo da

pesquisa qualitativa: a visão holística, a abordagem indutiva e a investigação

naturalística (ALVES-MAZZOTI e GEWANDSZNAJDER, 2002, p. 130-131).

Minayo destaca o aspecto essencialmente qualitativo da pesquisa em

Ciências Sociais: “A realidade social é o próprio dinamismo da vida individual e

coletiva com toda riqueza de significados dela transbordante” (MINAYO, 2003, p. 15).

Esse aspecto qualitativo aplica-se também aos fenômenos psicológicos e deve incidir

também na pesquisa em Psicologia da Educação, pois os fenômenos de que trata não

podem ser reduzidos a variáveis quantificáveis.

A pesquisa qualitativa caracteriza-se pela sua capacidade de abordar

fenômenos complexos, fenômenos subjetivos e de intersubjetividade, fenômenos não

quantificáveis e fenômenos cujas características têm alto grau de imprevisibilidade.

Para Minayo, a pesquisa qualitativa

[...] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 2003, p. 21-22)

Merleau-Ponty propõe uma metodologia para a psicologia da criança que

destaca a importância do raciocínio indutivo e do procedimento descritivo, a

caracterização do contexto em que o fenômeno psicológico se manifesta e a

valorização dos aspectos qualitativos na investigação (MERLEAU-PONTY, 1990, p.

215 a 236).

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A coerência com os fundamentos teóricos e filosóficos adotados neste

trabalho aponta para o campo da pesquisa qualitativa como referência inicial e ponto

de partida para o estabelecimento da metodologia de pesquisa.

A pesquisa qualitativa busca o fenômeno, aquilo que se mostra, que se

manifesta no tempo e no espaço. O fenômeno psicológico manifesta-se em um ser, em

um sujeito situado no mundo e, portanto, em um contexto: “Há sempre um sujeito, em

uma situação, vivenciando o fenômeno” (MARTINS e BICUDO, 1989, p. 75).

O próprio problema de pesquisa, que tem seu foco na investigação do

sentido da atividade da criança, invoca a pesquisa qualitativa e algumas de suas

características, especialmente na modalidade fenomenológica, chamada por Martins e

Bicudo de modalidade da estrutura do fenômeno situado (MARTINS e BICUDO,

1989, p. 75).

A pesquisa qualitativa permite uma abordagem mais centrada no

específico. A generalização perde importância enquanto tem destaque a compreensão

do fenômeno. A investigação não busca uma causalidade. Desvencilhando-se da noção

de causa e efeito, busca a compreensão do fenômeno em suas características

estruturais.

Para isso tem grande importância o aspecto altamente descritivo da

pesquisa qualitativa, que tem na descrição do fenômeno tal como ele se apresenta a

principal fonte dos dados de pesquisa. Na pesquisa qualitativa fenomenológica a

descrição deve realizar o registro do discurso do sujeito pesquisado, com a sua

compreensão do fenômeno, na qual projeta-se o sentido. O caso concreto vivido pelo

sujeito é o objeto da investigação. Martins e Bicudo detalham esse aspecto da

abordagem qualitativa fenomenológica:

A preocupação se dirige para aquilo que os sujeitos da pesquisa vivenciam como um caso concreto do fenômeno investigado. As descrições e os agrupamentos dos fenômenos estão diretamente baseados nas descrições dos sujeitos, e os dados são tratados como manifestações dos fenômenos estudados. O objeto da investigação é coletar descrições e trabalhar a essência do fenômeno individual através das descrições obtidas [...] as descrições se referem às experiências que os sujeitos viveram. Nelas estão a essência do que se busca conhecer e a intencionalidade do sujeito. (MARTINS e BICUDO, 1989, p. 30 e 36)

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A descrição, neste trabalho, deverá incluir, também, a própria atividade,

as interações que ocorrem e o contexto em que as atividades são realizadas. Segundo

Alves, “os fenômenos só podem ser compreendidos dentro de uma perspectiva

holística, que leve em consideração os componentes de uma dada situação em suas

interações e influências recíprocas” (ALVES, 1991, p. 55).

Nessa modalidade de pesquisa o pesquisador deve adotar a postura de

recusar qualquer pressuposto teórico que possa circunscrever ou definir alguma

característica do fenômeno estudado. Seus pressupostos devem realizar apenas uma

pré-configuração do problema, de modo a indicar o método e os procedimentos de

pesquisa. O pesquisador deve deixar que os sujeitos pesquisados façam sua própria

descrição do fenômeno estudado, pois podem fazê-lo melhor que o pesquisador.

Isso não significa um isolamento do pesquisador em relação aos sujeitos

pesquisados. A compreensão do fenômeno irá se realizar na relação entre o

pesquisador e o sujeito pesquisado. E essa questão marca mais um aspecto

fundamental da metodologia adotada: o fenômeno não é concebido como um objeto de

estudo neutro para o pesquisador, dele apartado e sobre o qual o pesquisador pretende

lançar o seu pensamento com a pretensão de abarcá-lo em sua totalidade, controlá-lo e

conceituá-lo. Pelo contrário, o pesquisador, na pesquisa qualitativa fenomenológica,

identifica-se com o sujeito pesquisado e busca a compreensão do fenômeno na

intersubjetividade e no diálogo.

Um último aspecto metodológico merece ser destacado: a imersão do

pesquisador no ambiente em que se manifesta o fenômeno, em contato direto com os

sujeitos pesquisados.

O presente trabalho adota, na investigação do problema de pesquisa, o

referencial qualitativo em sua abordagem fenomenológica, explicitada por Martins e

Bicudo (MARTINS e BICUDO, 1989).

5.2) Procedimentos e instrumentos de coleta de dados.

Na pesquisa qualitativa fenomenológica, o fenômeno tal como ele se

apresenta é a principal fonte de dados. O presente trabalho dirige-se para aula de Arte

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na escola e para o sentido da atividade da criança nessa aula. O sentido da atividade,

portanto, é o fenômeno que constitui o problema de pesquisa e o foco da investigação,

considerando-se que a atividade da criança na aula de Arte é a atividade com seu

sentido. O sentido, desse modo, integra indissoluvelmente a atividade, é parte

constituinte da própria atividade, constituindo a intencionalidade do aluno como

aspecto inerente ao próprio ser do fenômeno.

O problema de pesquisa exigiu que a atividade do estudante na sala de

aula fosse considerada como elemento fundamental e, portanto, como fonte de dados.

Mas é o discurso do aluno que permitiu que o sentido dessa atividade se desvelasse. O

discurso manifesta a intencionalidade, projeta o sentido. O discurso do aluno recebeu

uma abordagem hermenêutica, em que o pesquisador foi do discurso para a

interpretação e, dessa, de volta para o discurso, até que múltiplos sentidos se

explicitassem. Também a aula, com as orientações do professor na interação com o

contexto escolar, foi considerada como fonte de dados, através da interpretação dos

relatos de observação.

A pesquisa qualitativa permite a utilização de muitos instrumentos para a

coleta de dados, sendo que os mais utilizados foram a observação, a entrevista e a

análise documental (ALVES-MAZZOTI e GEWANDSZNAJDER, 2002, p. 163). Os

relatos dos alunos, obtidos em uma reunião entre alunos de uma das classes com o

pesquisador, foram considerados como fonte documental.

Esses instrumentos mostraram-se adequados para acessar a fonte e para a

obtenção dos dados. A observação das aulas de Arte garantiu a obtenção de dados

sobre a atividade do sujeito, a criança, em seu contexto, a aula. Nessa observação

ocorreram entrevistas, conversas entre o pesquisador e as crianças, imersos no próprio

ambiente em que a atividade se realizava, a sala de aula. Essas entrevistas, de certo

modo, confundem-se, entrelaçam-se com a observação, pois faziam parte do próprio

contexto, afetado, sem dúvida, pela presença do pesquisador.

A reunião com os alunos permitiu que os alunos expressassem sua

compreensão na forma de redação. Essa atividade não é estranha ao contexto e

incorporou, também, o aspecto coletivo da compreensão das aulas de Arte.

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Realizou-se, também, uma entrevista que pode ser qualificada como

semi-estruturada, conforme mencionado por Alda Judith (ALVES-MAZZOTI e

GEWANDSZNAJDER, 2002, p. 168). Foi uma entrevista com duas alunas, realizada

no pátio da escola, em que os sujeitos foram escolhidos aleatoriamente, mas o relato

foi conduzido em perguntas abertas e dirigidas. A entrevista coletiva, realizada com

toda uma classe de 6a. série, com trinta e um alunos, não resultou em dados, pois

configurou-se de modo um tanto caótico, assumindo o caráter de aquecimento e

preparação das atividades seguintes. Realizaram-se reuniões de grupos, procedimento

também integrado ao ambiente, pois os alunos estão acostumados a esse tipo de

procedimento, que resultaram em relatórios elaborados coletivamente, também

considerados como documentos e fonte primária de dados, assim como as redações

individuais.

A entrevista com a professora configurou-se como entrevista reflexiva,

procedimento desenvolvido por Heloísa Szymanski (SZYMANSKI, ALMEIDA e

PRANDINI, 2002). Esse tipo de entrevista considera o caráter de interação social da

entrevista e está “submetida às condições comuns de toda interação face a face, na qual

a natureza das relações entre entrevistador/entrevistado influencia tanto o seu curso

como o tipo de informação que aparece” (SZYMANSKI, ALMEIDA e PRANDINI,

2002, p.11). Essa modalidade de entrevista considera a necessidade de “...criar uma

situação de confiabilidade para que o entrevistado se abra...” (SZYMANSKI,

ALMEIDA e PRANDINI, 2002., p. 12). Mas essa necessidade está inserida em um

contexto de credibilidade, em que o pesquisador respeita o saber do entrevistado,

buscando uma relação de horizontalidade na relação com o entrevistado, uma condição

de igualdade de poder. O caráter da abordagem contempla, também, a consideração

das eventuais estratégias de ocultamento (SZYMANSKI, ALMEIDA e PRANDINI,

2002, p. 13), o que foi percebido pelo pesquisador.

Mas o caráter reflexivo dessa modalidade de entrevista encontra-se

principalmente na consideração da entrevista como momento de elaboração do e

organização do pensamento do entrevistado e no retorno ao próprio entrevistado de sua

própria fala, através da expressão, pelo entrevistador, de sua compreensão, permitindo

a correção de eventuais distorções e a retomada do discurso pelo entrevistado em

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novas condições (SZYMANSKI, ALMEIDA e PRANDINI, 2002, p. 14 e 15). Com

base nesses fundamentos, o método da entrevista reflexiva orienta os procedimentos de

entrevista, como a apresentação do entrevistador e explicitação da finalidade da

pesquisa, a consideração de um período de aquecimento mais informal com a

possibilidade de realização de atividades específicas que facilitem o processo de

comunicação, a formulação de questão desencadeadora e de questões de

esclarecimento, focalizadoras e de aprofundamento, e os procedimentos de devolução

da compreensão do pesquisador (SZYMANSKI, ALMEIDA e PRANDINI, 2002, p.

16 a 58).

5.3) Análise dos dados.

Os procedimentos de coleta de dados geraram dados que foram

organizados pela tematização e interpretação.

Alves destaca que este

[...] é um processo complexo, não-linear, que implica em um trabalho de redução, organização e interpretação dos dados, e que se inicia já na fase exploratória, acompanhando toda a investigação em uma relação interativa com os dados empíricos: à medida em que os dados vão sendo coletados, o pesquisador vai procurando tentativamente identificar temas e relações, construindo interpretações e gerando novas questões e/ou aperfeiçoando as anteriores, o que, por sua vez, o leva a buscar novos dados, complementares ou mais específicos, que testem suas interpretações, num processo de “sintonia fina” que vai até a análise final. (Alves, 1991, p. 60)

Nesse processo utilizamos a hermenêutica fenomenológica como

principal procedimento de análise de dados. A hermenêutica utiliza um caminho de

pensamento e não se constitui em uma técnica de tratamento de dados (SZYMANSKI,

ALMEIDA e PRANDINI, 2002, p. 64).

Martins e Bicudo se referem, ao descreverem os procedimentos de

análise, a momentos de análise, destacando que o termo passos é inadequado, pois se

trata de momentos de reflexão (MARTINS e BICUDO, 1989, p. 102). Desse modo,

procedeu-se à análise hermenêutica dos textos que compõem a transcrição do discurso

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do sujeito pesquisado, expresso por ocasião das entrevistas. Foi considerado, também,

no procedimento interpretativo, o próprio texto dos sujeitos, na forma de redações.

Os momentos de análise descritos por Martins e Bicudo (1989, p.102-

104), incorporados à proposição de Szymanski , são:

• Imersão Empática no Mundo da Descrição. O pesquisador “...deve

proceder em direção à intersubjetividade [...] em uma relação de compreensão

mútua ... [utilizando] ... a descrição como um ponto de acesso às situações

vividas pelo sujeito”.

• Redução do Ritmo de Análise e Permanência na Descrição. O

pesquisador se concentra em pormenores da descrição, buscando um lugar na

descrição que permita acesso direto à vivência do sujeito.

• Ampliação da Situação. O pesquisador busca o sentido na descrição,

de forma a ampliar o seu significado.

• Suspensão da Crença e Interesse Intenso. O pesquisador mantém a

dúvida sobre o significado do discurso e, ao mesmo tempo, empatia com o

sujeito, procurando, para além da verdade ou da falsidade, “.... compreender a

gênese, as relações e as estruturas do fenômeno estudado...”.

• Passagem dos Objetos para os Significados. O pesquisador busca

isolar unidades de significado que, na situação descrita, encontram-se misturadas

e mutuamente imbricadas (SZYMANSKI, ALMEIDA e PRANDINI, 2002, p.

65).

Esses procedimentos de reflexão permitiram que se estabelecesse um

diálogo entre a compreensão inicial do todo e as unidades de significado que se

destacaram nos relatos e nos textos, em uma compreensão cada vez mais ampla e

profunda do sentido. As unidades de significado foram compreendidas através de

insights sobre a fala do sujeito e sua intencionalidade (MARTINS e BICUDO, 1989, p.

99). O relacionamento entre as unidades de significado proporcionou o acesso ao

sentido do todo. “Através da reflexão, as unidades são agrupadas em categorias

segundo um critério comum. A síntese expressa em proposições irá indicar o sentido

do todo, depois de passar por todos os momentos de análise citados acima”

(SZYMANSKI, ALMEIDA e PRANDINI, 2002, p. 66).

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CAPITULO 6 – A pesquisa: o sentido vivido e as aulas de Arte.

Neste estudo, a questão do sentido do ensino de Arte é remetida àqueles

que são os destinatários das propostas de ensino de Arte, ou seja, as crianças e

adolescentes que vão à escola, os alunos que freqüentam as aulas de Arte no ensino

fundamental: para eles, que sentido têm as aulas de Arte?

Não se buscou a representação ou os conceitos que as crianças têm sobre

as aulas de Arte. A partir do enfoque fenomenológico, a pesquisa buscou investigar o

sentido vivido, a “intencionalidade operante..., aquela que forma a unidade natural e

antepredicativa do mundo e de nossa vida” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 16).

O sentido é anterior à racionalização e ao estabelecimento dos conceitos e

definições. Ele atua em um nível da existência primordial, anterior à intelecção e ao

pensamento racional. O sentido do que fazemos está na própria vivência e integra, de

forma indissolúvel, nossa atividade: “Porque estamos no mundo, estamos condenados

ao sentido...” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 18). Toda atividade humana é realizada

no sentido, tudo o que se faz existe no sentido, porque o mundo humano é um mundo

de sentidos. O sentido é parte do Ser, ou ainda, só se pode Ser com um sentido.

Esse projetar-se é sempre situado na história da própria existência e,

portanto, é sempre em situação. É também no sentido que o Ser pode ligar cada

momento e cada situação com a sua história. É no sentido que o presente pode,

valendo-se do passado, incorporar o futuro no presente como uma pré-configuração

intencional, e, assim, constituir uma existência temporal, sem a qual a vida estaria

aprisionada em um eterno agora.

O sentido também existe na sua negatividade. Por exemplo, as atividades

que fazemos mecanicamente e sobre as quais, muitas vezes, diz-se sem sentido, têm,

para o sujeito, um certo sentido, que pode se manifestar na observação da atividade em

seu contexto. Elas podem, por exemplo, ter o sentido de mera ‘tarefa mecânica’ ou

burocrática, como acontece quando uma criança, na escola, obedece à instrução

“escreva a frase tal”, como mera tarefa escolar. Pode existir, nessa atividade, um

sentido que pode ser chamado de escolarizado, em que o sentido de realizar a

atividade é apenas, talvez, “obedecer ao professor para não criar caso”. Isto é, a

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criança realiza a atividade, cumprindo a ordem, para evitar uma penalidade qualquer

ou mesmo simplesmente para evitar uma situação embaraçosa para ela ou mesmo para

o professor. Seguir a rotina escolar e evitar sobressaltos pode ser, nesse exemplo, o

sentido, para a criança, da tarefa que ela realiza. É no sentido que se dá a

compreensão da atividade. Gestos e comportamentos semelhantes, como obedecer e

escrever a frase solicitada, podem ter diferentes sentidos na atividade de diferentes

crianças. Enquanto, para uma delas, a atividade solicitada tem um sentido, por

exemplo, de um sofrimento necessário para evitar punições, para outra criança, a

mesma atividade pode ser realizada no sentido de agradar ao professor, de modo a

evitar que ele fique decepcionado e, ao mesmo tempo, conquistar sua aprovação.

A manifestação do sentido é, muitas vezes, sutil: o sentido é vivido e não

refletido. Por isso, é preciso buscar o sentido em suas possíveis manifestações, em que

pequenas nuances de comportamento são capazes de tornar manifestos diferentes

sentidos: um gesto, uma expressão e uma palavra podem expressar o sentido..

Mesmo aparentemente sem sentido a atividade vivida tem sempre algum

sentido para o Ser, mesmo que esse sentido seja restrito pela incompreensão, pela

rotina ou pela autoridade.

Como a existência humana é uma existência no mundo e com o outro,

sendo o ser-no-mundo-com-o-outro o próprio modo humano de ser, o sentido, além de

ser situação e intencionalidade, é também relação com o mundo e com os outros.

Nessa relação, o sentido é “o sentido que transparece na intersecção de minhas

experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro”

(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 18). O sentido é relação entre diferentes momentos de

uma mesma existência e, ao mesmo tempo, relação entre o Ser e o Outro. É, a um só

tempo, o modo de ser próprio e o modo ser na intersubjetividade. O sentido sempre se

realiza na relação com o mundo e, no mundo, com o Outro e para o Outro. É um

projetar da existência para fora de si, para o mundo e, no mundo, para o Outro. É o Ser

que se realiza projetando seu aparecer para o Outro: minha ação projeta no mundo o

modo em que apareço para o Outro. Aparecendo para o Outro, Sou! Existir é aparecer

e o sentido de meu modo de ser manifesta-se no sentido de minha aparição.

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Utilizamos, para deixar ainda mais manifesto o significado de sentido

neste estudo, a expressão atividade, que remete mais diretamente à vivência. O

problema de pesquisa ficou formulado, então, do seguinte modo: qual o sentido, para

o aluno, da sua atividade nas aulas de Arte? Queremos compreender o sentido vivido

pelos estudantes em sala de aula, na realização de suas atividades – o sentido vivido.

Não buscamos a idéia de aula de Arte. A idéia remete ao conceito e à representação,

às explicações que a criança poderia formular para a existência, na escola, de uma

disciplina chamada Arte. Esse estudo, pelo contrário, busca o sentido na vivência, pois,

para a fenomenologia, “o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo”

(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 14).

A questão de pesquisa, definida como “qual o sentido, para os alunos,

de suas atividades nas aulas de Arte”, pede descrição e interpretação, como

ferramentas de compreensão.

A observação é a ferramenta fundamental. Sendo sentido o sentido da

existência no âmbito do vivido, a observação dessa vivência é o primeiro passo para a

compreensão. A observação do modo de ser das crianças nas aulas de Arte foi adotada

como o primeiro procedimento de pesquisa.

A fala é o lugar próprio para a manifestação do sentido. O discurso que

buscamos é a fala própria da criança sobre a sua vivência e não o discurso da

instituição sobre a própria instituição, na fala do aluno. Para evitar essa segunda

hipótese, percebeu-se a necessidade da maior aproximação possível da experiência da

aula de Arte. E, também, de buscar o discurso sobre a atividade realizada e não sobre

a aula como instituição. Para isso, foi realizada uma entrevista coletiva com as

crianças, alunos de uma das classes observadas. Nessa entrevista procurou-se

oportunizar às crianças a manifestação de seu discurso e, trazendo à lembrança a

própria atividade vivenciada, propiciar a realização de um discurso significativo sobre

essa atividade, no qual, através da hermenêutica, buscou-se a manifestação do sentido.

A pesquisa iniciou-se sem uma definição prévia da classe ou dos alunos

que seriam observados. Os sujeitos da pesquisa foram sendo definidos durante a

própria pesquisa. Na escola existiam duas professoras de Arte e uma delas, a

professora Sônia, foi indicada pela coordenação pedagógica, pois tinha “mais ligação

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com a escola”. O pesquisador focou seu estudo no ensino fundamental regular e

observou aulas de 6a. e 7a. séries regulares e de uma classe de EJA (Educação de

Jovens e Adultos). A pesquisa foi focada, após algumas semanas, em uma classe de 6a.

série, e prosseguiu até o final sem focalizar um grupo específico de alunos. Atividades

realizadas no pátio da escola, a ocupação da escola e o uso dos espaços, especialmente

o uso para fins especificamente estéticos e artísticos também foram observadas. Além

da reunião já mencionada, algumas perguntas foram feitas a alunos durante as aulas,

sem definição prévia, com o intuito de propiciar o discurso e fazer manifestar-se o

sentido. Duas alunas de uma classe não observada, uma 6a. série A, da mesma

professora, foram entrevistadas no pátio, durante uma festividade escolar e sem

planejamento prévio.

A última etapa desse percurso foi a entrevista devolutiva com a

professora Sônia, em que foram apresentadas e comentadas algumas de nossas

conclusões. O estudo iniciou-se em maio/2004 e concluiu-se em dezembro do mesmo

ano.

Nesse percurso, a observação das crianças nas aulas de Arte e a reunião

com os alunos da 6a. série D foram as ferramentas de levantamento de dados. As

entrevistas com a professora e a descrição de suas intervenções nessas aulas foram

necessárias para definir os contornos da situação, complementados pelas entrevistas

com a coordenadora, com a vice-diretora e com o diretor, e também pelas observações

realizadas nas instalações da escola.

Essa pesquisa investigou o sentido das atividades das crianças em tais

aulas de Arte, ou seja, nas aulas de Arte freqüentadas pelas crianças sujeitos da

pesquisa. Os sentidos buscados foram os sentidos para tais crianças, de tais atividades,

em tais aulas, com tal professora, em tal escola. Isto é, a investigação do sentido é

sempre do ser em situação, pois o sentido só se manifesta na vivência. A descrição das

aulas, incluindo as proposições e atitudes da professora, é parte inseparável da

compreensão, constituindo um fundo em que se buscou a figura, isto é, a compreensão

do sentido, para as crianças, de suas atividades nas aulas de Arte.

Assim, constituiu-se o relato do pesquisador, que contém, principalmente,

as anotações descritivas e também os textos escritos pelos alunos. No diálogo que se

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estabelece entre esse relato e as referências do pesquisador, forma-se a compreensão

que é, no contexto da hermenêutica, a interpretação do pesquisador. A possível

generalidade dessa compreensão está na consideração de que essa escola, essas

crianças, essas aulas de Arte e essa professora não são totalmente diferentes de outras

escolas, outras crianças, outras aulas de Arte e outras professoras de Arte. Elas só

podem existir na sua particularidade. Mas estão nesse mesmo mundo, em que crianças

vão para a escola, que freqüentam aulas de Arte, que são conduzidas por professores

de Arte. Esses professores se apropriam, cada um à sua maneira e de acordo com os

sentidos que vivenciam na sua atividade profissional, da tradição de ensino de Arte

que receberam, e desenvolvem suas atividades profissionais em condições específicas

de cada escola que, por sua vez, são também parte de um sistema educacional.

Usamos, muitas vezes, a expressão “as crianças”, com a qual estaremos

nos referindo ao conjunto de crianças, pré-adolescentes e adolescentes, que são os

sujeitos desse estudo. São, principalmente, alunos de 11 a 14 anos matriculados na 6a.

série regular de uma escola pública municipal situada em um bairro popular da

periferia de São Paulo. Na descrição das atividades das crianças usamos, várias vezes,

o verbo pintar (pintam, pintando, pintavam...). Essa atividade consistia em colorir,

com lápis de cor, uma superfície ou uma figura, pois não foram observadas atividades

propriamente de pintura, com pincel e tinta.

Nos capítulos 7, 8 e 9, a seguir, serão apresentados os Registros de

Observação e sua tematização.

Os nomes do bairro, dos professores, funcionários e alunos são fictícios e

a escola é chamada, simplesmente, de EMEF (Escola Municipal de Ensino

Fundamental).

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CAPÍTULO 7 – A professora e a escola.

Nesse capítulo e nos seguintes optamos pela apresentação completa dos

Registros de Observação. Sabemos do risco de tornar a leitura cansativa, mas

acreditamos que somente o relato completo, em suas minúcias, poderia refletir o clima

das aulas, o modo da professora cuidar das aulas e dos alunos, as atividades dos alunos

e os elementos afetivos que integram o sentido. Só o relato completo poderia mostrar o

caminho percorrido pelo pesquisador para constituir a sua compreensão dos

fenômenos observados.

Os relatos foram, em alguns casos, agrupados, conforme o foco que a

professora imprimiu à atividade, isto é, conforme a “lição” dada pela professora. Para

cada aula, ou lição, apresentamos também a sua tematização, com uma interpretação

inicial. O mesmo foi feito na descrição das aulas e das atividades das crianças, no

capítulo 8, e na apresentação da palavra dos alunos, no capítulo 9.

Essa tematização, focada na busca dos sentidos, é apresentada em seus

elementos que se relacionam mais diretamente com a compreensão do pesquisador e

que serão retomados mais adiante, no capítulo 10, em que esses dados são discutidos e

algumas conclusões são apresentadas.

7.1 O ambiente escolar.

7.1.1 - Síntese dos registros de observação.

a) A escola e a vice-diretora.

A EMEF localiza-se em um grande conjunto habitacional popular na

periferia da zona norte de São Paulo. São dezenas de prédios de cinco pavimentos e

sem elevador, com vários apartamentos em cada pavimento. As ruas são asfaltadas e

iluminadas e o conjunto é servido por várias linhas de ônibus e dispõe de um pequeno

comércio que fornece, principalmente, lanches, refeições e bebidas. Há muitos

automóveis estacionados junto a cada bloco de apartamentos, a maioria com vários

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anos de uso. No interior do conjunto há várias escolas públicas estaduais e municipais

e a EMEF é uma delas. A vice-diretora, professora Zuleide, apresentou a escola ao

pesquisador.

A EMEF é uma pequena escola, com apenas nove salas de aula e dois

pavimentos. O acesso à secretaria, utilizado pelos pais de alunos, é controlado por uma

porta com grades e aberta internamente, quando chegam visitantes, por um dispositivo

elétrico controlado pela própria secretaria. No pavimento inferior, além da secretaria,

localizam-se a diretoria e demais dependências administrativas, a sala de leitura, o

pátio interno e a cozinha. Na área externa ao prédio, cercada por um grande muro, há

uma quadra e um estacionamento para os professores e funcionários. No pavimento

superior, com acesso por duas escadas pelo pátio interno, ficam as salas de aula. Há,

também, uma sala utilizada pela rádio dos alunos e uma salinha com grades em que os

livros didáticos são guardados.

Todas as dependências da escola estão limpas e bem arrumadas. A

professora Zuleide destaca seu empenho em evitar pichações e em pintar a escola todo

início de ano. Há vasinhos de plantas por toda a escola. A pesquisa iniciou-se no mês

de maio e a escola estava toda enfeitada com as tradicionais bandeirinhas das festas

juninas.

A escola funciona em quatro períodos, com classes do Ensino

Fundamental I, Ensino Fundamental II e, à noite, Educação de Jovens e Adultos (EJA).

A professora Zuleide decide sobre quase todas as questões relativas à

limpeza, conservação, reformas, decoração, questões operacionais como guarda e

conservação de alimentos e equipamentos, e muitas outras. Chama a escola,

carinhosamente, de ‘minha escola’ e providencia para que tudo esteja sempre limpo,

bonito e organizado. Destaca a importância disso tudo para criar um bom ambiente de

estudo, para os alunos. Manifesta orgulho pelo seu trabalho.

b) A coordenadora pedagógica.

A coordenadora pedagógica, professora Sílvia, que acumula seu cargo

com a função de professora de Português na rede estadual de ensino, procura orientar

os professores para superar as práticas pedagógicas que considera tradicionais e

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autoritárias. Acredita que está conseguindo progressos com os professores do Ensino

Fundamental II (5a. à 8a. série) e que ainda encontra resistência por parte dos

professores de Ensino Fundamental I (1a à 4a. série). Organizou, junto com a direção,

uma longa reunião dos professores do “Fund II”, em que se discutiu o sentido da

leitura para os professores. Nessa reunião foi constatado que, para a maioria dos

professores, a leitura tornou-se importante a partir de vivências ocorridas fora da

escola. A partir dessa reunião, acredita que os professores irão encaminhar atividades

de leitura prazerosa, focadas no gosto e no interesse pela leitura, e não simplesmente

voltadas para a realização de tarefas escolares como responder a questionários com

respostas padronizadas. A professora Sílvia, informada anteriormente sobre a pesquisa,

acredita que essa interpretação do ensino de leitura pode ter incidência sobre o ensino

de Arte.

Sobre o ensino de Arte, a professora Sílvia informou que, em seus muitos

anos de experiência, verificou a existência de problemas como a reduzida permanência

dos professores de Arte nas escolas (que têm poucas aulas), a falta de continuidade dos

professores de Arte em uma mesma escola (costumam logo pedir remoção) e o não

estabelecimento de vínculos desses professores com a escola. Em toda a sua carreira,

ela conheceu apenas um único professor de Arte que realizava um bom trabalho. A

coordenadora considera que as atividades de Arte não deveriam incluir trabalhos

designados por ela como técnicos, com cores quentes e frias, primárias e secundárias, e

que deveriam incluir o fazer e a apreciação de Arte.

c) O diretor.

O diretor, professor Moacir, tem quinze anos de experiência como

professor de História na rede pública de ensino, acumulando, há cinco anos, o cargo de

professor na rede estadual com o de diretor na rede municipal. Ele destaca seu

compromisso com uma escola “a serviço dos filhos da classe trabalhadora” e sua

incompatibilidade com os professores que tratam os alunos com desrespeito. Este é seu

segundo ano na EMEF. Acredita que conseguiu montar uma equipe afinada com essa

visão e que a maioria daqueles que não concordavam “preferiu sair”. Ele foca sua

atividade como diretor nas questões pedagógicas e não nas administrativas. Considera

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que a escola deve se responsabilizar integralmente pela alfabetização e pelo letramento

dos alunos. Critica o vínculo de muitos professores com valores de classe média que os

faz acreditar que são melhores que os mais pobres. Quanto ao ensino de Arte, o

diretor:

- acha ruim colocar a ênfase no desenho e considera importante a dança e o

teatro;

- não concorda com a prática de “tolher” o aluno porque ele não trouxe

material de Arte;

- acha muito limitado o trabalho que é feito atualmente na escola;

- informa que a professora Sônia apresentou um projeto para organizar um

coral;

- acha que a professora Sônia não vive um bom momento e que ela não deveria

preocupar-se tanto com “pequenas coisas” e que poderia desenvolver um

excelente trabalho e “fazer muito barulho”;

- acredita que a professora Sônia vai superar a má fase e integrar-se à equipe da

escola;

- lembra que a professora de Arte do ano passado, substituída pela professora

Sônia, era uma excelente professora.

d) O ensaio da dança.

A professora Simone, de Educação Física, organizou os ensaios das

danças para a festa junina utilizando, para isso, tanto os horários regulares de suas

aulas como horários extras, em que os alunos compareceram aos ensaios fora dos

horários regulares de aula. Um pequeno aparelho de som instalado no pátio interno da

escola reproduzia músicas da moda, ao estilo caipira ou de rodeio, e as crianças

dançando ensaiavam passos típicos dos salões de dança da região, com evoluções

diferentes para cada turma. Esses ensaios foram realizados com muita alegria e

entusiasmo, com as crianças sorrindo o tempo todo e ensaiando até por conta própria,

após o término das aulas.

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e) O mural da 3a. série E.

Na parede do pátio foi colocado um mural intitulado Mães da 3a. E,

contendo 26 desenhos feitos pelos alunos da 3a. série E, cada um deles circundado por

uma faixa de papel cor-de-rosa brilhante. Nesses desenhos, feitos com lápis comum e

lápis de cor, os alunos retrataram suas mães com muito cuidado e utilizando diferentes

estilos e técnicas. Esse mural foi organizado pela professora Shirley, professora regular

do Ensino Fundamental I, responsável pela 3a. série E.

f) A festa das Olimpíadas.

No mês de agosto, paralelamente às Olimpíadas de Atenas, a escola

organizou uma espécie de torneio esportivo entre os alunos, com ampla decoração

temática. Essa decoração consistiu em bandeiras de diversos países pintadas com tinta

guache sobre cartolinas, reproduções em papel cartão e papel espelho do logotipo

oficial das Olimpíadas, além de maquetes de templos gregos feitas com papel cartão,

cartolina, papelão e papel espelho. Esses objetos foram confeccionados em diferentes

aulas, sob a coordenação de professores de diferentes disciplinas. A professora de

Arte, em suas aulas, coordenou a confecção, por alguns alunos por ela escolhidos, dos

logotipos e das maquetes. Esse material ficou exposto por alguns dias no pátio e no

corredor, decorando o torneio esportivo dos alunos, que aqui chamamos de festa das

Olimpíadas.

7.1.2 – Tematização.

a) A arte na escola: existem diferentes manifestações artísticas na escola, mas

elas não são discutidas coletivamente. A coordenadora pedagógica não

acredita na competência dos professores de Arte e o diretor não confia na

professora Sônia.

b) A arte na aula de Educação Física: os alunos participaram alegremente das

danças da Festa Junina da escola. A dança e a música estão presentes nas

aulas de Educação Física, mas não aparecem nas aulas de Arte.

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c) A arte na 3a. série: a professora regular da 3a. série, que não é especializada

em Arte, expôs no mural do pátio os desenhos de seus alunos, ao contrário da

professora de Arte, que prefere escondê-los. Em cada detalhe do mural

apareciam o carinho, o cuidado e a dedicação, tanto das crianças como da

professora da 3a. série, com os retratos das mamães. As crianças, em seus

desenhos, utilizaram diferentes estilos e técnicas.

d) Tinta guache: a tinta guache e os pincéis, que não foram utilizados nas aulas

de Arte, apareceram nas aulas de História e Geografia, para preparar a

decoração da festa das Olimpíadas.

7.2) Sônia, a professora de Arte.

7.2.1 - Síntese das entrevistas. A professora Sônia tem três anos de experiência como professora de Arte

e está na EMEF desde o início do corrente ano (2004), para a qual solicitou remoção.

É especializada em Música, mas não pode dar aulas de Música porque, explica, o

barulho iria atrapalhar as demais aulas. Encaminhou, junto às suas classes, atividades

de Desenho Geométrico e informou que no período da pesquisa iria realizar atividades

de artes plásticas. Declarou que não tem tempo de realizar atividades de atualização

profissional, mas participou de alguns cursos de Arte Contemporânea na USP. Sua

jornada semanal de trabalho como professora de Arte chega a cerca de cinqüenta

horas-aula, pois acumula o cargo na prefeitura de São Paulo com a mesma função na

rede estadual de ensino. Por conta dessa excessiva carga horária, não tem tempo de

preparar adequadamente suas aulas, mas precisa cumprir essa carga horária para

completar sua renda pessoal. Entrou em detalhes de sua vida pessoal para justificar

essa opção. Sofre problemas de saúde e uma vez apresentou-se para dar aulas após ter

recebido, em um pronto-socorro, uma aplicação de soro, da qual mostrou a marca no

braço ao pesquisador. Atribui seus problemas de saúde à extensa jornada de trabalho e

pretende fazer terapia.

Apresentou à escola um projeto de atividades musicais para ser executado

fora do horário normal de aulas, que não foi aprovado. Destaca que na escola não

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existe sala especial para aulas de Arte e que o professor fica “sem muitas

possibilidades”. Mostrou ansiedade nas primeiras entrevistas, adiantando-se às

perguntas do pesquisador, falando rapidamente e solicitando seguidas vezes

explicações sobre os objetivos da pesquisa.

Ela assumiu as aulas de Arte nas classes do Ensino Fundamental II (5a. a

8a. série) e algumas classes de EJA (Educação de Jovens e Adultos), no período

noturno. Informada de que a pesquisa estava focada no ensino fundamental regular,

aceitou participar, mas insistiu que o pesquisador visitasse também uma de suas aulas

à noite, para os adultos e jovens, em que, informou, realiza uma atividade diferenciada,

graças à maior maturidade dos alunos. Nessas aulas, os desenhos e trabalhos dos

alunos são comentados pela professora, que os relaciona à personalidade e ao estado

de espírito dos alunos.

Respondendo ao pesquisador, esclareceu que não pode trabalhar com

guache ou outras tintas, já que as salas não têm pias. Informou que os alunos não

podem utilizar giz de cera, pois acabam utilizando os mesmos para escrever nas

carteiras e paredes, e que, em vista disso, as caixinhas de giz de cera enviadas pela

Prefeitura são recolhidas no início do ano e ficam à disposição da administração da

escola. Não organiza exposições dos trabalhos dos alunos.

Informou que a direção da escola nunca negou nada para ela e que todo o

material solicitado foi fornecido. Mas sentiu uma certa discriminação dos demais

professores, que atribui ao fato de que é nova na escola. Percebeu essa discriminação

ao não ser convidada para o planejamento de algumas festividades escolares.

Acontecem alguns conflitos com alunos que não trazem para as aulas o

material de Arte. Algumas vezes, esses alunos são encaminhados à direção da escola.

Participou da organização das festividades escolares encaminhando junto

a alguns alunos a confecção de objetos e enfeites. Para isso, convocou os alunos

designados como mais habilidosos, que confeccionaram, sob sua orientação, figuras

em cartolina, papel cartão e papel espelho. Desse modo, evitou o que considera um

grande desperdício de material, que ocorreria se todos os alunos realizassem essas

atividades. Alguns alunos também contribuíram, trazendo de casa as tradicionais

bandeirinhas utilizadas para decoração das festas juninas.

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Na entrevista devolutiva, a professora Sônia afirmou que não considera

problema algum a vergonha que os alunos sentem quando seus desenhos são por ela

designados como feios ou errados. Ela não comentou a maioria das observações

apresentadas pelo pesquisador na entrevista devolutiva e respondeu apenas com um

sorriso irônico quando informada que os alunos gostariam de receber notas melhores e

comentários positivos sobre seus desenhos.

7.2.2 – Tematização.

a) Música: a professora Sônia, apesar de se declarar especializada em Música,

não deu aulas de Música. Encaminhou atividades de Desenho Geométrico e

Artes Plásticas. Diz que fez essa opção por causa do barulho, que iria

atrapalhar as outras aulas, o que não a impediu de apresentar um projeto

extracurricular de atividades musicais.

b) Insegurança: a professora mostrou insegurança quanto à qualidade de sua

atividade docente e procurou adiantar uma série de justificativas prévias para

uma esperada opinião negativa. Demonstrou grande preocupação quanto aos

objetivos da pesquisa.

c) Atualização: a professora realizou algumas atividades de atualização

profissional, embora isso tivesse sido negado na primeira entrevista.

d) Giz de cera: a escola evita que as paredes sejam rabiscadas confiscando o giz

de cera das crianças e não através de um trabalho educativo. A professora de

Arte não manifestou oposição ao confisco do giz de cera pela administração

da escola.

e) Pintura: a professora considera que a não existência de pias nas salas de aula

justifica a não realização de atividades de pintura em suas aulas.

f) Material: Ela, às vezes, pune os alunos por não trazerem o material de Arte,

enviando-os à direção da escola.

g) Exposição: os desenhos feitos pelo conjunto dos alunos durante as aulas não

são expostos.

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h) Habilidade: a professora considera que alguns alunos são mais habilidosos e

apenas esses participam da confecção da decoração para as festividades

escolares.

i) Desperdício: a professora considera desperdício o uso, pelos alunos, de

material fornecido pela escola que não resulte em objetos que, a seu critério,

possam ser expostos nas festividades escolares.

j) Vergonha: a professora considera que os desenhos dos alunos são, em geral,

muito feios para serem expostos e não se incomoda com o fato de os alunos

sentirem vergonha, quando suas obras são criticadas.

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CAPÍTULO 8 – As aulas de Arte e as atividades dos alunos.

8.1) Mônica e o vampiro.

8.1.1 – Registros de Observação. a) Relato da primeira aula do período da tarde, com a 6a. série D,

realizada na Sala de Leitura: “A Sala de Leitura está bem arrumada, com 7 mesas redondas com cadeiras ao redor, livros nas estantes, figurinhas de animais nas paredes. Algumas almofadas no chão, quadro branco, TV 29”, computador, mesa, vasos de plantas, ventilador de teto, ursinhos de pelúcia sobre algumas prateleiras, e aparelhagem de videocassete conectada à televisão. Há cerca de 35 cadeiras. A aula começa quando cerca de 30 crianças entram na Sala de Leitura, acomodando-se em grupos de 4 a 7 alunos em torno das mesas. A professora Sônia menciona as cores primárias, vermelho, azul e amarelo, já estudadas anteriormente, e solicitou a atenção de todos para o desenho animado que apresentou em seguida. Trata-se de um desenho animado de Maurício de Souza, com os personagens Mônica, Cebolinha e Cascão, entre outros, e a história de um vampirinho, com pouco menos de 10 minutos de duração. A professora orienta a classe para que preste atenção nos objetos que apareceriam no desenho animado e em suas cores. Durante a apresentação do desenho a classe fica concentrada, principalmente no início, assistindo ao desenho. Pouco a pouco, surgem algumas conversas, brincadeiras e risadinhas nos grupinhos. A professora esclarece ao pesquisador que não adota a prática de tentar impedir as conversas. Após a apresentação da historinha na TV, a professora solicita que os alunos desenhem três coisas que viram no filme, uma de cada cor primária. Esclarece que devem procurar fazer desenhos iguais ao que viram na fita. Pouco a pouco, a maioria dos alunos inicia seu desenho, utilizando lápis comum e lápis de cor. As crianças desenham pequenas figuras representando peças de roupa dos personagens, a personagem Mônica, o túmulo do vampiro, a cruz, o vampiro, entre outras, distribuídas de diferentes formas pela folha, principalmente uma ao lado da outra, a partir do canto superior esquerdo da folha de papel (no caderno ou em folhas soltas, fornecidas por colegas). Aos poucos, surgem conversas nos grupos, algumas brincadeiras e piadinhas, e também conversas em que os alunos procuram esclarecer entre si qual a cor de alguma figura que apareceu no desenho. Os lápis de cor também foram partilhados entre os alunos, pois alguns não trouxeram o material de desenho. O desenho animado foi mostrado (no sistema videocassete/TV) mais uma vez, a pedido dos alunos. No final da aula, alguns alunos não realizaram a tarefa solicitada e alguns outros apenas a iniciaram. A maioria dos alunos confeccionou os desenhos conforme descrito acima, sem a preocupação com o espaço e focando sua atenção na conformidade às instruções da professora, ou seja, na correta identificação da cor do objeto escolhido, na escolha de figuras com cada uma das três cores primárias, na cópia perfeita e detalhada das figuras escolhidas”.

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b) Relato da terceira aula do período da tarde, com a 6a. série B, também realizada na Sala de Leitura, com a mesma atividade descrita anteriormente: “Às 16:35 horas 28 alunos entram na Sala de Leitura e se acomodam em torno das mesas. A professora relembra as três cores primárias e explica que irá passar o desenho animado da Mônica. Orienta os alunos a anotar as figuras que aparecem no desenho que têm uma das cores primárias, anotando cada objeto e sua cor correspondente. Logo após o início da apresentação do desenho animado a professora sai da sala, levando consigo o aluno Gerson. A professora explicou ao pesquisador que precisava acompanhar outra classe, cujo professor faltou nesse dia. O Gerson é uma criança portadora de Síndrome de Down que solicita muito a atenção da professora. Os alunos apresentam diferentes atitudes durante a apresentação do desenho animado. Alguns assistem em silêncio, outros conversam ao mesmo tempo em que prestam atenção, outros conversam sobre o próprio desenho e mencionam os objetos com as cores primárias. Outros alunos conversam e gracejam entre si sem deixar de assistir ao desenho, alguns alunos anotam enquanto assistem silenciosamente à apresentação do desenho animado. Em cada grupo de alunos, reunido à volta de cada mesa, predomina um comportamento diferente. Em um grupo todos prestam atenção silenciosamente enquanto em outro todos os alunos conversam entre si. Em alguns grupos, os alunos da mesma mesa apresentam atitudes bem diferenciadas, com alguns gracejando e outros assistindo silenciosamente. Alguns alunos anotaram os objetos conforme a cor, seguindo a orientação da professora. Outros apenas assistiram, sem anotar. A maioria dos gracejos envolve elementos da própria atividade realizada, como: “o quê que é isso?”, seguido de risadinhas, e outros semelhantes. Dois alunos destacam-se dos demais por conversarem muito e em tom de voz um pouco mais alto e por levantarem-se muitas vezes de suas cadeiras. Quando a professora volta, acompanhada pelo aluno Gerson, a conversa diminui. Com o término da apresentação do desenho animado, a professora orienta os alunos a tentar reproduzir – desenhar, copiar – três coisas que apareceram no desenho animado, uma de cada cor primária, amarelo, vermelho e azul. A maioria dos alunos logo começa a desenhar. Diante de uma pergunta de um aluno, a professora Sônia esclarece que, se desenhar a Mônica (a figura da personagem), só deve pintar de vermelho o vestido. O Gerson chama a professora várias vezes, solicitando sua atenção. A professora saiu novamente da sala, acompanhada pelo aluno Gerson, e logo retorna. Muitos alunos fazem seus desenhos em poucos minutos. A maioria prossegue desenhando e conversando ao mesmo tempo. Algumas conversas são sobre o próprio desenho e outras sobre outros assuntos. Alguns alunos levantam e circulam pela sala, voltando logo ao seu lugar. Mas a maioria permanece em seus lugares. Algumas alunas entregam à professora bandeirinhas de S. João presas a linhas. As bandeirinhas foram guardadas cuidadosamente em sacos plásticos e entregues para a professora. Algumas meninas ficam conversando sobre as bandeirinhas com a professora, por alguns minutos. Alguns alunos prosseguem desenhando e um deles chama a professora: “Já terminei, professora, quer ver?”, mas não obtém nenhuma resposta. Um aluno, o Denis, mostra para a professora duas folhas desenhadas, uma com os três desenhos das coisas observadas no desenho animado, um com cada cor primária, e, em outra folha do caderno de desenho, uma versão própria, diferente do original, do logotipo do São Paulo (time de futebol), com as três cores primárias. A professora comenta o desenho com as figuras do desenho animado, dizendo que está certo e não comenta o desenho do logotipo do time de futebol, para o qual olha com expressão de desaprovação. O

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Denis, solicitado pelo pesquisador, mostrou a este seus trabalhos, comentando que o desenho da Mônica estava certo e o outro desenho, do logotipo do time de futebol, estava errado. Outra aluna mostra o desenho à professora, que ordena que seja refeito, pois “está errado”. O desenho animado, no sistema videocassete/TV, é reapresentado seguidamente, até o fim da aula (alguns alunos pediram para a professora “passar de novo”, para ver melhor algum detalhe ou esclarecer a cor de alguma figura que aparecia no desenho). Terminada a aula, os alunos se retiram da Sala de Leitura. A professora, com expressão de desaprovação, mostra ao pesquisador que um aluno deixou seu desenho na mesa.”

8.1.2 – Tematização.

a) Cópia: a aula está orientada para a consecução de uma tarefa de cópia.

b) Diálogo: o diálogo acontece apenas entre os alunos.

c) Instruções: A professora se dirige aos alunos para fazer comunicados, que

são instruções relativas à tarefa que eles deverão executar.

d) Julgamento: Ao final da tarefa, ela limita-se a comunicar se a tarefa está

correta ou está errada, adotando uma postura de quem não admite

questionamento.

e) Critério: O critério adotado para julgar a correção ou erro da tarefa executada

é o da cópia exata de outro desenho, no caso, das figuras que aparecem no

desenho animado de Maurício de Souza.

f) Tarefismo: Nessa aula, não há centralidade no professor e muito menos no

aluno: a aula está voltada para a execução de uma tarefa. A tarefa e o critério

de avaliação são definidos anteriormente pela professora, de modo unilateral.

g) Avaliação: Os desenhos dos alunos, ao serem definidos como certos, recebem

o status de tarefa executada corretamente. Recebem, então, a boa nota ‘P’ (de

‘plenamente satisfatório’), ou nota média ‘S’ (de ‘satisfatório’) como

certificado da competência da criança em realizar corretamente a tarefa

determinada pela professora. Os demais desenhos são considerados errados e

recebem a nota baixa ‘NS’ (de ‘não satisfatório’).

h) Os desenhos: os desenhos devem seguir estritamente as orientações da

professora, sem desvios. A iniciativa do aluno Denis, que criou uma nova

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versão do logotipo de seu time de futebol, foi desencorajada pela professora

com um olhar de desprezo.

i) O espaço pictórico: não houve preocupação da professora em orientar os

alunos quanto à definição do espaço pictórico em que as cópias são

produzidas. Elas, as cópias, podem ser distribuídas de qualquer modo na

folha de papel, sendo que predominou uma organização similar à da escrita

(da esquerda para a direita e de cima para baixo). Manifestou-se, nesse

aspecto, uma certa preocupação dos alunos em economizar o material, na

medida em que fazem desenhos pequenos e reunindo várias figuras em uma

mesma folha, de modo a não gastar muitas folhas.

j) Referências aos desenhos: os desenhos não são mostrados pela professora aos

demais alunos e não recebem maiores comentários.

k) Aspectos construtivos: os aspectos construtivos, ou técnicos, devem ter sido

considerados, em algum grau, pela professora, quando da avaliação relativa

dos desenhos. Isso pôde ser constatado pelo pesquisador na medida em que

os desenhos mais “certinhos” quanto à proporção, linha de contorno, cor e

acabamento receberam avaliação ‘P’.

l) Conteúdos: há, nessa aula, uma preocupação com algo que pode ser

considerado como o ‘conteúdo’, ou seja, o conhecimento de algo ou o

domínio de uma informação. No caso, essa informação refere-se ao conceito

de cor primária e quais as cores classificadas como primárias.

m) Atitudes dos alunos: alguns alunos fazem sua tarefa rapidamente, sem

qualquer empenho, e passam a conversar sobre outros assuntos. Outros fazem

piadinhas sobre a própria tarefa. Uns tantos se dispersam e não concluem a

tarefa e alguns nem mesmo a iniciam.

n) Distanciamento: a professora mantém, em relação aos alunos e seus

trabalhos, um distanciamento permanente: não responde a um aluno que a

chama, não comenta nada sobre os desenhos, não elogia nem critica nenhum

dos trabalhos. Ao olhar os desenhos e comunicar a avaliação – comunicando

secamente sua avaliação com apenas uma palavra, ou em completo silêncio,

apenas anotando o conceito - a professora Sônia utiliza poucos segundos. E

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mesmo essa avaliação é feita apenas para aqueles alunos que a procuram,

pedindo sua avaliação, menos da metade da classe.

o) As bandeirinhas: enquanto a maioria dos alunos é orientada a realizar uma

tarefa que não é valorizada, alguns outros recebem da professora atenção,

orientações detalhadas, comentários específicos e têm a oportunidade de

falar. São as alunas que trouxeram de casa as bandeirinhas para a festa

junina. Algumas delas não fizeram a tarefa solicitada e ficaram finalizando as

bandeirinhas para a festa junina. Outras fizeram a tarefa, receberam atenção

especial da professora e foram agraciadas com uma pequena reunião à volta

da mesa da professora em que mostraram as bandeirinhas que trouxeram de

casa, conversaram sobre isso, falaram e ouviram, sorriram e guardaram

cuidadosamente as bandeirinhas em sacolinhas plásticas, que foram entregues

à professora, que as guardou com todo o cuidado.

p) Inclusão: a professora Sônia não havia recebido, até essa aula, qualquer

orientação quanto à participação em suas aulas de uma criança portadora de

Síndrome de Down. Nas aulas da 6a. série B, ela concentra parte significativa

de seu tempo e de sua energia em atenções ao aluno Gerson. Posteriormente,

realizou-se na escola uma discussão a respeito do projeto de inclusão e ela

passou a compreender que não deveria dar tanta atenção a esse aluno, pois

assim prejudicava a atenção devida aos demais alunos e também prejudicava

o aluno Gerson, que ficava concentrado na professora e deixava de se

relacionar com os colegas.

q) Interação: há uma intensa interação entre os alunos, durante a execução da

tarefa. Eles conversam entre si, perguntam sobre a correspondência das

figuras com as cores, avaliam conjuntamente a qualidade das cópias

produzidas, pedem a opinião uns dos outros, alguns ensinam técnicas de

desenhar e de colorir para os colegas, dão sugestões. Essas interações

envolvem também comentários que ridicularizam a própria tarefa, elogios ou

críticas aos desenhos de colegas, conversas sobre assuntos de outras matérias

ou sobre os relacionamentos entre os alunos, além de cochichos e risadinhas

impossíveis de ser acompanhadas ou escutadas pelo pesquisador.

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r) Multiplicidade: há uma imensa multiplicidade de comportamento entre os

alunos, tanto entre cada um e os demais como entre os diferentes grupos entre

si. Há o aluno que fica o tempo todo em silêncio, realizando a tarefa com

total concentração e executando cada detalhe cuidadosamente; e há, também

o aluno que conversa o tempo todo, chama e até cutuca com a mão outros

colegas, sem nem ao menos iniciar a realização da tarefa. E há vários alunos

que executam a tarefa com alguma displicência, mas assegurando uma certa

correspondência entre o resultado e a solicitação da professora, e logo passam

a entreter-se com outras atividades ou conversas, durante o restante da aula.

Não foi observado algum comportamento que possa caracterizar algo como

um comportamento da maioria, ou comportamento predominante.

s) O pesquisador: a presença do pesquisador é elemento marcante, que parece

influenciar significativamente o comportamento do professor e dos alunos.

Não podemos avaliar o quanto a professora mudou sua atitude pela presença

do pesquisador, mas foi possível notar, aqui e ali, falas e gestos da professora

Sônia que pareciam deslocados do cotidiano e do ambiente geral, que

pareciam não se relacionar com os alunos e só apareciam como que para dar

uma satisfação ao pesquisador. Em diversas ocasiões, durante as aulas a

professora Sônia chamou o pesquisador, dando-lhe explicações sobre a

situação que estava vivendo. Também aconteceram muitas manifestações de

estranhamento dos alunos em relação ao pesquisador: várias vezes, apesar

das explicações, alunos perguntaram porque o pesquisador fazia anotações, e

mais de uma vez um menino ou menina interrompeu seu gesto ou sua fala ao

perceber-se observado pelo pesquisador.

8.2) A gravura de Aldemir Martins.

8.2.1 – Registro de Observação.

Relato de primeira aula do período da tarde, na 6a. série D: “A professora Sônia encontra o pesquisador no corredor e explica que não está bem de saúde nesse dia. Mostra um machucado na orelha e uma marca de perfuração de agulha no braço, explicando que recebeu aplicação de soro. Explica que não preparou nada

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de especial para esse dia e que, estando adoentada, só veio por causa do pesquisador. São 15:00 horas e nos dirigimos para a sala de aula. A professora retoma o assunto das cores primárias e pergunta pelas combinações entre elas. Alguns alunos respondem: laranja, verde... Explica quais são as cores secundárias. Mostra uma reprodução de uma gravura de Aldemir Martins, a figura de um pássaro azul, e mostra as diferentes cores primárias e secundárias utilizadas, as três cores primárias e as três cores secundárias. Alguns alunos estão com o caderno de desenho já aberto. A professora sai por alguns instantes, a maioria dos alunos permanece em seus lugares, conversando com colegas. A professora logo retorna. A professora manda os alunos prestarem atenção. Devem fazer um desenho seguindo o exemplo de Aldemir Martins, mas não copiar o Aldemir Martins: ‘Deve ser um desenho de vocês, um desenho dos alunos, porque por pior que seja é um desenho de vocês. Devem fazer um desenho usando as 6 cores, as 3 primárias e as 3 secundárias’. A professora escreve na lousa o nome das cores que devem ser utilizadas. Orienta os alunos a usarem o caderno de desenho. Alguns alunos não trouxeram o caderno de desenho e pegam ‘emprestado’ folhas de desenho de colegas. Muitos alunos concentram-se e desenham em silêncio. Alguns permanecem conversando embora sentados em seus lugares. Uma aluna (Cibele) conversa com a colega (Liana) explicando o que pretende desenhar: ‘Já fiz um assim’. Uma aluna conta ao pesquisador que uma colega, a Jussara, disse que o pesquisador é o pai dela. Jussara desenha usando lápis e esquadro, de cabeça baixa. Liana desenhou uma casa. Tiago desenha, em silêncio e muito concentrado, uma mesa. Igor, sentado em sua carteira próxima à professora, fez um sapinho de papel dobrado, recortou o papel, e prossegue seu trabalho, recortando e colando. A maioria dos alunos está desenhando, em silêncio, concentrados, desenhando com o lápis comum e utilizando o lápis de cor para colorir, depois do desenho feito com o lápis comum. Alguns começam a conversar, uns animados na conversa e dispersos da tarefa, outros conversam e desenham ao mesmo tempo. Um aluno (Gustavo) levanta e dança pela sala e logo se senta novamente. Gustavo desenhou uma abelha, toda colorida com lápis de cor, um desenho bem elaborado, com muitos detalhes. Telma desenha a figura de uma pessoa. São 15:30 horas. Cíntia desenhou uma paisagem, com ilha, coqueiros, sol e um barquinho. Lilian desenhou uma casa. Felipe desenhou a figura do monstro do desenho animado Monstro S/A. O pesquisador estava circulando pela classe, olhando os alunos e seus desenhos, e volta para seu lugar (anteriormente reservado por alguns alunos, que já o conheciam da aula anterior). São 15:35 horas. A Jussara havia feito um desenho meio geométrico e colorido e, percebendo que o pesquisador olhava para ela e para o desenho, amassa-o e joga-o no lixo. Começa a desenhar de novo. A professora circula pela classe. Liana está de pé, ao lado de Cibele, que pergunta ao pesquisador: “Por que você está anotando nossos nomes?”. O pesquisador explica que é pra conhecer os alunos e mostrar, na pesquisa, o que cada um está fazendo. Ela se coloca à disposição do pesquisador, dizendo que sabe o nome de todos os alunos da classe. Uma aluna reclama: ‘Ah, Jussara, pára de fuçar nas minhas coisas...’. Três meninos conversam, um desenha enquanto outros dois estão de pé ao lado dele. São 15:38 horas. A maioria dos alunos continua desenhando, alguns levantam, alguns trocam material, um faz um gesto

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típico de quem ameaça dar um tapa no colega e pára ao perceber que o pesquisador está olhando. A professora chama o Gustavo para ver de perto a gravura do Aldemir Martins. Um aluno mostra seu desenho à professora que pergunta: “cadê o amarelo?” Carminha desenha cuidadosamente algumas flores. Durval senta-se ao lado de Cibele que diz ao pesquisador: ‘Moço, o nome dele é Durval’. Liana diz que já acabou. Ela desenhou e coloriu as figuras de uma casa e de uma árvore. Liana mostra o caderno de desenho para o pesquisador, que tem três desenhos coloridos e 12 páginas de desenho geométrico (o pesquisador lembrou que a professora Sônia havia explicado que trabalhou conteúdos de desenho geométrico durante alguns meses, nessas classes). Carminha traça cuidadosamente com lápis de cor sobre as linhas de grafite que havia desenhado. A professora mostra para a classe, elogiando, o sapinho de papel feito pelo Igor, um menino bem pequeno que senta-se em frente à professora. Toca o sinal. A professora sai. Muitos alunos continuam desenhando. O pesquisador sai da sala”.

8.2.2 – Tematização. a) Saúde: a professora Sônia está visivelmente abatida, deprimida e adoentada.

Relaciona seu estado de saúde com o excesso de aulas.

b) Releitura: o modo pelo qual a atividade conhecida como releitura foi

encaminhada não proporcionou aos alunos elementos suficientes para

compreender o que pode significar “seguir o exemplo do Aldemir Martins,

mas fazer um desenho seu”.

c) Expressão e desenhos “piores”: A professora deixou claro que, se os alunos

fizessem um desenho próprio, “de vocês”, provavelmente esse desenho será

muito ruim (“por pior que seja”). Ela não desconhece que há um aspecto

expressivo, em arte: “é importante que seja um desenho de vocês”, mas

diminui a possibilidade dos alunos lançarem-se nesse caminho ao qualificar,

de antemão, a possível criação dos alunos como ruim, com a expressão “por

pior que seja”. A professora não gosta dos desenhos dos alunos, acha-os

feios, são “piores”.

d) Cópias e fugas: enquanto alguns alunos tentam fazer uma cópia da gravura

do Aldemir Martins, outros fogem totalmente da proposta e fazem algo

totalmente diferente, que em nada se parece com “seguir o exemplo do

Aldemir Martins”.

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e) Silêncio: a professora não fez qualquer comentário sobre as características da

gravura apresentada.

f) Conteúdos: os conteúdos escolarizados aparecem novamente. A professora

parece perceber a insuficiência da proposição e busca “rechear” a proposta

com conteúdos escolarizados, como se esses fossem capazes de justificar a

atividade. Aparecem agora, além das cores primárias, as três cores

secundárias. O uso dessas cores deverá documentar a realização de uma

tarefa escolar e seu conteúdo que poderá ser considerado matéria dada.

g) Ordens e padrões: as crianças rapidamente aprendem a cumprir ordens e

executar as tarefas escolares. Elas trocam informações sobre os

procedimentos necessários para executar a tarefa. Os procedimentos

padronizados são compartilhados.

h) O pesquisador: a presença do pesquisador chama a atenção dos alunos, que

apresentam diferentes atitudes em relação a ele.

i) A escolha: o menino Gustavo parece dar à proposta da professora a

interpretação de que deveria fazer outro desenho usando um estilo parecido

com o de Aldemir Martins. E desenha uma abelha, com um estilo e recursos

que lembram o utilizado pelo artista na gravura apresentada. A professora, no

único comentário geral, para toda a classe, sobre um desenho de aluno,

observado durante a pesquisa, preferiu mostrar e elogiar a dobradura do

pequeno Igor, com a figura de um sapinho, apesar de muito distante da

proposição inicial, referente à releitura da gravura do Aldemir Martins.

j) Erro e reprovação: diante do desenho de uma aluna, a professora aponta,

com ar de reprovação, a ausência da cor amarela, que, conforme sua proposta

inicial, deveria compor os desenhos de todos os alunos, pois é uma das três

cores primárias. E nada mais comenta. As características do desenho

parecem não importar, apenas a correta execução da tarefa.

k) Vergonha: alguns alunos têm vergonha de seus desenhos e acham-nos feios.

Quando o pesquisador os observa, amassam-nos rapidamente.

l) Apagar: desenhar com lápis comum e depois contornar, ou preencher com

lápis de cor são os principais procedimentos técnicos utilizados. Eles

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parecem garantir uma certa conformidade das cópias com os originais, na

medida em que o desenho, feito com grafite comum, permite que se apague

muitas vezes, até que uma cópia considerada aceitável seja obtida.

m) Gostam: a maioria dos alunos parece gostar da atividade que realizam, pois

continua desenhando mesmo após o final da aula.

8.3) Aldemir Martins na 7a. série.

8.3.1 – Registro de Observação.

Relato da segunda aula do período da tarde, na 7a. série A, com a mesma lição relativa à gravura de Aldemir Martins: “A professora Sônia e o pesquisador entram na sala da 7a. série A. Os alunos estão mais agitados do que os alunos da 6a. série D. Um aluno joga uma bola de papel e a professora manda parar. Explica as cores primárias e as cores secundárias e porque são chamadas assim. A maioria dos alunos não presta atenção nas explicações da professora. Alguns brincam, alguns olham para o teto, para a janela, para a porta ou para as paredes, meio distraídos. Alguns prestam atenção, outros escrevem. Alguns alunos brincam com as palavras da professora (‘olha a loirinha laranja aqui, rá, rá...’), outros olham para baixo. A professora, após concluir a explicação sobre as cores primárias e secundárias, circula pelos corredores entre as fileiras de carteiras com a reprodução da gravura de Aldemir Martins e, em seguida, manda que os alunos peguem os cadernos de desenho. Duas alunas pedem folhas de papel ao pesquisador, que lhes dá. Um aluno pergunta para o pesquisador: ‘pra quê essas anotações?’ E o pesquisador explica que é para sua pesquisa sobre as aulas de Arte. A professora chama a atenção da classe para o espaço da folha de papel, esclarecendo que ‘não é pra ficar desenhando pequenininho’. A professora Sônia orienta a classe para fazer o desenho utilizando as 3 cores primárias e as 3 cores secundárias. Alguns alunos pedem que a professora lhes dê uma folha de papel sulfite. Um aluno brinca com essas palavras, dizendo que a ‘a professora vai dar’. A professora calmamente manda esse aluno parar de dizer bobagens. Dois alunos vêm ver o quê o pesquisador anotou sobre a brincadeira. O pesquisador esclarece a esses alunos que não anotou o nome de quem falou ‘vai dar’, ressaltando que não está ali para os vigiar. Alguns alunos começam a desenhar. Muitos estão conversando. Duas alunas estão o tempo todo brincando, rindo e falando muito com o pesquisador. Mas o restante da classe vai, aos poucos, ficando em silêncio e fazendo o desenho. Um aluno pergunta: ‘professora, posso desenhar outro desenho?’. A professora não responde e faz a chamada, chamando os alunos pelo número e anotando a freqüência em seu controle. Um grupo de alunos conversa. Henrique diz ao pesquisador que vai apresentar ao pesquisador os seus amigos: Alberto, Daniel, Paulo, Cláudio e Celso. Henrique se coloca à disposição do pesquisador. Dessa turma, nesse momento, só o Paulo está desenhando, os

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demais conversam. As duas meninas continuam rindo e conversando em voz alta. Henrique e outros perguntam ao pesquisador pra quê são essas anotações. O pesquisador esclarece que está fazendo uma pesquisa sobre as aulas de Arte e precisa anotar o que acontece nessas aulas. Um outro grupo conversa, no outro lado da classe. A professora continua a chamada. O pesquisador levanta e percorre a classe: mais ou menos a metade dos alunos está desenhando. Uma das duas meninas mencionadas sai da sala. Um aluno chama o pesquisador de “professor” e pede uma folha do bloco de anotações. O pesquisador senta-se. Mais uma aluna pede uma folha de papel ao pesquisador. São 16:07 horas e há mais silêncio e mais alunos fazendo o desenho. Uma funcionária da secretaria da escola entra na classe e fala das cartelas do bingo para concorrer às cestas básicas. Silêncio e atenção na classe às palavras da funcionária, que explica que cada cartela vale ponto para o sábado, dia da festa junina, e que a arrecadação de prendas foi fraca esse ano e se cada um trouxer um real vai ajudar. Ruth, a funcionária da secretaria, entrega a alguns alunos cartelas por um real cada. O pesquisador conversa com a professora, que explica que não está bem de saúde. Uma das meninas que conversavam chega perto da professora e do pesquisador, para ouvir a conversa.. A professora explica ao pesquisador que seus problemas de saúde são devido à sobrecarga de aulas. Explica que está com dores e que marcou terapia. A funcionária retira-se da classe. Há mais silêncio na classe e todos parecem estar desenhando. O pesquisador circula pela classe e percebe que muitos alunos estão estudando outras disciplinas. Henrique mostra ao pesquisador seu desenho, bem parecido com a gravura do Aldemir Martins, mas feito só com lápis comum, portanto sem as cores da gravura apresentada. A classe está em ordem, com algumas conversas, mas muitos alunos, agora, estão fazendo o desenho. Alguns alunos amassam o papel em que desenhavam e jogam no lixo, iniciando outro. Alguns conversam e desenham. São 16:24 horas e a menina Suzana mostra ao pesquisador um desenho muito bonito, colorido, parecido com a gravura de Aldemir Martins. A classe começa a ficar mais dispersa: alguns alunos jogam bolinhas de papel no lixo e erram. Um aluno levanta e as coloca no cesto de lixo. Outro aluno brinca, rodando o caderno na ponta do dedo. Alguns alunos prosseguem estudando outra disciplina em livros e cadernos. Um grupinho de quatro alunos, da turma do Henrique, reúne-se em frente à lousa e conversa. Logo o grupo se dissolve e os alunos voltam aos seus lugares. São 16:26 horas. Alguns alunos guardam o seu material. Outros passam a observar atentamente o pesquisador. São agora 16:27 horas e a maioria dos alunos já parou de desenhar e conversam tranqüilamente. Vários estudam, utilizando cadernos e livros de outras disciplinas. A classe está tranqüila e dispersa. Os alunos agora demonstram menor interesse no pesquisador. Um aluno levanta e sai da sala. Vários alunos circulam pela classe. A professora, visivelmente abatida, permanece sentada em seu lugar. São 16:29 horas. É forte a sensação, para o pesquisador, de que o tempo arrasta-se lentamente. Poucos alunos ainda desenham. O aluno João Pedro vem conversar com o pesquisador, que mostra a ele as suas anotações. Outra aluna, a Júlia, aproxima-se do pesquisador. Paula e Mara também se aproximam. Mara mostra seu desenho ao pesquisador. Igor e Mauricio também se aproximam. Henrique pintou o seu desenho com lápis de cor - antes estava só com lápis comum – e vem mostrar

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para o pesquisador. Celso aproxima-se segurando o livro de Geografia. Entra outra professora na classe. Nem o pesquisador nem a professora Sônia haviam percebido que o sinal já havia tocado e que a aula havia acabado”.

8.3.2 – Tematização.

a) Diferença: há uma nítida diferença de comportamento dessa 7a. série em

relação à 6a, série observada anteriormente. Os alunos demonstram menor

interesse pela aula e maior agressividade nas brincadeiras. Muitos alunos

permanecem alheios às explicações da professora. As brincadeiras são

claramente depreciativas, demonstrando um certo desprezo pela aula. Outros

alunos utilizam a aula de Arte para estudar outras disciplinas, mostrando que

o desinteresse não é pela escola, em geral, mas uma atitude relacionada

especificamente à aula de Arte.

b) Espaço pictórico: ao contrário das aulas observadas anteriormente, apareceu

a preocupação da professora em orientar os alunos quanto ao espaço

pictórico, na forma da instrução para “não ficar desenhando pequenininho”.

c) Silêncio I: a professora não respondeu à solicitação do aluno que pretende

fazer “outro desenho”.

d) Saúde: a professora havia deixado claro, na entrevista inicial, que esperava a

ajuda do pesquisador. Agora, sua doença parece um grito de socorro: tem

muitas aulas e não sabe o que fazer. As aulas são, claramente, um sofrimento

para ela. Manifesta interesse em fazer terapia.

e) Bingo: a entrada da funcionária, falando do bingo da festa junina, é outra

ocasião que deixa manifesto que o desinteresse e as brincadeiras se

relacionam com a aula de Arte que está sendo realizada e não com a escola,

em geral. Todos param com as conversas e brincadeiras e escutam em

silêncio as explicações sobre a festa junina. Muitos alunos atendem a

solicitação da funcionária, alguns levando a cartela para pagar depois e outros

pegando uma cartela e pagando na hora.

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f) Silêncio II: alguns desenhos podem ser considerados como boas cópias ou

boas ‘releituras’ da gravura de Aldemir Martins. Mas não há qualquer

comentário da professora a respeito.

g) O pesquisador: a presença do pesquisador é uma novidade que recebe

atenção de alguns alunos, que parecem não encontrar nada de interessante na

aula. Há uma nítida influência da presença do pesquisador no comportamento

dos alunos, pois, após o pesquisador circular pela classe, constatando que

muitos alunos estão estudando outras disciplinas, muitos alunos voltam a

desenhar, pelo menos durante alguns instantes.

h) Modorra: o pesquisador tem a sensação de que a aula está envolvida em uma

espécie de modorra, em que o tempo não passa e nada acontece.

8.4) O círculo cromático.

8.4.1 – Registro de Observação.

Relato da terceira aula do período da tarde, na 6a. série B: “São 16:36 horas e entramos na classe, a professora à frente. O aluno Gerson cumprimenta o pesquisador e abraça a professora. O Gerson movimenta-se bastante, da professora para o pesquisador e deste novamente para a professora. A classe conversa bastante e a professora chama a atenção dos alunos e pergunta pelas bandeirinhas da festa junina. O Gerson fica junto da professora. Os alunos conversam bastante. A professora manda os alunos desenharem um círculo na folha de caderno. São 16:45 horas e a professora desenha na lousa o círculo cromático, dois círculos concêntricos com as cores primárias no círculo menor e as cores secundárias, no maior. Alguns alunos brincam e debocham entre si: ‘oh... vai namorar lá fora....’. A professora explica a matéria, o círculo cromático. A maioria dos alunos não presta atenção à professora, conversando entre si ou olhando para os lados. Alguns alunos pouco a pouco vão começando a prestar atenção. Alguns alunos questionam as explicações da professora sem ouvir direito: ‘cores misturadas?...’ Alguns alunos anotam as orientações da professora, outros chegam perto dela para fazer perguntas. Outros fazem outras coisas. Alguns alunos, em um lado da classe, fazem brincadeiras, cantam, riem...Pouco a pouco a conversa diminui e os alunos vão iniciando a tarefa, que é desenhar e pintar com lápis de cor o círculo cromático conforme o modelo que a professora fez na lousa. Alguns alunos debocham, “arremedando” a professora em tom esganiçado: ‘amarelo...’. Alguns alunos pedem material emprestado aos colegas. Um mesmo grupinho permanece com brincadeiras e comentários em voz alta, sem participar da atividade. Um desses alunos parece apontar o lápis para começar a desenhar. Às 16:50 horas a maioria dos alunos, cerca de dois terços da classe, está desenhando e os demais conversam em pequenos grupos. Gerson

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levanta e senta e vai até a professora e até o pesquisador com muita freqüência. O pesquisador senta-se cansado. A professora senta-se sem falar nada. A classe se aquieta por um momento. Gerson chama a professora, que vai atendê-lo. Alguns alunos andam pela classe, conversando baixinho. São 16:55 horas e uma aluna mostra um desenho incompleto para a professora e pergunta se pode ‘ir agora’. Vários alunos levam seus desenhos para a professora, que anota alguns sinais no caderno, sem fazer comentários. A professora Sônia explica ao pesquisador que o Gerson toma muito o seu tempo e acaba deixando os demais alunos com pouca atenção. Explica que gosta do desafio e que se afeiçoou muito e que agora se sente um pouco mal em ‘fazer isso com ele’ (parar com o mimo excessivo). São 17:00 horas e agora quase todos os alunos fazem o trabalho do círculo cromático. Muitos fazem apenas uma parte e param para conversar, mas muitos outros estão concentrados na tarefa. Às 17:02 o pesquisador circula pela classe e verifica que 23 alunos estão fazendo (considerando tanto aqueles que estão concentrados, como aqueles que desenham e param e também aqueles outros que desenham e conversam ao mesmo tempo) a tarefa e apenas 2 não começaram. Às 17:05 alguns alunos já terminaram o trabalho e circulam pela classe, voltando a conversar. Alguns conversam baixinho enquanto desenham. Gerson vem para perto do pesquisador, que pede que ele traga o seu desenho. Gerson vai perguntar à professora o que é para fazer. Às 17:06 a funcionária Ruth abre a porta, perguntando se aqui é a 6a. A e em seguida fecha a porta, retirando-se. Às 17:07 verifico que alguns alunos fizeram a metade do trabalho e pararam para conversar. Alguns alunos prosseguem fazendo a tarefa, desenhando o ‘círculo cromático’ com toda atenção e cuidado: Leandro, Carlos, Volnei, Cida, Jorge, Edílson, Telma, Igor e Lucíola, entre outros. O Denis explica ao pesquisador, enquanto mostra o seu trabalho: ‘tá zoado porque pensei que era para dividir (a divisão da figura não é igual àquela que a professora desenhou na lousa). Um grupo se reúne em volta da Marcela, que continua desenhando. Toca o sinal. A professora sai da sala, seguida pelo pesquisador. Alguns alunos prosseguem desenhando e outros levantam-se de suas carteiras”.

8.4.2 – Tematização.

a) Inclusão: o aluno Gerson continuou projetando-se sobre a professora,

tentando concentrar em si todos os seus cuidados. Mas a professora, apesar

da dor que lhe causa esse afastamento, sabe agora que não pode ceder para

Gerson toda a sua atenção.

b) Conteúdos: o sentido de “dar matéria”, ou seja, “passar conteúdo” e, ao

mesmo tempo, realizar uma tarefa, volta a se manifestar. As cores primárias e

secundárias são, mais uma vez, o foco da aula. O conteúdo, dessa vez, está

totalmente voltado para si mesmo e a atividade proposta reduz-se a uma

representação gráfica dos conceitos de cores primárias e cores secundárias.

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c) Comportamentos: várias crianças apresentam um comportamento que parece

transitar entre o desprezo e o conformismo: não prestam atenção às

explicações da professora, expressam seu desprezo em brincadeiras que

ironizam a própria atividade e as palavras da professora, permanecem um

longo tempo sem manifestar qualquer engajamento na atividade proposta.

Mas sabem o que se passa e qual a tarefa, que iniciam após alguns minutos.

Alguns deles fazem ‘de qualquer jeito’, isto é, só para constar no caderno que

fizeram alguma coisa; não manifestam preocupação em ‘acertar’ ou em

concluir a tarefa. Outros fazem tudo muito rapidamente e logo voltam a

conversar ou a fazer outras coisas. Alguns poucos alunos realizam a tarefa

com cuidado e atenção, buscando ‘acertar’, isto é, desenhar o círculo

cromático exatamente como a professora mandou e conforme o exemplo

desenhado na lousa.

d) Confusão: muitos alunos não escutam a professora, que fala muito baixo.

Outros escutam, mas não compreendem as instruções. As anotações na lousa

também carecem de clareza. Muitos alunos não conseguem realizar as tarefas

corretamente, sem entenderem direito o que foi solicitado.

8.5) A classe de Educação de Jovens e Adultos.

8.5.1 – Registro de observação.

Relato de aula em uma classe de EJA (Educação de Jovens e Adultos): “Por volta das 19:00 horas chegam à Sala de Leitura pouco menos de 20 alunos. Sentam-se ao redor de cinco mesas. Em duas dessas mesas acomodam-se rapazes aparentando ter entre 17 e 22 anos de idade. Nas outras mesas predominam moças dessa mesma faixa etária, junto a mulheres de idades variáveis de 25 a 60 anos. Nessa classe são poucos homens maduros. O ambiente é bastante diferente das classes de 6as. e 7as. séries, observadas no período da tarde: antes do início da aula todos permanecem sentados quase o tempo todo e os poucos que levantam são alguns entre os rapazes, que logo sentam-se novamente. As conversas entre os alunos são feitas em tom mais baixo e mais pausado. Não há barulheira ou agitação. Quando a professora Sônia fala, os alunos silenciam ou falam mais baixo. A professora Sônia inicia a aula perguntando à classe, em tom baixo e coloquial, sobre certo material, alguns recortes de revistas. Verificou-se que esse

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material não foi trazido pelos alunos. O planejado para a aula pela professora não poderia ser realizado. O pesquisador apresentou-se brevemente para a classe e uma aluna manifestou que já conhecia o trabalho da PUC junto à creche do bairro. Os alunos permaneceram sossegados em torno das mesas, conversando em pequenos grupos. A professora conversou com algumas alunas de duas mesas mais próximas a ela. Elas trouxeram materiais confeccionados em casa, como bandeirinhas e painéis de cartolina e o mostraram à professora demoradamente, conversando baixinho com ela. Um dos rapazes, aparentando ter entre 17 e 19 anos, veio conversar com o pesquisador e perguntou se este queria ver seus desenhos. Trouxe seu caderno de desenho. Mostrou algumas folhas, com exercícios de desenho geométrico e algumas figuras recortadas e coladas. Depois, mostrou ao pesquisador outros desenhos, feitos com lápis comum, com figuras de mulheres nuas, localizados no meio do caderno. Era uma seqüência de desenhos em que ficava evidente um esforço de melhoria na qualidade do traço, dos detalhes e das proporções. O rapaz destacou que esses desenhos são o que ele gosta de fazer e perguntou ao pesquisador, com um sorrisinho maroto, o que este havia achado. E abriu um sorriso largo quando ouviu que os desenhos eram bons e que ele deveria continuar desenhando. A aula passou rapidamente, em conversas amenas nos diferentes grupinhos”.

8.5.2 – Tematização.

a) Bandeirinhas: as bandeirinhas da Festa Junina concentraram a atenção da

professora. Foram confeccionadas fora da sala de aula, apenas por algumas

alunas.

b) Paralisação: a professora não procurou realizar qualquer tipo de atividade

em substituição àquela que foi cancelada devido à falta de material.

c) Normalidade: Nenhum aluno manifestou qualquer tipo de estranheza pela

não realização de nenhuma atividade organizada, na aula de Arte.

d) Distanciamento: os desenhos que um dos alunos gostava de realizar não

estavam incorporados à aula de Arte.

8.6) O coelho Pernalonga.

8.6.1 – Registro de Observação.

Relato da primeira aula do período da tarde, na 6a. série D: “Às 15:05 h entram na classe a professora Sônia e o pesquisador. Os alunos já conhecem o

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pesquisador e reservam para este um lugar, entre as demais carteiras. A classe está lotada. A professora Sônia assume a classe, cumprimentando os alunos: ‘boa tarde!’. Conta até 3, ‘para fazerem silêncio’, e os alunos param a conversa. Aqueles que estavam de pé, sentam-se. A professora Sônia faz comentários sobre as cores quentes e as cores frias, com diversas perguntas aos alunos sobre o assunto. Explica que distribuirá uma folha com dois quadros, um à esquerda e outro á direita. Os dois quadros têm desenhos iguais, pré-impressos. Trata-se da figura do coelho Pernalonga e a tarefa consiste em pintar um quadro com as cores quentes e o outro com as cores frias. Explica que o violeta, o azul e o verde são cores frias e o vermelho, o amarelo e o laranja são cores quentes. Menciona e classifica também outras cores (o marrom, cor quente, e o cinza, cor fria). Distribui para os alunos as folhas com os dois quadros e um pequeno texto explicativo da tarefa. Há uma certa dispersão na classe durante as explicações, com muitos alunos conversando, alguns levantando, outros pedindo lápis de cor emprestado a colegas. A maioria dos alunos permanece em seus lugares e observam a folha de papel com os desenhos mimeografados entregues pela professora. Às 15:15 horas alguns alunos estão pintando os quadros com lápis de cor. O pesquisador observa a classe, circulando entre as fileiras. Os alunos usam lápis de cor para fazer a tarefa. Na primeira fileira todos estão pintando: Liana, Telma, Silvia, Igor e Marta. Liana levanta e logo se senta. Na segunda fileira Carminha permanece andando pela sala e os demais – Suzana, Airton, Cibele e Tiago estão pintando concentrados. Na terceira fileira, Durval e Jussara, nas pontas, estão concentrados e pintando, Mônica levantou-se, Daiane pinta ao mesmo tempo em que conversa e Denilson e Gustavo alternam momentos em que sentam e pintam, outros em que levantam e conversam, outros em que levantam e pintam e outros em que se sentam e conversam. Na quarta fileira, Valdecir está concentrado e pintando, Jussara e Jurema conversam e pintam ao mesmo tempo e Paulo pinta e observa o pesquisador ao mesmo tempo. Na quinta fileira Rosa e Margarida estão concentradas e pintando com lápis de cor. Margarida parece ter problemas de visão, pois está com o rosto bem próximo à folha de papel; Daniel levanta-se; Márcia e Cida estão pintando cuidadosamente; Sandra levanta-se e volta logo para seu lugar. Na sexta fileira, junto à parede da janela, em frente à mesa da professora, todos estão concentrados e pintando: Igor, Gabriel, Felipe e Tatiana. Enquanto o pesquisador percorre a classe, a professora inicia uma atividade de verificação dos cadernos dos alunos e está chamando os alunos, um por um, para levarem seus cadernos para ela. Os demais prosseguem com a atividade, a maior parte do tempo concentrados, escolhendo as cores... Alguns alunos conversam e levantam várias vezes, mas não deixam de realizar a tarefa. Alguns alunos levantam, olham para o trabalho de um colega e voltam para seu lugar, continuando seu desenho. Alguns alunos permanecem em total concentração, cuidando exclusivamente de sua atividade. Alguns alunos copiam os trabalhos de colegas. Outros concentram-se e pintam com todo o cuidado, combinando cores e tonalidades. Alguns pintam principalmente preenchendo os espaços, outros reforçam as linhas do desenho com lápis de cor. Às 15:35 horas poucos terminaram a tarefa, muitos não concluíram nem a metade (um dos quadros). Denílson: são 15:37 horas e Denílson observa atentamente o seu trabalho, levanta e conversa com um colega, retorna e derruba

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o seu desenho no chão, recolhe o desenho, conversa com outro colega ao lado, um outro colega levanta-se e vem até o lugar de Denílson e olha seu desenho; Denílson senta-se meio de lado e pinta mais um pouco (sempre com lápis de cor), continua pintando enquanto conversa, outro colega chega e mostra o seu desenho ao Denílson e em seguida afasta-se. Denílson, agora, está só com seu desenho no colo e prossegue desenhando. Olha em torno, para a classe, e continua pintando. Levanta-se e mostra o desenho para um colega em outra fileira, está bastante agitado, movimentando-se rapidamente. Denílson vai até a professora e mostra a ela o seu desenho. A professora conversa com ele, apontando o seu desenho e questionando as cores utilizadas. Pergunta se ‘essa cor é quente ou fria?’ (o trabalho de Denílson tem cores quentes e frias no mesmo quadro!), mostrando o seu erro (‘está errado’, diz a professora). Denílson volta para o seu lugar andando lentamente, com expressão de desânimo, olhar parado, deixa o seu trabalho sobre a carteira e fica de pé diante da carteira de um colega, volta para seu lugar e fica conversando com um colega. Não volta a desenhar. Logo a seguir chega a vez de Denílson levar seu caderno para a professora, ele levanta-se e derruba o desenho novamente, não recolhe o desenho do chão, leva o caderno até a professora, volta para seu lugar e pisa no desenho que permanece no chão, fica de costas para a carteira e olha para os colegas que brincam e conversam. O pesquisador chama o Denílson, pede para ver o seu desenho. Denílson o recolhe do chão e o mostra para o pesquisador que pergunta como ele se saiu na tarefa do dia. Denílson explica que a professora falou que o desenho está errado e que o verde não é cor quente, explica: ‘´É que eu não li...’. O pesquisador pergunta como ele se sentiu diante do que falou a professora, ele diz que ficou com vergonha, pois ‘ela disse que era pra eu ler e eu não tinha lido’. O pesquisador pergunta se ele gostou do desenho e ele responde que sim. Pergunta se ele gostou de pintar e ele responde que sim. Pergunta ainda como ele se sente em relação ao desenho que fez e Denílson afirma ‘me sinto orgulhoso porque acho ele bonitinho’ e volta para seu lugar, colocando seu desenho sobre a mesa. São 15:47 horas e toca o sinal. Alguns alunos continuam pintando. Saímos da sala, o pesquisador e a professora Sônia. A professora Sônia informa que nesse mesmo dia, à noite, receberá a visita de um grupo de pessoas de um projeto da USP, que irão trazer originais de pintura contemporânea e que os alunos de classes de E.J.A. (Educação de Jovens e Adultos) irão ver esses trabalhos. Informa também que fez cursos de Arte Contemporânea no MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) e na USP”.

8.6.2 – Tematização. a) Segurança: a professora Sônia, nessa aula, estava segura de si e bem

disposta: contou até três e obteve silêncio imediato da classe. A atividade do

dia foi planejada, ao contrário da aula da semana anterior, em que “não

preparou nada”, pois estava doente.

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b) Conteúdos: a aula, mais uma vez, teve conteúdos: cores quentes e cores frias.

O domínio desses conteúdos foi exercitado, registrado e documentado em

uma folha de papel, especialmente preparada com os desenhos pré-impressos.

c) Tarefismo: há uma tarefa a ser executada pelos alunos, com características

delimitadas previamente pela professora. A folha de papel distribuída aos

alunos contém, também, uma frase com as instruções que devem ser

seguidas. Essa tarefa tem alguma margem de escolha para os alunos: qual cor

será colorida em cada parte do desenho e de que modo esse colorir será feito,

fica a critério de cada aluno. Desde que utilizem, em um quadro, somente

cores frias e, no outro, somente cores quentes.

d) Ocultamento e silêncio: os desenhos dos alunos não foram mostrados nem

comentados. A professora apenas decretou que os desenhos mostrados a ela

estavam certos ou errados, conforme as instruções apresentadas.

e) Variedade: apareceu uma grande variedade de resultados, tanto os mais

padronizados, com o estilo típico das histórias em quadrinhos infantis, e

outros, distantes desses padrões, que apresentaram uma grande variedade de

cores e de tons, tanto nas linhas como nas superfícies.

f) Denílson: o caso do menino Denílson, que, a partir de certo momento foi

focado pelo pesquisador, é significativo: ele faz sua tarefa com evidente

cuidado e atenção, sua agitação é seu modo de envolvimento com a atividade

e não dispersão ou desatenção. Conseguiu algum resultado, embora parcial

(só havia colorido um dos quadros) e combinando as cores de modo diferente

do estabelecido pela professora. A professora declara apenas que o desenho

está errado, por não mostrar conformidade com a regra estabelecida.

Desânimo, vergonha e desinteresse são manifestados por Denílson após a

classificação de seu desenho como errado.

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8.7) As frisas e as Olimpíadas.

8.7.1 – Registro de Observação.

Relato da primeira aula do período da tarde, na 7a. série C: “Às 15:07 h entram na classe a professora Sônia e o pesquisador. A professora apresenta o pesquisador. Há 22 alunos. As meninas estão nas fileiras de carteiras do lado esquerdo e os rapazes nas fileiras do lado direito. O pesquisador acomoda-se em uma das carteiras vazias, no lado direito, próximo aos rapazes. A professora desenha na lousa. Trata-se de um quadrado grande, preenchido por linhas verticais e horizontais paralelas e eqüidistantes, formando um quadriculado. Concluído o desenho, a professora informa aos alunos que, quando esse quadriculado estiver pronto, ‘deverão fazer frisas, pintando os quadradinhos’. Desde o início da aula e também durante essa explicação da professora algumas alunas manipulam cadeiras, com algum barulho. Logo a seguir, dois rapazes informam que não trouxeram o material (de desenho). Um rapaz pede a outro uma régua emprestada, que informa que não trouxe. O pesquisador decide concentrar suas observações nos alunos da primeira fileira, logo à direita. Nessa fileira estão Igor, Roberto, Carlos, Daniel e Dario. Carlos tem papel, lápis e régua. Roberto conseguiu papel com um colega e tem um lápis. Daniel tem papel (o caderno de desenho), lápis e régua. Carlos e Daniel logo iniciam o trabalho solicitado pela professora. Roberto levanta-se e sai da sala. São 15:15 horas e a professora sai da classe sem dizer nada. Carlos está com o quadriculado quase pronto. Raul senta-se no lugar de Roberto e questiona o pesquisador, que informa que está fazendo um estudo sobre as atividades dos alunos nas aulas de Arte. Às 15:16 Igor ainda não iniciou a tarefa, está sentado olhando em volta, para a classe. Carlos conversa com os colegas e ri enquanto faz o trabalho. Daniel prossegue sua atividade em silêncio. Às 15:17 Roberto retorna e senta-se sem iniciar sua tarefa. Um outro aluno pede um apontador emprestado a Daniel, que empresta murmurando: ‘vai e volta...’. Roberto levanta, dá alguns passos e volta para seu lugar. Agora tem um esquadro e começa a realizar a tarefa. Daniel anuncia que terminou: ‘Terminei!’. Sua folha tem quadriculados em toda a extensão. Carlos anuncia que também terminou. Carlos e Daniel conversam entre si, perguntando se é necessário numerar as colunas e linhas conforme o modelo da lousa. Roberto conversa com um colega. Carlos pergunta a outro aluno: ‘Você coloca os números aqui em cima...?’, pergunta mostrando o desenho. São 15:23 horas quando a professora Sônia retorna. Carlos e Daniel mostram à professora seus desenhos com os quadriculados, perguntando se está certo. Daniel conta os quadradinhos da horizontal. Carlos havia feito, além do quadriculado, algumas linhas oblíquas tracejadas. Carlos começa a preencher os quadradinhos, pintando-os de cinza com o lápis comum. Daniel fecha o caderno e abre-o novamente, escolhe em sua caixinha de lápis de cor o lápis cor de laranja e com ele começa a preencher os quadradinhos para fazer as frisas solicitadas pela professora. Daniel dá uma folha de papel a uma colega. Carlos levanta e retorna à

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sua carteira. Roberto agora está concentrado, pintando os quadradinhos. Uma aluna faz a chamada para a professora, chamando os colegas pelo número. Uma funcionária da secretaria entra na sala e pergunta à professora por uma ficha de chamada. A professora Sônia sai da classe, acompanhando a funcionária, dizendo para a classe ‘já volto’. Roberto amassa e joga no lixo a folha com seu trabalho, dizendo: ‘Saiu errado’ e sai novamente da sala. São 15:30 horas e a maioria dos alunos da classe já desenhou o quadriculado, mas ainda não começou a preencher os quadradinhos para desenhar as frisas. Carlos e Daniel prosseguem preenchendo os quadradinhos, formando os desenhos das frisas. Roberto retorna à sala, segurando outra folha de papel. A professora volta para a sala, senta-se em seu lugar e manipula umas folhas de cartolina e de papel colorido. Um aluno levanta-se e aborda Daniel, solicitando material emprestado. Daniel pinta os quadradinhos formando frisas em diferentes padrões, cada frisa com alguns quadradinhos e com uma cor diferente, seguindo uma ordem semelhante à escrita, com cada frisa na seqüência da outra como se fosse uma palavra, isto é, da esquerda para a direita e de cima para baixo. Daniel levanta e mostra seu trabalho para a professora que diz: ‘Isso, isso...’. Daniel mostra o seu trabalho para uma menina, do outro lado da classe. Carlos faz frisas amplas e ocupa com elas toda a folha. Seus quadradinhos são mais largos. Roberto recomeça a tarefa. Daniel retorna a seu lugar e continua a sua tarefa. Carlos conversa bastante enquanto faz o trabalho, fala sobre diferentes assuntos, e ri. Carlos reclama que nunca uma aula de Arte demorou tanto. Daniel levanta novamente para mostrar o seu trabalho para a professora e volta em seguida para seu lugar. Roberto continua o seu trabalho, marcando cuidadosamente as distâncias antes de traçar cada linha do quadriculado. O pesquisador pergunta aos rapazes da primeira fila: Já fizeram algum trabalho parecido com esse? Um deles responde: ‘Faz tempo... pintei colorido como um azulejo...’. Outros respondem: ‘Já...’ Todos já fizeram. Durante a aula, alguns alunos fazem um trabalho diferente: os aros do símbolo das Olimpíadas, com cartolina colorida. Questionados pelo pesquisador, Roberto e Carlos acham mais legal o trabalho que esses colegas estão fazendo com as cartolinas. Por que não estão fazendo? ‘A professora que escolheu (quem iria fazer esse trabalho)’. Daniel levanta e vai até a professora. Retorna dizendo: ‘A professora disse que está bom’. 15:45: toca o sinal. A professora sai sem dizer nada, seguida pelo pesquisador”.

8.7.2 – Tematização.

a) Tarefismo: mais uma vez a aula de Arte foi focada em uma tarefa com

instruções precisas e predeterminadas: desenhar frisas através do

procedimento de colorir quadradinhos, criando padrões.

b) Descontextualização: a atividade parece estar totalmente desligada de

qualquer outra coisa que não a necessidade de manter os alunos ocupados,

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executando uma tarefa em conformidade com instruções prévias. Não foram

dadas explicações sobre o que são frisas e em que elas podem ser usadas.

c) Repetição: os alunos já fizeram tarefas semelhantes em alguma outra

oportunidade.

d) Rotina: a única reclamação que apareceu foi a de um aluno, que declarou que

“parece que nunca uma aula de Arte foi tão demorada”. Essa observação

indica que a presença do pesquisador pode ter mudado a rotina de aula a que

os alunos estavam acostumados.

e) Olimpíadas: outra atividade foi realizada durante a aula, na qual alguns

alunos dedicaram-se a construir, com cartolinas, os círculos do logotipo

oficial das Olimpíadas para a decoração da festa das Olimpíadas. A

professora ficou mais concentrada nessa atividade do que na tarefa que

solicitou à classe. Mas só alguns alunos puderam realizar essa tarefa: aqueles

escolhidos pela professora, conforme sua habilidade.

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CAPÍTULO 9 – A palavra dos alunos.

9.1) Uma conversa com duas meninas.

9.1.1 – Registro da Entrevista.

Relato da entrevista com duas alunas da 6a. série A, no pátio da escola, enquanto realizava-se a festa das Olimpíadas: “O pesquisador apresenta-se e pergunta o que elas acham das aulas de Arte. Elas respondem que são meio chatas, que a professora diz que o desenho ficou torto, que tem que ficar medindo, que um milímetro fora da medida é considerado errado, que a professora corrigia medindo com a régua. ‘Eu não entendo... eu não acho ela chata, só que eu não entendo’, comenta Beatriz”. Pesquisador - O que vocês já fizeram de legal em aulas de Arte? Beatriz – Tinha umas bexigas, a gente passava cola e explodia a bexiga... ficava o formato de um rosto... (A aula de Arte)... é o maior chata, pra quem sabe desenhar é legal, a gente tem que apagar, ou ela marca com a caneta o exercício, (arremedando a professora) “tá faltando isso”... às vezes marca errado, às vezes marca meio certo... Pesquisador - Como você se sente? Beatriz - Dá vergonha...Ela fala “aqui está errado”... tem uns meninos besta que fica falando “não sabe fazer” e aí dá vergonha... Cecília – Eu fiz meu vaso, ela disse que estava torto e mandou apagar para consertar e fazer com a régua... Aquele negócio de cores primárias é muito chato...fica tudo com cor repetida...não dá pra usar todas as cores... Beatriz – Teve uma prova que pediu cores primárias e secundárias, quentes e frias...fica difícil... Pesquisador - O que é legal? Cecília – Fazer uma coisa que goste, desenho, pintar com a cor que quer, isso é legal... Beatriz – Fazer um desenho que está em mente e não ter um tempo para acabar. Às vezes ela fala assim...que é pra terminar nessa aula... Cecília – Não pode conversar... Beatriz – Eu acho isso ruim, de esquecer o material e mandar lá pra baixo (falar com o diretor) porque acontece e não é pra mandar...é pra procurar saber, ouvir o motivo... Cecília – Duas semanas passadas pintaram com guache... vidros grandes... pincel... mas foi na aula de História. A gente desenhou a bandeira e passou guache... esse dia foi o dia que a gente teve mais liberdade, a gente falou, andou...

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Chega mais uma menina, a Lúcia. Pesquisador - O que vocês mais gostaram nas aulas de Arte? Lúcia – Gostei do cartão postal... Pesquisador - Era pra enviar pra outra pessoa? Lúcia – Mandei pra Suzana... (explica que já fez o cartão pensando em mandar pra melhor amiga, a Suzana) Beatriz – No dia dos pais, a gente fazia alguma coisa para entregar para o pai... Cecília – Não gostei porque tinha que dobrar, mas se dobrasse torto a professora começava a brigar... (arremedando a professora)...: “não tem mais material”... Quando fica legal é bom, mas quando fica ruim ou feio a gente fica sem ânimo para entregar... dá até vergonha... Aí joga fora no lixo... Lúcia afasta-se. Pesquisador - Vocês já fizeram esse tipo de trabalho pra entregar? Cecília – Na outra escola... Beatriz – Já entreguei... Cecília explica que só entrega trabalhos à mãe: “Foi uma lembrança com sabonete decorado com glíter...” A mãe dela gostou, declara. Pesquisador - E o pai? Cecília explica que o pai não pega, só vive trabalhando, “...quando pára já está mamado...”. Nesse caso, Cecília nem entrega o trabalho, joga fora ou nem faz. Cecília - Aí a professora começa a brigar... Pesquisador - E você (para Beatriz) ? Beatriz – Para a mãe? Cartão...na maioria das vezes...dobrava o sulfite, cortava com a tesoura, aquela especial que corta ondulado, pintava coração, o nome dela era com glíter e a mensagem que a professora passou... Beatriz completa dizendo que entregava o trabalho para a sua mãe. Perguntada pelo pesquisador, explica que pintura nunca fez... Beatriz – Foi só essa vez, que o professor de História passou tinta pra gente pintar a bandeira. Beatriz – A professora de Arte do ano passado ninguém agüentava ela. Que só gritava com a gente... Cecília – Ela era manca e metida! Cecília imita a professora do ano passado, anda manquitolando e olhando pra cima... Completa a descrição contando que ela brigava quando os alunos pediam material a ela e não deixava sair da sala de aula para beber água. Beatriz – Uma vez a gente fez uns bonecos de jornal que ela mandou... Ela falava assim (arremedando a professora): “olha que coisa horrível...” Cecília – No recreio das férias (no mês de julho, poucas semanas antes dessa conversa, em que foram realizadas atividades na escola coordenadas por monitores) foi muito legal porque a gente mexeu com tintas... em cada sala tinha uma coisa diferente... jogos, pintura, teatro... Beatriz – Tinha dança... Cecília – Fiquei na sala de pintura, fiz vários desenhos, pinturas livres, podia fazer o que quisesse, podia gastar a tinta e o papel que quisesse e ninguém reclamava... Podia fazer todas as pinturas que quisesse... Fiz uma caveira, fundo preto, um capeta... depois fiz um arco-íris... e também fiz uma árvore e um jardim... Mostrei pro tio que estava lá, monitorando. Depois joguei fora... Depois

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que faz, fica sem graça... No meu caderno tem um desenho que eu bem gosto... fui eu que fiz... A pedido do pesquisador, Beatriz e Cecília vão buscar os cadernos utilizados na aula de Arte. Cecília: mostra um desenho feito com lápis comum e lápis de cor, explica que é a Suzi Fashion e que é o de que ela mais gosta. Beatriz e Cecília mostram folhas do caderno de desenho com tabelas e questões de desenho geométrico, segmentos de reta, ângulos e medidas e explicam que isso “é o mais chato!”. Agora falam junto, uma completando a frase da outra, mostrando os desenhos e anotações no caderno: “A gente estava assistindo o filme da Mônica... e tinha que anotar de que cor era cada coisa que aparecia... com cor primária... e também teve esse... mandou pintar o desenho (mostram o desenho mimeografado do coelho Pernalonga)... só com as cores secundárias... e o outro de qualquer cor... o maior chato... o maior ruim... é chato... depois mandou fazer desenhos com cores quentes...” Mostram uma prova aplicada pela professora, com questões em que mandava pintar desenhos mimeografados com cores quentes, frias, primárias, secundárias... Contam que uma vez ela mandou escrever palavras em inglês, outra vez mandou olhar para o sol e pintar... Cecília – Esse é o jarro que ficou torto e tive que apagar e fazer de novo... Contam que uma vez tiveram que fazer um desenho bem difícil, um certo tipo de enfeites gregos... Cecília – Nas férias teve um muito legal. Eu fui em um lugar que tinha argila, teatro, circo, parquinho...gostei mais da massinha...Foi no ônibus do Recreio nas Férias... A única coisa que não foi legal nesse dia foi que ficamos separadas porque separaram por idade... Beatriz mostra o desenho na folha mimeografada com o desenho do coelho Pernalonga. Beatriz – Ela não queria nenhum espacinho em branco... Pesquisador - E você, como queria? Beatriz – Com todas as cores e deixar uns espaços em branco pra ficar bonito... A gente teve que pintar o coqueiro de amarelo e ficou feio porque tinha que ser verde... O ano passado teve um desenho que era fazer tipo impressionismo, alguma coisa assim, que era pra fazer como se estivesse longe. Era uma mulher no meio do mato com um guarda-chuva, era só risco e só dava pra ver de longe. Ela (a professora do ano passado) mostrou a pintura que ficou lá na frente e nós tivemos que copiar... Foi muito difícil porque não tinha forma, era só risco... E também ela mostrou um desenho de uma artista e nós não somos artistas pra ficar igualzinho e impecável. Se a gente desenhasse, ela falava (arremedando) “não tem forma”... Pesquisador - Como você se sentiu? Beatriz – Dava raiva, vergonha... um monte de coisa... Foi horrível... Cecília concorda. Cecília – Dava vontade de matar ela... Ela gritava demais... Ela só fazia isso com nós, com os moleques grandões ela falava normalzinho, com a gente ela falava gritando... Ela ficava a maior vermelha... Parece uma doida...(imita debochando)

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“Não é pra ninguém conversar...” Dois conversam, a sala toda é que leva? Ela é a maior malvada... Beatriz – Eu acho que eles (os professores) deveriam perguntar todo dia o que a gente acha da aula... Pesquisador - Vocês já trabalharam com argila, na aula de Arte? Beatriz – Quando teve foi uma aula só... com um pouquinho só de argila pra 40 alunos... olha só o tantinho que cada um recebeu (mostra com o indicador perto do polegar a quantidade de argila que cada um recebeu). “Toca o sinal, as meninas se agitam e se levantam, o pesquisador dá por encerrada a conversa, as meninas se afastam”.

9.1.2 – Tematização.

a) A aula e a professora: as meninas estabelecem uma diferença entre a aula e a

professora: a aula é chata, a professora, não.

b) Corrigindo erros: a caracterização da aula de Arte como “chata” é

relacionada à constante correção dos trabalhos das meninas, pela professora,

às notas baixas (errado ou meio certo), e às constantes referências críticas da

professora, que só menciona o que está faltando ou está errado.

c) Vergonha: diante das críticas e das notas baixas atribuídas pela professora, as

meninas sentem-se envergonhadas. Colegas fazem chacota da situação,

aumentando ainda mais o sentimento de vergonha.

d) Normas: As normas impostas pela professora para fazer os desenhos, como

usar apenas cores quentes ou frias, ou cores primárias ou secundárias,

aparecem para as entrevistadas como uma restrição “chata”, como algo que

impede as meninas de fazer seus desenhos do modo que consideram mais

adequado.

e) Restrições: as meninas apresentam várias situações restritivas cujo

significado lhes escapa: não podem conversar e têm que terminar o desenho

na mesma aula.

f) Material: o material de desenho surge como ponto de conflito e, nesse caso, o

apelo das meninas é o de poder falar.

g) Guache: a atividade de arte mais agradável aconteceu na aula de História, em

que elas pintaram a bandeira de algum país: teve liberdade e guache!

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h) Sofrimento: uma atividade agradável, como fazer um cartão para presentear a

mãe, fica “chata” quando a professora “briga” por causa do material: há, ao

mesmo tempo, a exigência de perfeição no acabamento (não pode “dobrar

torto”) e forte limitação quanto ao uso do material.

i) Erros: os resultados que não seguem o modelo pré-estabelecido são

considerados como erros pela professora. E os erros são duramente

criticados.

j) Resultado e sofrimento: o resultado é importante para as crianças: eles

querem presentear algo que elas considerem bonito. Mas um erro ou um

resultado ainda não satisfatório, não é considerado como algo corriqueiro,

como um momento a ser superado em uma nova tentativa, mas como motivo

de vergonha e desânimo.

k) Presentes: fazer um desenho para mostrar ou presentear uma pessoa querida é

muito importante e tem, para as meninas, um interesse especial. Cecília gosta

de presentear sua mãe.

l) O pai e a professora: Cecília informa que seu pai não recebe seus trabalhos e

que considera que seu pai trabalha muito e bebe demais e ela prefere não

fazer desenhos ou objetos para ele. A professora, nesse caso, também “briga”

com ela.

m) A ex-professora: as meninas reclamaram veementemente da professora de

Arte do ano passado, que consideram arrogante e cruel e que disse, certa vez,

que o trabalho dos alunos estava “horrível”.

n) Recreio de férias: a atividade conhecida como Recreio nas Férias foi a

oportunidade que as meninas tiveram para fazer atividades artísticas com

alegria e liberdade, desenhando e pintando o que queriam, sem grandes

restrições quanto ao uso do material, podendo escolher as atividades de sua

preferência entre muitas possibilidades (pintura, dança e teatro), além de

jogos, esportes, brincadeiras e passeios. Nas férias elas têm mais material de

arte e mais oportunidades de criar do que nas aulas de Arte!

o) Mostrar: Cecília destaca o prazer de fazer, o prazer de mostrar e o fato de

que, às vezes, depois de fazer, o trabalho (no caso, a pintura) “perde a graça”.

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Mas também mostra que, em alguns casos, há importância e orgulho em

guardar um desenho, e poder mostrá-lo, mesmo muito tempo depois de feito:

ela gosta muito de ter feito, e tem orgulho em mostrar o desenho da boneca

“Suzi Fashion”.

p) Chatice: as meninas reclamam muito das atividades de desenho geométrico,

que são as mais “chatas”. E reclamam enfaticamente das atividades com o

desenho animado da Mônica e das figuras pré-impressas do coelho

Pernalonga.

q) Releitura: As meninas descrevem outra atividade do tipo releitura, realizada

no ano anterior. O modelo era uma reprodução de uma pintura impressionista

e os alunos deveriam fazer um trabalho no mesmo estilo impressionista, com

contornos imprecisos, em que as figuras apareciam “como se estivessem

longe”. Para as entrevistadas essa atividade “foi horrível”.

r) Repreensão: as meninas reclamaram que a professora do ano passado

repreendia toda a classe quando só alguns estavam fazendo “bagunça”.

s) Discriminação: elas perceberam como discriminação o fato de que a

professora do ano passado gritava com elas, que são pequeninas, mas não

gritava com os meninos “grandões”, com os quais ela falava “normalzinho”.

t) Argila: elas reclamaram da pequena quantidade de material que receberam na

única aula de Arte em que trabalharam com argila.

9.2) Entrevista coletiva.

9.2.1 – Resumo do Registro de Observação.

A entrevista coletiva com os alunos da 6a. série D teve 1:30 h. de duração e se realizou sem a presença da professora, que concordou em se ausentar para que os alunos ficassem mais à vontade. Os alunos realizaram, inicialmente, um exercício de lembrança, em que concentraram sua atenção nas aulas de Arte de que participaram. Depois, apresentaram e discutiram alguns relatos de acontecimentos que consideraram marcantes, nessas aulas. Após essas atividades, consideradas de aquecimento, reuniram-se em grupos para elaborar relatos em que deviam destacar o que gostariam de fazer nas aulas de Arte e, também, o que achavam deve ser evitado nessas aulas. Após um período para

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discussão em grupo, cada grupo apresentou oralmente para a classe suas conclusões e entregou para o pesquisador o relatório escrito. Finalmente, foram chamados a escrever uma redação individual, na qual cada aluno deveria escolher entre quatro temas: “Para quem eu gosto de mostrar meus desenhos”, “O que eu penso e sinto quando estou desenhando”, “Do que eu não gosto nas aulas de Arte” e “Como eu participo da aula de Arte”. Muitos alunos responderam a várias dessas questões. O primeiro debate, com o relato dos acontecimentos considerados importantes, foi algo conturbado e com as falas dos alunos se sobrepondo às dos colegas. As reuniões dos grupos, com a posterior apresentação para a classe, transcorreram organizadamente, com todos os grupos concluindo a atividade, escutando e discutindo as conclusões. As redações foram escritas com a classe em silêncio e com grande concentração de todos os alunos.

9.2.2 – Os textos dos grupos.

• Os grupos relataram que querem que, nas aulas de Arte, sejam realizadas as seguintes atividades: desenhos interessantes (sic), desenhos livres, “pintar usando as cores que quiser”, dobradura, modelagem com argila e com massinha, pintura com guache, teatro, dança, filmes musicais, utilização do laboratório de informática e trabalhos com gesso. • Foram mencionadas, como atividades a se evitar, nas aulas de Arte: pinturas com utilização exclusiva de cores quentes, frias, primárias ou secundárias e desenhos de segmentos de reta. • Quanto à relação professor-aluno, os relatórios dos grupos mencionaram que a professora deve ser mais compreensiva com os alunos; que a comunicação entre os alunos e a professora deve seguir fluentemente; que a professora não brigue nem discuta com os alunos; que a professora converse mais com os alunos; que a professora fale mais alto; que a professora não grite com os alunos; que a professora não faça a chamada muito rápido; que a professora não fique falando na hora da prova; que a professora não fique “cobrando” muito dos alunos. • Quanto à avaliação: que sejam evitados muitos “NS” (que significa, para os alunos, uma nota baixa); e que não seja realizada prova escrita de Arte. • Quanto às questões disciplinares, os relatórios mencionam que a professora não deve brigar com todos os alunos da classe, mas apenas com aqueles que estão fazendo bagunça; que a professora não deve atribuir uma avaliação negativa (“NS”) quando um aluno não traz o material de Arte; e que a professora não deveria trocar os alunos de lugar. • Quanto às aulas de Arte, em geral, os relatos mencionam que deveriam ser realizadas visitas a museus de arte e passeios culturais; que deveriam ser realizadas mais aulas fora da sala de aula comum (mesmo nos corredores ou outros lugares da escola); que as aulas deveriam ser mais comunicativas, alegres e coloridas; e, também que nas aulas de Arte todas as opiniões fossem respeitadas.

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• Quanto ao comportamento dos alunos, foi manifestado que deveriam ser evitados a bagunça, a gritaria e os palavrões. • Foram propostas algumas regras, dirigidas a todos, alunos e professora: ninguém deve xingar ou mandar o outro calar a boca e que cada um “possa manifestar a sua opinião”. Além disso, um dos grupos escreveu: “direitos iguais aos outros”. • Um dos grupos escreveu que “nós não gostaríamos que a professora saísse da escola”.

9.2.3 – Tematização.

a) Distanciamento: para muitos alunos o comportamento da professora tem o

sentido de distanciamento, recusa em dialogar, agressividade e intolerância.

b) Punições: muitos criticam o recurso exagerado, por parte da professora, a

medidas punitivas consideradas desnecessárias e injustas.

c) Falta de comunicação: alguns alunos entendem que a professora não

consegue comunicar-se adequadamente. Os alunos acham que a professora

exige muito, mas explica pouco. E, muitas vezes, não escutam ou não

entendem o que ela fala.

d) Ambiente: os alunos não gostam do ambiente severo em que transcorrem as

aulas de Arte. Acreditam que a aula de Arte pode ser algo agradável.

e) A professora: muitos alunos gostam da professora. E desconfiam que a

pesquisa possa prejudicá-la. Os alunos querem que a professora continue na

escola, mas que ela mude de atitude para com eles.

f) Rejeição: os alunos rejeitam a utilização da aula de Arte para realizar

atividades de desenho geométrico. Não gostam de muita teoria e de textos

longos, pois compreendem a aula de Arte como uma aula eminentemente

prática.

g) Normas: as restrições e normas estabelecidas pela professora para realizar as

tarefas são percebidas como empecilhos para a realização dos desenhos.

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9.3) As redações.

9.3.1 Para quem eu gosto de mostrar os meus desenhos.

9.3.1.1 – As frases. “Eu, quando faço o desenho na sala de aula, mostro para os meus amigos, mas quando eu faço o desenho em casa eu mostro para a minha família, sempre dependendo de onde eu estou. E se eu achar o desenho da-hora eu mostro, mas se eu achar feio, não mostro, eu rasgo e jogo no lixo”. (Redação 1 – sem assinatura) “Eu gosto de mostrar o desenho para a minha mãe quando a nota é boa, mas quando é ruim, eu rasgo e jogo fora ...”. (Igor) “Eu gosto de mostrar meus desenhos para uma pessoa que entende de desenho e que possa me ajudar a melhorar os meus desenhos como a professora Sônia”. (Durval) “Eu gosto de mostrar meus desenhos para a professora mesmo que ela fale que o desenho esta ruim. Bom pra gente, porque tipo ela fala que esta ruim é pra gente fazer coisas melhores, pra nós termos boa nota, e aprender fazer ótimos desenhos. Para que no futuro quem sabe podermos ser um pintor ou uma pintora famosa”. (Cida) “Para a minha (mãe) que eu gosto de mostrar os meus desenhos, porque ela sempre fala que está bonito. Para o meu tio porque ele é desenhista e me dá palpites bons. E para meus colegas porque além deles dar palpites, falam a verdade, se o desenho está bonito ou feio”. (Redação 5 – sem assinatura) “Mostraria para o meu amigo Paulo porque eu considero o melhor amigo e fico feliz de mostrar”. (Felipe) “Eu gosto de mostrar os meus desenhos para os meus amigos, para minha irmã, minha mãe e para o meu pai. E para o cachorro por que ele não fala se o desenho está ruim ou bom, então o meu cachorro não julga nada, por isso que eu mostro o meu desenho para o meu cachorro e só para estas pessoas”. (Valdecir) “Para as minhas amigas e a professora”. (Márcia) “Eu mostro os meus desenhos para os meus pais, meus irmãos ou professores. Também gosto de mostrar para os colegas de classe”. (Ismael)

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“Eu gosto de mostrar os meus desenhos para a Silvia, a Liana e a Rosa e outros amigos(a). Como eu mostro o meu desenho: eu falo ‘olha o meu desenho’, ela olha o meu desenho e ela fala: “legal, muito bonito”. (Redação 18 – sem assinatura) “Eu mostro para a minha amiga e para os meus pais”. (Cibele) “Eu mostro os meus desenhos de Arte para os meus pais e meus irmãos”. (Jair) “Eu gosto sempre de mostrar meus desenhos, sempre para meu pai, minha mãe e meu irmão. Quando eu mostro pro meu pai ele fala que está bom o desenho e fala alguns detalhes, mas eu não fico triste porque ele fala que tem algumas coisas erradas e meus desenhos que eu faço eu coloco na parede de meu quarto, quando alguém vai lá em casa eles perguntam quem foi que fez e tem vez que eu tenho igual eu dou pra ela copiar”. (Redação 24 - sem assinatura) “Eu gosto de mostrar os meus desenhos para minha mãe, porque ela sabe desenhar algumas coisas, meu pai também sabe, minha vó e meus dois tios, e eu saí puxando eles, mas eu to começando a desenhar melhor agora que estou na 6a. série. Eu gosto de mostrar pra minha (mãe) porque ela sempre gosta dos meus desenhos, enfim, é só isso”. (Redação 25 – sem assinatura) “Eu gosto de mostrar os meus desenhos para a minha mãe porque ela não fica dando palpite, ao contrário, ela me elogia e fala pra eu continuar do jeito que eu estou, e que cresça fazendo desenhos, pinturas, pinturas com tintas, dobradura e que eu não faça besteira. E seguir o caminho de desenhista e eu seja um bom artista”. (Airton) “Eu gosto de mostrar os meus desenhos para os meus familiares e às vezes eu mostro para meus amigos e até para a professora e se as pessoas falam alguma coisa eu me sinto muito mal porque as pessoas falam que está feio ou não está muito bonito e aí eu não gosto que as pessoas porque se alguém estiver perto ou do meu lado eu me sinto muito envergonhada. Mas eu corro o risco mostrando para alguém e se essa pessoa falar que está bonito eu fico muito feliz, às vezes eu mostro para as pessoas”. (Liana) “Eu mostro o meu desenho para a minha colega e a minha mãe, eu não mostro para a minha professora. Se é só mostrar eu saio de perto porque eu tenho medo que ela fala alguma coisa, então mostro para a minha colega e a minha mãe”. (Jussara) “Eu gosto muito de desenhar, mas os meus desenhos a maioria eu tiro das revistas da ‘Turma da Mônica’, como os personagens da televisão. Mas eu gosto mesmo de mostrar para a professora, porque ela dá nota mais. Eu mostro também para as minhas amigas que também gostam muito. Eu só tenho isso pra falar!”. (Suzana)

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9.3.1.2 – Tematização.

a) Mostrar os desenhos: as crianças gostam muito de mostrar os trabalhos de

que gostam para as pessoas de suas relações, especialmente para seus

familiares.

b) A professora: alguns alunos preocuparam-se, na redação, em prestigiar a

professora Sônia. Mas muitos não mencionam a professora entre as pessoas

para quem gostam de mostrar seus desenhos.

c) Julgamento: as crianças sentem profundamente a avaliação feita por outras

pessoas em relação aos seus desenhos. Sofrem muito quando alguém fala mal

de um desenho seu e ficam muito felizes quando alguém gosta de seus

trabalhos. As crianças esperam que os outros – especialmente os adultos, pais

e professora - elogiem seus trabalhos, mas aceitam sugestões para melhorar e

críticas feitas com cuidado e com respeito.

d) Sinceridade: as crianças não gostam de elogios falsos, insinceros.

e) Sofrimento: as crianças sofrem profundamente com críticas contundentes,

diretas, públicas ou desrespeitosas. Esse tipo de crítica causa sentimento de

vergonha e profundo desânimo.

f) Escolha: elas não mostram, ou preferem não mostrar, os trabalhos que são

avaliados por elas mesmas negativamente.

g) Vergonha: as crianças têm vergonha quando recebem notas baixas ou

avaliações negativas em seus desenhos. Nesse caso, mesmo que gostem do

trabalho que fizeram, preferem não mostrar para seus familiares.

9.3.2 – O que eu penso e sinto quando estou desenhando. 9.3.2.1 – As frases.

“Quando estou desenhando eu tento me expressar o máximo de mim para poder fazer um bom desenho que ilustre algo que preciso. E é superlegal poder dar vida a algum desenho...” (Jurema) “Eu penso que mais pra frente eu posso ser melhor e sinto bem porque é pra mim e não pra professora”. (Márcia)

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“Quando eu estou desenhando me sinto leve, sem problemas e preocupação, é como se eu estivesse livre. Cara, eu viajo quando desenho! As coisas que eu mais amo na vida são meus pais e a Arte”. (Gustavo) “Bem, primeiro eu me sinto como se estivesse no meu desenho e penso como se eu fosse alguma coisa do desenho. Eu amo desenhar e curtir as cores”. (Rosa) “Penso que eu sou um bom desenhista porque eu não desenho muito bem. Sinto que o desenho faz parte de mim. Que sem esse desenho não conseguiria viver, ‘morreria’, que o desenho faz parte de minha vida”. (Ismael) “Eu me sinto muito legal, só que ela é um pouco chata... Eu gosto muito das lições que ela passa”. (Sandra) “Eu penso em muitas coisas bonitas que, pelo menos, quando desenhamos, não pensamos em violência, é magnífico desenhar e sempre penso em um mundo que não existe”. (Cibele) “Eu odeio desenhar e pintar, quando eu estou desenhando, sei lá, eu me sinto mau, tenho vergonha de mostrar o meu desenho para os outros, e, principalmente pintar. Eu não tenho paciência de pintar, tem que ter muita calma, uma coisa que eu não tenho. Eu odeio aula de Artes e de Matemática, nem devia existir, é muito chato essas aulas, eu também não gosto de fazer teatro e nem de apresentar o meu trabalho lá na frente.” (Mônica) “Quando estou desenhando eu sinto raiva porque eu não gosto de desenhar e nem sei desenhar muito bem. Eu queria saber desenhar melhor mas o meu caderno de desenho é quase vazio, tem uns cinco desenhos no máximo”. (Margarida) “O que eu gosto de fazer é sentir a realidade e penso como as pessoas se sentem no mundo afora. Bom, é isso”. (Denílson)

9.3.2.2 – Tematização.

a) Diferenças: as crianças têm compreensões e sentimentos muito diferentes em

relação a sua atividade.

b) Expressão e criação: Jurema considera seu desenho como expressão de uma

necessidade. Para ela, desenhar é “dar vida” às suas obras. Manifesta os

sentidos de expressão e criação.

c) Distância: Márcia desenha para si e não para a professora, acreditando que

irá melhorar.

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d) Cura e descanso: Márcia sente-se bem quando desenha e Gustavo sente-se

leve, sem preocupações. Aparece o sentido da atividade artística como cura,

como atividade terapêutica.

e) Expressão: Rosa enxerga a si mesma em seu desenho e ama desenhar. Ela se

coloca no desenho e o desenho passa a ser uma parte dela mesma. Ela se

expressa no seu desenho.

f) Desenhando: Ismael, quando desenha, esquece que pensa que não sabe

desenhar. Não é o pensar que aparece. Ele simplesmente desenha,

desconsiderando que, quando pensa sobre isso, ele acha que não sabe

desenhar. O desenho é vivência e o pensamento, nesse momento, fica em

segundo plano.

g) Criação: Cibele cria outro mundo quando desenha.

h) Libertação e criação: nos textos de Jurema, Rosa, Gustavo, Ismael e Cibele

também aparece o sentido de Arte como libertação: libertação das próprias

limitações, das restrições do cotidiano, libertação na criação.

i) Desenho e corpo: Ismael manifesta o sentido de expressão e identitificação

do desenho como parte de si: seu desenho é parte dele, ele está no desenho!

j) Vergonha: Mônica não gosta de desenhar e relaciona esse fato à vergonha

que sente.

k) Raiva: Margarida sente raiva de desenhar, e acredita que não desenha bem.

l) Não sei desenhar: a raiva e o descontentamento aparecem ligados à sensação

de inadequação ou incompetência para o desenho.

m) Sofrimento e crítica: algumas crianças apresentam maior sofrimento do que

outras, diante de situações de crítica.

n) Realidade e sentimento: Denílson, quando desenha, sente a realidade e

percebe os sentimentos das pessoas.

9.3.3 – Do que eu não gosto nas aulas de Arte. 9.3.3.1 – As frases.

“Eu não gosto quando ela fica falando muito alto comigo e eu peço para ir no banheiro e ela não deixa... ”. (Redação 10 – sem assinatura)

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“Eu não gosto quando estou escrevendo e o professor fica falando porque tira a minha concentração. Nem quando os alunos ficam conversando...”. (Márcia) “Eu não gosto quando a professora interrompe, quando nós vamos para a sala de informática, quando ela reclama dos nossos desenhos, que não dá nenhuma aula com guache, que fala muito baixo e reclama muito...”. (Alberto) “Eu não gosto quando a Sônia fala baixo ou grita, fazer prova surpresa, pintar desenho de cor primária, secundária, fria ou quente, ela manda nós calarmos a boca, não respeitar nossas opiniões, discutir com nós, dar ‘NS’ quando esquecemos o material, passar textos grandes, mandar ver filme de música tocada e mandar descobrir qual a música e o filme, não tem som e história tocando e quando adivinhar...”. (Redação 13 – sem assinatura) “Bem, eu não gosto de muito barulho e que ninguém fique gritando perto de mim”. (Rosa) “O que eu não gosto na aula de Artes é que a professora de Artes fala muito baixo e não dá para escutar a explicação, os alunos falam muito alto e a professora tem que gritar, eu não gosto de levar ‘NS’ ... eu pretendia uma aula melhor do que nós estamos tendo, de hoje em diante”. (Redação 19 - sem assinatura) “Eu acho que ela passa muitas coisas que a gente não gosta. Ela fala baixo demais. Eu falo pra falar mais alto, só que ela briga com a gente.” (Sandra) “O que eu não gosto na aula de Arte é a professora ficar gritando”. (Jair) “O que eu não gosto na aula de arte é ter que copiar quadros de pintores famosos porque é muito mais difícil do que pintar alguma coisa livre”. (Margarida)

9.3.3.2 – Tematização.

a) A professora I: as reclamações dos alunos em relação ao comportamento da

professora aparecem, mais uma vez. Todos os alunos que escolheram

responder a esse tema relacionaram aquilo que não gostam nas aulas de Arte

principalmente com a professora, seu comportamento e as atividades por ela

propostas.

b) A professora II: reclamaram que a professora grita, briga, fala muito baixo,

reclama demais, reclama dos desenhos dos alunos, dá muitas notas baixas

(NS), fala em momentos inadequados, manda os alunos calarem a boca,

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proíbe-os de ir ao banheiro, briga quando não trazem o material e não

respeita as opiniões dos alunos.

c) As aulas: quanto às atividades em sala de aula, os alunos reclamam de provas

dadas de surpresa, que a professora manda copiar quadros de pintores

famosos, passa um filme sem o som e manda os alunos adivinharem a

música, manda desenhar somente com cores primárias ou secundárias e cores

frias ou quentes, passa textos muito longos, além de não utilizar guache em

nenhuma aula.

d) Esperança: eles sabem que a aula de Arte pode ser muito melhor do que

aquilo que eles têm. E o que eles querem é apenas uma aula melhor, “de hoje

em diante”.

9.3.4 – Como eu participo das aulas de Arte. 9.3.4.1 – As frases.

“Quando estava no tempo das Olimpíadas eu e o Gustavo fizemos um grande quadro de um templo de Zeus o deus do trovão e famoso deus da Grécia Antiga e por isso eu participo bastante na aula de arte. Mas, não é só eu que participo da aula de arte e sim junto de toda a sala”. (Redação 1 – sem assinatura) “Eu na maioria das vezes eu participo das aulas de artes na brincadeira”. (Igor) “Eu gosto muito da aula de artes e também participo em tudo que ela pede pra fazer, inclusive no teatro eu estou participando de tudo que ela pede e teve um dia que ela viu quem tinha vergonha, ela pediu pra contar uma piada ou contar o que quiser, é legal aula de Artes”. (Paulo) “Eu participo às vezes conversando e às vezes quieta”. (Márcia) “Eu participo muito bem, às vezes eu não mostro para a professora por que eu não pinto e não desenho muito bem, eu só mostro quando ela pede o caderno para dar nota, na aula dela eu não faço muita bagunça mas converso um pouco, raramente ela briga comigo mas quando ela briga claro que é com motivo, né, mesmo ela brigando comigo eu gosto dela, mas eu não me lembro de algum dia que ela brigou comigo”. (Daiane).

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9.3.4.2 – Tematização.

a) Diferenças: como já havia sido observado, a participação dos alunos nas

aulas é muito diferenciada. Enquanto alguns participam “na brincadeira”, e

reconhecem isso, outros levam tudo a sério e procuram fazer o que a

professora determina. Além disso, o mesmo aluno se comporta de modos

diferentes em cada aula e mesmo em diferentes momentos da mesma aula.

b) Protegendo a professora: alguns alunos, mais uma vez, buscaram proteger a

professora, destacando que participam “junto com toda a sala”, que a

professora nunca brigou com a aluna, que as lições são “legais” e que ela

tem razão quando briga.

c) Decoração: alguns alunos gostam de atividades como a decoração para a

festa das Olimpíadas.

d) Percepção de si: há, entre os alunos, uma percepção bastante diferenciada em

relação ao comportamento deles próprios. Enquanto alguns fazem apenas

críticas ao comportamento da professora, outros percebem o próprio

comportamento e o comportamento dos colegas como inadequado,

considerando que os alunos conversam demais, fazem muita bagunça, falam

muito alto.

e) Percepção da professora: há, também, entre os alunos, diferentes percepções

do comportamento da professora, com a maioria destacando que o

comportamento dela é compreendido como inadequado ou indesejável, e com

alguns alunos compreendendo que a professora “têm razão” na sua

agressividade na medida em que grande parte da classe tem, para eles, um

comportamento inadequado, pois fazem muito barulho e muita bagunça.

f) O sentido da pesquisa: a pesquisa teve, para muitos alunos, um sentido de

avaliação da professora e parte do discurso de alguns alunos dirigiu-se nesse

sentido, tanto na crítica à professora, como nas palavras que faziam a sua

“defesa”. A pesquisa proporcionou um momento de organização da reflexão

dos alunos sobre as aulas e sobre a professora e, ao mesmo tempo, para

alguns alunos, um canal de expressão para essa reflexão.

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CAPÍTULO 10 – Síntese dos dados.

10.1) A arte na EMEF.

A arte está presente na EMEF. As crianças dançam alegremente na festa

junina. A rádio da escola, operada pelos alunos, toca muita música, acompanhada de

muita dança, na hora do recreio. Um mural, afixado no pátio interno, mostra os

desenhos de alunos da 3a. série retratando suas mamães. Bandeirinhas e balõezinhos de

papel alegram o ambiente na festa junina. E bandeiras de todos os países,

confeccionadas pelas crianças com guache, além de esculturas de papelão e papel

espelho, representando motivos da Grécia Clássica, ilustram a festa das Olimpíadas. A

vice-diretora garante, com todo zelo, que a escola mantenha sempre uma aparência

saudável, limpa, bonita e aprazível. Mas as atividades didáticas realizadas nas aulas de

Arte estão desvinculadas dessas manifestações.

A direção da escola busca uma prática pedagógica que respeite os

alunos, em que não exista preconceito contra aqueles que considera “os filhos da

classe trabalhadora”. E a coordenação pedagógica espera que as crianças encontrem na

escola a possibilidade de construir uma relação prazerosa com a leitura. As reuniões

pedagógicas não se perdem em questões administrativas: ali é lugar de discussão das

práticas pedagógicas que apontam para a superação de práticas autoritárias

tradicionais. O ambiente geral da escola, o clima geral, no pátio e nos corredores, é de

alegria e descontração. Ao contrário das aulas de Arte, que acontecem, muitas vezes,

em um clima tenso, controlador.

O diretor acredita que a aula de Arte pode proporcionar muito mais do

que está sendo feito. Ele parece intuir, quando afirma que a professora de Arte poderia

“fazer muito barulho”, que a arte pode trazer muitas transformações na cultura escolar,

no sentido da desbucratização (BENEDETTI, 2001) ou da melhoria do ensino

(PALHARES, 2001). Mas o diretor deixou claro que a professora de Arte ainda não

está integrada ao grupo de professores do Ensino Fundamental II (5a. a 8a. série), que

estão comprometidos com o Projeto Político Pedagógico por ele implementado. A

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professora atravessou o ano de 2004, o seu primeiro ano nessa escola, meio

‘deslocada’ em relação a seus colegas.

A coordenadora pedagógica não acredita muito no potencial das aulas de

Arte, pois, segundo ela, é muito raro encontrar um professor de Arte que faça um bom

trabalho.

A disciplina Arte não se destaca no contexto escolar. Sua presença nas

festividades escolares é periférica e sua atuação no ambiente comum da escola –

corredores, murais, pátios – é muito pequena. Trabalhos coordenados por outros

professores, não especialistas em Arte, como a professora de Educação Física e uma

das professoras de Ensino Fundamental I (1a. a 4a. série) apareceram com mais vigor e

maior presença artística do que aqueles organizados pela professora de Arte.

A vice-diretora, entre outras atividades, mantém a limpeza e a

organização estética da escola, incluindo paredes, murais, pátios e corredores, com

uma visão tradicionalista. Essa atuação resulta eficiente, garantindo condições de

limpeza e organização estética necessárias para configurar um ambiente de

convivência agradável. No entanto, a unilateralidade dessa prática, que parece excluir

a participação de outros integrantes da comunidade escolar, pode estar contribuindo

para cercear, em alguns aspectos, a presença da Arte no ambiente escolar,

especialmente a produção artística dos alunos, como, por exemplo, no caso do confisco

do giz de cera fornecido aos alunos pela prefeitura. Mas a professora de Arte parece

concordar tanto com os padrões estéticos como com os procedimentos mencionados.

Desse modo, não há, na EMEF, uma prática de ocupação artística de espaços e nem de

apresentação da arte produzida pelos alunos. A Arte, aparentemente, não faz parte do

Projeto Pedagógico da escola e as questões a ela relacionadas não são discutidas

institucionalmente.

10.2) A professora e as aulas de Arte.

Destaca-se, na atuação da professora Sônia, o fato dela declarar-se

especializada em Música e não realizar atividades de Música com seus alunos. Ela,

durante todo o ano, nada ensinou de Música em suas aulas, nas classes observadas. O

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diretor da escola destacou um elemento da atuação da professora que ela havia

abordado superficialmente em uma das primeiras conversas com o pesquisador: a

professora Sônia apresentou um projeto para a organização, na escola, de um coral de

alunos. Esse projeto seria executado fora das aulas regulares, mas não foi encampado

pelo diretor.

A professora de Arte não oferece aos alunos o que ela, na sua própria

opinião, tem de melhor, que são seus ensinamentos em música, e adota uma postura de

distanciamento em relação à produção plástica de seus alunos.

Ela justifica a ausência de atuação em Música com o possível barulho,

que iria atrapalhar as outras aulas. Mas nenhuma tentativa sequer foi feita nesse

sentido. O ambiente da escola e a postura da direção não corroboram esse argumento.

A escola tem uma rádio que é operada pelos alunos, com alguma agitação nos

corredores e muito barulho no pátio interno, e existem pelo menos três ambientes em

que atividades musicais poderiam ser realizadas, sem atrapalhar as outras aulas: a sala

de leitura, o pátio interno e a quadra. Além do mais, o coral por ela proposto iria

certamente realizar seus ensaios em algum lugar, que também poderia reunir os alunos

para cantar ou tocar instrumentos musicais no horário de aulas! Mas a professora não

vislumbra essas possibilidades.

As constantes reclamações relativas ao salário e as doenças da professora,

atribuídas ao excesso de aulas, levam à visão de uma professora que não gosta das

atividades de artes plásticas, mas que não se dispõe a realizar as atividades de que

gosta, que envolvem a prática musical.

Quanto aos comentários, ou melhor, à falta de comentários da professora

sobre as obras dos alunos, não foi possível verificar, nos limites desse trabalho, se a

formação acadêmica da professora sustenta uma eventual intervenção especializada,

com o uso de conceitos e expressões referenciadas academicamente na linguagem

plástica, e que pudesse orientar os alunos quanto a aspectos plásticos, estéticos e

técnicos de suas obras. Mas a rispidez e brevidade com que classificava negativamente

as obras dos alunos, além da ausência de diálogo no decorrer das aulas, permitem que

se conclua por uma recusa da professora ao envolvimento pessoal com os alunos e

uma atribuição de pouca importância às atividades que realizavam. O próprio tom de

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voz da professora, muito baixo a maior parte do tempo, e a brevidade de suas

explicações durante a comunicação das instruções aos alunos, reforçam um

distanciamento, uma recusa à aproximação, ao diálogo e ao contato pessoal com os

alunos. Não coube neste estudo uma investigação sobre como a professora chegou à

decisão de não atuar no ensino de Música, nessa escola.

Outro aspecto da atuação da professora que se manifestou com nitidez ao

pesquisador foi a crença que fundamenta seu trabalho. Manifestou-se a crença no dom.

A professora informa que alguns alunos têm mais habilidade e outros têm menor

habilidade para a confecção de bandeirinhas e outros objetos necessários para a

decoração das festas escolares. E informa que ela escolhe os mais habilidosos para

realizar certos trabalhos, para evitar um maior desperdício de material. Mesmo se for

considerado que os critérios de seleção dos mais habilidosos podem ser questionados,

e que aquilo que é considerado um bom trabalho de decoração foi orientado por

critérios extremamente limitados e até discricionários, desconsiderando diversos

aspectos da cultura popular e pesquisas em arte realizadas nos últimos 100 anos, surge

de maneira quase óbvia, para educadores, a pergunta: como alguns alunos tornaram-se

mais habilidosos e qual o papel do professor em relação aos demais, que não o são?

Não fazer esse questionamento e considerar como mero desperdício as tentativas dos

alunos significa praticar a teoria do dom ou teoria do gênio, segundo a qual algumas

pessoas teriam uma espécie de vocação natural e inata para a arte e as demais seriam

naturalmente incapazes, ou inábeis, para a atividade artística. A teoria do dom

transforma o trabalho do professor de Arte, que dedica seu tempo, seus argumentos, e

suas orientações, e também o material didático utilizado, em mero desperdício.

Constatar que a professora vive a teoria do dom permite uma

compreensão conjunta do distanciamento da maioria dos alunos, da seleção de alguns

alunos para a confecção das bandeirinhas e da expectativa de que eles produzam bons

objetos de decoração logo na primeira tentativa.

Com a predominância da teoria do dom, segundo a qual as atividades

propriamente artísticas devem ser praticadas apenas por aqueles que têm habilidade

inata, qual o sentido, para a professora, de ministrar aulas de Arte para os demais

alunos? A professora Sônia não se manifestou sobre isso. Pelo sofrimento que ela

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manifestou em diversos momentos, essa questão talvez não esteja clara para ela. Mas,

como tudo que se faz é feito com um sentido, as atividades propostas pela professora

Sônia nas suas aulas de Arte projetam um certo sentido, o sentido de aula de Arte

como um exercício de disciplina. As aulas se organizam como uma tarefa a ser

cumprida corretamente pelos alunos e a atividade do aluno é compreendida pela

professora como o cumprimento de uma tarefa. O aluno deve chegar a um resultado

mais ou menos pré-estabelecido, que deve ser obtido através de uma seqüência de

procedimentos obrigatórios e seqüenciais. O que se desenvolve é a capacidade de

executar instruções.

O que está sendo ensinado às crianças é a prática de cumprir ordens e

executar instruções cujo significado lhes escapa. Os conteúdos cumprem o papel de

dar respaldo escolarizado à rotina das aulas, justificando a imposição de tarefas aos

alunos. Os conteúdos são utilizados como instrumentos do tarefismo burocrático. Os

conceitos e informações, por si, não são o mais importante, nessas aulas. Eles

cumprem o papel de configurar um conjunto de restrições que permite instituir a regra:

tal cor pode, tal cor não pode. Instituídas certas regras, a tarefa pode ser determinada

com um resultado pré-fixado. Desse modo, a avaliação burocrática pode ter

andamento, classificando os trabalhos em certos ou errados, conforme um resultado

esperado e um conjunto de regras preestabelecidas. Essa normalização da atividade das

crianças nas aulas de Arte reduz a possibilidade do imprevisto e, ao mesmo tempo,

oferece parâmetros seguros para a avaliação. A atividade, assim proposta, como tarefa,

tende a perder sua característica de atividade artística.

É claro que o resultado não está totalmente pré-estabelecido e que há

alguma margem de diferenciação, mesmo nos exercícios de cópia. Mas esse resultado

fica, em grande medida, circunscrito pelos procedimentos muitas vezes obrigatórios,

pelas restrições conteudistas (conceitos de cores quentes ou frias, por exemplo) e pelos

padrões estéticos adotados, que serão abordados mais adiante. Essas três restrições são

feitas em um contexto em que o sentido da atividade é a obtenção de aprovação por

parte da professora, que se apresenta como a portadora de um saber absoluto sobre

arte. Como, apesar disso, a aula não é uma oficina e os alunos não são operários, o

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resultado prático muitas vezes distancia-se do que é esperado. Voltaremos a essa

questão mais adiante.

Para a compreensão dessas aulas de Sônia é importante abordar, pelo

menos em seus traços mais gerais, os critérios artísticos e os padrões estéticos que ali

predominam. Afinal, é com esses critérios que os alunos recebem a classificação –

sempre definitiva e unilateral - de suas obras.

A classificação dominante baseia-se na oposição certo-errado. Aparece,

também, em menor grau, a oposição bonito-feio. Algumas vezes o comentário da

professora é de aprovação, com a expressão “bom”, ou de reprovação, com as

expressões “precisa melhorar” ou “você pode fazer melhor”. A classificação, portanto,

é baseada na oposição entre a obra aprovada ou reprovada. Essa classificação se reflete

diretamente na nota, com a aplicação exagerada, na compreensão dos alunos, de

conceitos negativos. A oposição certo-errado foi o critério de classificação que se

destacou e não apareceram critérios plásticos (nem mesmo os mais simples, como, por

exemplo, desenhos muito coloridos ou pouco coloridos, desenhos com muito

movimento visual ou pouco movimento visual) e nem mesmo critérios expressivos

simples (por exemplo, desenhos alegres ou tristes, desenhos sérios ou divertidos).

Os critérios para as classificações feitas pela professora – desenhos certos

ou errados, bonitos ou feios - referenciaram-se nos padrões da indústria cultural, em

alguns padrões da cultura popular (os mais comuns e óbvios) e no desenho geométrico

de orientação industrial do final do século XIX.

Os padrões da indústria cultural estão amplamente presentes tanto nos

exemplos e modelos escolhidos pela professora (coelho Pernalonga e desenho animado

de Maurício de Souza) como nas escolhas de muitos alunos (a boneca Suzi Fashion e

personagens de desenhos animados). Esses padrões não são apenas temáticos: eles

orientam uma certa estética e uma certa técnica de desenho. Os padrões incorporados

pela tradição às festividades escolares mesclaram algumas tradições populares com a

vulgarização da cultura clássica. A decoração da festa junina foi baseada nas

tradicionais bandeirinhas e balõezinhos de papel, com poucas variações. Nada foi feito

para ampliar essa experiência, limitando-se a reproduzir, junto com outros professores

e funcionários, e com alunos mais hábeis ou disponíveis para realizar essas atividades

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em casa com a colaboração de familiares, os elementos básicos da decoração

tradicional.

A decoração da festa das Olimpíadas limitou-se às bandeiras de vários

países, confeccionadas com cartolina e guache, ao logotipo das Olimpíadas

confeccionado com papel cartão, cartolina e papel espelho, e a miniaturas de templos

gregos clássicos, preparados sob orientação cuidadosa da professora de Arte por

alunos por ela selecionados graças à sua habilidade.

As práticas de desenho geométrico limitaram-se ao traçado de segmentos

de retas e figuras simples, avaliadas pela precisão milimétrica do traçado. A técnica

utilizada para a confecção de frisas orienta padrões semelhantes aos utilizados nos

primórdios da indústria brasileira, sob forte influência dos padrões clássicos.

Outras atividades foram baseadas na cópia, sem explicitação de um

padrão técnico específico. As atividades que remetiam à proposta de releitura, como

aquela em que a gravura de Aldemir Martins serviu de modelo, foram realizadas sem

nenhuma discussão, estudo ou observação orientada. Sem nenhuma proposta

norteadora da atividade – nem de composição, nem expressiva – a proposição de

releitura transformou-se em uma incógnita para os alunos, de modo que, na maioria

dos casos em que apareceu um efetivo envolvimento do aluno com essa atividade,

prevaleceu o caminho da cópia. Ressalte-se que a professora utilizou como critério

avaliativo o uso das seis cores primárias e secundárias, fazendo com que a atividade

tivesse esvaziado, inclusive, seu sentido clássico de cópia como técnica de ensino de

artes plásticas.

A escolha desses critérios estéticos extremamente limitados tende a

excluir qualquer outro tipo de manifestação estética ou de padrão artístico e expressivo

por parte dos alunos. Quando aparecem, são imediatamente rejeitados como

inadequados. De um modo geral, os alunos percebem claramente os padrões exigidos

pela professora e procuram manter-se dentro deles, de modo a evitar constrangimentos.

Mas, quando alguma criança ousa aventurar-se por referências estéticas diferentes, por

um estilo de desenho mais pessoal ou por propostas compositivas mais ousadas, uma

simples careta da professora é, quase sempre, suficiente para que o menino ou menina

perceba que o que está fazendo é considerado errado e não é bem-vindo.

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A professora atribui maior importância às festividades escolares do que às

atividades em sala de aula. Ela não orienta sua atividade no sentido da realização,

pelos alunos, de obras que possam ser mostradas, e recusa-se a qualquer iniciativa

nesse sentido, acreditando mesmo que as obras da maioria dos alunos são mesmo feias

e até motivo de justificada vergonha. Essa postura traz um inconveniente para a

professora: se ela se limitar às atividades que realiza em suas aulas, tornar-se-á muito

ausente no contexto das relações sociais, profissionais e institucionais da escola. A

participação nas festividades surge como a melhor oportunidade da professora mostrar

a toda a comunidade escolar sua competência, fazendo-se aceita e valorizada. Nesse

caminho, a professora prefere não correr riscos: adere aos padrões estéticos vigentes,

não propõe inovações, afasta os alunos considerados inábeis, orienta detalhadamente

aquilo que os mais habilidosos devem confeccionar e submete a seu controle de

qualidade tudo o que foi feito em casa, pelos alunos e seus familiares. As festividades

escolares são transformadas, desse modo, em uma oportunidade para que a professora

de Arte apareça e não para seus alunos aparecerem, através de suas obras. Podemos,

agora, compreender mais amplamente a mágoa demonstrada pela professora em

relação à exclusão que percebeu em alguns colegas, quando estes não a convidaram

para a organização de uma das festividades.

10.3) Os sentidos das aulas para os alunos.

Manifestaram-se três aspectos principais, no comportamento dos alunos,

durante as aulas de Arte: a tentativa de execução das proposições da professora, uma

certa atitude de contestação dos encaminhamentos propostos e um certo alheamento

em relação à professora e às suas propostas. Esse alheamento se manifestou de duas

formas: alguns alunos se distanciam das propostas da professora e realizam atividades

de arte de uma forma muito diferente do que a professora está propondo (como, por

exemplo, quando a professora propõe fazer um desenho como o de Aldemir Martins, e

o aluno desenha uma paisagem ou um personagem da TV ou uma pequena história em

quadrinhos, ou outro desenho qualquer, que em nada se relaciona com a proposta de

releitura da gravura de Aldemir Martins). Enquanto outros mostram esse alheamento

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em relação aos encaminhamentos da professora estudando outras disciplinas,

dedicando-se a conversas, brincadeiras ou outras atividades não relacionadas com a

aula de Arte.

Essa percepção de diferentes comportamentos entre os alunos não deve

conduzir a uma compreensão reduzida ou estereotipada. Trata-se apenas de uma

compreensão inicial dos comportamentos apresentados e não serve para classificar os

alunos. Isso porque a mesma criança apresenta, conforme observado, ora um

comportamento, ora outro. Além disso, muitas vezes, um mesmo gesto ou atividade

pode significar, ao mesmo tempo, várias coisas. Um aluno que realiza rapidamente, em

poucos minutos, a tarefa proposta, sem qualquer envolvimento e baseando-se apenas

no cumprimento formal das instruções da professora, ao mesmo tempo em que faz um

comentário sarcástico com seu amigo, está, de certa forma, praticando os três

comportamentos indicados ao mesmo tempo, pois está executando o que a professora

determinou, está contestando e desvalorizando a atividade proposta e está alheando-se

dela através de uma postura de execução meramente burocrática, formal e superficial,

isto é, fazendo apenas o mínimo necessário. Outra criança, ou até a mesma, poderá,

depois disso, dedicar-se a desenhar letras com a estética observada nas pichações, ou

estudar geografia, configurando, nesse momento, uma atitude de comportamento

contestatório e, ao mesmo tempo, alheio e distante em relação às instruções da

professora.

É necessário, para compreender o sentido da aula de Arte para os alunos,

relacionar esses comportamentos com o seu discurso sobre as aulas e as lições e sobre

sua própria atividade.

Há brincadeiras e chacotas e alguns alunos não fazem as atividades

propostas. Outros as iniciam e, logo a seguir, as interrompem. Outros, ainda, realizam

as atividades com evidente desinteresse, fazendo o mínimo possível, o mais rápido

possível. Isso tudo evidencia que as atividades lhes parecem inadequadas ou

desinteressantes. Mas o sentido desse comportamento só vai aparecer de modo mais

nítido quando os alunos afirmam que esperam muito mais das aulas de Arte do que

aquilo que está sendo praticado.

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As crianças afirmam que querem desenhos mais interessantes, pois as

atividades que realizam são desinteressantes; não aceitam as restrições conteudistas

quanto ao uso das cores, pois essas restrições aparecem como empecilhos

desnecessários, como dificuldades artificiais colocadas como que para tornar um

exercício mais complexo. Eles não percebem nessas restrições qualquer sentido

artístico mas apenas limitações autoritariamente impostas pela professora. Desse

modo, “pintar com a cor que quiser” aparece como uma reivindicação. “Pintar com a

cor que quiser” expressa uma compreensão da aula como inadequada, autoritária e

distante do que os alunos acreditam que deveria uma atividade artística. É a forma

como se manifesta, no discurso das crianças, o sentido percebido nas tarefas propostas

pela professora, um sentido de limitação, restrições e apequenamento. São

compreendidas como limitadas, na medida em que os alunos percebem-nas divorciadas

da arte e da percepção estética, presas a conceitos estranhos e subordinadas a uma

rotina autoritária. São, também, compreendidas como limitantes, na medida em que os

alunos percebem que elas - as instruções e normas determinadas pela professora -

impedem-nos de criar, impedem-nos de produzir obras com sentido artístico, restringe-

nos à condição de executores de instruções. Essa compreensão é vivida e, obviamente,

não é articulada intelectualmente pelos alunos. Mas eles mostram-na quando reclamam

que a imposição de certas cores impede que o desenho ‘fique bonito’ e orientam o

desenho para um resultado diferente do que eles percebem como um resultado

esteticamente resolvido e completo. Essa compreensão aparece na insistência, ênfase e

consenso de toda a classe em reivindicar “pintar com a cor que quiser” e “fazer

desenhos livres”. É a expressão da revolta contra a burocratização das aulas de Arte.

Na medida em que esses exercícios propostos pela professora aparecem

como meras tarefas de aplicação de conceitos, as atividades perdem o caráter de

criação artística e se transformam em atividades mecânicas. Além disso, essas

atividades não representam um desafio, isto é, uma tarefa de aplicação, treino ou

aprendizagem de habilidade manual, pois, do ponto de vista da coordenação motora,

são muito simples, óbvias até, para alunos dessa idade.

As tarefas propostas pela professora - distantes da arte e, ao mesmo

tempo, longe de tornarem-se tarefas escolares verdadeiramente conteudistas, e,

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também, sem corresponder a efetivos exercícios de habilidades motoras - são

percebidas, pelos alunos, como atividades infantilizadas, no sentido que as crianças

maiores muitas vezes vêem nas tarefas das crianças menores, isto é, como uma

verdadeira afronta a sua inteligência. Desse modo, a chacota, o desprezo, a desatenção

e o desinteresse podem ser compreendidos no sentido de resistência e como crítica e,

ao mesmo tempo, como afirmação de sua inteligência, de sua existência como crianças

maiores – pré-adolescentes ou adolescentes – e não como criancinhas pequenas.

Em outras crianças predomina uma atitude de adequação e aderência às

instruções feitas pela professora. Esses alunos apresentam diferentes compreensões das

tarefas determinadas. Para alguns as tarefas aparecem como uma espécie de mistério

(“eu não acho chata, só que eu não entendo”, afirma uma menina). Essa falta de

entendimento aparece em dois níveis.

No nível mais superficial, fica claro que alguns alunos não entendem o

que é para fazer, isto é, não acompanham os detalhes das instruções dadas, não

assimilam as regras (como, por exemplo, as regras do círculo cromático, com as cores

primárias no círculo interno e as secundárias no círculo externo) e não conseguem

realizar corretamente as tarefas.

Para outros, a falta de compreensão aparece no nível do sentido: para quê

essas regras, para quê essas instruções, por que não usar outras cores, o que isso tudo

pode significar? Essa perplexidade aparece no discurso das crianças com toda a sua

evidência e permite uma compreensão mais ampla da atitude de rebeldia - pela chacota

- de alguns alunos e do alheamento de outros.

A tarefa proposta aparece esvaziada de significado artístico, aparece

como contraditória com a própria aula: como não podemos usar as cores, se para fazer

um desenho devemos usar as cores que nos parecem como mais adequadas? Esse

divórcio ou contradição entre o sentido geral de uma atividade de arte e a tarefa

determinada pela professora cria o contexto propício à falta de entendimento até

mesmo de instruções simples. Instruções que, distantes de seu contexto, poderiam ser

consideradas como instruções simples, aparecem como coisas estranhas, como um

desafio à compreensão: as crianças vêm para as aulas de Arte predispostas a realizar

uma atividade artística e se deparam com instruções que dificultam essa prática. Na

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143

ânsia de dedicar-se a desenhar e pintar, com o foco de sua atenção voltado para a

realização de uma produção artística, para a criação de um desenho, as instruções

apresentadas pela professora soam desimportantes, estranhas e inócuas. Incapazes,

portanto, de atrair a atenção das crianças. Nesse contexto, os erros de alguns alunos na

execução de tarefas simples podem ser compreendidos como uma confrontação com a

burocratização das aulas de Arte. A atenção dos alunos está dirigida para a criação

artística - que mobiliza a sensibilidade estética e a percepção visual -, enquanto as

instruções da professora exigem, para que possam ser entendidas, que a dimensão

cognitiva seja colocada em primeiro plano. A contradição se estende também para a

atitude geral: criação exige iniciativa, independência e ousadia, mas as instruções

existem no sentido da obediência.

Colocar em evidência o sentido “antiarte” das instruções da professora é

o que permite superar um entendimento superficial que desqualificaria uma criança

como pouco capaz ou pouco disposta e permite compreender o sentido de seus erros na

execução de instruções simples, como pintar uma figura com as cores quentes

enumeradas ou desenhar uma figura com as cores primárias e secundárias.

A aula de Arte, para esses alunos, que tentam seguir as orientações da

professora, mas não conseguem entendê-las e executá-las, muitas vezes resulta em

frustração, vergonha e desânimo. A professora não hesita em classificar como “errada”

qualquer variação interpretativa, desconsiderando completamente o processo por que o

aluno passou ou o seu modo de compreender a tarefa. No nível de tarefa, qualquer

variação interpretativa remete ao erro. O aluno, que havia colocado, em sua atividade,

o sentido de superação de um desafio, de cumprimento de uma ordem ou de tentativa

de ser aceito pela professora, acaba por encontrar - na classificação de seu trabalho

como errado e nas notas baixas – os sentidos de inadequação, rejeição e

incompetência.

O conteúdo das aulas, para alguns alunos, parece tão óbvio (tais cores são

quentes, outras tais são frias), que fica difícil acreditar que é apenas isso que está sendo

dito. As restrições conteudistas, que dão o tom das tarefas, aparecem, então, como um

mero capricho, ou uma imposição para tornar a lição mais difícil. Mas esse conteúdo,

que parece óbvio, é, também, estranho e contraditório: nem sempre as cores chamadas

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quentes nos parecem quentes. A sensação de quente ou frio, nas cores, depende da

configuração, do contexto em que aparecem, do conjunto expressivo da obra e da

vivência do espaço pictórico pelo observador. O que era óbvio torna-se complexo,

misterioso e altamente arbitrário. Com o tratamento dado, a lição sobre quentes e frias

fica enigmática, reforçando uma certa sensação difusa de inadequação e

incompetência.

Outros alunos, ao contrário, não encontram dificuldade no entendimento

das tarefas propostas pela professora. São capazes de discernir claramente as

instruções apresentadas. O círculo cromático é copiado com facilidade. Outras tarefas

também são executadas rapidamente: tal figura pré-impressa é pintada com as cores

frias, outra com as cores quentes. Para esses alunos, a tarefa é óbvia e eles optam por

realizá-la rapidamente, garantindo uma boa avaliação. Chegam a um resultado

satisfatório aceitando as proposições da professora, realizando as tarefas nas condições

especificadas. Esses alunos, embora aceitem no dia-a-dia da sala de aula as regras

impostas e garantam suas boas notas, nem por isso vivenciam nessas atividades um

sentido muito diferente dos demais: quando perguntados sobre o que querem, todos,

sem exceção, manifestam profunda rejeição à rotina tarefeira e às restrições

conteudistas impostas pela professora. As tarefas burocratizadas adquirem o sentido de

imposição e arbitrariedade desvinculada da prática artística, adquirem o sentido de

cerceamento de uma esperada atividade artística. As tarefas propostas têm, para esses

alunos, o sentido de uma banalidade infantilizada e devem ser executadas para evitar

problemas e garantir boas notas. São alunos que conseguem se adaptar à ordem

burocratizada. Sua resistência aparece na forma superficial, alheia, mecanizada e

desinteressada com que realizam as tarefas.

As aulas observadas reduzem o espaço para que os alunos conduzam suas

atividades no sentido de uma abordagem propriamente artística. Mas esse espaço não é

totalmente fechado. A professora não consegue impor o seu sentido para as crianças

que, apesar de todas as restrições, continuam percebendo a aula de Arte como um

espaço para a criação artística. Esse sentido parece vir de outro lugar, e não da

professora, como será abordado no capítulo seguinte, e convive com muitos outros

sentidos. Apesar de todas essas dificuldades, os alunos criam e suas criações puderam

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145

ser observadas durante a pesquisa. Algumas vezes, esse fenômeno se manifestou em

desenhos realizados em oposição às orientações da professora, como foi o caso de

alunos que simplesmente desconsideraram a proposta da professora e desenharam

outras coisas, alcançando um resultado pessoal. Outras vezes, realizando e

ultrapassando as orientações da professora, como alguns alunos que realizaram, tendo

como ponto de partida os desenhos pré-impressos do coelho Pernalonga, desenhos

coloridíssimos, ultrapassando os limites da estética padronizada dos desenhos

animados da TV. Ou de casos em que o círculo cromático foi pintado com uma grande

variedade de nuances de cor, de modo muito diferente dos espaços “chapados”

previstos na proposta da professora. Ou, ainda, em obras que cumprem de modo

surpreendente o que a professora determinou, mas nem mesmo ela percebe que isso

aconteceu, como certos casos em que foram realizadas boas releituras da gravura de

Aldemir Martins. Mas a professora nada comentou.

As crianças deixaram claro, apesar de todas as restrições que enfrentam,

que esperam muito mais das aulas de Arte. Querem pintar, modelar, desenhar. Querem

cantar, dançar e representar. Querem ver e aprender coisas novas. Querem um

ambiente alegre e descontraído. Querem conversar, falar e ver manifestarem-se

diferentes opiniões sobre os trabalhos artísticos. Querem fazer arte com alegria e

liberdade. Querem que a professora converse e lhes ensine a realizar trabalhos

melhores, que possam ser mostrados para toda a gente. Em nenhum momento as

crianças renegaram a arte como atividade importante para elas: elas sabem que a arte é

muito mais do que lhes foi oferecido naquelas aulas. A arte foi afastada das aulas de

Arte. Alguns alunos não gostam das aulas de Arte porque, nessas aulas, o espaço para

a arte é muito pequeno. A rebeldia das crianças, suas chacotas e brincadeiras, seu

alheamento estudando outras matérias, e até o não entendimento das instruções dadas

pela professora, são uma forma de resistência contra a redução do espaço para a arte

por parte da professora de Arte.

Algumas crianças, poucas, manifestaram não gostar das aulas de Arte. E

relacionam claramente esse seu não gostar com sua suposta incapacidade para as

atividades artísticas. São as crianças que dizem que não sabem desenhar, que se

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146

sentem frustradas com suas tentativas e têm vergonha de mostrar seus desenhos até

mesmo para seus colegas. Essas crianças parecem ter incorporado o estigma de serem

incapazes para a arte. De tanto ter seus trabalhos rejeitados, classificados como feios

ou como errados, de tanto ficarem envergonhadas com as críticas da professora e,

eventualmente, com as chacotas dos colegas, essas crianças desistiram. Desistiram de

desenhar e de pintar e agora não gostam das aulas de Arte. Para elas, é preferível

proclamar que não gostam do que confirmar que não sabem. Submetidas a um único

parâmetro avaliativo, rigoroso e limitado, essas crianças não conseguiram encontrar

um caminho para relacionar-se satisfatoriamente com a produção artística. A aula de

Arte, para elas, aparece como um sacrifício e as tarefas propostas aparecem como

obstáculos em sua vida escolar. E esses obstáculos devem ser superados de alguma

forma. Algumas dessas crianças limitam-se a copiar os desenhos de colegas

considerados mais capazes. Outras conseguem até que um desses colegas faça a tarefa

para ela. Outras recorrem a macetes, isto é, a procedimentos padronizados que trazem

sempre um mesmo resultado. Outras repetem sempre o mesmo desenho, geralmente

uma figura estereotipada que conseguem reproduzir com alguma eficiência. Mas são

poucos os alunos, na 6a. série D observada, que expressam esse sentimento de

incompetência.

Finalizando a análise da compreensão que os alunos têm das aulas de

Arte, lembramos que a professora de Arte é parte importante do ambiente vivenciado e

que sua postura tem ampla repercussão entre os alunos. O que se evidencia de modo

mais imediato é a compreensão, pelas crianças, das críticas, notas baixas, avaliações

negativas, caretas e comentários depreciativos dirigidos pela professora às suas obras

como uma desvalorização pessoal, como uma crítica dirigida à própria criança em seu

modo de ser. A criança, nesse momento, percebe a atitude da professora como uma

ofensa e, às vezes, como uma ofensa justa e correta. A criança acredita que está errada,

não é capaz, não está apta, não corresponde às expectativas. Nesse nível, o aluno

compreende a agressão da professora como um sinal de sua incompetência e como

uma desvalorização de sua existência. É o que aparece no profundo sentimento de

vergonha manifestado pelas crianças diante da classificação de seus trabalhos como

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errados, pela professora. Nesse momento, se instala o desalento. A criança não quer

fazer mais nada, sente-se incapaz. Na seqüência, esse sentimento de inadequação pode

consolidar-se, passando a criança a acreditar que não tem jeito mesmo para a arte, que

não sabe desenhar. Por exemplo, uma situação que poderia ser intensamente prazerosa

transforma-se em um martírio, pela incompreensão e agressividade da professora:

quando fazem trabalhos para presentear seus familiares, como nos preparativos para o

Dia das Mães, a professora não aceita nenhum erro nos procedimentos que ela

determinou para confeccionar os cartões. Um erro na execução de uma dobra no papel

transforma-se, na conduta da professora, em desperdício inaceitável. A professora

espera que a criança faça tudo corretamente, da primeira vez e não percebe o erro,

incorreção ou insucesso como um momento normal e rotineiro da atividade da criança.

A rejeição surge agressivamente. Um momento de alegria transforma-se em

sofrimento, conflito e decepção. Um simples e rotineiro resultado insatisfatório é

transformado em motivo de vergonha e decepção.

Ao lado desses sentimentos, manifesta-se uma espécie de resistência a

essa desqualificação. A professora passa ser vista por parte de alguns alunos como

uma pessoa autoritária. As crianças compreendem que as obras de arte têm diferentes

valores para diferentes pessoas, que existem diferentes critérios de avaliação. E pedem

que suas opiniões possam se manifestar e sejam consideradas. Não aceitam que

prevaleça apenas a opinião da professora. Alguns alunos expressam uma compreensão

um pouco diferente em relação ao comportamento da professora: ela aparece para eles

como uma pessoa limitada, que merece chacotas e depreciação. Mas, não todos: outros

alunos, apesar de concordarem com a necessidade de ter suas opiniões respeitadas,

aceitam positivamente as críticas da professora e valorizam sua atuação.

Alguns alunos manifestaram apreço pela professora. Esses sentimentos,

em um primeiro momento, contrastam com o fato de que não foram observadas

manifestações de carinho ou cuidado especial da professora para com os alunos, nem

mesmo momentos de descontração, alegria ou intimidade. Isso não quer dizer que elas

não ocorram, pois não foi possível avaliar o quanto a presença do pesquisador

modificou o comportamento da professora.

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148

CAPÍTULO 11 – Discussão e algumas conclusões.

Nesse capítulo iremos, primeiramente, apresentar uma discussão sobre os

diferentes aspectos que integram o contexto em que os alunos realizam suas atividades.

Em seguida, apresentaremos algumas conclusões sobre os sentidos, para os alunos, das

atividades que realizam nas aulas de Arte, conclusões essas fundamentadas na síntese

dos dados de pesquisa e nas referências teóricas adotadas nesta dissertação. Essas

conclusões, que não têm a pretensão de esgotar o grande número de questões que

podem ser discutidas a partir das observações realizadas, configuram uma primeira

resposta a questão de pesquisa formulada para este estudo. Alguns dos sentidos

desvelados foram compreendidos como sentidos “antiarte” e outros como sentidos

“para a arte”.

11.1) Arte, escola e aulas de Arte.

As atividades das crianças nas aulas de Arte podem adquirir os mais

variados sentidos, dependendo do momento, da criança, da atividade ou do contexto

considerado. Múltiplos sentidos podem ser vividos, ao mesmo tempo. O contexto em

que se realizam as atividades constitui-se em um campo de relações múltiplas e

complexas em que diversas dimensões da vivência se entrecruzam.

Há uma dimensão institucional que chega à criança através da conduta

dos pais. Conforme Merleau-Ponty (1990, p. 136) a “vida privada já está

institucionalizada” (grifo do autor) e a cultura induz um certo modo de existir.

Devemos considerar “o psicológico e o institucional como dois aspectos de uma

mesma estrutura” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 58). Concordando com Durkheim

que o “fato social é coercitivo”, o autor alerta para que a psicologia da criança não

incorra no mesmo erro da psicanálise, que desconsidera o “institucional em sua análise

do domínio individual”, pois há, “invasão do social até no corporal: sinais, símbolos

instituídos, lágrimas” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 54, 11 e 55, respectivamente.

Grifo do autor).

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149

Nessa dimensão institucional, a escola aparece como obrigação ou dever

e impõe suas regras e determinações. A obtenção de boas notas, ou de sucesso no

desempenho escolar, é uma manifestação da dimensão institucional na conduta da

criança. Como ela, muitos outros aspectos institucionais podem se fazer presentes na

atividade da criança. Essa instituição, a escola, e essa escola particular, a EMEF,

contém, como parte dela, a aula de Arte, como disciplina genérica, que pode ser

realizada de diferentes formas, por diferentes professores. A aula de Arte assume

alguns aspectos semelhantes e algumas diferenças, em relação às demais disciplinas.

Ao mesmo tempo em que a aula de Arte incorpora o sentido de dever e obrigação,

comum a todas as disciplinas escolares, carregando, portanto, os componentes de

freqüência, avaliação, autoridade do professor e prestação de contas das notas aos

familiares, ela também projeta uma diferença, uma particularidade que a faz diferente

das demais disciplinas: trata-se de uma aula de Arte e não de outra disciplina. Ela

carrega, nesse aspecto, um conjunto de sentidos que lhe é próprio. Trata-se não apenas

das diferenças existentes entre cada disciplina, que fazem de cada disciplina um

mundo à parte que reflete e, ao mesmo tempo, diferencia-se do todo, mas também das

diferenças entre as aulas de Arte e todas as demais disciplinas, que manifestam os

sentidos específicos que essa instituição particular, a aula de Arte, carrega como parte

de uma instituição maior, que é a escola.

Há diversos significados para aula de Arte, e eles estão relacionados à

própria noção de arte. Esses significados chegam aos alunos através de seus familiares,

de seus amigos e vizinhos, dos professores e funcionários da escola, dos livros

didáticos e da mídia. As atividades realizadas desde a pré-escola e nas quatro primeiras

séries do Ensino Fundamental têm papel fundamental na constituição das primeiras

compreensões das crianças sobre o significado de aulas de Arte na escola,

configurando a primeira associação da expressão arte com o campo das artes plásticas.

Do mesmo modo, as atividades realizadas em oficinas, como aquelas que acontecem

no Recreio das Férias, integram o campo de sentidos vivenciados pelas crianças,

configurando expectativas sobre o que pode acontecer nas aulas de Arte e ampliando o

campo de possibilidades que poderão se confirmar ou, como neste estudo, integrar o

contexto da frustração ou da crítica. Os sentidos das aulas de Arte, para os alunos, não

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se estabelecem por completo, de forma unívoca ou definitiva. Eles se projetam na sua

vivência e suas pré-compreensões são permanentemente transformadas pela vivência

mesma. O sentido de Arte, na sua atividade, projeta-se a partir das expectativas das

crianças desde antes da própria aula. Nas atividades que realizaram na mesma escola,

com a professora do ano anterior, e nas atividades realizadas em outras escolas, as pré-

compreensões já existentes também foram transformadas. A vivência dos colegas

também interfere na constituição dessas compreensões. O sentido de prática artística

perpassa a compreensão da aula de Arte pelas crianças. Ele é projetado não apenas

como modo de guardar coerência com o significado das palavras (aula de Arte), mas

como relação com sentidos vivenciados anteriormente e que são transferidos para a

aula de Arte: as crianças desenham em suas casas, vêem seus irmãos e colegas

desenhando e essa atividade é qualificada como atividade artística. SZYMANSKI

(2003) lembra que as crianças chegam à escola trazendo, como parte de si, os valores e

hábitos que se constituíram na família.

Eles se misturam com os significados e possibilidades que se manifestam

na sociedade em geral, nos diferentes elementos culturais: televisão, cinema, livros,

revistas, objetos, obras de arte. A dimensão institucional, que se constituiu a partir das

relações interpessoais, remete a criança, mesmo indiretamente, a uma imensa

variedade de significados e proporciona a vivência de diferentes sentidos, mesmo não

diretamente relacionados ao seu cotidiano. O aluno sabe que há na sociedade, no

campo da arte, muito mais do que aquilo a que ela tem acesso diretamente. Os

múltiplos sentidos vividos em sociedade são percebidos pelas crianças e passam a

integrar o seu campo vivencial, pois elas compreendem, a seu modo, essas

manifestações. Elas aparecem para as crianças em um certo sentido, a partir do qual

elas projetam sua compreensão. Os significados sociais da arte não se impõem, todos

ou cada um, como obrigatórios, mas configuram um certo conjunto de possibilidades,

indicando o que é, ou pode ser, arte.

Os diferentes discursos sobre arte que existem em nossa sociedade

chegam à criança trazendo diferentes possibilidades de interpretação e vivência.

Chegam às crianças discursos e indicações diversas sobre arte como beleza,

originalidade, criatividade, habilidade, totalidade, acabamento e todas as demais

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151

características atribuídas à atividade artística em geral e às artes plásticas, em

particular, nessa sociedade.. Também os preconceitos que, por um lado, desvalorizam

a atividade artística como atividade menos séria e, por outro lado, atribuem a

excelência em arte a uma espécie de vocação genial que só alguns poucos possuem,

também chegam às crianças, em algum grau, a partir das relações sociais.

Todos esses aspectos da vivência - o aspecto institucional da escola e suas

regras, a vivência prévia da arte como atividade pessoal em diferentes contextos, o

contato com a arte em sua multiplicidade de sentidos projetados socialmente e os

sentidos da arte e da atividade artística no contexto familiar – estão presentes na

interação com a professora e na compreensão de suas aulas. A professora, essa

professora, constitui-se em um outro importante aspecto da vivência das crianças. Essa

professora, que está ministrando essas aulas, não é mais uma novidade. Ela já carrega

consigo alguns meses de convivência com as crianças, com as quais estabeleceu uma

relação que, por sua vez, incorpora a vivência que ela tem da arte, da escola, das

crianças e das aulas. Nessa convivência, as crianças aprenderam a considerar as

demais dimensões na presença dessa professora, com as características e sentidos que

ela projeta na própria atividade docente.

Há também o conjunto de relações com os demais alunos da classe, com

sua dinâmica, e as demais relações com a escola, sua direção e funcionários, além dos

demais professores e do clima geral da escola. Tudo isso interfere, de alguma forma,

na atividade das crianças, pois integram o contexto em que as atividades se realizam.

Nesse complexo vivencial, as crianças realizam as suas atividades com

os mais diversos sentidos.

11.2) Os sentidos “antiarte”.

11.2.1 – O sentido burocrático.

A proposição da atividade da criança como tarefa tende a burocratizar a

aula e a retirar a arte da aula de Arte, pois a arte é expressão e não execução de

instruções: “[...] há em toda a expressão e mesmo na expressão pela linguagem uma

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152

espontaneidade que não suporta instruções, nem sequer as instruções que eu gostaria

de dar a mim mesmo” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 115).

Um dos sentidos vivenciados pelas crianças é o sentido burocrático, que

se manifesta fortemente em todo o contexto escolar. Exige-se um desempenho dos

alunos, representado por um conceito, nota ou avaliação. O sentido de obter a

aprovação institucional se manifesta fortemente. Chamamos esse sentido de

burocrático na medida em que a obtenção da nota tende a se constituir em uma espécie

de mera constatação da realização de uma atividade, desvinculada da compreensão que

a criança tem de sua própria atividade. As crianças percebem como ilegítimas as notas

baixas atribuídas pela professora nas aulas de Arte, independentemente da contestação

que fazem dos critérios adotados pela professora. Para elas, a aula de Arte não existe

para dar nota. E, se essa nota deve existir, não pode ser uma nota baixa. Assim, a nota

nas aulas de Arte adquire, para as crianças, um sentido burocrático, pois se choca com

a compreensão da arte como liberdade e diversidade, sentidos de arte vivenciados

pelas crianças a partir da dimensão social. E choca-se com a dimensão de

espontaneidade da própria expressão, conforme assinalado por Merleau-Ponty.

A professora, ao contrário dos alunos, atribuía um grande valor à

avaliação formal, e considerava que dar nota baixa era algo positivo, desejável e justo,

no caso dos alunos que não correspondem às suas expectativas. Desse modo, havia

uma tensão que atravessava todas as aulas e a atividade dos alunos. Era a tensão entre

a conduta da professora de valorizar a avaliação formal e a compreensão das crianças

de que, em arte e na aula de Arte, essa avaliação não é importante ou deve ser, quase

sempre, positiva. Esse sentido burocrático apareceu na medida em que a professora

trouxe a norma escolar, em toda a sua plenitude, para um contexto em que as crianças

a consideram inadequada. A avaliação negativa, a nota baixa, apareceu para as

crianças como algo não aceitável, como uma agressão.

O sentido burocrático projeta-se na atividade: há alunos que, em certos

momentos, realizam suas atividades para receber a nota. Esse sentido se manifesta no

desinteresse pela atividade que realizam, pela displicência com que, às vezes, realizam

suas atividades. Manifesta-se, também, em certa medida, na mera cópia do desenho do

colega ou no recurso a técnicas padronizadas, ensinadas por algum colega ou mesmo

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153

pela professora. Nesse caso, a tarefa é realizada rapidamente e o desenho não tem

nenhuma importância, não é mostrado para os colegas depois de pronto. A questão

mais importante é se ele está certo, isto é, se guarda correspondência com as instruções

determinadas pela professora.

11.2.2 – Desenhar para evitar repreensões.

Nas aulas observadas, a autoridade do professor manifestou-se

fortemente. As ordens, determinações e repreensões repetiam-se. Os alunos percebiam

a professora como alguém que poderia, a qualquer momento, criar uma situação

desagradável para elas, na forma de notas baixas, gritos, punições e repreensões. Essa

possibilidade é dada na própria dimensão institucional, mas se realiza na conduta dessa

professora.

As orientações da professora, aparentemente influenciada pela pedagogia

tecnicista, reduziam a atividade a um saber construir, com ênfase nos aspectos técnicos

e uso de materiais, sem preocupação com a linguagem artística (FERRAZ e FUSARI,

1999, p. 32). Esse contexto propicia o distanciamento emocional em relação à própria

atividade, que é reduzida a uma tarefa mecânica. Desse modo, desinteressados das

propostas apresentadas pela professora, alguns alunos realizaram suas atividades sem

envolvimento perceptivo e com grande distanciamento afetivo, apenas no sentido de

evitar discussões com a professora e garantir que não seriam repreendidas.

Expressaram esse sentido as crianças que realizaram apenas parte da

tarefa solicitada, apenas a iniciando para, logo após, parar e conversar, retomando-a

quando a professora, eventualmente, circulava pela classe ou fazia algum chamamento

a toda a classe, como ordens para fazer silêncio e para prestar atenção. Esses alunos

parecem não ter interesse em receber notas altas em Arte. Suas atividades em sala de

aula voltam-se para evitar problemas e repreensões. Esses alunos, de certa forma, estão

fingindo que desenham, fingem que cumprem as ordens e se dedicam a suas conversas

e outras atividades, como estudar outras disciplinas, fazer joguinhos e brincadeiras,

entre outras.

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154

11.2.3 – Agredir a professora.

Do mesmo modo que Merleau-Ponty considera que os “conflitos

familiares são conflitos entre tal filho e tal pai; mas também entre os diferentes

desempenhos dos indivíduos, desempenhos que estão ligados à estrutura social do

meio” (1990, p. 135-136, grifo do autor), podemos considerar que os conflitos na sala

de aula são conflitos entra tal professora e tais alunos, não podendo ser

compreendidos fora da conduta desses indivíduos particulares. Ao mesmo tempo, são

conflitos ligados à estrutura social do meio, no caso, a instituição escolar.

Alguns alunos, às vezes, atuam no sentido de desmoralizar, afrontar,

agredir, desafiar ou irritar a professora. Essa conduta aparece mais abertamente ou

mais dissimulada. Alguns alunos fazem comentários jocosos, piadinhas e, às vezes,

chegam ao desrespeito aberto. Algumas brincadeiras dirigem-se abertamente à

professora. Mas, na maioria dos casos, os comentários referem-se à atividade. Às

vezes, esse sentido aparece nas brincadeiras entre os alunos. Em outras ocasiões, esse

sentido se manifesta nas perguntas dirigidas à professora, perguntas ridículas, que

apresentam uma compreensão abertamente distorcida ou falta de entendimento de

alguma orientação óbvia – e são feitas em tom jocoso, entre sorrisos e risadinhas.

Esse sentido também se manifesta na recusa em realizar as tarefas

determinadas pela professora. Nesse caso, os alunos não estão se importando em

receber notas baixas e não buscam evitar repreensões da professora. Pelo contrário,

eles parecem buscar o confronto com a professora. As brincadeiras e piadas remetem à

compreensão das tarefas como algo próprio de crianças pequenas, como mencionado

anteriormente. Mas também podem ser interpretadas como manifestações de um

distanciamento dos alunos em relação às aulas de Arte, que passam a ser consideradas

como atividades de menor importância.

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155

11.3) Os sentidos para a arte.

11.3.1 – Ser aceito pela professora.

Outros alunos expressam sentido aparentemente oposto ao descrito

acima: querem agradar a professora. O aluno quer agradar a professora porque sente

a necessidade de ser aceito por ela. Nas classes observadas, alguns alunos

manifestaram esse sentido em sua atuação. A professora, para esses alunos, constitui-

se em referência importante. Ela é um outro significativo (SZYMANSKI, 2003). Ela

se constitui em um outro, no qual o aluno pode ver a si próprio e encontrar ali a

confirmação de quem ele é, isto é, de sua identidade - de seu modo de ser e existir. A

avaliação da professora, portanto, adquire uma grande importância. Agradar a

professora e encontrar nela a confirmação do valor de sua atividade (e, em última

instância, de sua existência na medida em que a existência como aluno de Arte é parte

da existência da criança) é, também um dos sentidos projetados pelas crianças nas

aulas de Arte.

11.3.2 – Mostrar a obra.

A obra criada só pode se realizar plenamente e existir na condição de

obra de arte no seu aparecer. É o aparecer no mundo para o outro que realiza e

completa a obra de arte. É no outro que a obra se realiza: “É nos outros que a

expressão toma relevo e devém plena significação.” (MERLEAU-PONTY, 1980b,

p.151). A arte manifesta o mundo pelo corpo do artista. Essa manifestação só pode

existir no aparecer, que é, sempre, um aparecer para alguém, no mundo. Retomando o

gesto do artista, o espectador pode alcançar o mundo do artista e fazer com que a obra

de arte se cumpra como tal.

Também para Fusari e Ferraz, “a verdadeira concretização da obra de

arte se faz no contato com as pessoas, quando o ato criador se completa.” (1993, p.

19).

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156

Isso não é diferente para as crianças. A criança, nas relações

interpessoais, relaciona-se também com a dimensão institucional, que é dada na

cultura. A cultura se constitui em mediação entre a vida social e a vida psíquica. Ela se

manifesta em todos os aspectos do mundo em que vive a criança, “[...] até nos

utensílios e nas palavras mais usuais” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 136). Pela

cultura, a criança pode viver os sentidos de arte que existem em seu mundo social.

Além disso, embora exista uma “originalidade da mentalidade infantil” (MERLEAU-

PONTY, 1990, p. 217), não devemos considerar a criança como alheia à vida humana.

Com essas considerações, podemos compreender que o sentido de arte

como criação de caráter estético que se realiza no seu aparecer no mundo. Esse

aparecer é um aparecer para o outro e é constituído no âmbito cultural. Os alunos

manifestaram vivenciar esse sentido, pois, para eles, sua obra precisava ser mostrada.

O mostrar a obra e a aceitação dela pelo outro completavam sua criação, realizando

sua existência como obra de arte.

O momento de realização da obra da criança como obra de arte é

semelhante ao do artista: a obra precisa ser mostrada, precisa aparecer, só se realiza na

percepção do observador. Do mesmo modo que para os artistas, também para a criança

a arte é um modo de ser, que é um ser no mundo e com o outro. Esse outro, para a

criança, é colocado em diferentes níveis: o amigo do mesmo grupo, o colega de classe,

a classe toda, o professor, a família, a escola toda, o bairro – todos esses são diferentes

níveis em que ela pode permitir a apresentação de sua obra.

É na companhia de outras pessoas, especialmente dos colegas e amigos,

que se torna possível que o desenho seja mostrado imediatamente após ser concluído,

ou mesmo enquanto ainda está sendo feito. Enquanto o artista adulto pode trabalhar

sozinho durante meses, antes de mostrar para alguém sua pintura ou escultura, a

criança parece precisar de companhia para produzir.

A criança quer produzir uma obra que se completa em si, que está

acabada e bem resolvida e que, portanto, está pronta para ser mostrada. Ela sabe que

poderá realizar um trabalho não resolvido, não acabado e que, portanto, não se presta a

ser mostrado. Para decidir essa questão, um critério importante é a expectativa de

compreensão e aceitação: ela não aceitará a apresentação de uma obra sua na

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157

expectativa de rejeição. Nesse aspecto, a criança diferencia-se do artista, e, em geral,

do adulto: ela, em geral, não está pronta ainda para enfrentar a rejeição de sua obra, em

nome de uma possível aceitação posterior. O sentido de posteridade, ou de posterior

compreensão, e também o sentido de encontrar o seu público, que existem para o

artista adulto, não existem para a criança, para a qual o futuro mais distante é

desconsiderado.

O sentido de tempo se manifesta de modo diferenciado. A criança não

vive o tempo como algo separado dela: não há uma objetivação do tempo.

Mencionando Wallon, Merleau-Ponty sugere que não há uma ignorância do tempo

objetivo, mas uma outra estrutura de tempo. A criança sente o tempo de outro modo e

projeta sua existência no tempo de modo diferente do adulto. Sua estrutura perceptiva

é outra. A posteridade pode ser considerada como uma ultracoisa, localizada em um

horizonte exterior à sua vivência (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 260-261). Para a

criança, sua obra precisa realizar-se imediatamente, ela não concebe a idéia de

aguardar uma posterior aprovação. As pessoas significativas para ela estão muito

próximas: os colegas, a família, a professora. Ela não aceita aguardar uma posteridade

para ver sua obra aceita.

Se aceita a obra, podemos notar que o tratamento dado é muito

diferenciado. Algumas obras são guardadas cuidadosamente e mostradas nas situações

oportunas, algumas obras são presenteadas a familiares e afixadas nas paredes dos

quartos das crianças. Mas, existem outras que, mesmo valorizadas e aceitas como

obras prontas, acabadas e bem sucedidas, só existem por um curto período de tempo: o

tempo de sua confecção, que é entendido como momento de diversão e prazer, e o

tempo de vê-la concluir-se, aparecer como pronta e resolvida. Após esses momentos, e

após confirmar-se sua existência ao ser mostrada para a amiga ou para o monitor, a

obra já cumpriu sua existência, podendo ser destruída, jogada no lixo. A obra não é

desprezada: ela cumpriu-se, existiu e extinguiu-se, às vezes em poucos minutos.

Não precisamos concluir, com base exclusivamente nessa atitude de

“jogar fora” ou “esquecer o trabalho feito com tanto cuidado”, que a criança não

valorizou sua obra ou sua atividade criativa. Essa é uma compreensão equivocada, que

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158

remete ao alerta já mencionado de que não devemos julgar as crianças com os critérios

dos adultos, pois em alguns aspectos, seu mundo tem dimensões diferentes do nosso.

11.3.3 – Criação artística.

A criança sabe que não é artista profissional, mas, quando cria, comporta-

se como um artista e exige de si e de sua obra o mesmo tipo de completude do artista.

Essa conduta ocorre no nível de criança e não incorpora a mesma exigência ou

expectativa que elas podem ter em relação à obra do artista profissional. Mas nessa

exigência se manifesta o sentido de criação de uma obra de arte em que ela realiza sua

ação: a mesma completude, no nível do que ela pode esperar de si, como criança,

como aluno – e não como adulto ou artista profissional.

Isso pode ser compreendido se considerarmos que a criança pode viver

situações típicas de adulto através dos fenômenos da imitação e da prematuração. As

crianças, para Merleau-Ponty, imitam o modo de falar e de pensar do adulto e “entram

na herança cultural não somente por meio da inteligência mas também por meios quase

dramáticos da imitação do adulto” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 218). A criança

também pode “viver conflitos e episódios que antecipam seus poderes físicos ou

intelectuais” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 220). A criança age, em certa medida,

como se fosse artista e desse modo vive os problemas típicos do artista.

As diferenças existentes em relação ao adulto e ao artista profissional não

podem descaracterizar a atividade da criança nas aulas de Arte como uma atividade

artística. Elas se projetam na atividade do adulto e vivem, nas suas condições de

criança, a vivência do adulto, inclusive do adulto artista, de quem elas podem intuir a

atividade pelas obras que vêem e pelas múltiplas referências culturais com que

convivem.

Diferentes sentidos aparecem na intensa comunicação entre as crianças

no decorrer da aula. Enquanto desenham, as crianças comunicam-se intensamente.

Conversam, olham-se, sorriem, fazem caretas e gestos. Perguntam como deve ser

resolvida tal tarefa, como deve ser executada tal instrução, que cor deve usada aqui e

ali. O entendimento relativo às instruções da professora é trocado intensamente entre

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159

os alunos. E também a opinião sobre a própria tarefa é compartilhada: os gestos, as

caretas, as chacotas, as risadinhas correm entre os alunos rapidamente. Cochichos

acompanhados de caretas repetem-se entre as carteiras. Olhares plenos de significado

crítico vão da professora para um colega, do colega para o pesquisador. Impossível

acompanhar as minúcias e variações de sentidos compartilhados nessa intensa troca

entre os alunos, enquanto realizam suas tarefas. A compreensão do sentido deve ser

captada nas palavras que escasseiam e em sua relação com os gestos e atitudes.

Destaca-se, entre os diferentes sentidos que permeiam essa teia de

relacionamentos, o sentido propriamente artístico de suas obras. Ao lado da pergunta

se o desenho está certo, surge também a pergunta se o desenho está bom. “Ficou

legal? Está da-hora, faz assim, pinta aqui de azul, contorna aqui com o verde...” - as

sugestões, perguntas e comentários buscam uma obra que deve se realizar, deve

aparecer, deve se completar. O desenho se afirma pela sua completude e beleza: “ficou

da-hora”, é a confirmação da beleza e da completude de um desenho que pode, então,

cumprir sua sina de aparecer e, na sua tantas vezes breve existência, realizar sua

epifania de obra de arte e transformar a criança em artista.

A busca da realização de algo que seja belo é parte do sentido de criação

de uma obra de arte, vivido pela criança. A obra tem que ser bela. E, na atividade da

criança, a beleza também se manifesta nos diferentes sentidos com que pode ser

compreendida. O que é considerado belo para alguns, não o é para outros. Há, para as

crianças, a beleza radiante de um pôr do sol, a beleza triste de uma lágrima, a beleza

segura de uma imagem familiar, a beleza infantil de uma bola colorida, a beleza

simbólica de uma árvore, uma casa e um sol sorridente, a beleza massificada dos

personagens da TV, a beleza assustadora de uma caveira, a beleza feia de uma

paisagem desoladora... Todas essas figuras - e infinitas outras possibilidades -

aparecem em desenhos considerados bonitos e adequados para alguns alunos e,

eventualmente, feios e inadequados para outros. A beleza aparece no sentido –

caveiras, monstros e outras figuras assustadoras podem ser belas para alguns alunos,

para aqueles que ali vivenciam sentidos que os carregam para o mundo configurado

pelo colega-artista. Mas, quaisquer que sejam os estilos que podem transformar um

grupo de alunos em público para o desenho de um colega, o sentido de completude que

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160

pode justificar a existência de uma obra como pronta, acabada e resolvida– portanto

criada – está sempre presente.

No diálogo entre os colegas, na troca de comentários, olhares e gestos é

que se estabelece a avaliação. Uma avaliação que não é, entre as crianças, imposta,

mas negociada. Perguntas, sugestões, críticas, explicações, olhares e re-olhares se

sucedem na avaliação do desenho enquanto ele é feito. E, muitas vezes, rejeições

bruscas. Como tantas vezes o artista profissional também faz. Há diferenças: o artista,

informado por seus estudos, por tanto observar obras de arte, leva consigo a opinião

alheia, submete sua obra a sua própria crítica ao mesmo tempo em que avalia o que

acharão os outros, e o outro é seu público. E avalia o quanto sua obra levará de

adequação e o quanto levará de desafio durante a própria construção da obra. A

criança, iniciante na vida e na arte, não deixa de carregar sua tradição artística e suas

referências, embora talvez não tão amplas e diversificadas quanto a do artista. Tateante

e insegura na avaliação do que faz, procura aprovação a cada momento em seus pares,

seus colegas de classe, especialmente em seus amigos. Nos amigos ela encontra

cumplicidade de valores estéticos e tolerância a seus erros. Não há vergonha no

comentário crítico que o amigo faz, em voz baixa, ao amigo que desenha. Essa crítica

é bem-vinda, pois a criança não está segura de que são boas as soluções que escolheu.

Do diálogo com a professora a criança espera o mesmo, em um nível

ainda mais elevado. Os comentários da professora serão ainda mais valorizados como

critério de aprovação ou rejeição do que os comentários dos amigos e colegas. Mas,

para isso, a criança espera que o professor se torne, também, de certa forma, um amigo

e tenha, com ela, um tratamento respeitoso. Ela espera que os comentários do

professor possam confirmar a importância e o valor de sua existência e, ao mesmo

tempo, remeter essa existência a uma ampliação da compreensão da atividade artística.

Desse modo, o professor poderá ajudá-la a formular melhores soluções para as

questões colocadas pela criação de sua obra.

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11.3.4 – Criação como expressão.

“Fui eu que fiz” são as palavras utilizadas pela criança, afirmando sua

existência através da criação. Nas crianças estudadas, o sentido de expressão pessoal

apareceu em vários depoimentos: os desenhos são parte delas, elas sentem que estão

no desenho. A obra é parte de seu corpo, como extensão. É, portanto, expressão de seu

ser. O corpo devolve, na obra, o mundo que recebeu pela percepção, transformado pelo

próprio corpo, pois “o olho é aquilo que foi comovido por um certo impacto do

mundo, e que o restitui ao visível pelos traços da mão” (MERLEAU-PONTY, 1984a,

p. 91).

Para as crianças, a ligação com a obra parece ser ainda maior. A criança

não permite que a obra exista por si, mantém com ela uma ligação profunda, como se

ela fosse parte de si. Ela é, de certa forma, parte da criança. É a obra que se manifesta

como extensão do corpo do seu criador. Ela é expressiva, porque expressa a existência

da criança como existência criadora.

Esse sentido é expresso enfaticamente por READ (1982, p. 200), que

designava como livre expressão a atividade criativa que devia ser proporcionada à

criança na prática artística. Também Viktor Lowenfeld destacou a expressão na

criação artística da criança:

Qualquer obra pictórica é o resultado da expressão de um indivíduo. A arte exprime a relação do artista com seu eu e com seu meio. A pintura de uma garrafa, por exemplo, não é a garrafa em si, mas a expressão da referência entre o artista e a garrafa (LOWENFELD e BRITTAIN, 1977, p. 394-395).

Para Duarte Junior (1983, p. 43) a arte é uma forma de expressar

sentimentos, sentido também mencionado por Fusari e Ferraz (1993, p. 19). Moraes

(2002, p. 214) propõe a revalorização da auto-expressão como construção e expressão

da singularidade. Destacamos, também, Noemia Varela, que assim descreve sua visita

à Escolinha de Arte do Brasil:

Enquanto eu olhava as crianças trabalharem tão poeticamente, ouvia a voz de Augusto falando sobre Herbert Read, as experiências, o interesse e a importância de auto-expressão. Aquilo tudo me encantou – mas me encantou sobretudo o ato, o fazer, a ação da expressão da criança. (BRASIL, 1980, p. 61)

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11.3.5 – Acolhimento, cuidado e pertencimento.

A família é, muitas vezes, a destinatária da obra dos alunos. A criança,

muitas vezes, dá seu desenho para sua mãe ou para outra pessoa da família. A família

se constitui em elemento fundamental do sentido da atividade da criança na aula de

Arte. A família é, para a criança, um outro especial, mais importante e fundamental

(MERLEAU-PONTY, 1990, p. 132). Esse sentido não desaparece quando a criança

entra na escola e ela continua vivendo suas relações parentais. Nesse contexto, vários

sentidos diferentes e complementares podem ser percebidos.

Há o sentido de busca de aceitação e acolhimento, pela família, de si,

através de sua obra. A criança, compreendendo seu desenho como parte e projeção de

si, espera dos familiares a confirmação de sua aceitação e acolhimento através da

valorização de seu desenho. Elas sabem que na família receberão ampla aceitação, mas

buscam confirmar essa aceitação. Ao mesmo tempo em que buscam a confirmação e a

aprovação da família, sabem que essa aprovação não se relaciona diretamente com a

valorização, como avaliação, da qualidade de sua criação. A aprovação no âmbito

familiar é muito importante para asa crianças. O fato da criança freqüentar a escola

não tira a família do centro de suas preocupações (SZYMANSKI, 2003).

Mostrar sua obra para a mãe – ou outros familiares - e receber dela o

carinho e a confirmação de sua existência criadora é afirmado e reafirmado como

procedimento rotineiro por muitos alunos. A criança desenha para levar seu desenho

para casa e receber, através do desenho, uma manifestação de acolhimento e de

cuidado por parte de seus familiares. Para isso, ela precisa gostar de seu desenho,

considerá-lo adequado, acabado e bonito. E confiar que o acolhimento irá ocorrer: a

menina que acredita que seu pai só trabalha e que quando não está trabalhando já está

embriagado – não mostra para ele seus desenhos. Há também um outro sentido, que

também aparece na convivência familiar, que é o sentido de cuidado. A criança

também está cuidando de sua mãe quando dá a ela seu desenho.

Em alguns casos, existe um outro adulto significativo, considerado de

maior competência por ser também um artista (por também desenhar ou pintar) e que

contribui para uma melhor compreensão e para indicar caminhos para as próximas

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criações. Nesses casos, pode aparecer um sentido de continuidade de uma tradição, de

pertencimento e identificação com um grupo ou com um membro da família. Aparece

aqui, em certa medida, o sentido proposto por Barbosa (1998, p. 16) de identificação

com um grupo. Mas, nas crianças estudadas, esta identificação com um grupo social

parece acontecer pela via da família, pois os adultos considerados importantes estão

muito próximos ao ambiente de convívio familiar.

11.3.6 – Arte como atividade.

Outro sentido expresso com veemência pelas crianças refere-se ao caráter

de atividade da aula de Arte. Para as crianças, a aula de Arte é um momento para fazer

algo. Esse fazer é uma atividade, um movimento, pois a arte é manifestação do corpo.

Como o corpo, a arte precisa de movimento. Esse movimento é um fazer: pintar,

desenhar, cantar, tocar, representar, cortar, colar, modelar, esculpir, rabiscar, dobrar,

falar (o texto), filmar, gravar, dançar, gesticular - há um movimento que,

especialmente no desenho e na pintura, está articulado com a visão: “Meu corpo móvel

conta no mundo visível, faz parte dele, e é por isso que eu posso dirigi-lo no visível.

Por outro lado, também é verdade que a visão pende do movimento. [...]”

(MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 88). Esse movimento do corpo visa trazer ao mundo a

obra.

Esse fazer diferencia-se do trabalho e do brincar. O brincar também é

atividade, mas não precisa criar uma obra. O trabalho precisa produzir um objeto, mas

não precisa criar, pois, muitas vezes, visa um resultado já esperado. A atividade

artística é um fazer especial, que deve chegar ao inesperado, ao não-estabelecido. Por

isso, é um fazer que deve criar. A criatividade só se manifesta na realização do fazer,

na criação, na obra. O gesto criativo se realiza na relação entre o corpo e o mundo,

pela visão que se aproxima do mundo, sem apropriar-se dele. O sentido de atividade da

pintura vem do sentido do movimento do corpo, que não é guiado pelo pensamento:

“Meu movimento não é uma decisão do espírito [...]. Ele é a seqüência natural e o

amadurecimento de uma visão. De uma coisa digo que ela é movida, porém meu

corpo, este, se move, meu movimento se desdobra” (MERLEAU-PONTY, 1984a, p.

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88, grifo do autor). A arte é uma manifestação do corpo em sua existência primordial

pela percepção, segundo a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty.

Manifestação da identificação do corpo com o mundo, em que visão e gesto, como

movimento, se fazem expressão da existência do Ser, a arte, especialmente a arte não é

comandada por um pensamento racional, por uma inteligência que se coloca fora do

mundo, como que sobrevoando as coisas para determiná-las primeiro no pensamento e

depois realizá-las. A arte, especialmente a pintura, nos mostra que não é o pensamento

que funda a existência humana, mas a percepção do mundo, no mundo. A arte não se

realiza pela aplicação de conceitos. Por isso, não podemos, para vivenciar a arte,

submetê-la ao pensamento.

Com isso podemos compreender a resistência das crianças, nas aulas de

Arte, a dedicar-se à discussão teórica e ao estudo de conceitos. O conhecimento teórico

e as informações não têm, para elas, muita importância, nas aulas de Arte. Na medida

em que a aula de Arte aparece no sentido de uma atividade dirigida pela percepção

sensível, o aprendizado considerado refere-se e subordina-se a esse fazer. Há um

aprendizado técnico e prático, um como fazer, que faz parte da atividade artística. E há

um aprendizado do corpo, do movimento e da visão, que é um aprendizado que se

realiza na percepção e na ação (MERLEAU-PONTY, 1984a, p. 89).

Na aula de Arte, o conhecimento é percebido como meio e complemento,

como uma ferramenta a mais à disposição do esforço criativo. Ele está presente o

tempo todo, mas não constitui o núcleo dos sentidos das atividades da criança. As

crianças não vão à aula de Arte para adquirir conhecimentos sobre arte, mas para fazer

arte. Não há desconsideração pelo conhecimento, mas o conhecimento está presente

como mais um elemento da existência. Quem comanda é a percepção, que já incorpora

as intenções existenciais, o sentido da atividade. As crianças recusam-se a aceitar

provas escritas e as explicações genéricas ou conceituais tornam-se enfadonhas: elas

contradizem o sentido vivido da atividade artística, em que a arte se realiza no fazer

criativo.

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11.3.7 - Arte como diversão e como profissão.

Outros dois sentidos, aparentemente contraditórios, também foram

expressos pelas crianças. De um lado, aparece a atividade artística no sentido de

atividade lúdica e prazerosa, especialmente na manipulação de certos materiais, como

argila e tinta. Mas aparece, também, no simples desenhar e colorir com lápis de cor.

Colorir e desenhar proporciona prazer. Esse prazer que também habita a atividade

artística da criança, com presença maior ou menor, dependendo das circunstâncias,

permite que apareça, na própria atividade, o sentido lúdico do brincar. O brincar não

impede o resultado. Artistas podem fazer brincadeiras artísticas e parece que as

crianças, também.

Por outro lado, as crianças também projetam, na aula de Arte, o sentido

de iniciação a uma profissão, com expectativa de reconhecimento social e econômico.

Importa ressaltar que, enquanto nas camadas sociais mais bem situadas

financeiramente, como a classe média, a possibilidade da atividade artística constituir-

se em opção profissional é, em muitos casos, recusada pelos familiares dos alunos, no

meio social pesquisado, de baixo poder aquisitivo, a arte aparece, para as crianças e

suas famílias, como uma alternativa boa e interessante de realização profissional. A

arte parece se constituir, nesse contexto social, em atividade: o tio que ‘sabe desenhar’

aparece para as crianças como alguém que merece especial atenção e alguma

admiração. Algumas expressam diretamente a perspectiva da atividade artística tornar-

se uma opção profissional.

Esses sentidos são também propostos ou percebidos por diferentes

autores. Barbosa (1998, p. 19) destaca que o estudo de arte pode levar mais eficiência

a trabalhadores de diversas profissões. Ferraz e Fusari, que também mencionam o

sentido de preparação para o trabalho no ensino de Arte, por outro lado destacam que:

O brincar nas aulas de arte pode ser uma maneira prazerosa de a criança experienciar novas situações e ajudá-la a compreender e assimilar mais facilmente o mundo cultural e estético. Um outro ponto é que a prática artística é vivenciada pelas crianças pequenas como uma atividade lúdica, onde ‘o fazer’ se identifica com ‘o brincar’ [...]. (1991, p. 84)

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Essa “vivência da prática artística como atividade lúdica”, que predomina

entre as crianças pequenas, não desaparece totalmente e as crianças maiores também

encontram esse sentido em sua atividade. Esse fato foi observado também por Brito

(1997, p. 156), que concluiu, em sua pesquisa, que a arte como diversão, juntamente

com produção e conhecimento, faz parte do “núcleo da representação social” que as

crianças fazem das aulas de Arte.

11.3.8 – Aula de Arte como liberdade e rebeldia.

Manifestou-se, no discurso das crianças, um forte sentido de arte como

prática da liberdade. As crianças exigem liberdade para criar. Não aceitam imposições

e restrições burocráticas. Rebelam-se contra a transformação de sua atividade em mera

execução de instruções. Não aceitam a desqualificação de suas obras. Querem falar e

expressar suas opiniões sobre as obras que realizam. Não aceitam a opinião da

professora como única e verdadeira. Querem escolher as cores. Querem fazer o que

quiserem para realizar sua criação artística na sua própria percepção estética.

Acreditam que cada um tem seu próprio gosto. A aula de Arte é momento de liberdade

ou, para as crianças, não é arte. Nesse momento, então, as instruções, restrições e

críticas da professora aparecem como imposição descabida, como autoritarismo ou

como falta de competência – e os alunos se revoltam.

Sentidos semelhantes, complementares ou convergentes com esses

sentidos expressos pelos alunos também são expressos por alguns autores. Para Read

(1982) a expressão artística é livre expressão; Lowenfeld e Brittain (1977) concebem a

prática criativa de uma criança “livre e desinibida”; Fusari e Ferraz (1993, p. 49)

propõem um ensino de Arte engajado em uma ação social crítica e transformadora;

Duarte Junior (1983, p. 66-69) acredita que a arte pode diferenciar-se do “mundo dos

negócios” e da “sociedade racionalista” e configurar novas visões de mundo; Benedetti

(2001) concebe o ensino de Arte como elemento desencadeador de mudanças voltadas

para a desburocratização do ambiente escolar; Merleau-Ponty (2002, p. 115) destaca

que a expressão em geral, inclusive a expressão artística, “não suporta instruções”.

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11.3.9 – Arte como libertação e cura.

Há, no discurso das crianças sobre sua atividade, um sentido de

libertação. Elas parecem buscar uma dimensão da existência que não seja marcada

pelas limitações do dia-a-dia. E a arte proporciona essa dimensão, libertando-as, por

alguns instantes, das exigências do mundo social em que vivem. A arte se mostra,

assim, como uma dimensão da existência humana que liberta ao proporcionar

vivências não condicionadas ao cotidiano, outras dimensões da existência, outros

modos de ser. Essa libertação parece projetar um outro sentido, que também aparece

no discurso das crianças: o sentido de arte como cura. Ao libertar, por alguns

momentos, o ser de algumas imposições da vida cotidiana, ao proporcionar a

afirmação do ser como ser criativo, ao proporcionar uma apropriação do mundo, ao

viabilizar a expressão do ser - a arte parece fortalecer o ser, dar novos sentidos à

própria existência, dar nova amplitude à relação do ser com o mundo e com o outro,

criar uma dimensão em que a cotidianidade cede lugar à transcendência e à comunhão.

O ser, pelo seu corpo, reencontra o mundo e reencontra o outro em outras dimensões

da existência. As dores trazidas pelas imposições do mundo do cotidiano parecem

encontrar alívio na atividade artística. As crises e limitações das relações do ser com o

mundo parecem encontrar, em alguma medida, um tipo de superação.

Sentidos semelhantes podem ser encontrados em alguns autores.

Machado (apud BARBOSA, 1999a, p. 29-30) refere-se à criação artística como

elemento que pode colaborar na superação da crise da adolescência, Lowenfeld e

Brittain (1977, p. 26-30 e 37-46) destacaram a importância da arte na constituição da

identidade e no desenvolvimento psicológico. E os PCN-Arte (BRASIL, 2000, p. 21)

atribuem à arte o papel de constituir o próprio sentido da vida, ampliando a vida para a

sua dimensão de sonho e poesia.

A arte revela outras dimensões da existência. Os mundos que, pela arte, o

ser pode habitar, são, ainda, parte desse mundo, mas não estão submetidos às mesmas

contingências e imposições. O ser se reencontra, reencontra o mundo e reencontra o

outro. A existência se renova e o ser se redime de si mesmo.

A arte liberta; e criar, cura.

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Parte IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS

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CAPÍTULO 12 – Arte na aula de Arte.

A burocratização da aula afastou as crianças da vivência artística.

Preocupados com a nota, os jovens não podiam mergulhar no mundo estético e

criativo, pois sua atenção voltava-se para as instruções e para a identificação de um

resultado, já estabelecido, que seria aceito como correto, viabilizando a avaliação

positiva. Até mesmo a mera proposição, pela professora, de uma atividade como

execução de instruções e realização de um resultado pré-estabelecido pode reduzir a

possibilidade da criança realizar uma atividade artística, mesmo que a nota não esteja

entre suas preocupações. Diante das instruções e do desafio de cumpri-las, a atividade

artística tendeu a ocorrer como resistência, em oposição às orientações da professora,

ou como extrapolação, para além das instruções. Ao se afirmar como autoridade

burocrática, o professor desvalorizava o sentido artístico, quando esse se manifestava.

Notou-se uma coerência entre a impaciência da professora, a condenação

das variações interpretativas, a negação ao diálogo, a recusa em ensinar música, a

preocupação com as festas escolares, o uso de conteúdos para a configuração das

tarefas: não foi arte o que se propôs àquelas crianças! A atividade da professora

caminhou no sentido de dificultar às crianças a realização de uma vivência artística.

As atividades propostas muitas vezes foram focadas em aspectos pré-

determinados, ou mesmo em único fator. Em conformidade com o plano de aulas

estabelecido, esse fator poderia ser, por exemplo, o aspecto motor, em outras o

perceptivo e em outras o cognitivo, com foco em tais ou quais conhecimentos. Os

alunos, no entanto, costumavam manifestar os mais diferentes comportamentos e sua

atividade não foi compreendida pela professora que, com sua atenção voltada

exclusivamente para o fator que pretendia desenvolver naquela aula, desconsiderou a

unidade da conduta em situação. O sentido da atividade da criança manifestou-se em

modos não previstos e a professora não compreendia o comportamento dos alunos.

A rejeição à sua criação apareceu para as crianças, em alguns momentos,

como a rejeição de si. Quando a criança ou o adolescente, a partir de uma certa idade,

prefere não mais desenhar ou pintar, está evitando a humilhante situação de rejeição a

que é submetida pelos adultos quando esses se comportam de modo agressivo, irônico,

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desatento, crítico, condescendente, apenas tolerando, ou mesmo não tolerando, a obra

em que a criança projetou a si mesma. O professor, presença importante entre os

modelos e referências que tem o jovem no seu desenvolvimento psicológico, pode

constituir-se em público privilegiado que valida com seu olhar a própria dimensão

estética, poética, expressiva e criativa da criança – possibilitando o desenvolvimento da

dimensão artística da sua existência.

O interessante, e mesmo maravilhoso, é que muitos alunos e em muitos

momentos buscaram e realizaram um sentido artístico em sua atividade, apesar da

situação geral que se apresentava. A simples existência institucional de um espaço, a

aula de Arte, que é compreendido com um espaço para a atividade artística, permitiu

que os alunos, até certo ponto, se encaminhassem para vivenciar arte neste espaço. A

arte, ou seja, o que é ou pode ser a arte nesta sociedade, chega às crianças através da

cultura e da história de suas vidas, com seus múltiplos relacionamentos com os outros

e com as diferentes manifestações culturais. A arte, que elas foram capazes de habitar

em algum momento, está já presente em seu modo de ser. Desse modo, a arte, em

tantos momentos, se instala em sua atividade, se projeta nos seus gestos, se realiza na

percepção e na criação. Os sentidos existenciais não puderam ser controlados pela

professora. A tarefa foi esquecida, as instruções foram abandonadas ou incorporadas

em um outro sentido, e a criação expressiva e artística se realizava. Mesmo com a

recusa da professora a se constituir em parceira do processo criativo e em público da

obra criada, as crianças, na aula, encontraram outros parceiros e outro público – seus

amigos e colegas e, depois, seus familiares.

Mas, desse modo, a professora foi transformando as relações com os

alunos. Não conseguindo ser parceira, amiga e público, a professora deixou, também,

pouco a pouco, de aparecer como referência e se desmoralizou como professora. Não é

de estranhar que na 7a. série as crianças tenham manifestado muito mais agressividade e

desrespeito pela professora. Elas pareciam, em maior número, ter descoberto aquilo que

os alunos da 6a. série apenas intuíram: a professora dificultava sua expressão. Barradas

em uma de suas possibilidades de Ser, elas buscaram outros caminhos. Se elas não

podem ser na arte, serão – ou seja, existirão - pela agressão e pelo deboche que joga o

não-ser sobre a professora, que deixa de ser, na prática, professora.

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171

Em certas situações, parecia haver um acordo tácito: a professora não

cobrava nada dos alunos, e os alunos nada cobravam da professora. Todos ficavam

entretidos com outras coisas, como estudando outras disciplinas ou conversando.

Desse modo, não havia aula e não havia arte. Não havia alunos, nem professora. A

professora não viveu a possibilidade de ser, com a arte, professora de Arte.

O artista profissional, o pintor de fim de semana e a criança têm, na sua

atividade artística, algo em comum: os três projetam na sua existência um profundo

sentido de que a obra é expressão de sua existência no mundo. Essa expressão precisa

do outro. É o outro que proporciona o aparecer da obra de arte. Com esse aparecer, ao

mesmo tempo que a obra passa a existir no mundo, o artista, o amador e a criança

podem existir como ser criador, projetando no mundo sua existência como existência

criativa.

Mas, o processo de criação artística das crianças e dos adolescentes

apresenta diferenças em relação ao adulto e ao artista profissional. Os artistas podem

realizar sua atividade em relativa solidão e são capazes de estabelecer seus critérios

estéticos a partir das referências que vivenciaram e escolheram. A criança - e também

o adolescente - precisa de ajuda para decidir sobre os caminhos que deve seguir na

execução da obra e sobre sua validação final. O amigo mais próximo, na sala de aula,

não é apenas seu primeiro público: pode também ser seu parceiro na avaliação da obra

enquanto ela está sendo realizada e sócio na sua validação ou rejeição no momento em

que ela está pronta. Enquanto o pintor profissional muitas vezes assina seu quadro

para validar a obra e proclamar que ela foi aceita por ele como resolvida e completa, as

crianças e adolescentes pedem ajuda para decidir essa questão. No contexto observado,

a professora não se apresentava para isso e essa ajuda era obtida com os colegas de

classe.

Mesmo com a criança freqüentando a escola e praticando uma

socialização mais ampla, a família continua constituindo uma importante referência e

uma dimensão fundamental da vivência. A integração em grupos sociais mais amplos,

na comunidade e no bairro, parece passar, em grande medida, pela família. A

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valorização, pela criança, das próprias obras criadas nas aulas de arte parece depender,

em grande medida, da sua valorização e aceitação no âmbito da família.

Para os alunos que participaram desse estudo foi muito forte a presença

dos amigos e colegas. Mas há, também, algo como uma busca de ampliação dessas

relações. A esfera pública não aparece como público da obra criada pelas crianças, mas

muitos outros parecem tornar-se rapidamente familiares o bastante para serem

apresentados à sua obra: as meninas guardam os desenhos de que gostam na pasta ou

na parede de seu quarto, prontos para serem mostrados com satisfação, para qualquer

adulto ou criança que pareça se importar: “olha, fui eu que fiz”. Os alunos observados,

com idades entre 11 e 14 anos, pareciam encontrar satisfação em ver suas obras

mostradas a uma esfera mais ampla de pessoas, como a escola e a comunidade escolar

- como apareceu na solicitação de participação na confecção de objetos para as

festividades escolares. Percebeu-se algo como a busca da esfera pública, que, no

entanto, ainda não era plenamente vivenciada. O mostrar as obras das crianças deve ser

acompanhado de um cuidado especial, pois elas - não visando uma esfera pública

ampla e não apresentando na sua atividade o sentido de constituição de um público

específico para sua obra - precisam de aceitação. Ao contrário do que acontece com o

artista profissional, que pode conviver com o fato de que alguns não gostam de seu

trabalho porque sabe que outros gostarão: o seu público. Para as crianças, a crítica

pública pode trazer um profundo sofrimento e adquirir o sentido de rejeição, agressão

e desestímulo, tendendo à afastá-las das atividades artísticas. A criança pode, na sua

atividade nas aulas de Arte, colocar-se na condição de artista e viver os conflitos

próprios do artista, percebidos no mundo social: sua obra será respeitada,

compreendida e aceita? A expectativa da criança quanto aos seus desenhos assemelha-

se aos medos e dúvidas do artista, no que diz respeito à reação do público. Mas, nessa

prematuração, ela não é o artista adulto e só conta, diante de uma possível reação do

público, com seus recursos de criança. O professor, nesse caso, compreendendo a

situação, pode evitar situações que seriam suportadas por um artista adulto, mas que a

criança não tem recursos para superar. A criança e o adolescente não têm a mesma

vivência do mundo social e mesmo da temporalidade que têm os adultos e os artistas

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profissionais, que sabem que têm de esperar pela compreensão ou pela constituição de

seu público. Para a criança, e mesmo para o adolescente, a noção de público não está

plenamente constituída, podendo ser compreendida como uma das ultracoisas

mencionadas por Merleau-Ponty, que cita Wallon para designar as coisas de que a

criança não duvida, mas com as quais ela ainda não pode se relacionar de modo

objetivo (MERLEAU-PONTY, 1990, p.260-261).

As crianças vivem sua obra como manifestação de sua própria existência.

Seu desenho é parte de si. Esse fenômeno relaciona-se a uma questão recorrente nas

discussões sobre o ensino de arte: a atividade artística como expressão. A obra aparece

sempre como expressão da existência da criança. As crianças percebem que seus

desenhos afirmam sua existência. O desrespeito aos desenhos é doloroso. Elas também

são através dos desenhos que fazem. Elas sentem que estão no desenho que fazem. Há

um momento em que se estabelece uma relação íntima entre a criança e o desenho que

ela faz. Nesse momento sua atenção se concentra de tal modo em sua atividade criativa

que ela pode prosseguir, mesmo que já tenha “tocado” o sinal de que a aula acabou.

Nesses momentos, o eventual sentido tarefeiro proposto já desapareceu, pois a tarefa

há muito já foi realizada, ou esquecida, e o diálogo estético e criativo do ser que cria

com a obra que se manifesta ao seu olhar orienta os gestos da criança.

Pelo desenho, as crianças se apropriam do mundo e de si. Mas, esse

apropriar-se não é um tornar interno, mas, sim, um fazer aparecer. Esse fazer aparecer

não precisa ser entendido como um colocar para fora algo que está dentro, como

sugerido pela teoria da auto-expressão. A fenomenologia permite compreender a

expressão de um outro modo: há expressão na medida em que há um ser que, criando,

manifesta a si, faz-se aparecer. Essa expressão do ser é, ao mesmo tempo, expressão

do mundo. O ser só cria colocando na obra o mundo que, pela obra, retorna ao mundo

impregnado do modo de ser no mundo daquele que cria. O sujeito que cria apropria-se

do mundo e expressa seu ser devolvendo ao mundo o que dele recebeu na forma dada

pela sua percepção e pelo seu corpo. Criar é apropriar-se do mundo, tornar seu o

mundo e, ao mesmo tempo, colocar-se no mundo, manifestando a existência do ser.

Assim, em toda obra humana, há expressão. E toda expressão é auto-

expressão na medida em que há um ser que, expressando-se na sua criação, manifesta

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o próprio mundo no seu modo próprio de ser. Mas, na arte, o termo auto-expressão é

desnecessário, pois sugere uma separação radical entre o que é de si e o que é do

mundo. No termo auto-expressão o ser parece ser algo interior, separado do mundo,

que é compreendido apenas como um exterior. Mas toda expressão é, ao mesmo

tempo, auto-expressão (como expressão de si) e expressão do mundo. E deve

manifestar-se no mundo procurando no outro a sua realização. A arte, portanto, não é

apenas projeção de um interior, mas comunhão do ser com o mundo, através da obra e

do outro. A arte é expressiva na medida em que é criação e manifestação do ser no

mundo. No sentido aqui utilizado, toda arte é expressiva.

A criação artística só pode existir na cultura. Vivendo em um mundo

cultural, histórico e social, o sujeito só pode relacionar-se com a arte a partir das

referências existentes nesse mundo em que vive. Do mesmo modo, o ensino de Arte só

pode tratar de levar às crianças a vivência artística tal como ela existe nessa cultura.

Mesmo quando a criança tomar contato com obras realizadas em outras culturas, ela o

fará a partir das referências que ela recebeu do mundo cultural em que vive. Na cultura

em que vivemos, a atividade artística é considerada como uma atividade específica,

com suas próprias características e com múltiplas referências. Uma das características

culturais mais valorizadas na arte é a escolha, ou a descoberta, ou a invenção, do

próprio estilo. Nesse contexto, a atividade artística é livre porque é escolha. Não é uma

liberdade absoluta, realizada em um oceano ilimitado de possibilidades, mas a

liberdade de escolher, construir, descobrir ou inventar seu estilo a partir da

interpretação das múltiplas referências existentes na cultura em que vive. Nesse

sentido, toda a arte é livre.

A arte, para a criança, poderá adquirir diferentes sentidos, sendo que

alguns deles poderão ser semelhantes aos sentidos percebidos pelo adulto e outros

serão próprios da criança. A criança, em sua atividade, poderá transitar entre um e

outro sentido muito rapidamente, mudando a maneira de compreender a atividade

artística. A criança irá aproximar-se, de cada vez, de um ou outro modelo de atitude ou

de estilo expressivo, conforme o sentido que vivencia no momento.

A atividade da criança só pode ser compreendida em seus sentidos. Os

sentidos são vividos pela criança nas relações com o outro e com o mundo, um mundo

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cultural em que a criança se projeta, trazendo esse mundo para si e, ao mesmo tempo,

projetando-se no mundo. Os sentidos nascem desse entrelaçamento do Ser e do

mundo, em que a criança vivencia a sua atividade imersa nesse mundo, vivenciando

sua atividade como se fosse artista, mas sem abandonar sua condição de criança.

Estabelecer as possíveis correspondências entre os sentidos vividos pelos

alunos durante a realização de suas atividades nas aulas de Arte e os sentidos propostos

pelos educadores, pesquisadores e professores para o ensino de Arte, não fez parte dos

objetivos desta pesquisa. Optou-se por não abordar essa questão, pois ela exigiria um

estudo profundo de cada proposta pedagógica para o ensino de Arte. Pode-se, no

entanto, referenciando-se nas discussões apresentadas, sugerir o estudo do sentido

vivido pelos alunos como uma possibilidade de ampliação da compreensão, pelos

professores e pesquisadores, das aulas de Arte, nas diferentes metodologias utilizadas.

A noção de aptidão para a Arte como dom ou vocação, à semelhança das

teorias inatistas, apareceu nesse estudo como possível fator limitante das ações e da

própria compreensão do ensino de Arte por parte dos professores. Confirmamos as

indicações no mesmo sentido feitas por Prandini (2000) e Rocha (1999). As concepções

inatistas parecem ter, na área do ensino de Arte, uma influência significativa, persistente

e particularmente negativa, o que sugere a importância do estudo dessa questão.

Questões como as relações entre atividade artística e conhecimento, e entre

vivência familiar e as obras criadas nas aulas de Arte, parecem merecer a atenção dos

pesquisadores em ensino de Arte.

Por outro lado, a questão da prática artística da criança nas aulas de Arte,

sempre reafirmada como importante ou imprescindível, inclusive por este estudo, pode

ser retomada, de modo a buscar uma compreensão mais ampla da relação das crianças

com a arte e do próprio espaço da arte na educação.

Afinal, a arte faz parte do mundo e a escola pode propiciar que as crianças,

adolescentes e jovens, e também os adultos, vivenciem a arte como um dos possíveis

modos de habitar o mundo.

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