os instrumentos musicais e as viagens dos portugueses

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Os Instrumentos Musicais

e as Viagens dos Portugueses

J o s P e d r o C a i a d o

(com DOlningos Morais)

AS VIAGENS DOS PORTUGUESES QUE CONTRIBURAM para o conhecimento e difuso de prticas e saberes musicais, decorrem num longo perodo com incio provvel no sculo XIV; com as primeiras expedies s Ilhas Canrias e cujo termo situaremos j no nosso sculo, na dcada de 60, quando os ltimos grandes contingentes de emigrantes portugueses (de 1965 a 1973 foram cerca de 1 200 000) procmam fora do pas, especialmente na Frana e Alemanha, melhores condies de vida.

A recesso econmica na dcada de 70 e o fim do ciclo do Imprio, com a independncia dos antigos territrios ultramarinos, marcam o incio de um novo ciclo em que os portugueses vem dificultada a sua entrada nos mercados de trabalho estrangeiros e se assiste ao retorno de mais de meio milho de pessoas dos novos pases africanos.

Os instrumentos musicais que os portugueses levaram e os que conheceram nos seus contactos com outros povos, nestes seis sculos de viagens, so testemunho desta aventura vivida um pouco por todo o mundo e de que encontramos mltiplas referncias - documentais, iconogrficas, os prprios instrumentos musicais e os que deles derivaram.

Em 1419 e 1420, partiam do Algarve duas expedies para a ocupao permanente da Madeira e do Porto Santo. Estas datas, consideradas corno o incio da expanso ultramarina, tero sido na poca consideradas como uma etapa necessria ao principal objectivo da descoberta da costa ocidental africana que at 1460, data da morte do infante D. Henrique, foi cuidadosamente descrita pelos navegadores portugueses que tinham atingido a costa da actual Serra Leoa, pensando erradamente estarem perto da costa oriental de frica.

Das fontes documentais a que podemos ter acesso para o sculo xv. diz-nos Magalhes Godinho serem as "relaes", resultantes "da experincia e memria pessoais dos feitos, utilizando tambm o testemunlw oral e por vezes escrito", as que melhor descrevem . . . 'a vida dos indgenas, ausentes ou esbatidas nas crnicas".

Histria Geral das Guerras Angolanas de Antnio de Oliveira Cadornega, 1681. Lisboa, Academia das Cincias.

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Dos costumes das mulheres deste pas, do que causava a admirao daqueles homens, e dos instrumentos msicos de que usam:

'Yl.s mulheres deste pas so m uito jucundas, e alegres; cantam, e bailam de bom grado principalmente as moas; mas no bailam seno noute claridade da lua; e o seu bailar muito diferente do nosso. [ . . . ]

Neste pas no se usam instrumentos mLsicos, seno de duas Lnicas qualidades: uns so atabales Mouriscos, os outros lima espcie de violetas daquelas que ns tocamos com arco; mas no tem seno duas cordas; e tocam-a com o dedo de um modo simples, grosseiro, e que nada vale: no usam de nenhuns outros instrumentos [ . . . ] tambm se maravilhavam do som duma destas nossasgaitas defoles, queeufiz tocara um mari nheiro meu; e vendo-a vestida de cores, e com franjas roda, pensavam que era algum animal vivo, que assim cantava com diversas vozes, e tinham muito gosto, e maravillw ao mesmo tempo: vendo eu esta sua simplicidade, lhes disse, que era um i/JStrumento, e lha dei nas suas mos estando sem vento: pelo que conhecendo ser cousa artificial, diziam que era obra celeste; e que Deus a tinha feito com as suas mos, pois to docemente tocava, e com tanta diversidade de vozes: e protestavam no ter nunca ouvido cousa to suave".

Cadamosto, 1455

Na primeira metade do sculo XVI as naus portuguesas tinham alcanado as Amricas, a frica Oriental e navegavam no ndico e no Pacfico, contribuindo decisivamente para o estabelecimento de novas rotas comerciais e o conhecimento de povos e culturas, embora raramente se aventurassem para alm dos esturios navegveis dos rios e braos de mar.

Menos de quarenta mil homens dos cerca de milho e meio de portugueses da poca, segundo Oliveira Marques, chegaram para colonizar quatro arquiplagos e a faixa costeira do Brasil, proteger as fortalezas em frica e na sia, e defender as rotas comerciais.

Estamos provavelmente perante o cortejo de um alto dignitrio, transportado numa liteira e acompanhado por msicos. Para Ruy de Matos, estes instrumentos musicais podero ser os primeiros que na Europa nos mostram a msica do antigo reino do Congo. A abrir o cortejo vemos dois tocadores de pluriarco, uma figura de costas que parece tocar um instrumento porttil, e a seguir ao dignitrio, um outro conjunto de trs msicos tocando xilofones portteis.

Garcia Simes, numa carta de 1578, relatando o encontro de uma delegao dos reis do Congo com os portugueses, fala-nos de . . . "hua viola que parecia lwas poucas espan'elas juntas",

notando Ruy de Matos que esparrela a designao portuguesa de uma armadilha para pssaros e tambm de um leme de navegao auxiliar, cujas formas se assemelham s do pluriarco.

Duarte Lopez, comerciante portugus que embarca para o Congo em 1 578, d-nos em 159 1 , pela pena d e Filippo Pigafetta, escritor e humanista italiano, uma descrio de um "alade" que uma leitura atenta permite concluir tratar-se de um pluriarco. Nessa descrio, as cordas esto presas uma a uma s cravelhas, que por serem umas mais longas e outras mais curtas se dobram para o "manico", que a parte do instrumento que o msico segura (pega) . Com esse instrumento, os msicos "exprimem os seus pensmnentos e fazem-se compreender to bem, que

tudo o que se diz com palavras, eles fazem-no

com os dedos, tocando o instrumento".

"Nas festas, como quando havia casamentos, cantam canes de amor e tocam um alade. Estes instrumentos tm umaforma estranha no cncavo e no cabo, nada parecido com o nosso (alade), possuem uma parte plana, em que talhada a roscea, de pele finssima, como de bexiga, em vez de madeira, e as cordas so feitas de crinas tiradas da cauda dos

elefantes, fortes e brilhantes e de certos fios que nascem no tronco da palmeira, que partindo da ponta do instrumento chegam extremidade do cabo e a vo-se prender s cravelhas, umas mais compridas e outras mais curtas, que se dobram em direco ao cabo. A estas (cravelhas) penduram placas muito finas de ferro e prata cujo tamanho proporcional (s cordas do ) ao instrumento e que produzem um tilintm; consoante a maneira como se tocam as cordas, que por sua vez fazem tremer as cravelhas, ouvindo-se um som entremeado. Os tocadores esticam convenientemente as cordas do instrumento e com os dedos, sem agarrar nas cordas, tal como se fosse uma harpa, pinam magistralmente o alade, do qual sai, no sei se diga, melodia ou barulho (som) que os delicia.

Ainda mais - coisa espantosa - atravs daquele instrumento exprimem os seus pensamentos e fazem-se entender to claramente, que quase tudo o

das feitas com fibras m uito fin inhas de folhas de palmeira ou o u tras plan tas".

Parece no restarem dvidas de estarmos perante instrumentos semelhantes ao representado na salva portuguesa de sculo XVI .

Kubik diz-nos que hoje os pluriarcos se encontram em parte do territrio do Zaire e no Sudoeste de Angola, onde teve oportunidade de gravar, em 1965, tocadores de pluriarco, "que designado em Lunkhumbi e Luhanda por chihumba". Redinha diz-nos que o pluriarco se encontra disseminado em Angola no Noroeste, no Planalto Central e no Sul. Na regio de Lubango, alguns pluriarcos tm estriduladores enfiados nos arcos, acima da priso das cordas, tal como nos descreve Lopez/Pigafetta no sculo XVI.

Marimba do Reino de Angola, Matamba e outros "Um dos instrumentos mais comuns a marim-

que podemos dizer com palavras, o podem eles decla- ba: composto por uma boa quantidade de cabaas rar com os dedos, tocando o instrumento. E com em nLmero de dezasseis, no meio de duas rguas late-aqueles sons, danam ao mesmo tempo com os ps, rais que se suspendem com uma correia ao pescoo batendo palmas seguindo o ritmo daquela msica". frente ao peito, como o demonstra a figura. Sobre as

Lopez/Pigafetta, 1591

Girolamo Merolla, em 1692, na sua Breve e S u ccin ta Relation e del viaggi'o nel regno di Congo . . . , desenha e descreve um instrumento, Nsambi, "parecido com uma pequena viola, mas sem brao, que substitudo por cinco arcos, com as cordas de fio de Palmeira", explicando que o msico o afina, empurrando ou puxando os arcos (ou varas) presos caixa de ressonncia, o que altera a tenso das cordas. O instrumento tocado com os dedos indicadores de ambas as mos e apoiado no peito do tocador. Diz-nos ainda que "o som, sendo fraco, n/ia desagrada por isso ao o uvido".

Antnio Cavazzi, que esteve no Congo pouco antes de Merolla, refere o mesmo instrumento, Nsambi, . . . "Feito semelhana das guitarras espanholas, mas sem fundo, tem boas cor-

bocas das cabaas h umas tabuinhas finas e que ressoam, de madeira vermelha chamada (a madeira) tacculla um pouco mais compridas que um palmo. So tocadas por dois pequenos bastes (paus) e o som ressoa nas cabaas, que variadas e diferentes no tamanho espalham um ribombar no diferente do rgo.

A maior parte das vezes tocam quatro marimbas juntas; se quiserem tocar seis, devem juntar o cassuto - um pedao de madeira com sulcos, de quatro palmos de comprimento. O baixo desta orquestra o quilondo, um grande e bojudo instrumento com dois ou trs palmos de altura, que parece uma garrafa invertida e raspado do mesmo modo do cassuto. A harmonia agradvel, de longe, mas quando nos aproximamos, so tantas as pancadas dos bastes, fazendo grande confuso, que no agradvel mas aborrece, ofendendo mais que agradando ao ouvido".

Girolamo Merolla, 1692

Tocadores de pluriarco e marimbeiros integram o cortejo de um alto dignitrio do reino do Congo. Pormenores de uma salva. Trabalho portugus com motivos africanos. Incios do sculo XVI. Lisboa, Coleco Particular.

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Os xilofones representados na salva, e de que no encontramos referncia em Duarte Lopez, so referidos por Cavazzi, que lhes chama marimba mas pouco claro na sua descrio.

Merolla mostra-nos o desenho da marimba, acompanhado de uma descrio que confirma o que podemos observar na salva, que no entanto nos mos.tra instrumentos com menos cabaas do que teclas, talvez devido dificuldade de os representar.

Kubik refere que os xilofones portteis como os que so descritos por Merolla se encontram hoje "em certas partes da frica Cen tral, onde tero chegado vindos do sul, da regio do antigo reino do Congo". No sul dos Camares, anotou da tradio oral que a orquestra de xilofones pertencia ao chefe e nas suas viagens seguia frente anunciando a sua chegada. O xilofone porttil "era u m instrumento representativo de reis e chefes. Este costume expandiu-se rapidamente em vastas reas da faixa oeste da frica Central. Os estados organizados que existiam no norte de Angola nos sculos xv, XVI e XVII exerciam, cultural e politicamente, uma poderosa influncia nas regies limtrofes. A msica de corte para m a rimba passou rapidamente para o interior do actual Congo Brazzaville. A presena de uma banda de xilofones portteis tomou-se u m smbolo de autoridade entre m uitos dos pequenos chefados localizados a norte do poderoso reino do Congo".

Primeira notcia de xilofones em Moambique: "So muito dados aos prazeres de cantar e tOCai: Os

seus instrumentos so umas cabaas ligadas com cordas, e um bocado de madeira dobrado em arco, umas maiores outras mais pequenas, na abertura das quais pem trombetas com cera de abelhas bravas para melhorar o tom e tm instrumentos tiples e baixos, etc.

De noite vo fazer serenatas ao rei e a quem quer que lhe fez um presente, e aquele que faz mais barulho considerado o melhor msico.

As suas canes so em geral de louvor queles para quem esto a cantai; como por ex:emplo 'este um bom, deu-nos isto ou aquilo, mas ainda nos h-de dar mais:

Duas canes so muito vulgares entre eles: uma Abenezaganbuia, o que significa que os Portugueses comem muitas coisas ao mesmo tempo, ou muitos pratos diferentes, pois que os Pretos no comem mais do que uma coisa de cada vez e nunca comem e bebem ao mesmo tempo, no por temperana mas por hbito".

Andr Fernandes, 1562

A Orquestra Real: "Serve-se mais o Quiteve do outro gnero de

cafres, grandes msicos e tangedores que no tem outro offcio mais que estarem assentados na primeira sala do rei e porta da rua e ao redor das suas casas, tangendo muita differena de instrumentos msicos e cantando a elles muita variedadede cantigas e prosas, em louvor do rei, com vozes mui altas e sonoras. O melhor instrumento, e mais msico de todos em que estes tangem, chama-se ambira, o qual arremeda muito aos nossos rgos. Este instrumento composto de cabaos de abboras compridas, uns muito grossos, e outros muito delgados, armados de tal feio que ficam todos juntos, postos por ordem, os mais pequenos e mais delgados, que so os tiples primeiro, postos da mo esquerda em revez dos nossos rgos e logo aps os tiples, se vo seguindo os mais cabaos, com suas vozes differentes, de contraltos, tenores e baixos, que por todos so dezoito. Cada um d'estes cabaos tem uma bocca pequena feita na ilharga, junto ao p e em cadafundo tem um buraco do tamanl10 de uma pataco e n'elle posto um espelho, feito de umas certas teas de aranha, muito delgadas, tapadas e fortes, que no quebram. E sobre todas as boccas d'estes cabaos, que esto eguaes, e sustentadas 110 ar com umas cordas, de modo que cada tecla fica posta sobre a bocca do seu cabao, em vo, que no chegue . mesma bocca. Depois d'isto assim armado, tangem os cafres por cima d'estas teclas com uns paus, ao modo de paus de tambor, nas poiuas dos quaes

esto pegados uns botes de nervo, feitos em peloiros, m uito leves, do tamanho de uma noz, de maneira que tangendo com estes dois paus por cima das teclas, retumbam as pancadas dentro nas boccas dos cabaos, e fazem uma harmonia de vozes mui consoantes e suaves, que se ouvem to longe com as de um bom cravo. D'estes instrumentos h muitos, e muitos tangedores, que os tocam muito bem".

Joo dos Santos, 1586

A referncia primeira notcia sobre a existncia de xilofones em Moambique, numa carta do padre Andr Fernandes de 1562 que nos descreve a msica dos Tsonga (parece que da regio de Inhambane), e o testemunho de Frei Joo dos Santos em "Ethiopia Oriental", 1586,

mentos, alguns s de orquestra, outros com mais um grupo de bailarinos, vestidos com trajo tradicional, trajo influenciado pelos guerreiros angnis, e outros em que este coro dos danarinos est sentado no cho e s canta, acompanhado de orquestra. Em outros andamentos distinguem-se bailarinos, que saem das fileiras, danam uns solos pitorescos, regressando de novo s fileiras; noutros andamentos toma uma ou outra mulher o papel de solista, passa entre as filas de bailarinos em passo de dana, fazendo o kulungela, o afamado trilo especial das mulheres da frica Oriental, e cantando umas palavras. Antigamente esse papel solista era uma honra, que s era concedida excepcionalmente a mulheres que se tinham distinguido por qualquer razo. [ . . . 1

[ . . . 1 Os instrumentos que formam a orquestra citado por Margot Dias e relativo aos "msicos do so hoje em geral 5 tipos de marimbas, watimbila, rei Quiteve, que devem pertencer ao povo dos chamados sanje, chilanzane, debiinda, dole e chi-!l1ateve, perto de lVlanica, considerado subgrupo khulu. Antigamente a orquestra completa parecia dos Shona-Karanja", so muito interessantes pelo cuidado posto na descrio dos instrumentos. "Todos estes povos", diz-nos Margot Dias, "e os Chope e parte dos Shangana tm um tipo de

marimba muito mais apelfeioado do que os

povos do Norte, Makonde, Shirima e Lomwe".

Orquestras de Marimbas: "Na Zona Sul de Moambique aparecem os

Chope como sendo os mais afamados msicos, precisamente pelas suas orquestras de marimbas, que se apresentam de uma forma bastante nica na frica Oriental quanto maneira de us- las.

[ . . . 1 H sempre entre os componentes um msico que considerado como o melhO/; que compe e ensaia, mas na exibio no se distingue como Inestre, simplesmente est sentado 110 centro da primeira fila, e ele que toca geralmente os solos da entrada. O entendimento com toda a orquestra d-se de uma maneira invisvel. Mas, faltando este, h vrios outros que o podem substituir sem dificuldade. [ . . . 1

[ . . 1 A msica tocada tem uma forma prpria, uma espcie de 'suite orquestral' com vrios anda-

ter ainda um 6. tipo de marimba, mbingwe, tipo entre dole e debiinda:

Chilanzane

Sanje

Dole

Mbingwe

Debiinda

Chikhulu

Margot Dias, 1986

- soprano; - alto; - tenor; - tenor; - baixo; - contrabaixo".

Refere ainda Frei Joo dos Santos os lamelofones, que, tal como os xilofones, designa por ambira, sendo de sublinhar a apreciao que faz da msica e dos msicos.

Um instrumento de branda e suave msica, em Moambique:

"Outro instrumento mLsico tem estes cafi'es, quasi como este que tenllOdito, mas todo deferroa que tambm chamam ambira, o qualem logardos cabaos tem umas vergas de ferro, espalmadas, e delgadas, de comprimento de um palmo, temperadas 110 fogo de tal maneira, que cada uma tem sua voz diJferen.te. Estas velgas so nove smente, e todas esto postas em car-

Marimba de Cafre in Gabinelto Armerico de Filippo Bonanni. Roma, 1723.

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reira, e chegadas umas s outras, pregadas com as pontas em um pau, como em cavalete de viola, e d'ali se vo dobrando sobre um vo que tem o mesmo pau ao modo de uma escudeI/a, sobre o qual ficam as outras pontas no m: Este, tangem os cafres, tocando-lhe n'estas pontas que tem no m; com as unhas dos dedo pollegares, que para isso trazem crescidas e compridas; e to ligeiramente as tocam, como faz um bom tangedor de tecla em um cravo. De modo que sacudindo-se os ferros e dando as pancadas em vo sobre a bocca da escudeI/a ao modo de berimbau, fazem todos juntos uma harmonia de branda e suave mlsica de todas as vozes mui concertadas. Este instrumento m uito mais mlsico que o outro dos cabaos, mas no soa tanto e tange-se ordinariamente na casa onde est o rei, porque mais brando e faz mui pouco estrondo".

Joo dos Santos, 1586

o incio do trfico de escravos da frica Negra, atravs do deserto do Sara, para o mundo mediterrnico, comea, segundo Inikori, a ser quantitativamente significativo no sculo IX, s vindo a declinar no sculo XVI , devido abertura de novas rotas comerciais pelos navegadores portugueses e espanhis no sculo 'V. Utilizados principalmente em servios domsticos nas casas ricas das cidades mediterrnicas, eram tambm procurados para combaterem nos seus exrcitos. H ainda a notcia de terem trabalhado como agricultores e mineiros no sul do Iraque, em finais do sculo IX. O Sul da Europa beneficiou at ao sculo XV do trfico transahariano.

Com a descoberta e explorao da costa ocidental africana, iniciada pelos portugueses, comea o trfico de escravos no Atlntico, que at meados do sculo XIX levou para fora de frica um nmero estimado por Curtin em cerca de dez milhes e que Inikori corrige para 1 4 milhes, sem contar com as perdas d e vidas durante a travessia do Atlntico. Estimando-se, segundo este autor, em cerca de oito milhes o

trfico muulmano transahariano, de 850 a 1 890, a frica ao sul do Sahara perdeu nestes dez sculos cerca de 25 milhes de pessoas, sem contar com todos os que morreram ao defenderem a sua condio de seres livres. Portugueses, ingleses, espanhis, holandeses, franceses, dinamarqueses e americanos basearam, diz-nos Antnio Carreira, nesses enormes contingentes de escravos, a explorao e colonizao de extensos territrios, com especial destaque para a Amrica do Sul e as Antilhas.

A cultura africana, diz-nos Pierre Vergel', atravessou o Atlntico nas condies mais penosas que possvel imaginar, levada por pessoas reduzidas escravido e transportadas fora das suas terras, sem esperana de regresso. Como foi possvel resistir a tal situao sem perder totalmente a sua identidade, cultura e religio?

A primeira remessa de escravos africanos de que se tem notcia certa, diz-nos Oneyda Alvarenga, chegou aos engenhos da capitania de S. Vicente (hoje Estado de S. Paulo) em 1538, embora Arthur Ramos refira que em 153 1 , Martim Afonso encontrou na Bal1ia uma frota que se julga estivesse empenhada no transporte de escravos.

Antnio Carreira sintetiza em "Notas sobre o trfico de escravos" os motivos que levaram sua importao:

'fi populao autctone do Novo Mundo, alm de escassa e dispersa, era rebelde ao trabalho disciplinado; internava-se na mata inacessvel e rebelava-se contra os invasores, alm disso, no se lhe reconheci aptido para as tarefas exigidas pelos europeus. Propagou-se, ento, toda uma teoria de que no era pecado, antes necessria e benfica, a sujeio do africano escravido at porque ele possua especiais qualidades e tambm robustez para trabalhos rduos. Desde que baptizado e integrado no seio da Igreja, no havia mal nenhum em fazer dele escravo; podia desse modo conquistar a redeno!"

No sculo XVI , era a costa da Guin a principal fornecedora, alargando-se progressiva-

mente ao Congo, Angola e Moambique. Nos sculos XVIII e XIX, diz-nos Pierson, atingiu os seus valores mximos, devido descoberta de diamantes e de ouro e ao desenvolvimento da cultura do caf em S. Paulo. Nunca se saber ao certo quantos escravos foram levados para o Brasil, que Curtin estima em 3 ,647 milhes e Arthur Santos em 5 milhes.

Oneyda Alvarenga diz-nos que "durante o seu longo cativeiro, os seus cantos e danas foram pra

ticamente a nica diverso que lhes era permitida;

com eles os escravos preenchiam os seus raros

cios, comemoravam os dias de festa, quase todos

do calendrio catlico, e tomavam menos rduo o

seu trabalho realizado ao som de cnticos".

verdadeiro significado era desconhecido dos seus

amos, eram danas rituais trazidas de frica e

dedicadas aos seus prprios deuses".

Os africanos tiveram fora suficiente para refazer a sua msica e instrumentos musicais, apesar das diferentes culturas de que provinham, miscigenando-as com os costumes e tradies dos amerndios e dos colonos europeus. Os contactos com frica mantiveram-se ao longo de todo o perodo esclavagista e mesmo depois, especialmente com a costa ocidental, atravs das carreiras regulares entre a Bahia e Lagos, na Nigria, que se mantm at 1 905.

Capoeira Pierre Verger ajuda-nos a compreender [ o o . ] "Em Angola, as tradies da preparao para

melhor o que se passava: "Nas festas catlicas, os a guerra tm sido referenciadas desde os primeiros escravos eram encorajados a danar e a celebrar tempos do contacto com os portugueses. Cavazzi sua maneira, fazendo soar os tambores. Os brancos imaginavam que eles danavam em

homenagem Virgem Maria e aos Santos. Na realidade a Virgem e os Santos era apenas uma

fachada. As canes e danas dos escravos, cujo

(1687) descreveu e desenhou instrumentos musicais usados em danas guerreiras no actual territrio do noroeste de Angola. [ . . . ]

A capoeira foi difundida por angolanos no Brasil, nas plantaes da Baa, durante os sculo XVIII e XIX,

Escravos africanos danando ao som de tambores e instrumentos de cordas. Zacharias Wagener (1614-1668), Thier Buch, fI. 105. Dresden, Kupferstich-Kabinett.

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Na Ilha da Madeira a braguinha generalizou-se tanto como instrumento citadino, como instrumento popular tocado por camponeses ou ((vilos. Gravura do sculo XIX. Coleco particular.

como preparao para uma possvel luta de guerrilha. Eles reuniam-se nas plantaes, muitas vezes durante a noite, para praticar vrias posies e tcnicas de ataque e defesa, usualmente sem armas, mas por vezes com a utilizao de facas: o que mais tarde, na tenninologia da Capoeira se chamaram 'golpes: Os encontros eram acompanhados musicalmente por um tambor capaz de transmitir mensagens, e portanto de dirigir e controlar os movimentos dos lutadores.

[ . . . ) Quando os Brancos proprietrios das plantaes se aproximavam, vindos da sua 'casa grande; os Negros interrompiam o seu. treino e modificavamno u.m pouco de modo a parecer uma dana, a inofensiva 'brincar de Angola: Geralmente um sinal dado pelo tambO/; avisava os participantes da aproximao do homem branco" . . .

Gerhard Kubik, 1979

Em meados do sculo XV; a populao portuguesa comea a registar um saldo demogrfico positivo, contrariando o decrscimo populacional que se verificou a partir de 1 348 com a Peste Negra, de que Oliveira Marques nos diz ter dizimado "talvez um tero ou mais da totalidade da populao" e a que se seguiram outras pestes, como a de 1361 , que "dizimaram e enfraqu.eceram a resistncia de vrias geraes".

A mobilidade de populaes durante este perodo, consequncia imediata da crise que se instalara na sociedade portuguesa e que a Peste Negra apenas ajudou a revelar, vai alterar significativamente a distribuio demogrfica que se tinha mantido quase sem alteraes durante os quatro sculos que se seguiram Reconquista.

O crescimento da populao a partir de 1 450, que se manter at ao final do sculo XVI, acompanhado por migraes internas do campo para a cidade e da montanha para a plancie.

A msica e os instrumentos populares resultantes das profundas modificaes que o pais vive, e que Gil Vicente to bem refere no Triunfo do Inver-

no, lamentando o declnio da gaita de foles e do pandeiro nas terras ocidentais, onde "j no h hi gaita nem gaiteiro", permite-nos concluir que as particularidades das vrias regies estavam definidas no que de essencial as viria caracterizar e que Ernesto Veiga de Oliveira nos descreve no seu panorama (actual) msico-instrumental portugus:

"Por toda a faixa ocidental do Pas em geral, do Minho Estremadura, limitada a nascente pela barreira serrana central, alm dos raros e espordicos exemplos de msica arcaica e austera, canes de trabalho, corais solenes e mais gneros similares, que so apenas vocais, encontramos ftmdamentalmente, nas formas musicais populares mais correntes e caractersticas - canes coreogrficas e sentimentais, desgarradas e desafios, etc. , - os cordofones, nas suas mltiplas categorias, para a melodia e o acompanhamento harmnico, as mais das vezes juntamen te com a voz e com tambores percutivos.

Nas terras pastoris do Leste, em Trs-as-Montes e nas Beiras interiores, o panorama nusico-instru.mental totalmente diverso do que ocorre no Ocidente, e apresenta caractersticas especiais, com marcada incidncia dos tipos arcaicos.

A parte instrumental, na msica cerimonial e na msica ldica, aparece, quando existe, a calgo ftmdamentalmente das vetustas espcies do ciclo pastorial: em Trs-as-Montes, a gaita-de-foles e o pandeiro, nas Beiras interiores, o adufe - que por toda a parte mostra a peculiaridade de ser um instrumento exclusivamente feminino -, exprimindo tambm, pelo seu. lado, o carcter da rea. Estes instrumentos, ali, aparecem ainda hoje ligados a arcasmos que se relacionam com a sua estrutura, na litlllgia, na msica cerimonial, na msica profana e na msica ldica.

No Baixo Alentejo, a musica instrumental praticamente inexisten te e oseu significado oftlscado pelo relevo e a beleza da sua forma caracterstica - os corais polifnicos e un.icamente vocais.

Notamos, margem dessa forma essencial, nas terras alm-Guadiana, o tamboril e a flauta, apenas com ftmes cerimon ia is, e o pandeiro meramente fes-

tivo, e pouco relevante, a despeito de uma relativa frequncia em certas partes da Provncia.

Contrariamente ao que sucede nas terras ocidentais, os cordofones, por toda a rea, so escassos e menos representativos das formas originais correntes".

A colonizao da Madeira, na primeira metade do sculo xv, o ponto de partida para a emigrao portuguesa, que ser uma das constantes da histria de Portugal, e que Joel Serro nos diz ser um factor importante da sua estrutura econmica e social.

Os emigrantes e colonos portugueses recriaram, nas novas terras, as suas m,mifestaes culturais, servidas, quando era o caso, por instrumentos musicais, que conservam at aos nossos dias caractersticas que nos permitem estabelecer, por vezes, a sua origem regional em Portugal.

O cavaquinho foi, juntamente com a viola, o instrumento favorito das rusgas e das ocasies de carcter ldico e festivo das romarias minhotas. Surge ainda por todo o pas, especialmente em Lisboa e no Algarve, como instrumento urbano, burgus, tocado de ponteado, geralmente em conjuntos instrumentais, as tunas.

Parecem ter comeado muito cedo as suas viagens nas mos de emigrantes e colonos, tendo deixado marcas duradouras em Cabo Verde e no Brasil, onde a sua difuso , como nos diz Jorge Dias, referenciada por vrios autores brasileiros, nos conjuntos regionais, no choro, no samba, nos bailes pastoris, na chegana de marujos, no bumba-meu-boi, no cateret, etc., notando ainda a sua influncia na msica erudita brasileira.

Na ilha da Madeira, o cavaquinho, designado localmente por braguinha, conhece uma utilizao generalizada, por um lado como instrumento popular de camponeses ou "vilos", por outro como instrumento citadino, tocado de ponteado em conjuntos de que fazia parte a alta sociedade funchalense. Ser da ilha da Madeira que a braguinha viajar para o Hawai.

Ernesto Veiga de Oliveira: "[ J o cavaquinho ou braguinlw,foi introduzi

do em Hawai por um madeirense de nome Joo Fernandes, nascido na Madeira em 1854, e quefoi da sua i lha para Honolulu no barco vela 'Ravenscrag' num contingente de emigrantes - 419 pessoas, incluindo crianas -, com destino s plantaes de aca/; numa viagem pela rota do cabo Horn que demorou quatro meses e vinte e dois dias. Entre esses emigrantes vinham cinco homens que ficaram ligados histria da introduo do cavaquinho em Hawai: dois bons tocadores, o mencionado Joo Fernandes (que tocava tambm rajo e viola) eJos Lus Correia; e trs construtores, Manuel Nunes, Augusto Dias e Jos do Esprito Santo.

O 'Ravenscrag' chega a Honolulu a 23 de Agosto de 1 8 79, e Joo Fernandes (segundo um relato feito revista Paradise of the Pacific, de Janeiro de 1 922), ao desembarCaI; trazia na mo uma braguinlw, pertencente a outro emigrante tambm passageiro do 'Ravenscrag; Joo Soares da Silva, que porm no sabia tocar e o emprestara a Joo Fernandes para que este entretivesse os demais companheiros na longa viagem at Hawai. Os hawaianos, quando ouviram Joo Fernandes tocar o pequeno instrumento, ficaram encantados, e deram - lhe logo o nome de 'ukulele' que significa 'pulga saltadora: figurando o modo peculiar como tocado. Depois de os recm-chegados estarem instalados, todos os naturais queriam que Joo Fernandes tocasse, o que ele fazia gostosamente - em danas, festas, serenatas, etc., tendo depois formado um conjunto com Augusto Dias e Joo Lus Correia. Tocou assim para o rei Kalakaua, em especial na festa do seu aniversrio, para a rainha Emma e a rainha Lilinokalani, no palcio de I1akla e no pavilho de Vero, de Iolani, que era um centro de m sica, dana e cultura.

O 'u kulele' tornou-se extremamen te popular em Honolulu. e Manuel Nunes, na fbrica e loja de mveis que abrira na King Street, passou a construir esses instrumentos, que no sabia tOCaI; mas que

A braguinha foi introduzida no Hawai por um emigrante madeirense, no ltimo quartel do sculo XIX, tendo a recebido o nome de ukelelell (