os fundamentos racionais e sociológicos da música

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    OS FUNDAMENTOS RACIONAIS

    E SOCIOLGICOS DA MSICA

    MAXWEBER

    Traduo, Introduo e Notas

    Leopoldo Waizbort

    j \. Prefcio Gabriel Cohn

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    Copyright 11)95 by Edllsp - Editorn dn Universidade de So Paulo

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  • SUMRIO

    Prefcio: Como um Hobby ajuda a Entender um Grande Tema ..................... 9 .,'

    .> Nota ................................................................................................................. 21 Introduo ........ ... ................... ............. ........ ....................... .......... ............ ........ 23 Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica ................................... 53 Bibliografia ....................................................................... .......... ...... ... ........... 151

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    PREFCIO

    COMO UM HOBBY AJUDA A ENTENDER UM GRANDE TEMA

    Max Weber jamais ocultou seu gosto pela msica. A julgar pelo relato de um antigo discpulo seu, Paul Honnigsheim, houve at momentos em que os numerosos colegas e amigos que freqentavam sua casa nas tardes domin-gueiras reservadas para isso gostariam, no ntimo, que ele refreasse um pouco seu entusiasmo pelo tema. Nessas ocasies ele se sentava ao piano e punha-se a demonstrar longamente como a msica que se desenvolveu no ambiente histrico europeu diferente de qualquer outra, e como isso se ajusta a certas tendncias centrais da modernidade europia, Mero hobby de fim de semana, tero talvez pensado alguns,'Mas se tratava de muito mais do que isso. Tanto assim que ele no se limitou s demonstraes ocasionais, mas acabou dando forma escrita (no texto reproduzido neste volume) aos resultados de seus estudos sobre as relaes entre as formas assumidas pela msica ocidental e aquele processo que designava por racionalizao, no qual via o trao espe-cfico da modernidade, Na realidade o gosto de Weber pela msica penetra muito mais fundo na sua obra do que esse texto, visto isoladamente. d a entender. As suas grandes anlises histrico-sociolgicas so literalmente concebidas como composies, em que os temas e os conceitos correspondentes vo-se desenvolvendo e ganhando contedo ao longo da obra. E as relaes que ele busca estabelecer entre as diferentes linhas de ao significativa que se diferenciam no mundo moderno dificilmente encontrariam uma analogia melhor do que na descrio que faz do contraponto ao falar da construo musical polifnica: "Vrias vozes. tratadas entre si com os mesmos direitos, transcorrem

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    uma ao lado da outra e so ligadas harmonicamente umas s outras, de tal modo que cada progresso de uma tem em considerao as outras e, por isso, est submetida a regras determinadas".

    Como se v, o texto que aqui se publica no mera pea de circunstncia, uma espcie de curiosidade na vasta produo weberiana. Trata-se do resultado de estudos srios e prolongados, que incidem sobre o ponto mais central das preocupaes que animam a sua obra. verdade que durante dcadas esse texto ficou escondido nas estantes, mesmo quando formava parte, como uma espcie de apndice, da edio de Economia e Sociedade. Exaustos pelo esforo de enfrentar aquela cordilheira, poucos leitores aventuravam-se por mais esse penhasco. E no era para menos. O contato com os primeiros pargrafos assustador para quem no estiver provido de conhecimentos e coragem para enfrentar as mais ridas consideraes tcnicas sobre a linguagem musical. verdade que no se tratava de obra pronta para publicao; mas, mesmo para um autor to pouco preocupado com essas coisas como Weber, o incio desse texto merece uma posio parte em matria de experincia de leitura pouco convidativa.

    Ento melhor nem tentar, dir o leitor. Mas claro que no bem assim, por dois motivos: primeiro, o texto no assim rido de ponta a ponta, e rapidamente se vai tornando fascinante, na sua reconstruo do desenvolvimento da msica ocidental, comparada com a de outros contextos culturais; segundo, porque o leitor no deixado sozinho frente aos tecnicismos musicais que, mesmo nas suas partes mais acessveis, eriam o texto. Para enfrent-los, ele conta com o apoio das notas que Leopoldo Waizbort acrescentou sua traduo; isso sem falar da excelente introduo, que tambm preparou. No me cabe aqui comentar o trabalho de Leopoldo, alm de prestar meu testemunho (como se a simples leitura da introduo no o evidenciasse) de que tanto os problemas da anlise sociolgica da msica a partir da contribuio weberiana quanto a posio de Weber e o ambiente intelectual em que atuou lhe so familiares - no fosse ele o autor de uma anlise da sociologia da msica de Adorno e no estivesse agora ocupado com a obra do grande contemporneo de Weber, Georg Simmel.

    Pouco ou nada tendo a acrescentar ao tratamento dado neste volume anlise weberiana, nem s questes pontuais examinadas pelo prprio Weber no seu texto, tentarei uma fuga para a frente: farei algumas observaes sobre o tema de fundo tratado por Weber neste texto e, de modo geral, nas suas anlises comparativas, que tm como referncia a especificidade do desenvolvimento histrico e das configuraes sociolgicas do Ocidente. Trata-se do tema da racionalizao. A questo, fcil de formular, mas muito difcil de responder, : de que fala Weber, afinal, quando se refere ao processo de racionalizao?

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    COMO UM HOBBY AJUDA A ENTENDER UM GRANDE TEMA

    A questo difcil porque, tanto aqui como em outros pontos centrais do seu esquema analtico, Weber introduz um conceito decisivo mas no lhe atribui uma acepo geral, que de algum modo se aproxime de uma definio. Isso no surpreende num autor sempre mais preocupado em caracterizar o seu objeto do que em defini-lo. Na realidade, o seu esquema analtico implica a gradativa construo dos conceitos ao longo da anlise. No h, a rigor, definies prvias. Em conseqncia, as referncias preliminares a que ele forado a recorrer ganham, sob esse aspecto, um tom insatisfatrio. Primeiro, porque tendem a enfatizar a multiplicidade de significados que o termo pode assumir, ao invs de singularizar algum deles (o que implica tomar esses significados como equivalentes em princpio, sendo uma questo emprica a qual deles caber o primeiro plano em cada caso); segundo, porque se apresentam, na exposio, como se algum significado unvoco do conceito em questo estivesse pressuposto (algo impossvel nesse esquema analtico, em que os termos tericos comparecem "vazios" no primeiro momento, para s irem ganhando contedos ao longo das anlises a que se aplicam, sem jamais se tornarem definitivamente "plenos" de significados).

    por isso que em passagens decisivas dos textos dedicados apresentao dos seus conceitos bsicos (por exemplo, na introduo a Economia e Sociedade) Weber segue um caminho muito peculiar. Com freqncia um termo no objeto de uma definio genrica, mas a nfase incide sobre um contedo singular que o caracteriza, em contraste com outros igualmente possveis; sobre o qu o diferencia e no sobre o qu o aproxima de uma classe ou conjunto. Assim, se quisermos saber o que Weber entende por "sentido", seremos informados de que "sentido o sentido subjetivamente visado"; o que parece um argumento da mais primria circularidade. Entretanto, o que interessa a Weber, neste ponto, introduzir uma restrio decisiva no uso sociolgico do termo, ao reserv-lo ao plano "subjetivo" e distingui-lo de concepes que o tenham por "objetivo" ou "correto". Esse procedimento condena frustrao quem espera uma definio cabal do termo em questo. S por vias indiretas possvel reconstruir o que pode ser decisivo para Weber quando fala, por exemplo, de "sentido" (ou de "racionalizao").

    Diante disso, h quem considere um contra-senso exigir de Weber enunciados abrangentes sobre os conceitos que designam pontos centrais de suas anlises. Com relao ao nosso tema, por exemplo, o socilogo Donald Levine sustenta que "enunciados amplos a respeito da 'racionalidade' tout court so insuportveis". Devemos ficar, portanto, na dependncia das anlises pontuais, para aos poucos compormos os conceitos que as orientam? Em grande medida, 'sim, mas no admissvel abandonar a questo nesse estado. impossvel renunciar inteiramente aos enunciados abrangentes, ainda que explicitamente provisrios, sob pena de

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    prejudicar o entendimento dos textos de Weber (e dos problemas de que tratam) por efeito de pr-conceitos intuitivos, subtrados aos controles metdicos da cincia.

    O ponto de partida, claro, est em se lembrar que a racionalizao de que se fala refere-se ao, Vale dizer, pode-se falar de uma religio racionalizada ou de uma msica racionalizada, mas com uma condio: de que isso signifique que essas dimenses da vida social, em determinadas condies do seu desenvolvimento, suscitam aes sociais racionalmente orientadas. Essa ltima formulao importante: no se pode confundir o processo de racionalizao com a ao racional. A racionalizao oferece as condies em que a ao racional tem como exercer-se e expandir-se.

    Mas isso s repe a questo: que vem a ser uma ao "racionalmente orientada"? Ser aquela em que melhor se articulam os meios para atingir determinado fim? Bem examinada, entretanto, essa formulao, talvez a mais geral de todas que se buscam aplicar ao termo, revela-se inadequada, porque vai alm do seu alvo. A adequao dos meios aos fins uma caracterstica de qualquer ao naquilo que importa anlise, que a possibilidade de que ela se repita, dadas as mesmas condies. No se restringe, portanto, a essa modalidade particular de ao que a ao racional. Para ir adiante teremos que considerar a concepo de Weber no tocante racionalizao em escala macro - ou seja, na escala que envolve o conjunto de modalidades de ao social num especfico contexto social. Nesse nvel o enfoque de Weber histrico-comparativo: diz respeito a modalidades de aes sociais examinadas numa escala que permita distinguir, de sociedade para sociedade e ao longo do tempo, o modo como se desenvolvem. A possibilidade mesma de distinguir entre essas modalidades de ao (ou, de modo mais abrangente, entre as dimenses da vida social nas quais as diferentes modalidades de ao se manifestam, como o direito, a economia, a religio e a arte) associada, por Weber, a uma caracterstica central do mundo moderno: que s nele essas distintas dimenses (mais exatamente: linhas de ao) se diferenciam efetivamente.

    Este ponto decisivo. Ele assinala que, antes de podermos falar da racionalizao como uma espcie de processo de difuso da racionalidade da ao no interior de um mbito crescente de dimenses da vida social (o que pressuporia o estabelecimento de uma homogeneidade entre elas) a sua condio mesma a heterogeneidade dessas dimenses. Ou seja, o que efetivamente abre o caminho para a constituio de um mundo social marcado em escala crescente pelas modalidades racionais de ao (tal como ocorre na sua expresso mais cabal no Ocidente) a passagem (que efetivamente se d ao longo do tempo) de um mundo social "encantado" para o mundo social "desencantado" da modernidade. Naquele, a ao orientada pela magia se mistura orientada pelo saber tcnico, a arte se mescla

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    religio e esta cincia, e assim por diante, numa situao em que as mais diversas orientaes se apresentam simu1taneamente para a ao, sem que haja como nem por que se distinguir claramente entre elas. Neste, a situao inteiramente diversa: orientaes da ao que antes integravam o mesmo complexo significativo e povoavam o universo dos agentes com toda sorte de referncias, passam a se distinguir com crescente nitidez.

    Esse processo de diferenciao implica a separao das diversas modalidades de encadeamentos significativos da ao (artstica, religiosa e assim por diante) sobre as quais pode incidir a racionalizao. Isso porque a racionalizao uma caraterstica de aes em processo e no das aes j realizadas; tem a ver, precisamente, com esse encadeamento dos componentes do processo. Naquilo que nos interessa, isso significa que o mundo moderno, racionalizado, caracteriza-se pela separao entre linhas de ao que, antes, no mundo ainda no "desencantado", andavam juntas, confundiam-se tanto nos fins perseguidos pelas aes quanto nos valores que os orientavam. Em conseqncia, a moderna distino entre significados correspondentes a distintas linhas de ao suscita um novo problema. Refere-se ele relao entre componentes de distintas linhas de ao que antes se entrelaavam. E isso num duplo registro: por um lado, o das relaes no interior de cada linha (e a a relao bsica , precisamente, a racionalizao), e, por outro, o das relaes entre linhas diferentes (e nesse caso as relaes sero de outras ordens, mas a racionalizao sempre ser problemtica).

    Isso significa que a expresso "mundo racionalizado" pode ser enganosa, sempre que deixamos de considerar que ela se refere a um caso limite, a uma construo analtica, que s se traduz na realidade emprica, no mximo, como uma tendncia. No o mundo que se racionaliza como um todo, mas as distintas linhas de ao, cada qual ao seu modo. Ao se dizer que cada linha de ao se racionaliza ao seu modo est-se afirmando algo central em Weber: que h uma lgica intrnseca que comanda o encadeamento dos significados em cada uma dessas linhas. H, nos termos weberianos, uma "legalidade prpria" a cada qual. essa legalidade prpria que preside a distino entre as diversas linhas de ao, ao conferir aos significados que nelas ocorrem os contedos que as tornam, por exemplo, jurdicas e no econmicas, religiosas e no polticas. Claro que permanece a questo subseqente, de como se podem dar as relaes entre a ao legal e a econmica, ou entre a ao religiosa e a poltica, e assim por diante.

    A racionalizao (ou seja, o processo que enseja a prevalncia crescente da conduo racional da ao) apresenta-se, portanto, em dois nveis. O primeiro de carter histrico-estrutural, e diz respeito diferenciao entre linhas de ao, que caracteriza a modernidade. Esse primeiro nvel oferece a condio para o segundo,

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    que remete ao interior de cada linha de ao, no plano da constituio da sua lgica intrnseca, da "legalidade prpria" a cada qual. No primeiro nvel o problema diz respeito s relaes entre significados de aes sociais que ocorrem em linhas distintas. No segundo, concerne modalidade de encademento dos significados no interior da mesma linha de ao.

    Meu primeiro argumento a respeito disso o seguinte. A questo da racionalizao aplica-se no nvel interno s linhas de ao: com referncia aos encadeamentos de significados que vale a distino, central em Weber, entre o racional e o no-racional. No nvel das relaes externas, entre linhas de ao, o par analtico pertinente, tambm fundamental em Weber, mas que no se sobrepe ao anterior, entre afinidades ou tenses nas relaes entre significados de aes.

    A diferenciao das linhas de ao condio para o desenvolvimento de modalidades racionais de ao no interior de cada qual. No entanto - e aqui vai o segundo passo do meu argumento - a ateno excessiva a essa diferenciao (que da ordem das estruturas mais do que das aes) pode conduzir a uma super-valorizao da dimenso "macrossociolgica" na anlise weberiana, privilegiando o nvel das grandes formaes histricas e das articulaes entre dimenses significativas da ao, entendidas como componentes dessas formaes. Em vertentes distintas, autores como Jrgen Habermas, na sua reconstruo de Weber (paradoxalmente, no contexto de uma teoria da ao) ou Wolfgang Schluchter, que examina a racionalizao pelo prisma da evoluo em grande escala de sociedades e enfatiza tanto a racionalidade das "ordenaes da vida" (equivalentes s dimenses da vida social referidas antes) quanto a das aes, alm do pioneiro Talcott Parsons, seguem as pistas oferecidas por Weber nesse sentido. Mas ainda h espao de sobra para uma concepo mais "ortodoxa", que enfatize em Weber o problema das relaes entre significados de aes no plano dos agentes individuais.

    Seja qual for a perspectiva de exame do problema da racionalizao, entretanto, o primeiro passo consiste em dar conta da questo da multiplicidade, num duplo registro: o das mltiplas reas de aplicao do termo e o das suas mltiplas acepes. Quanto ao primeiro ponto, Weber inequvoco. Na introduo ao seu estudo das relaes entre a tica protestante e o esprito do capitalismo, aps citar reas em que a racionalizao pode dar-se (desde a contemplao mstica at a lei e a administrao, passando pela vida econmica, a tcnica e outras) ele afirma: "Racionalizaes do mais variado carter existiram em vrios domnios da vida em todas as civilizaes". Por aqui no vamos longe. O mximo que podemos fazer sublinhar a necessidade de se especificarem, em cada caso, a rea envolvida, a perspectiva da qual se d a racionalizao, os fins perseguidos. Quanto multiplicidade de acepes, uma comentarista (Rogers Brubaker, em livro citado

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    COMO UM HOBBY AJUDA A ENTENDER UM GRANDE TEMA

    na introduo de Leopoldo Waizbort) oferece um levantamento de dezesseis delas, s no tocante ao capitalismo moderno e ao protestantismo asctico: "deliberado, sistemtico, calculvel, impessoal, instrumental, exato, quantitativo, regido por regras, predizvel, metdico, proposital, sbrio, meticuloso, eficaz, inteligvel e consistente". Claro que um conceito no pode ser to proteiforme; algum ncleo duro de significado ele certamente ter.

    Examinemos uma passagem de Economia e Sociedade (na edio brasileira da UnB, vol. I, p. 363 - os grifos so de Weber):

    o desenvolvimento rumo sistematizao e racionalizao da apropriao de bens de salvao religiosos dirigia-se precisamente eliminao dessa contradio entre o habitus religioso cotidiano c o extracotidiano. Da plenitude infinita daqueles estados ntimos que o mtodo da salvao pode produzir destacavam-se afinal alguns poucos como verdadeiramente centrais, porque no apenas representavam uma disposio corporal-anmica extracotidiana mas tambm pareciam compreender em si a posse segura e contnua do bem religioso espe-cfico: a certeza da graa [ ... ]. A certeza da graa, tenha ela um matiz mais mstico ou mais ativo eticamente [ ... ] significa em todo caso a posse consciente de um fundamento homog-neo duradouro da conduo da vida. No interesse da conscientizao da posse religiosa a diminuio planejada das funes corporais toma o lugar da orgia, por um lado, c dos meios de mortificao irracionais, por outro [ ... ]. Alm disso, o treino dos processos anmicos e do pensamento em direo concentrao sistemtica da alma no religiosamente essencial [ ... ]. Mas, no interesse da duraiio e regularidade do habitus religioso, a racionalizao do mto-do da salvao acabou por ir alm disso e levou, aparentemente em sentido contrrio, a uma limitao planejada dos exerccios aos meios que garantiam a continuidade do habitus reli-gioso, ou seja, eliminao de todos os meios higienicamente irracionais [ ... ]. E assim como, por isso, o cultivo de um herosmo guerreiro disciplinado entre os helenos chegou a transfor-mar o xtase herico no equilbrio constante da sophrosyne, que tolerava somente as formas de xtase produzidas por meios puramente rtmico-musicais, e tambm nessa atitude - do mesmo modo que o racionalismo confuciano, s que menos rigoroso do que este, que admi-tia apenas a pentatmica - ponderava cuidadosamente o ethos da msica sob o aspecto da sua conformidade "poltica", tambm o mtodo de salvao monacal desenvolveu-se cada vez mais racionalmente, tanto na ndia - at os mtodos do budismo antigo - quanto no Ociden-te - at os mtodos da ordem historicamente mais influente: os jesutas. Nesse processo o mtodo torna-se cada vez mais lima combinao de higiene fsica e psquica com uma regulao igualmente metdica de todo pensar e fazer, segundo a forma e o contedo, no sen-tido do perfeito domnio desperto - que obedece vontade e combate os instintos - dos pro-cessos corporais e anmicos prprios e uma regulamentao sistemtica da vida, subordinada ao fim religioso. O caminho para este fim e os detalhes do contedo do mesmo no so unvocos, e a conseqncia da realizao do mtodo tambm muito instvel.

    Nesse texto, retirado da seo sobre sociologia da religio (a parte da obra weberiana que, na introduo de Leopoldo Waizbort a este volume, apresentada

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    como mais prxima ao seu exame da racionalizao da msica) h algumas indicaes mais precisas do que as do rol de acepes oferecido por Brubaker; alm, claro, da referncia msica. Deixemos de lado o interessante problema das relaes entre sistematizao e racionalizao, suscitado logo na abertura dessa passagem. No que nos interessa mais de perto, essa passagem pode ser lida como a descrio de uma gradativa decantao de significados a partir de um fundo plural e impreciso. E esses significados, portadores do processo de racionalizao em curso, convergem para alguns pontos decisivos: a "posse consciente de um fundamento homogneo duradouro da conduo da vida", um mtodo voltado para o "domnio desperto" de processos vitais, e uma "regu-lamentao sistemtica" da vida. Homogeneidade (e, se quisermos, simpli-ficao) de significados que persistem no tempo (e, portanto, permitem a previso e o clculo), domnio consciente deles, a mobilizao disso para organizar a conduo da vida - alguma coisa comea a tomar forma aqui, para alm do difuso acmulo de acepes e reas de aplicao do conceito. Alguns pontos que aparentemente mereceriam nfase comparecem discretamente, ou nada. Onde est a eficcia, como marca da racionalidade? No tem, de fato, porque estar presente, pois a eficcia no marca distintiva da racionalidade: todas as modalidades de ao a perseguem, mas nem sempre da maneira metdica que Weber associaria racionalizao. J a referncia ao domnio consciente vai mais fundo e nos aproxima do ncleo do problema.

    Numa passagem do texto deste volume, sobre a racionalizao da msica, dedicada anlise do papel desempenhado pelo desenvolvimento dos instru-mentos musicais nesse processo, Weber escreve: "Pois, de fato, apenas atravs do concurso da explicitao [Verdeutlichung] instrumental dos intervalos se explica o fato de que a maioria dominante dos intervalos [ ... ] torne-se sempre racional". O termo decisivo, aqui, "explicitao". Refere-se ela nitidez que os significados de uma linha de ao assumem em condies histricas e sociais especficas que cabe pesquisa descobrir. Nessas condies os significados tornam-se claros e distintos. Essencial, aqui, no perder de vista que neste exato ponto que um processo que poderia parecer meramente da ordem da diferenciao estrutural se apresenta no seu trao mais intrnseco, que o de ser significativo, de fazer sentido para os agentes. Por detrs de toda o tema da diferenciao das linhas de ao est aquilo que mais importa para Weber: ir alm do dado estrutural da mera diferenciao para chegar exata contrapartida disso no campo dos significados, que a explicitao, a nitidez. E, ainda mais do que a sociologia da religio, a sociologia da msica que lhe oferece elementos para alcanar a explicitao. Uma razo para isso consiste em que a msica (europia, sobretudo) envolve processos

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    COMO UM HOBBY AJUDA A ENTENDER UM GRANDE TEMA

    significativos que no se esgotam no encadeamento "horizontal" linear dos seus elementos, mas envolvem, intrinsecamente, uma dimenso "vertical", da articulao dos intervalos sonoros. Nesse sentido o ponto limite da racionalizao bem-sucedida, at porque chega to prximo quanto possvel de uma linha de ao em que fosse possvel racionalizar simultaneamente e de modo inequvoco as relaes significativas internas a ela e as que lhe so externas (o truque, claro, est em que, na msica, os significados que se articulam no eixo "vertical" tambm fazem parte dela). A msica oferece, portanto, algo como uma expresso prototpica desse processo decisivo.

    O argumento, assim, o de que no cerne do processo de diferenciao que imprime sua marca ao mundo moderno est um dado que, para alm do mero aumento de complexidade estrutural, tem carter significativo. Esse dado corresponde exatamente quilo que, na passagem citada, designado como "explicitao", numa traduo adequada, mas que no capta a riqueza de ressonncias de sentido que o termo alemo Verdeutlichung oferece (uma delas, central para ns, permitiria traduzi-lo por "inteligibilidade"). E aqui chegamos ao meu argumento principal. Sustento que nesse ponto que encontramos a raiz do processo de racionalizao, naquilo que o vincula intrinsecamente diferenciao. A racionalizao o processo que confere significado diferenciao de linhas de ao. ela que abre o caminho para o exerccio da ao racional e enseja a sua crescente e, logo, irreversvel expanso. Nessa perspectiva o tema weberiano do "desencantamento do mundo" pode ser lido como o de um aumento gradativo de nitidez de significados antes mesclados e indistintos. como se o "desencantamento do mundo" fosse uma espcie de depurao dos significados atribudos pelos agentes s suas aes, que seriam despojados de suas mltiplas conotaes de toda ordem, tendendo, no limite, para denotaes unvocas. Essas puras denotaes (para usar o mesmo termo, obviamente no weberiano) constituem os tpicos significados aptos a se oferecerem ao racional.

    Esse entendimento do problema da racionalizao e da ao racional tem a vantagem de, do ponto de vista do esquema analtico weberiano. concentrar a ateno sobre o nvel do agente e da ao. Nesse nvel importam exatamente os significados que orientam a ao e so mobilizados pelo agente. nele, tambm, que se pode identificar o tipo de agente apto a promover essa distin-o significativa: o intelectual, nas suas variadas configuraes histricas. Uma das grandes questes weberianas, relativa diferena entre ao racional orien-tada por fins (racionalidade formal do clculo meios-fins) e a ao racional orientada por valores (racionalidade voltada para a efetivao de um valor) tambm pode ser examinada por esse ngulo. Como se sabe, Weber sustenta o

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  • MAX WEBER

    carter insuperavelmente heterogneo dessas duas orientaes da ao, e retira disso a idia, que tanto lhe vale na anlise do capitalismo (e na sua crtica ao socialismo), de que h, entre ambas, tenses irredutveis. Numa primeira aproximao essa idia ganha corpo numa posio forte, mas insuficiente: a de que uma modalidade de ao que seja racional de uma perspectiva pode ser irracional para outra. O clculo econmico capitalista racional para o em-presrio porque maximiza o seu fim, que o lucro; mas irracional para o partidrio da solidariedade como valor aplicvel ao econmica, no s porque no a maximiza, mas tambm porque no a leva em conta (salvo, talvez, como obstculo). Essa posio relativista permite expor de modo incisivo essa heterogeneidade. Mas a radicalidade da idia envolvida s se manifesta quando consideramos que Weber est afirmando que a ao racional como tal no pode orientar-se simultaneamente pelos resultados procurados e por valores (en-tendendo-se valor como o fundamento ltimo disponvel para o agente como justificativa para a sua ao). A conseqncia mais geral disso a idia de que, embora a ao seja racionalizvel no interior de cada uma dessas esferas (a da racionalidade formal, voltada para a maximizao de um fim qualquer, e a da racionalidade substantiva, amarrada a uma determinada considerao valorativa), no possvel obter-se uma racionalidade abrangente, que envolva, ao mesmo tempo, as aes no interior de cada esfera e as aes entre componentes de ambas. Em suma, o mundo no racionalizvel como um todo. As tenses entre a racionalidade formal e a substanti va so irredutveis. O processo de racio-nalizao d sentido irreversvel separao entre ambas, mas, por isso mesmo, no tem como reuni-las numa racionalidade que volte a integr-las.

    Na perspectiva que estou propondo aqui, isso pode ser formulado em termos bastante precisos: impossvel para o agente manter em foco ntido, simul-taneamente, a ordem significativa dos objetivos de fato da ao e a dos valores. Note-se que a nfase incide sobre o agente. com referncia a ele que podemos pensar esse limite da expanso da racionalidade em termos de uma espcie de "princpio da indeterminao" intrnseco teoria da ao social de Weber: quando o foco da orientao da ao incide sobre o mundo dos dados de fato, o mundo das referncias valorativas perde nitidez, furta-se a consideraes racionalizadoras; e reci-procamente. Isso representa um obstculo intransponvel a qualquer processo de racionalizao integral do mundo. Pois o limite que assim se impe racionalidade no diz respeito a algo intrnseco aos objetos de que trata a ao, mas s prprias atitudes dos agentes diante dos significados desses objetos, no curso de suas aes.

    Mas fiquemos por aqui. Todo leitor de Weber sabe que o tema da ra-cionalizao percorre a sua obra de ponta a ponta, e acessvel pelos mais variados

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    COMO UM HOBBY AJUDA A ENTENDER UM GRANDE TEMA

    ngulos. Aqui se tratava de sugerir que esse tema no se espalha difusamente pelas anlises weberianas, mas tem um ncleo forte, que est presente precisamente neste texto sobre a msica. Se no bastasse o seu interesse intrnseco, portanto, o texto valeria no que contribui para, pelo ngulo da sociologia da msica, compreender-se melhor Weber.

    GABRIEL COHN

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    NOTA

    Apresenta-se aqui ao leitor o texto de Max Weber (J 864-1920) Os Fun-damentos Racionais e Sociolgicos da Msica, sua principal contribuio no campo da sociologia da arte. A traduo partiu do original "Di e rationalen und soziologischen GrundJagen der Musik", includo como apndice em Wirtschaft Ulld Gesellschaft - Grundriss der verstehende Soziologie (organizado por l. Winckelmann), vol. 2, 4~ ed., Tbingen, l. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1956, pp. 877-928, que j contm as correes textuais do organizador. No tive o intuito de, traduzindo, facilitar o texto, que, como o leitor poder ver, relativamente difcil. Publicado postumamente, talvez o texto se ressinta de uma reviso do autor - pois trata-se, na verdade, de um fragmento, que seria presumivelmente reelaborado -; procurei, tanto quanto possvel, respeitar ao mximo a forma e o contedo do texto weberiano l , A verso proposta foi cotejada com as verses mexicana e norte-americana2, que me ajudaram em passagens duvidosas. O leitor que se ressentir da aridez do texto pode consultar com proveito a traduo norte-americana, que prope uma verso "facilitada", Os colchetes no interior do texto, salvo indicao em contrrio, so de minha responsabilidade. No que diz respeito terminologia

    1. A dificuldade da traduo dos textos de Weber j foi assinalada por H. H. Gcrth e C. Wright MiIIs, "Prefcio" in Max Weber, Ellsa;os de Sociologia, org. e intr. de H. H. Gerth e C. Wright Mills. Rio de Janeiro, Zahar, s.u., pp. 9-1 I.

    2. "Los Fundamentos Racionais y Sociolgicos de la Msica", em apndice a Econom{a y SOcledad, Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1964; T"e Ra(jollallllld Social FOUlldlltjons oI M1Uic, Southern Illinois University Press, 1958.

    2/

  • MAX WEBER

    musical, sempre que possvel procurei seguir a padronizao terminolgica proposta pelo Dicionrio de Termos Musicais de H. de Oliveira Marques, que por sua vez procura seguir o Terminorum Musicae Jlldex Septem Linguis Redactus.

    A traduo foi acrescida de notas, que objetivam clarificar alguns aspectos do texto. Estas notas tm duas origens distintas: notas tomadas da traduo norte-americana e notas confeccionadas para esta edio. Os tradutores norte-americanos enriqueceram o texto de Weber com aproximadamente 170 notas, a maior parte de interesse, e que julguei oportuno reproduzir, sempre assinalando sua origem. Mas, ao mesmo tempo, tomei-as seletivamente, privilegiando as informaes que os tradutores forneciam a respeito de estudos que possam ter sido utilizados por Max Weber na elaborao do ensaio, uma bibliografia que dificilmente seria levantada em nossas bibliotecas. Mas como esta traduo j tem hoje mais de trinta anos, deixei de lado as indicaes que eram feitas a textos posteriores poca da confeco do ensaio de Weber, que s teriam sentido se tivessem sido atualizadas e comp1etadas, o que estaria fora de meu alcance. Em contrapartida, acrescentei outras notas, buscando suprir algumas lacunas que me pareciam dignas de interesse. Mesmo assim, o leitor j deve ser advertido para o fato de que estas notas acrescidas ao texto nada mais so do que rpidas indicaes marginais, que no pretendem de modo algum discutir e debater as afirmaes de Max Weber. Como Weber envereda por caminhos muito amplos e extensos, com uma erudio invejvel, uma anotao crtica exigiria um amplo trabalho de pesquisa. A Introduo desta edio tem por objetivo delinear as linhas bsicas para uma interpretao do fragmento, atravs de sua contextualizao no interior da obra de Weber.

    O trabalho de traduo foi realizado, em perodos esparsos, graas a algumas liberdades que me foram concedidas quando Monitor do Departamento de Sociologia daFFLCH-USP e durante os anos de pesquisa como bolsista de mestrado do CNPq e da FAPESP.

    Adriane Duarte gentilmente transliterou e traduziu os termos e passagens em grego. Jos Carlos Bruni, Maria Helena O. Augusto, Srgio FranaAdorno deAbreu e Antonio Flvio Pierucci estimularam, dos modos mais variados, a realizao da traduo. A Gabriel Cohn cabe um especial agradecimento, pois foi ele quem, j M alguns anos, me forneceu o texto de Weber, e desde ento estimula amigvel e ininterruptamente a realizao deste trabalho.

    LEOPOLDO W AIZIlORT

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    INTRODUO

    Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica, de Max Weber, o texto que funda a sociologia da msica, e sobre bases to assentadas, que de se indagar que conjunto de fatores impediu-a de desenvolver-se de modo mais intenso imediatamente aps sua fundao. Dentre estes fatores, no o menor o fato de que, aps a morte de Max Weber, os leitores de sua obra estivessem muito mais interessados em textos como Economia e Sociedade do que em ensaios autnomos que abriam ainda mais o j extenso leque de preocupaes e interesses de Max Weber. Pois embora o tema da msica no seja estranho sua obra, poucos poderiam imaginar que Weber tinha guardado um texto de tal envergadura especificamente sobre msica. De acordo com Marianne Weber, Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica foi escrito por volta de 1911, em uma poca em que Max Weber ainda estava em Heidelberg, um perodo de sua vida de fervilhante debate intelectual em meio a um crculo de notveisl Ao que parece, o estmulo de Mina Tobler - uma pianista muito prxima a Max Weber e a quem est dedicado o segundo volume dos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religio' - foi marcante

    1. Veja-se: H. H. Gcrth e C. Wright MiIls, "Introduo: O Homem e sua Obra", in Max Wcber, Ensaios de Sociologia, org. e intr. de H. H. Gerth e C. Wright Mills, Rio de Janeiro, Zahar, s.d., p. 35; Arthllf Mitzman, Lo. Jaula de HiaTO: Una Interpretacin HistriCll de Max Weber, Madrid. Alianza, 1976, capo 9; Paul Honigsheim, Max Weber, Buenos Aires, Paids, 1977, paHim; Wolf Lepenies, BefWeen Literature llnd Sciellce: The Rise ofSociology, Cambridgc-Paris. Cambridge University Press-Editions de la Maison des Sciences de I'Homme, 1988, parte 3.

    2. "[. .. ] Mina Tobler, uma pianista sua com quem Max Weber manteve, durante os anos da guerra, uma relao muito pessoal, sem dvida mais que platnica [ ... l". Wolfgang J. Mommsen, Max

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    MAX WEBER

    para organizar e orientar as preocupaes msico-sociolgicas de Weber3 "Max Weber comea ento, sob a influncia de sua amiga, a se interessar pela msica moderna, pela pintura, pela escultura e pela literatura. Ele projeta escrever uma sociologia da arte e escreveu, sob a forma de um trabalho preparatrio, um estudo sobre as bases racionais e sociolgicas da msica"4.

    Como quer que seja, o texto permaneceu indito at 1921, quando foi publicado em Munique (Drei Masken Verlag), com um prefcio de Th. Kroyer5 A partir de ento, foi republicado como apndice de Economia e Sociedade, mantendo-se assim por sucessivas edies (2~ ed., 1924; 4~ ed., 1956; 5~ ed., 1972; desde ento apareceu novamente como brochura autnoma). Embora acessvel, Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica no despertou grande interesse, a julgar pela bibliografia que originou. Mesmo tendo sido traduzido, ao final da dcada de 1950, nos Estados Unidos, o texto continuou margem do co/pus weberiano, e ao que parece falta-lhe at hoje - quando sua importncia j indiscutivelmente reconhecida - uma discusso realmente em profundidade. O mais significativo que, longe de ser um texto estranho s preocupaes de Max Weber, o trabalho de sociologia da msica insere-se de maneira clara e essencial em seus estudos acerca do Racionalismo Ocidental, oferecendo assim um novo enfoque do problema e enriquecendo sobremaneira a discusso

    A preocupao com a arte no foi um tema estranho ao universo no qual Max Weber viveu, e ele mesmo manteve-a sempre prxima aos seus interesses7 Contudo, no interior de sua produo intelectual (ao menOS daquela at agora publicada), o

    Weber llIuL die Dellfsche Po/itik, 2. crw. Aufl., Tiibingcn, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1974, p.459.

    3. Cf. Hans Norbert Fgen, Max Weber, Hamburg, Rowohlt, 1985. p. 99. Na verdade no certo se Weber escreveu o texto em IIcidelbcrg ou em Berlim. onde ele passava o inverno em companhia de sua amiga.

    4.lngrid Gilcher-Holtey. "Max Weber et les femmes". Socits. n. 28, 1990, p. 71. 5. A princpio, como assinalo, a datao do texto como escrito em 1911 bastante plausvel. Mas no

    podemos esquecer que por vezes Marianne Weber confundiu datas, como j foi demonstrado no que se refere a "Cincia como Vocao". Por isso, c at que a pesquisa especializada se pronuncie, a data de 1911 uma referncia aproximada, a ser mais detalhadamente comprovada. Embora no caibam aqui discusses dessa espcie. interessante assinalar que as datas de composio de Os Fundamell-tos Raciollais e Soo/gicos da Msica e das verses iniciais de ECOI/()llIia e Sociedade e da "Zwischenbetrachtung" so relativamente prximas. Especialmente a "Zwischenbetrachtung" e pas-sagens da Sociologia da Religio de Economia e Sociedade apresentam formulaes bastante prxi-mas do texto sobre msica. Desse modo. talvez, mesmo cronologicamente. seja lcito aproxim-los, como se far aqui.

    6. Sobre algumas dessas questes, veja-se o trabalho exemplar de Friedrich II. Tcnbruck, "The Problem of Thematie Unity in the Works of Max Weber", The Brirish Jrmmal ofSociology, vol. 31 (3): 313-351, Septernber 1980, cuja verso original, "Das Werk Max Webers" apareceu no Kiilner Zeitschrift Ir Sozjologie llnd Sozjalpsydwlogie, 27: 663-702. 1975.

    7. Cf. Paul Honigshcim. Max Wcber. oI'. cit., pll.s.sim.

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    INTRODUO

    destaque dado s artes no chama especialmente a ateno dos seus leitores, motivo pelo qual poucos se referem a este domnio de sua produo. que formal e estritamente falando restringe-se a um nico texto: Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msicax. No entanto, para a justa compreenso do enfoque e do interesse de Weber pela arte. necessrio que esse "fragmento de sociologia da msica"9 seja contextualizado no interior da oeuvre de Max Weber, razo pela qual tentarei, neste texto, esboar - e no mais que isso - as linhas gerais e as principais balizas que orientam o pensamento de Max Weher no que se refere arte. Mas justamente por isso preciso compreender que a arte, para Weber, insere-se no amplo recorte da cultura1(). em funo dessa situao que uma possvel sociologia da arte de Max Weber necessita ser inserida - e contextualizada - no interior dos seus estudos comparativos sobre as culturas ocidental e oriental, e por isso que o conjunto de textos de Weber que mais proximamente se situa ao seu fragmento de sociologia da msica no me parece ser, como gostaria Marianne Weber ll , Economia e Sociedade, mas sim os Ensaios Reunidos de Sociologia da Religio l2 , Na impossibilidade de uma discusso abrangente e sistemtica dos Ensaios ... tomarei alguns textos especialmente estratgicos dessa obra, a saber: a "Vorbemerkung"13 e a "Zwischenbetrachtung"'4 .

    8. Max Weber, "Die rationalen und soziologischen Grundlagen der Musik", includo como apn-dice em Wirl.w:/wJi lIIul GeJellsc/w]f. Gnmdriss dcr rcrJlehende Sozi%gie (organizado por J. Winckclmann), vaI. 2, 4~ ed., Tbingcn, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1956, pp. 877-928.

    9. Kurt Blaukopf, Musiksozi%gie, 2. Aun., A. Niggli, 1972, p. 5. la. Cultura, aqui, no sentido utilizado pelo prprio Weber. Veja-se, por exemplo, a "Vorbemerkung" ci-

    tada logo adiante. 11. Cf. Marimme Weber, "VOrwOlt zur zweiten Aunagc" (1925), in Max Webcr, WirtsclwJi mui

    Geselfscha]f. Grwulriss der verstehende Soziologie, organizado por J. Winckchnann, 5. Aun., Tlibingen, J.C.E. Mohr (Paul Siebeck), 1985, p. XXXIII. Trad. bras.: "Prefcio Segunda Edio", in Max Weber, Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreel/siva, Braslia, UnB, 1991, p. XLI. Este texto ser citado mais adiante.

    12. Desde logo preciso advertir o leitor que nesse enfoque sigo as fonnulaes de Friedrich H. Tenbruck, "The Problem of Thematic Unity in the Works of Max Weber", oI'. cit., e, em parte, Wolfgang Schluchter, Tlle Rise oI Weslem RationalixlII. Max Weber;\" Deve/oplnel/fal History, Berkeley, University of Calirornia Prcss, 1985.

    13. Max Weber, "Vorbemerkung" (1920), in Ge.Hllllmelte AuJitze .wr ReligirJII.\'.wzjologie, Bd. 1.9. Aun., Tbingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1988, pp. 1-16. Trad. bras.: "Introduo", in A tica Protes-({mte e o Esprito do ClIpitalismo, 3~ ed., So Paulo, Pioneira, 1983, pp. 1-15. Trata-se de um dos ltimos textos escritos por Max Weber e representa, por esse motivo e pelo seu contedo, uma apre-sentao das mais avanadas de suas idias.

    14. Max Wcber, "Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen religiser Weltablehnung" (publicada em I 915 e revista em 1920), in Ge.Wll/lme/te Auj.\tze SUl' Religioll.'i.wziologic, vaI. I, 0I'. di., pp. 536-573. Trad. bras.: "Rejcies Religiosas do Mun(lo e suas Direes", in Weber, Ellx(lios de Sociologia, 01'. di., pp. 371-410. Tambm tem especial interesse, mas no ser aqui mais que citada, a "Einleitung" (publicada em 1915 e revista em 1920), a "A tica Econmica das Religies Mundiais", in Ge.wmme/te Al~r'il"jtze sur Re/igirms.wzi%gie, vol. I, 0I'. dt., pp. 237-275. Trad. bras.:

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    No que se refere importncia da "Zwischenbetrachtung" os mais balizados especialistas concordam ser este um dos mais instigantes e difceis textos escritos por Max Weberl5 Inicialmente convm lembrar seu papel estratgico no interior dos Ensaios ... , situada entre os textos sobre a China e a ndia, o que explica seu ttulo: "Considerao Intermediria". Trata-se, no limite, de uma tipo/agia formulada por Weber, pois ali ele trabalha "tipos teoricamente construdos de 'ordens da vida' " e sua relao com as "esferas individuais de valor"16 - por isso, inclusive, o texto leva o ttulo de "Teoria dos Graus e Direes da Rejeio Religiosa do Mundo" (grifo meu). O objetivo do texto "contribuir para a tipologia e sociologia do racionalismo"17. Por ser um ensaio de "sociologia da religio" - o que, para Weber, cobre um leque bastante amplo -, Weber procura circunscrever, mediante um esquema ideal-tpico I', "as interpretaes religiosas do mundo e a tica das religies", as formas de "conduta prtica" relativas a tais religies e tambm o "efeito da ratio", o "imperativo da coerncia"l~ presente em todas as ticas religiosas examinadas21l, Para nossos propsitos, no interessa como foco da anlise a religio, mas o tratamento empregado para analis-Ia e o modo como ela se relaciona com a

    "A Psicologia Social das Religies Mundiais", in Max Weber, Ellsaios de Sociologia, aj}. cit., pp. 309346. Em Economia e Sociedade encontramos um pargrafo muito semelhante, na forma e no contedo, "Zwischenbetrachtung". Ver Wirlsc!llljt Il1ld Gesell.w:hafl, Oj}. cit., "Sociologia da Re-ligio", especialmente o pargrafo "tica Religiosa e 'Mundo"', pp. 348-367 (trad. bras. pp. 385-404). Sobre a complementaridade de Ecollomia e Sociedade e os Ensaios Reunido. de Sociologia da Religio, ver J. Winckelmann, "Nachwort des Herausgebcrs zur 5. Auflage", in Max Weber, Die Profesf(lIltische E/hik /. Eine Aufwtz.mmmllln/j, Hg. v. Johannes Winkelmann, 7. Aufl., Gtersloh, Mohn. 1984, pp. 378-393.

    15. Remeto o leitor a F. H. Tenbruck, "The Problem of Thematie Unity in the Works of Max Weber", op. cit. e W. Schluchter, "Excursus: The Selection and Dating of the Works Used", in G. Roth e W. Schluchter, Max Webe,.:~ Vion of Histor)'. Ethics a1J(J Met/wds, Berkeley, University of California Press, 1984, pp. 5964.

    J 6. Max Weber, "Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen religiscr Weltablehnung", op. cit., p. 537 (trad. bras. pp. 371372).

    17. Max Weber, "Zwischenbetraehtung: Theorie der Stufen und Riehtungen religiser Wcltablehnung", oj}. cit., p. 537 (trad. bras. p. 372). No caber aqui uma exposio do texto. O leitor pode reportar-se (dentre outros) a: Jrgcn Habermas, Theorie des kOlnlmmika(iven Handelns, Bd. I. 2. Aufl., Frank-furt a.M., Suhrkamp, 1982, pp. 320-331; Rogers Brubaker, The Limits of RlItirmalit)', London, Allen & Unwin, 1984, pp. 74-82.

    18. Max Weber, "Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen religioser Weltablehnung", OI'. dI., p. 537 (trad. bras. p. 372).

    19. Max Weber, "Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen religiser Weltablehnung", OI'. cit., p. 537 (Irad. bras. p. 372).

    20. Weber trabalha fundamentalmente um esquema em que ele analisa as diversas religies universais de acordo com seu carter de negao ou afirmao do mundo. Vejase um tratamento esquemtico da questo em "Einleitung", 0I'. dt., pp. 239-240 (trad. bras. pp. 310-312).

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    INTRODUO

    arte. Isto se torna perceptvel quando lemos que Weber quer "examinar em detalhe as tenses existentes entre a religio e o mundo"21. Para que esse exame possa ser detalhado que Weber vai operar a distino das esferas da existncia, o ponto central do nosso interesse. O que ele busca focalizar so justamente as tenses que perpassam essas esferas22. Como Weber se prope uma "sociologia da religio", interessa-lhe investigar as tenses entre a religio e o mundo23 Vale a pena deixar Weber falar:

    As religies profticas e de salvao viveram [ ... ] em urna grande parte dos caso, parte essa especialmente importante do ponto de vista histrico-desenvolvimental [entwickiungs-geschichtlich], em uma relao de tenso no somente aguda [ ... ], mas tambm duradoura em relao ao mundo e suas ordens. E na verdade quanto mais elas eram verdadeiras religies redentoras, maior era tal relao de tenso. Isto decorreu do sentido da redeno e da substn-cia da doutrina proftica da salvao, assim que esta se desenvolveu - e tanto mais quanto mais em princpio ocorreu este desenvolvimento - rumo a uma tica racionalmente orientada e com isso direcionada a bens de salvao religiosa internos enquanto meios de redeno. Em linguagem comum isto significa quanto mais ela foi sublimada do ritualismo em direo a uma "religio de co~vico". E a tenso, por seu lado, foi tanto maior quanto mais amplamente progredia, por outro lado, a racionalizao e sublimao da posse exterior e interior dos bens "mundanos" (no sentido mais amplo). Pois a racionalizao e sublimao conscientes das relaes do homem com as diversas esferas da posse de bens externos c internos, religiosos e mundanos, fizeram com que as legalidades prprias internas [innere Eigengesetzlichkeiten] das esferas singulares se tornasse em suas conseqncias consciente e com isso permitiu que

    21. Max Weber, "Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen religiOser Weltablchnung", 0I'. cit., p. 540 (trad. bras. p. 375).

    22. Tenses essas originadas pela Eigengeselzlichkeit de cada esfera e dos valores que orientam os su-jeitos individuais em cada uma delas. Isso ser discutido mais adiante.

    23. No caso da sociologia da msica, trata-se de investigar as tenses entre a mlio musical e o mun-do. Contudo, ocorre aqui claramente uma diferenciao de amplitude dos referidos fenmenos: a religio algo muito mais "complexo", no sentido de se fazer presente em dimenses muito mais variadas da realidade e em grau muito mais intenso, do que a msica, muito mais restrita a dom-nios especficos do mundo. Alm disso. isso se reflete no mbito da prpria conduta prtica, que altamente "influenciada" pela religio e que em muito pequena parte pode ser influenciada pela msica. A religio estabelece "modos de comportamento", "modos de vida" - os Icrmos so de Weber - que a msica nem de longe poderia estabelecer. Mas, por outro lado. no seria esse o caso. Pois a msica insere-se no mundo de modo diferenciado, de acordo com sua prpria nature-za. Trata-se, ento, de investigar justamente qual o modo especfico atravs do qual a msica in-sere-se no mundo. Pois se a religio esteve dedicada "sistematizao e racionalizao do modo de vida", da conduta dos seus crentes, a msica, de certa maneira muito mais endgena, operou a sistematizao e racionalizao do seu prprio material e de scus prprios meios. Isso o que Weber demonstra em seu estudo. As perguntas que se nos colocam so: que valores orientaram o processo de "desenvolvimento his-trico" da msica? Tais valores so internos ao domnio Illusical 011 lhe so externos? Isto ser reto-mado no curso destc texto.

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  • MAX WEBER

    elas se envolvessem naquelas tenses entre si, tenses estas que permanecem latentes na in~ genuidade original [urwiichsigen Ullbefangenheit] da relao com o mundo exterior. Isto uma conseqncia inteiramente universal [ganz allgemcillc] - muito importante para a hist-ria da religio - do desenvolvimento da posse de bens (intramundanos c cxtramundanos) rumo a algo racional, ambicionado conscientemente e sublimado mediante o saber. Elucidemos uma srie desses fenmenos tpicos que se repetem de qualquer modo nas mais variadas ticas rcligiosas24 ,

    o ponto de vista adotado por Weber quer dar conta dos aspectos histrico-desenvolvimentais do fenmeno, o que vale dizer que seu interesse est focalizado no fenmeno enquanto um processo, especialmente como um processo de longa, ou melhor, longussima durao, pois que remonta, nos seus limites, aos primrdios da civilizao". A passagem do ritualismo a uma religio "racional" - isto , que comporta uma tica racional - um desses processos. Mas, para Weber, no apenas um desses processos de longa durao, mas sim o processo por excelncia, pois que o processo de racionalizao26 No seu decurso, segundo Weber, ele opera a separao das esferas da existncia - o que pode ser visto como um aspecto da especializao e fragmentao do mundo -, em que cada esfera da existncia passa a possuir e desenvolver a sua Eigengesetzlichkeit, uma lei que lhe interna e imanente, uma "legalidade prpria" que engendra esse domnio especfico. Tal processo culmina, na poca moderna, no intelectualismo27 , na perda daquela unidade primordial do mundo que Weber qualifica como uma "ingenuidade original". Esse processo de desenvolvimento histrico opera a autol1omizao das diversas esferas da existncia, pois cada qual passa a se mover de acordo com sua legalidade prpria. As tenses que a partir de ento passam a marcar as relaes

    24. Max Weber, "Zwischenbetrachtung: Thcorie der Stufcn und Richtungcn religiscr Wellablehnung", OI'. cit., pp. 541-542 (trad. bras. pp. 376-377).

    25. Sobre o aspecto elltwicklulIgsge.rdJidlflich, ver G. Roth, "Introduetion", in W. Schluchter, The fase of ll'?sfcm RlIfionalism, 0I'. cit., p. XXI; e o prprio Schluchtcr, pllHim. Sobre o cnfoquc de "longa durao", ver F. H. Tenbruck, "The Problcm of Thcmalic Unily in lhe Works of Max Weber", oI'. cit., e G. Roth, "Duration and Rationalizalion: Fernand Braudel and Max Weber", in G. Roth e W. Schluchler, Max Weber:f Vi.doll ofllistOl)'. Ethics mui MelllOds, op. dt. Vrias passagcns de Econo-mia e Sociedade e dos En.wios Reunidos de Sociologia da Religit70 retomam, por assim dizer, cm largos passos, processos que retrocedem aos incios da humanidade. Disso ser dado um exemplo mais frente.

    26. Sobre esse ponto, que no posso retomar aqui, ver F. H. Tenbrllck, "The Problem of Thematic Unity in the Works of Max Weber", op. cito

    27. Sobre o "intelectualismo", um tema importante na obra tardia de Weber, veja-se a parte final da "Zwischenbetrachtung", OI'. cit., e tambm "A Cincia como Vocao", in Max Weber, Cincia e Poltica. Dl/as V()Cll."es, 4~ cd., So Paulo, CuItrix, s.d., pp. 17-52. H uma estreita ligao entre o texto "A Cincia como Vocao" e a "Zwischenbetrachlung", que aqui no ser mais que assinala-da. Ver W. Schluchlcr, "Excursus: The Selection anel Dating af lhe Works Uscd", ofl. dto

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    INTRODUO

    entre as diversas esferas so decorrentes da peculiaridade e autonomia das diversas legalidades prprias a cada uma das esferas. Weber se prope a examinar essas diversas esferas da existncia - em momentos j avanados daquele processo de racionalizao, pois as esferas j se acham diferenciadas - atravs da perspectiva da religio, isto , ver de que maneira e com que intensidade a religio entra em conflito com as outras esferas.

    nesse sentido que ele discute a tica da fraternidade religiosa:

    Esta fraternidade religiosa sempre se chocou com as ordens c valores do mundo, e quanto mais ela foi levada a cabo em suas conseqncias, mais duro foi o choque. E precisa-mente - e disto que se trata aqui - quanto mais estas ordens e valores foram continuadamente racionalizadas e sublimadas de acordo com suas legalidades prprias, tanto mais irreconcili-vel fez-se valer esta discrepncia2x.

    o processo de racionalizao, que autonomiza as esferas, rompe com a unidade que poderia englobar o mundo. Assim, a autonomizao da esfera poltica, da esfera econmica, da esfera jurdica etc. acabam por implementar relaes de tenso que passam a marcar em profundidade o mundo. Este se apresenta como um conjunto de esferas, ordens da vida e ordens do mundo2" autonomizadas e, conseqentemente, no necessariamente coincidentes e concordantes.

    nesse sentido que devemos compreender o subttulo da "Zwischenbetrach-tung", que fala em graus e direes da rejeio religiosa do mundo. Pois o que ele oculta atrs de si o fato de que, com a autonomizao das esferas e conseqente Eingengesetzlichkeit de cada uma, o processo de racionalizao assume uma variedade fundamental. possvel que cada esfera determinada comperte uma racionalizao em um grau e em uma direo especfica. H, portanto, ra-cionalizaes orientadas de modo diferente e mesmo divergente, e a intensidade de cada uma dessas racionalizaes tambm amplamente varivel. Por isso Weber, na sua tipologia e sociologia do Racionalismo Ocidental, elabora lima "teoria dos graus e direes": porque necessrio dar conta de um fenmeno multifacetado, que compreende racionalizaes divergentes tanto nas suas orientaes como nas suas intensidades.

    No percurso analtico de Weber na "Zwischenbetrachtung" ele nomeia especificamente as esferas "familiar", "econmica", "poltica", "esttica", "ertica"

    28. Max Weber, "Zwischcnbetrachtung: Thcoric der Swfen und Richtungcn religiser Weltablehnung", op. cit., p. 544 (trad. bras. p. 379).

    29. Weber no trabalhou claramente a distino analtica entre as "esferas da existncia" e as "ordens da vida" (Lebensordlllwgell). No caber aqui uma discusso desse ponto; veja-se, a respeito, Jrgen Habermas, TIJeorie des kOlnl1l1l11;kaf;vell Handellls, op. cit., vaI. I, pp. 321 e ss.

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    e "intelectual", Para os nossos propsitos de investigar uma possvel sociologia da arte weberiana, interessa-nos de modo muito especial a "esfera esttica", preciso, assim, citar longamente Weber, para vermos suas prprias formulaes.

    Se tica religiosa da fraternidade vive em tenso com as legalidades prprias do agir racional com relao a fins no mundo, no menos ocorre com aqueles poderes intramundanos da vida, cuja essncia de carter radicalmente arracional ou antiMracional. Sobretudo com as esferas esttica e ertica.

    A religiosidade mgica est na relao mais ntima com a esfera esttica. dolos, cones e outros artefatos religiosos; padronizao mgica de suas formaes experimentais como o primeiro grau da dominao do naturalismo por um "estilo" fixado; msica como meio de xtase ou de exorcismo ou de magia apotropaica; feiticeiros como cantores e danaM ri nos sagrados; as relaes sonoras magicamente experimentadas e por isso magicamente eSM tcreotipadas - os mais antigos precursores das tonalidades -; os passos de dana experimen-tados magicamentc c como meio de xtase - como uma das fontes do ritmo -; templos e igrejas como as maiores de todas as construes, sob a padronizao formadora de estilo dos trabalhos de construo mediante fins assentados para sempre e das formas de construo mediante a experimentao mgica; paramentos e vasos sagrados de toda espcie enquanto objetos de arte aplicada em ligao com a riqueza - condicionada pelo fervor religioso - dos templos e igrejas: tudo isto fez da religio, desde sempre, uma fonte inesgotvel de possibi-lidades de desdobramento artstico, por um lado, c, por outro, da estilizao atravs da liga-o da tradio. A arte enquanto suporte de meios mgicos , para a tica religiosa da frater-nidade, assim como para o rigorismo apriorstieo, no somente depreciada, seno que dire-tamente suspeita. Por um lado a sublimao da tica religiosa e a busca da salvao, e por outro lado o desdobramento da legalidade prpria da arte tendem j em si conformao de uma relao de tenso progressiva. Toda a religiosidade de redeno sublimada tem em vis-ta somente o sentido, e no a forma, das coisas e aes relevantes para a salvao. Ela depre-cia a forma como algo fortuito, da criatura, desprovido de sentido. Do lado da arte a relao despreocupada [com a religio] pode ento permanecer ininterrompida ou sempre se restabe-lecer, tanto tempo e tantas vezes quanto o interesse consciente do recipiente estiver ingenu-amente preso ao contedo do que formado, e no forma puramente enquanto tal, e tanto tempo quanto a realizao do criador for sentida ou como um carisma (originalmente mgi-co) do "talento" [Kdllllens] ou como um livre jogo. Entretanto o desdobramento do intelec-tualismo e a racionalizao da vida modificam esta situaiio. A arte constitui-se ento COl1l0 11111 cosmos de valores prprios sempre conscientes. abrangentes e autnomos [grifo meu]. Ela assume a forma de uma redeno intramundana, pouco importando como isso possa ser interpretado: redeno da rotina diria [Alltag] c, sobretudo, tambm da presso crescente do racionalismo terico e prtico)o.

    30. Max Weber, "Zwischenbctrnchtung: Theoric der Stufen und Richtungen religiscr Weltablehnung", op. clt., pp. 554-555 (trad. bras. pp. 390-391). Ver tambm Weber, Wirtsdwp umf Gesel/scJwj;, op. cit., pp. 365-367 (Irad. bras. pp. 402-404).

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    INTRODUO

    Max Weber pontua dois momentos distintos, que podemos grosso modo caracterizar como o da "ingenuidade original" e o do "intelectualismo". No primeiro, as relaes entre arte e religio podem perfeitamente se encaixar, desde que a arte se mantenha em seu devido lugar de acessrio religio, contribuindo para embelez-la e, principalmente. reiterando os valores religiosos (como diz Weber, desde que ela no esteja presa forma, mas somente ao contedo), Com o processo de racionalizao e a conseqente autonomizao da arte, esta passa a possuir valores prprios, que acabam por competir com os valores da religio. Quanto mais autonomizada for a arte, maior ser sua tenso com a religio, pois sua legalidade prpria a desatrela do religioso. Assim est instituda a relao de tenso entre a esfera esttica e a esfera religiosa. No estado atual do processo de racionalizao - a modernidade -, tal tenso chegou a um ponto extremo, j que a arte assume a funo de uma forma de redeno, papel que a religio reserva para si (e que a economia e a poltica, por exemplo, usualmente no reclamam):

    Justamente a msica, a "mais interior" das artes, pode parecer, em sua forma mais pura, a msica instrumental, como uma forma subslituta - atravs da legalidade prpria de um rei-no que no vive no interior -, simulada e irresponsvel, da vivncia religiosa primeira. A conhecida tomada de posio do Conclio de Trento poderia remontar em parte a esta sensa-o. A arte torna-se ento uma "idolatria da criatura" ("Kreaturvergo/lenmg"], um poder concorrente e uma fantasmagoria ilusria, a imagem e alegoria das coisas religiosas tornam-se pura blasfmia31 .

    No interior dessa tipologia desenvolvida por Weber na "Zwischenbe-trachtung", encontramos desenvolvido e formulado de modo claro algo que poderamos livremente denominar "o lugar da arte". Esta no algo que vaga livre e solta no mundo, seno que possui seu significado e sua relevncia especfica no interior da cultura. Ela est inserida no processo de racionalizao do Ocidente, c, se no apresenta uma importncia to marcante como o desenvolvimento do Estado moderno ou da moderna economia, possui assim mesmo seu cosmo especfico e, ao mesmo tempo, relacionado ao mundo como um todo. Da a arte estar inscrita

    31. Max Wcbcr, "Zwi~chcnbctrachtung: Thcorie der Stufen und Riehtungen rc1igiscr Weltablehnung", op. cit., p. 556 (trael. bras. p. 392). E Weber continua, na seqncia do passo citado: "Na realidade emprica da histria esta afinidade psicolgica decerto sempre conduziu, de modo renovado, a aquelas alianas, to significativas para o desenvolvimento da arte, que a grande maioria das religies de algum modo contraiu, de maneira tanto mais ~istem,itica quanto mais elas pretendiam ser religies universalistas de massa e, portanto, estavam dirigidas para o efeito de massa c a propaganda emoci-onaI. Toda a verdadeira religiosidade virtuo~a permaneceu na mais spera oposio arte [ ... ] tanto em ~ua vertente ativamente asctica como em sua vertente mstica, e precisamente de modo tanto mais rude quanto mais ela in~istia ou na supramundanidade de seu deus ou na extramundanidade da redeno" .

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    nos "nexos [Zusammenhiinge] universais da racionalizao e da intelectualizao da cultura"32.

    Nas pginas finais da "Zwischenbetrachtung", Weber prope: "Apre-sentaremos em poucas linhas os estdios desse desenvolvimento e escolhemos para isso os exemplos a partir do Ocidente"}] Esse programa foi realizado, no mbito da sociologia da arte, em Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica.

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    Mas antes ainda de nos voltarmos ao texto sobre msica, convm abordar o problema do Racionalismo Ocidental. As tematizaes de Max Weber a esse respeito tm na "Vorbemerkung" um espao privilegiado, porque ali se tratava justamente de introduzir a problemtica e o enfoque gerais que orientavam as investigaes de Weber. O texto, muito conhecido, inicia-se com a seguinte indagao:

    Em relao aos problemas histrico-universais, o filho da moderna civilizao [Kulturwelt] europia acaba dc modo inevitvel c legtimo na questo: que encadeamento de circunstncias conduziu a que precisamente no terreno do Ocidente, e somente aqui, te-nham surgido fenmcnos culturais que - como gostaramos ao menos de imaginar - consis-tem em uma dirco de desenvolvimento [Elitwicklungsrichtlmg] de significao e validade ulliversais?34

    Weber est, pois, interessado na especificidade (ou nas especificidades) que marca um conjunto de fenmenos do Ocidente ou, em outra formulao, no conjunto de fatores que fazem com que determinados fenmenos ocorram no Ocidente e somente nele. Como o leitor de Weber rapidamente percebe, o autor est interessado em marcar as diferenas que uma srie de fenmenos do Ocidente tm em relao com fenmenos "similares" que se apresentam fora desse mbito. No dizer de Weber, somente no Ocidente h cincia: teologia, astronomia, geometria, mecnica, fsica, cincias naturais, medicina, qumica, teoria do direito e teoria do estado, "experimento racional" so citados como prprios do Ocidente, pois que as manifestaes de fenmenos similares fora do Ocidente - Weber percorre a Grcia

    32. Max Wcber. "Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen uno Richtungen religioser Weltablchnung". OI'. cit., p. 558 (trad. bras. p. 394).

    33. Max Weber, "Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen religioser Wcltablehnung", op. dt., p. 558 (trad. bras. p. 394).

    34. Max Webcr, "Vorbell1erkung", 01'. cit . p. I (trad. bras. p. I).

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    INTRODUO

    antiga, o Isl, a ndia, a China, a Babilnia, o Egito, o Oriente Prximo e Distante, Roma, a Idade Mdia etc. - no se apresentam naquela "direo de desen-volvimento" que Weber aponta. Qual seria tal direo?

    Ms no s as cincias. Tambm as artes so arroladas, e Weber cita a msica, a arquitetura, a decorao. a escultura, a pintura. as artes grficas. E a seguir o sistema de ensino, o Estado moderno, o funcionrio especializado e a economia moderna so inseridos no interior daquela direo. Por fim - e para comear propriamente seus desenvolvimentos - Weber nos apresenta o fenmeno que mais interesse lhe desperta no interior dessa multiplicidade de fenmenos que marcam o Ocidente: "a fora mais impondervel [schicksalsvollsten Macht] de nossa vida moderna: o capitalismo", que aparece somente no Ocidente35 . Embora o "capitalismo" tenha aparecido sob diversas formas em diversos tempos e lugares, interessa a Weber "destacar o que especfico do capitalismo ocidental em contraposio a outras formas", interessa-lhe "o que especfico do Ocidente"3. Pois "apenas o Ocidente produziu um grau de significao do capitalismo - e o que d fundamento para isso: tipos, formas e direes - que no existiu em nenhuma outra parte"37. O clculo do capital em dinheiro ser um dos elementos dessa especificidade, junto da organizao racional da empresa, com a sua separao entre casa e empresa e a contabilidade racional que lhe prpria. Justamente essa especificidade, o ponto focal mirado por Weber, vai radicar no racionalismo que Weber detecta em todas as mencionadas manifestaes do Ocidente, um racionalismo que perpassa todas as esferas da existncia, embora de forma diferenciada. Diz Weber:

    Por que l [na ndia ou na China] em geral nem o desenvolvimento cientfico, nem o artstico, nem o estatal e nem o econmico entraram naqueles caminhos da raciollalizao que so especficos do Ocidente?

    Pois se trata claramente, em todos os casos mencionados de especificidade, de um "ra-cionalismo" de tipo especfico da cultura ocidental. Sob esta palavra pode-se compreender coisas muito distintas - como as exposies posteriores iro evidenciar repetidas vezes. H, por exemplo, "racionalizao" da contemplao mstica, e portanto de um comportamento que, visto de outros domnios da vida [LebellsgcbietclI], especificamente "irracional", exa-tamente do mesmo modo como as racionalizaes da economia, da tcnica, do trabalho cien-tfico, da educao, da guerra e da justia e administrao. Pode-se, alm disso, "racionali-zar" cada um desses domnios sob os mais diversos pontos de vista e direes finais [Zielrichtungen] ltimas, e o que "racional" de um ponto de vista pode, considerado de outro ponto, ser "irracional". Eis por que tm existido racionalizaes dos tipos mais variados nos

    35. Max Weber, "Vorbemerkung", op. cit., p. 4 (trad. bras. p. 4). 36. Max Weber, "Vorbemerkung", op. cil . p. 12 (trad. bras. p. lI). 37. Max Weber, "Vorbemerkung", op. cit., p. 6 (trad. bras. p. 6).

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    mais diversos domnios da vida em todos os crculos culturais. O que caracterstico para sua distino histrico-cultural : quais esferas c em que direes elas foram racionalizadas. Por-tanto, trata-se em primeiro lugar de reconhecer a especificidade particular do racionalismo ocidental e, no interior dele, do moderno racionalismo ocidental, e explicar sua origemJK

    Perguntar por que a racionalizao ocidental no abrangeu um universo mais amplo significa inquirir que conjunto de fatores dirigiram esse processo de racionalizao -e dirigir significa precisamente orient-lo para direes especficas. Como Weber detecta um racionalismo ocidental, preciso - como foi visto na "Zwischenbetrachtung", que uma teoria dos graus e direes - caracterizar sua intensidade e suas direes. Nesse ponto retornamos idia, central em Weber, da multiplicidade das esferas da existncia- que so correlatas aos "domnios da vida". Assim, a racionalidade numa esfera determinada no significa necessariamente racionalidade em outra, e disso resultam, como vimos, infindveis "relaes de tenso". O critrio da racionalidade, desse modo, supe, para sua justa compreenso, a anlise do interior do universo no qual ele se situa e tambm a sua orientao. Exemplos de algo que racional em um determinado contexto e irracional em outro so inmeros na "Zwischenbetrachtung", cujo intuito justamente formalizar aquela tipologia do racionalismo que opera com as diversas esferas. Assim, o racionalismo ocidental, alvo de Weber, nunca poder ser tratado monoliticamente, como um corpo homogneo, na medida em que ele se desdobra de formas variadas e diferenciadas no interior de uma realidade mltipla. A tipologia das esferas tem justamente o objetivo de clarificar os graus e direes diversos da racionalizao. Assim, o ponto nodal da anlise est centrado nas esferas da existncia: "quais esferas e em que direes elas foram racionalizadas". Sob essa chave Weber vai desvendar seu programa: "reconhecer a especificidade particular do racionalismo ocidental e, no interior dele, do moderno racionalismo ocidental, e explicar sua origem". Nos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religio, que se abrem com esse texto, a "tica Protestante e o Esprito do Capitalismo" e os estudos sobre "A tica Econmica das Religies Mundiais" sero considerados como contribuies a esse conjunto de problemas. Pois aqui Weber enfatiza principalmente - mas no s - a economia: por isso ele fala na "significao fundamental da economia", no "esprito do

    38. O texto prossegue: "Cada uma dessas tentativas de explicao deve - de acordo com a significao fundamental da economia - considerar sobretudo as condies econmicas. Mas tambm o nexo causal inverso no deve passar despercebido. Pois embora dependente da tcnica racional e do di-reito racional, o racionalismo econmico, em sua origem, tambm era dependente da capacidade e disposio dos homens a tipos determinados de cOllduta de vida prtico-racionais. Onde esta con-dutu foi obstruda por impedimentos de tipo anmico, o desenvolvimento de uma conduta economi-camente racional de vida encontrou pesada resistncia interna". Max Weber, "Vorbemerkung", 0/'. eit., pp. 11-12 (trad. bras. p. li).

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    INTRODUO

    capitalismo" e na "tica econmica". Contudo, a anlise da esfera econmica s tem sentido para Weber na medida em que ela confrontada com outras esferas: justamente da advm a riqueza da contribuio weberiana. nesse sentido que a "Zwischenbetrachtung" um texto modelar, pois l Weber trabalha - em algumas poucas pginas - as relaes entre diversas esferas. A busca de caracterizao do racionalismo ocidental deve, dessa maneira, abarcar no somente a esfera econmica ou poltica - que poderiam parecer, digamos, "mais importantes" -, mas tambm as outras esferas. E nesse amplo contexto que se inserem suas preocupaes com as artes, e principalmente seu nico texto dedicado especialmente ao assunto, Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica.

    III

    Uma passagem de Habermas permite-nos rapidamente abarcar todo o amplo leque que esboamos at aqui, e clarificar nossa posio:

    A racionalizao cultural vista por Weber partir da cincia e tcnica modernas. da arte autnoma e da tica guiada por princpios fundados na religio [ ... ].

    No apenas a cincia, mas tambm a arte autnoma so includas como manifestaes da racionalizao cultural. Os padres de expresso estilizados artisticamente, que de incio foram integrados ao culto religioso como adornos de igrejas e templos, como dana e canto rituais, como encenao de episdios significativos dos textos sagrados, tornam-se autnomos com as condies da produo artstica inicialmente cortes-mecentica, mais tarde capitalis-ta-burguesa: "A arte constitui-se ento como um cosmos de valores intrnsecos sempre cons-cientes, abrangentes, autnomos."

    Autonomia significa, de incio, que a arte pode se desdobrar "de acordo com suas leis prprias" [Eigengesetzlichkeit der Kunst]. Com certeza Weber no a considera, em primeiro lugar, sob o aspecto da instituio de uma empresa da arte (com a institucionalizao de um pblico apreciador e da crtica de arte como mediadora entre os produtores e receptores de arte). Ele concentrou-se muito mais sobre aqueles efeitos que uma compreenso consciente de valores estticos intrnsecos tm para o domnio do material, isto . para as tcnicas da produo artstica. Em seu estudo publicado postumamente sobre os "fundamentos racionais e sociolgicos da msica", Weber investigou a formao da harmonia de acordes, a origem da notao [musical] moderna e o desenvolvimento da construo de instrumentos (especialmen-te do piano como instrumento de tecla especificamente moderno?).

    Vejamos, ento, esse texto de sociologia da msica.

    39. Jrgcn Habermas, Theorie des kommulIikutivell Hundelm, op. cit., vaI. I, pp. 228-230. Os trechos de Wcbcr citados por Habermas provm da "Zwischenbetrachtung".

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  • MAXWEBER

    IV

    Todo o texto Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica uma discusso do processo de racionalizao na msica. Para fins de anlise, ele pode ser segmentado em duas partes, que se relacionam entre si: a primeira delas, que compreende os pargrafos 1 a 49, discute o processo de racionalizao do material sonoro, considerado enquanto substrato material e histrico da msica. A segunda parte, os 9 pargrafos finais do texto (pargrafos 50 a 58), discute a histria de alguns instrumentos musicais, sob o ponto de vista de seu nexo com aquele processo de racionalizao. No somente pela sua extenso, seno que por sua substncia, a primeira parte detm um importncia peculiar no interior do texto. A ela nos dedicaremos inicialmente.

    O pargrafo inicial do texto importante o suficiente para ser retomado:

    Toda msica racionalizada harmonicamente parte da oitava (relao de freqncias 1 :2) e a divide nos dois intervalos de quinta (2:3) e quarta (3:4), portanto em duas fraes do es-quema o/n+ I, chamadas "fraes prprias", que tambm esto oa base de todos os nossos intervalos musicais abaixo da quinta. Portanto, se a partir de um som inicial subirmos ou descermos em "crculos", primeiro em oitavas, em seguida em quintas. quartas ou em alguma outra relao determinada "propriamente", ento as potncias dessas fraes nunca podero encontrar-se em um e mesmo som, at onde se possa continuar esse procedimento. A dcima-segunda quinta justa, igual a (2/3)12, , por exemplo. uma coma pitagrica maior do que a stima oitava, igual a (1/2)7. Esse inaltervel estado de coisas. c a circunstncia de que a oi-tava decomposta por fraes prprias em apenas dois grandes intervalos diferentes, consti-tuem os fatos fundamentais de toda a racionalizao da msica. Recordemo-nos em primeiro lugar como a msica moderna. vista a partir deles, se apresenta4{).

    Max Weber parte da constatao de um fato que perpassa toda a msica moderna - a "msica racionalizada harmonicamente"4I: o fato de que nela os intervalos so construdos mediante uma determinada racionalizao na diviso da oitava, que no entanto no se deixa racionalizar sem restos -, pois que sempre surge a coma fatal. Este fato marca de cima a baixo a msica moderna. Weber qualifica-o como ofato fundamental de toda a racionalizao da msica (pois que a diviso da oitava nos intervalos de quarta e quinta decorrente dela), e a partir dessa constatao ele convida o leitor ("recordemo-nos") a percorrer o processo de desenvolvimento (que o processo de racionalizao) que conduziu ao estado atual

    40. Max Weber, "Oie rationalen und soziologischen Grundlagen der Musik". OI'. cit .. p. 877. As cita-es desse texto, a seguir. seguem essa referncia, sendo indicado o pargrafo no qual se encontram.

    41. No interior do texto de Max Weber, "msica moderna" quer designar a msica do Ocidente desde aproximadamente 1700.

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    INTRODUO

    do material sonoro. Weber circunscreve seu problema (o material sonoro e suas idiossincrasias, enquanto suporte da msica) e, a partir de ento, vai retroceder analiticamente na busca do conjunto de fatores e dos nexos que conduzem situao atual da msica. Desse modo, o problema formulado no pargrafo I ser amplamente desenvolvido ao longo do texto - pargrafos 2 a 44 - e encontrar sua "resposta" nos pargrafos finais dessa primeira parte do texto - pargrafos 45-49. Assim, h um fio condutor que amarra o texto de Weber: a questo lanada no primeiro pargrafo ser rastreada no correr do texto para, ao final, chegarmos formulao histrica concreta do fato fundamental da racionalizao do material musical (sonoro) na moderna msica ocidental. isto , o temperamento.

    O Leitor apressado poderia, desse modo, aps ler o pargrafo I, pular direta-mente para o pargrafo 45, em que se encontra a discusso da soluo histrica aos problemas apontados no incio. O que vai no entremeio uma anlise e descrio do longo processo de racionalizao na msica (tambm aqui o processo de racionalizao um processo de longussima durao), desde a Grcia clssica at a msica contempornea de Weber (especialmente Wagner e Liszt). Tal anlise e descrio assume aquela frmula que ser posteriormente retomada na "V orbe-merkung": a busca das peculiaridades especficas moderna msica ocidental, em contraste e oposio com o Oriente. Nesse texto tardio, Weber afirmava:

    o ouvido musical era antes desenvolvido aparentemente de modo mais apurado em outros povos do que atualmente entre ns; em todo caso no o era menos apurado. Diversas espcies de polifonia difundirarnvse por toda Terra; a colaborao de uma pluralidade de ins-trumentos e tambm o descante encontram-se em outros lugares. Todos os nossos intervalos sonoros racionais eram tambm conhecidos e calculados em outras partes. Mas msica har-mnica racional: - tanto o contraponto como a harmonia de acordes -, formao do material sonoro sobre a base dos trs acordes de trs sons com a tera harmnica; nosso cromatismo e enarmonia interpretados no em termos de distncia, mas harmonicamente, de forma racio-nal, desde a Renascena; nossa orquestra com seu quarteto de cordas como ncleo e a organi-zao dos conjuntos de sopros; o baixo contnuo; nossa notao musical (que possibilitou inicialmente a composio e execuo das modernas peas musicais, c assim em geral sua existncia duradoura e completa); nossas sonatas. sinfonias, peras - embora haja, nas mais diversas msicas, msica de programa, pintura musical, alterao sonora e cromatismo como meio de expresso - enquanto expediente de todos os nossos instrumentos bsicos: rgo, piano, violino; tudo isso existe apenas no Ocidente42.

    Neste pargrafo de 1920, Weber insere suas pesquisas de sociologia da msica no amplo quadro das suas investigaes sobre o Racionalismo Ocidental, como um

    42. MaX' Wcbcr, "Vorbemerkung", OI'. dt., p. 2 (trad. bras. p. 2).

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    dos momentos e uma das diversas facetas que esse fenmeno, de alcance, validade e significao universais, assumiu.

    Acompanhemos por hora o percurso de Weber em Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica. A racionalizao do material sonoro baseia-se na diviso aritmtica da oitava e conseqente criao dos intervalos (pargrafo 2), e a moderna "tonalidade" um resultado desse processo (pargrafo 3). Mas embora " primeira vista" o "sistema harmnico de acordes" apresente-se "como uma unidade racionalmente acabada", ele no livre de tenses, que so devidas a irracio-nalidades meldicas e mesmo harmnicas (pargrafos 4, 5), pois que h "falhas na racionalizao" (pargrafo 6). Weber vai analisar o processo de racionalizao do material sonoro basicamente por duas vias: o processo de formao dos intervalos e o processo de formao das escalas. Nessa perspectiva, ele passa de imediato a utilizar o comparativismo que caracteriza sua socioIogia43 ; vai buscar as diferenas das msicas orientais frente msica ocidental no que toca ao processo de racionalizao do material sonoro (pargrafo 7). Assim, na msica asitico-oriental, os intervalos so possivelmente "produto daquela racionalizao efetuada a partir de fundamentos inteiramente extramusicais", o que mostra que Weber vai retomar aqui as idias da "Zwischenbetrachtung": as msicas podem e so racionalizadas em graus e direes diferentes e mesmo divergentes, e se esta racionalizao est baseada em critrios extramusicais, isto indica precisamente que ento a esfera artstica ainda no possui uma legalidade prpria, j que obedece uma racionalidade que no a sua prpria. H diversos tipos de racionalizao da msica, mais e menos primitivos, que podem ser detectados nos problemas relativos construo e

    43. Sobre o comparativismo: de Weber, ver especialmente a "Vorbemerkung" e "Einleitung", op. dto digno de nota o fato de que o grande estudo sobre "A tica Econmica das Religies Mundiais" tem por subttulo "Ensaios de Sociologia da Religio Comparada". Na literatura secundria, veja-se F. H. Tenbruck, "The Problem of Thematic Unity in the Works of Max Weber", op. cil.; W. Schluchter, The Rise ofWe.ftern Rationa!m, op. cil.; Wolfgang Mommsen, "Historia Sociolgica y Sociologa Histrica", in Max Welrer. Sociedad, Poltica e Historia, Barcelona, Alfa, 1981, pp. 213-242; e Gabriel Cohn. "Introduo", in G. Cohn (org.). Max Weber. 2~ ed., So Paulo, tica, 1982, p. 15, onde se l: "A anlise comparativa no opera [ ... J na busca do que seja comum a vrias ou a todas aS'configura-es histricas mas, pelo contrrio. permitir trazer tona o que peculiar a cada uma delas. Nas anlises a que Weber se dedicaria posteriormente, essa viso comparativa ir-se-ia apurando cada vez mais, orientada pela busca daquilo que especfico ao mundo ocidental moderno - a presena de um capitalismo organizado em moldes racionais e a racionalizao da conduta em todas as esferas da existncia humana - em termos da busca, em outras configuraes histricas. de traos que mio fossem congruentes com essa racionalizao especificamente europia ,da vida. Desde logo. portan-to, a pesquisa histrica pode ajudar-nos em duas coisas: apontar os traos que reputamos importan-tes no nosso mundo contemporneo e que tambm estejam presentes em outras pocas e lugares, devido a causas especficas a serem examinadas em cada caso, e assinalar traos existentes no nosso universo histrico particular que possam ser apontados como responsveis pelas diferenas entre ele e os demais (sendo que eles figuraro na anlise como CllU.WIS dessa diferena)".

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    INTRODUO

    utilizao das escalas (pargrafo 9). Por vezes, so os instrumentos musicais os portadores da determinao dos intervalos, e conseqentemente da sua racio-nalizao (pargrafos 10 a 12 e 50 a 59), e tambm do desenvolvimento das escalas. Grosso modo, Weber trabalha com a idia de que ao Ocidente cabe a msica racionalizada harmonicamente, e ao Oriente a msica racionalizada de modo no-harmnico, isto , melodicamente e de acordo com a distncia (pargrafo 13).

    Vimos mais atrs, ao discutirmos a "Zwischenbetrachtung", como Weber pontua, de modo esquemtico, dois momentos no curso da histria universal: aquele da "ingenuidade original", que corresponde a um mundo uno, no desencantado e no racionalizado, e aquele outro, do "intelectualismo", que diz respeito moderna sociedade ocidental, altamente racionalizada em todas as esferas da existncia e completamente desencantada. Isto retomado, no mbito da sociologia da arte, com o intuito de destacar o processo de racionalizao que a atinge:

    A distino de seqncias determinadas de sons desenvolveu-se como um produto da renexo terica, geralmente em contato com aquelas frmulas sonoras tpicas que quase toda msica, a partir de uma fase determinada do desenvolvimento da cultura, possuiu. Temos aqui que nos recordar do fato sociolgico de que a msica primitiva foi afastada, em grande parte, durante os estgios iniciais de seu desenvolvimento, do puro gozo esttico, ficando subordi-nada a fins prticos, em primeiro lugar sobretudo mgicos, nomeadamente apotropeicos (re-lativos ao culto) e exorcsticos (mdicos). Com isso, ela sujeitou-se quele desenvolvimento estereotipador ao qual toda ao magicamente significativa. assim como todo objeto magica-mente significativo, est inevitavelmente exposta; trata-se ento de obras de arte figurativas ou de meios mmicos, recitativos, orquestrais ou relativos ao canto (ou. como freqentemen-te, de todos juntos) que tinham por objetivo influenciar os deuses e demnios. [ ... ] Com o desenvolvimento da msica a uma "arte" esta mental (seja sacerdotal, seja aodica), com o ultrapassamento do emprego meramente prtico-finalista das frmulas sonoras tradicionais, e por conseguinte com o despertar das necessidades puramente estticas, inicia-se regularmente sua verdadeira racionalizao (pargrafo 18).

    A "reflexo terica" indica um estado j racionalizado da sociedade. A arte, nas sociedades "primitivas", estava atrelada a "fins prticos", ou seja, no possua autonomia, e, portanto, no tinha por objetivo o "gozo esttico". Pelo contrrio: ela estava a servio de valores outros (sobretudo o culto). autonomizao da arte, sua libertao das finalidades prticas, corresponde o incio da "verdadeira racionalizao", pois que a autonomizao da esfera artstica engendra a legalidade prpria dessa esfera, que justamente a sua racionalizao especfica - isto , de uma racionalizao que possui uma direo especfica dentre outras possveis, e essa direo est relacionada justamente com essa esfera particular. A pergunta sobre a racionalizao prpria msica - e arte em geral - encontra sua resposta no fato

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  • MAX WEBER

    de que, na arte, a racionalizao se projeta sobre os prprios meios artsticos. Assim, a racionalizao da msica a racionalizao dos meios musicais: dos sistemas sonoros, dos instrumentos, das formas com posicionais etc.

    O que vai da "ingenuidade primitiva" ao "intelectualismo" o que vai de um "estado de natureza" no racionalizado e completamente encantado sociedaje moderna racionalizada e desencantada. Analiticamente, o momento da autono-mizao da esfera em questo especialmente significativo, embora muito nebuloso em sua determinao histrica concreta. De qualquer modo, necessrio ter em vista que se trata aqui de uma "tipologia", que no se confunde (e no se quer confundir) com a realidade concreta. O nascimento do puro gozo esttico, das puras necessidades de expresso, marca esse descolamento da nova esfera, que passa a desenvolver-se segundo sua legalidade especfica.

    Na anlise de sistemas sonoros especficos (como o helnico, no pargrafo 21), Weber afirma que lhe interessam "as tenses intrnsecas desse sistema sonoro", justamente porque nas tenses que se mostra a forma do processo de racionalizao, que opera sempre no sentido de dilu-Ias e equacion-Ias. No caso da Grcia antiga, as escalas utilizadas foram o resultado de um processo de racionalizao das tenses presentes nas relaes intervalares. Tanto na antiga msica grega como na moderna msica ocidental, as tenses reduzem-se basicamente questo da assimetria da oitava, e na tenso entre a quinta e a quarta (pargrafos I, 22). Aqui, novamente, Weber nos mostra que o ponto nodal do processo de racionalizao da msica est relacionado com a superao desse problema. "A particularidade decisiva do desenvolvimento da msica ocidental", diz Weber - e aqui ouvem-se ecos da "Vorbemerkung" -, foi "justamente a 'lgica interna' das relaes sonoras" que impeliu "via da moderna formao de escalas" (pargrafo 26). Tudo isso encontra seu termo no temperamento (pargrafos 45 a 49).

    Tambm tpica do Ocidente a polifonia, e atravs dela Max Weber pode inserir na sua discusso no somente tpicos relativos ao sistema sonoro, como a formao dos intervalos e escalas, mas tambm elementos relativos s formas musicais, verdadeiras impulsionadoras do desenvolvimento musical e do prprio processo de racionalizao, que se desdobra tambm no interior das frmulas e formas composicionais. Da seu interesse por procedimentos como o cnone, a imitao, o contraponto (pargrafo 30). Weber afirma tambm que o "ponto de partida da msica especificamente ocidental" marcado pelo "aparecimento de teoremas" que regulam o emprego das dissonncias na polifonia contrapo