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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 101-118, 2008 101 OS ESTUDOS CULTURAIS VÃO AO PARAÍSO André Luis Mitidieri Pereira RESUMO O presente artigo analisa o romance El paraíso en la otra esquina [O paraíso na outra esquina], de Mario Vargas Llosa, considerando alguns pontos de vista desenvol- vidos pelos Estudos Culturais. Nesse conjunto teorético, a posição “engajada” do narrador se contraditaria aos princípios ideológicos assumidos pelo escritor peruano. PALAVRAS-CHAVE: Estudos Culturais; romance Latino-Americano; Vargas Llosa. Cuando éramos chicos, en Arequipa jugábamos a un juego en que nos poníamos no en círculo, sino como en un cuadrado. El muchacho castigado, para volver a entrar, debía hacer una pregunta: ‘¿Venden huevo aquí?’. ‘No, en la otra esquina’, le contestaban. En otra fórmula más elevada, decíamos: ‘¿Está aquí el paraíso?’. La respuesta era evidente: ‘No, el paraíso no está aquí, está en la otra esquina’. Ese juego infantil significa, para mí, la búsqueda de lo imposible. ¿Y qué es la búsqueda de lo imposible? La utopía. MARIO VARGAS LLOSA. D efrontamo-nos primeiramente com a delimitação dos Estudos Culturais, tendo em vista sua emergência, paralela à proliferação do Pós-Colonialismo, do Pós-Estruturalismo e do Pós-moder- nismo, bem como a atual ultra-abrangência da Literatura Comparada. Tão heterogêneos quanto esses corpos teóricos, os Estudos de Cultura com eles convergem quanto a questões que gravitam em torno de etnia, identidade e raça, gênero e sexualidade, por exemplo. Em seu princípio, os Cultural studies britânicos preocupavam-se com o estabelecimento de uma

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 101-118, 2008 101

OS ESTUDOS CULTURAIS VÃO AO PARAÍSO

André Luis Mitidieri Pereira

RESUMO

O presente artigo analisa o romance El paraíso en laotra esquina [O paraíso na outra esquina], de Mario VargasLlosa, considerando alguns pontos de vista desenvol-vidos pelos Estudos Culturais. Nesse conjuntoteorético, a posição “engajada” do narrador secontraditaria aos princípios ideológicos assumidospelo escritor peruano.

PALAVRAS-CHAVE: Estudos Culturais; romanceLatino-Americano; Vargas Llosa.

Cuando éramos chicos, en Arequipa jugábamos a un juegoen que nos poníamos no en círculo, sino como en uncuadrado. El muchacho castigado, para volver a entrar, debíahacer una pregunta: ‘¿Venden huevo aquí?’. ‘No, en la otraesquina’, le contestaban. En otra fórmula más elevada,decíamos: ‘¿Está aquí el paraíso?’. La respuesta era evidente:‘No, el paraíso no está aquí, está en la otra esquina’. Esejuego infantil significa, para mí, la búsqueda de lo imposible.¿Y qué es la búsqueda de lo imposible? La utopía.

MARIO VARGAS LLOSA.

Defrontamo-nos primeiramente com a delimitação dos EstudosCulturais, tendo em vista sua emergência, paralela à proliferaçãodo Pós-Colonialismo, do Pós-Estruturalismo e do Pós-moder-

nismo, bem como a atual ultra-abrangência da Literatura Comparada.Tão heterogêneos quanto esses corpos teóricos, os Estudos de Culturacom eles convergem quanto a questões que gravitam em torno de etnia,identidade e raça, gênero e sexualidade, por exemplo. Em seu princípio,os Cultural studies britânicos preocupavam-se com o estabelecimento de uma

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prática na cultura que os distinguisse. Tal diretriz precisa ser considerada,num momento em que ocorre a “transformação de um modo de inter-venção política em um modo de acumulação de conhecimento, testadoem provas e exames acadêmicos”.1

Nesse sentido, uma das grandes contribuições do Culturalismo, desdeos posicionamentos da revista New Left Review e do Centro de Estudos daCultura Contemporânea de Birmingham, no começo da década de 1960,tem sido a visão da cultura como instrumento de descoberta, interpreta-ção e luta social, expresso, entre outras coisas, por meio do esmaecimentodas fronteiras impostas entre a cultura de massas e a alta cultura, sendoessa representada sobretudo pela “arte literária”. Num panorama derevigoramento, os estudos de literatura passaram a se ocupar de notaçõesculturais ao gosto do grande público, como novelas de detetive, roman-ces cor-de-rosa, autobiografias e biografias.

Se isso ocorreu na teoria, não poderia ser muito diferente no lado daprática, ou seja, da produção textual, contemporaneamente assinalada,em sua forma romanesca, pela reiterada incidência da transformação defiguras históricas famosas em personagens de ficção, assemelhando-se a,ou simulando, narrativas autobiográficas e/ou biográficas. Diferencian-do-se do “romance histórico”, cujo molde aprimorado encontra-se emWalter Scott, o atual subgênero romanesco de que tratamos desrespeita ocaráter reprodutivo das entidades históricas e rasura o predomínio doexterno sobre o interno, do público sobre o privado, do tipo sobre oindivíduo e do evento sobre o invento na história central.

É sob essa ótica que são apresentados e representados a feministaFlora Tristán e seu neto, o pintor Paul Gauguin, na obra literária deMario Vargas Llosa,2 lançada em 2003, e que se intitula O paraíso na outra

1 CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2003. p. 135.2 Jorge Mario Pedro Vargas Llosa nasceu em Arequipa (1936). Estreante na literatura,

consagrou-se com o prêmio Leopoldo Arias pelo livro de contos Los jefes (1959). Publi-cou as seguintes narrativas: La ciudad y los perros (1963); La casa verde (1966); Conversación enLa Catedral (1969); Pantaleón y las visitadoras (1973), La tía Julia y el escribidor (1977); La guerradel fin del mundo (1981); Historia de Mayta (1984); ¿Quién mató a Palomino Molero? (1986); Elhablador (1987); Elogio de la madrastra (1988); Lituma en los Andes (1993); Los cuadernos de donRigoberto (1997); La fiesta del Chivo (2000); El paraíso en la otra esquina (2003); Travesuras de laniña mala (2006).

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esquina.3 Mesmo nominadas, em correspondência aos seres de real exis-tência que as originam, as personagens em evidência já seguem à lógicada ficção, ao adentrarem no texto ficcional, norteando-se, pois, poruma questão de estatuto. Não se trata, portanto, de checar os aconteci-mentos narrados com aqueles cujos eventuais documentos possam ates-tar sua ocorrência real, mas de examinar qual modo de leitura nos éproposto pelo autor e pelos editores da obra em questão.

Podemos considerá-la como ficcional, em primeiro lugar, porqueseu paratexto assim nos indica, conforme a ficha catalográfica — “roman-ce peruano” (p. 04) e a epígrafe de Paul Valéry — “Que seria, pois, de nós,sem a ajuda do que não existe?” (p. 07). O afastamento da mera reprodu-ção dos fatos e sujeitos históricos já começa a ser definido nas abas dodito livro, onde Wladir Dupont afirma que estamos diante de um ro-mance. Esse tradutor da destacada criação do escritor peruano para alíngua portuguesa informa que “embora também baseado em fatos com-provados, é apresentado de forma mais vagarosa, reflexiva, permeado devôos mais literários”.

Localizado o estabelecimento do pacto romanesco,4 por meio dosexpedientes antes identificados, a economia da narrativa permite inferir,apesar das volumosas descrições espaciais, que aí ocorre um visível pre-domínio do interno sobre o externo, conforme atestam várias incursõesao íntimo dos dois protagonistas. Tal veiculação se dá por meio de umamistura de discurso indireto livre com discurso dirigido ao modelo, esse,em segunda pessoa, característico de biografias laudatórias. Essa mescladiscursiva é paralela à intercalação dos capítulos (um centrado em Flora,outro em Paul), bem como à utilização combinada desses nomes e dosapelidos dos protagonistas (Andaluza/Madame-la-Colère e Koke), deno-tando um jogo do narrador entre distanciamento e aproximação às per-sonagens.

A instância narrativa, desse modo, descreve com propriedade: osmal-estares de Flora, suas dores de estômago e útero; a repugnância pe-rante o sexo com o marido; as paixões homossexuais por Olympia

3 VARGAS LLOSA, Mario. O paraíso na outra esquina. Traduzido por Wladir Dupont. SãoPaulo: Arx, 2003. Todas as citações serão extraídas dessa edição.

4 Cf. LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1980.

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Maleszewska e Eléonore Blanc; os galanteios e assédios, por parte de vári-os homens com os quais não concretiza relações sentimentais; sua como-ção diante das ínfimas condições de trabalho dos operários com quemmantém contato, em peregrinações “diaspóricas”.5 O despertar da consci-ência da protagonista, que a leva a agir, conscientizando os trabalhadoresface às injustiças sociais, acontece na viagem a Arequipa (Peru), quandoseu navio aporta em Cabo Verde, onde se depara com as atrocidades daescravidão.

Nas partes do romance que dizem respeito a Gauguin, são freqüen-tes as experiências sexuais desse, descritas com detalhes, assim como seuprocesso criativo e reflexões sobre a arte e o fazer artístico; sua emoçãofrente à morte da filha, Aline Gauguin, e ao sofrimento da mãe, AlineChazal, a qual chegou a padecer abusos sexuais por parte do pai. Outrosindicadores da relevância dada ao fator interno da personagem são: seucasamento com a dinamarquesa Mette Gad; a paixão pela bretã MadeleineBernard; as desavenças com Vincent Van Gogh; os envolvimentos amo-rosos com a javanesa Anah, as nativas taitianas Titi Peitinhos, Pau’ura eTeha’amana, bem como com a marquesana Vaeoho; o calvário perante astransformações ocasionadas pela sífilis, contraída no Panamá em 1887.

Tanto em relação à vida de Gauguin quanto à de Flora, não éverificada a construção de personagens como tipos, nem de subjetivida-des unificadas, uma vez que esses protagonistas são desvelados em suascomplexidades individuais, não se constituindo monoliticamente. Paraescapar à pobreza, vivenciada após 1807, ano da prematura morte do pai,de quem é filha bastarda, Florita vai trabalhar na oficina de gravura elitogravura do mestre André Chazal em 1819. O casamento com o patrãoresulta em três filhos — Alexandre, Ernest-Camille e Aline — e numasérie de maus tratos, que a levam ao campo em 1825, alegando necessida-de de recuperação do primogênito, o qual morrerá em 1831. Apesar deagredir a mulher, Chazal sempre vence processos contra ela e pela guardados filhos.

5 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Traduzido por AdelaineLa Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Editora da UFMG; Brasília: UNESCO,2003. p. 103-33.

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Visando a fugir do esposo e da justiça, a protagonista embrenha-sepelo interior da França em 1832. Durante o calvário em que sua vida setransforma, visita o primo, Dom Mariano de Goyeneche, na cidade deBordeaux. Na casa dele, refugia-se por quase um ano, após deixar Alinesob os cuidados de uma senhora que se apieda de sua história. Ficandocom o pai, Ernest-Camille falecerá posteriormente. Dom Mariano provi-dencia a viagem da prima a Arequipa. Ela tem por objetivo convencerDom Pio Tristán a reconhecê-la como filha legítima do irmão desse po-deroso peruano. Planeja, com isso, aferir renda que proporcione confor-to material e espiritual a si mesma e a seus dois filhos, longe do desequili-brado marido. Frustrada essa expectativa, a Andaluza retorna a seu paísem 1835.

Permanece na França até 1838, informando-se, participando de en-contros literários e políticos, escrevendo obras resultantes de sua obser-vação das sociedades que visitou. Em 1839, Flora vai a Londres, presen-cia grotescos espetáculos de humilhações a meretrizes, dos quais partici-pam os ricos locais, e decide entregar-se à causa revolucionária. Apósintensa atividade em prol da conscientização dos trabalhadores, viajan-do a várias cidades francesas, Madame-la-Colère falece em 1844. Segun-do sua própria definição, evolui de pária a ativista feminista e socialista.Seu posicionamento político e sua sexualidade não são dados como ab-solutos, mas se vão construindo em relação com o Outro, do mesmomodo que seus pontos de vista sobre a religião.

Por sua vez, Gauguin conhece a experiência diaspórica ao morar,ainda criança, no Peru. Os deslocamentos espaciais se intensificam quan-do ele serve por sete anos à marinha, de 1865 a 1871. Depois, trabalhana bolsa de valores de Paris e se casa em 1873. A vida burguesa, à qualparecia se conformar, desmorona-se quando se encontra com a pinturae parte com a família à Dinamarca em 1884, de onde retorna em 1885,separando-se da mulher. Necessitando abrir mão da comodidade para sehabilitar à vocação, segue uma perspectiva idealista, que o leva a vivenciaras seguintes diásporas: Panamá e Martinica (1887); Bretanha (de 1888 a1890) e Taiti (1891-1893).

No último desses lugares, o artista busca o paraíso perdido, a serreencontrado entre os selvagens. Entretanto, aí havendo somente estilha-ços de um mundo livre dos preconceitos e do racionalismo europeus,

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retorna à França, onde fica até 1895, quando volta ao Taiti, de onde saipara as ilhas Marquesas em 1901. Ele crê que o arquipélago, onde morreem 1903, abrigaria os últimos resquícios de uma vida regida pelo prazer, aliberdade sexual e a ausência do dinheiro. Também pensa encontrar ocanibalismo e a primitiva arte da tatuagem.

Igual a sua avó, Koke está em constante movimento, em eterna pro-cura das utopias, que fazem valer o sentido semântico de não-lugar, doqual se reveste tal palavra. Ademais, a experiência homossexual do artistacom um taata vahine ou mahu, quer dizer, com um homem-mulher taitiano,delata a multiplicidade e a provisoriedade da sua identidade sexual. Eleassim se distancia dos papéis tradicionalmente definidos de homem emulher enquanto categorias sexuais.

No romance em análise, não ocorre uma idealização do passado,mas tanto a natureza dos referentes quanto sua relação com o mundo realsão problematizadas, o que poderia levar à sua classificação como“metaficção biográfica”,6 caso houvesse combinação com a auto-reflexividade metaficcional. A ausência do discurso que se volta sobre afeitura do texto afasta-o, portanto, da metaficção. De idêntica maneira, afalta de indicativos das fontes relativas aos dados biográficos aí inseridosnão estabelece a pura configuração das biografias.

Subgênero do amplo espaço biográfico, a biografia rege-se pela se-melhança, devendo definir a que campos do real aponta. Inicialmente, olivro é merecedor de averiguação sob o prisma dos Estudos Culturais porse aproximar a essa notação, que não compõe o conjunto da “alta cultura”e é recebida com êxito pelo público, assim como alcança ampla difusãopelos meios mediáticos. Por outro lado, sua proximidade — e concomitantenão enquadramento — ao romance histórico ou à metaficção biográficapós-moderna faz com que transite por aqueles entrelugares tão caros aoPós-Estruturalismo.

Os estudos pós-estruturalistas se constituem numa das mais signifi-cativas importações teóricas realizadas pelos Cultural studies britânicos.

6 Consideramos como metaficção biográfica aquela metaficção historiográfica cujo prota-gonista baseia-se num ser histórico, geralmente conhecido por outros meios. Parametaficção historiográfica, ver: HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história,teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 38.

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Trazida em suas reflexões, a posição relativa de limiar, de local-limite,ocupada pela referida narrativa, em função de sua impureza, é notadanesta passagem: “nem francês nem europeu, Paco. Embora minha apa-rência diga o contrário, sou um tatuado, um canibal, um desses negros ládo Taiti” (p. 131).

A representação da América Latina, região outrora colonizada, bemcomo a resposta às narrativas-mestras européias, provinda de um escritorcujo berço é uma ex-colônia, habilitam esse artefato de Vargas Llosa acerta perspectiva pós-colonialista, evidente na visão de que a arte deve“abrir-se ao mundo, misturar-se às demais culturas, arejar-se com outrosventos, outras paisagens, outros valores, outras raças, outras crenças, ou-tras formas de vida e de moral” (p. 446). Da mesma forma, oentrecruzamento das vidas dos protagonistas opera como exercício deliteratura comparada, ao justapor um homem e uma mulher; dois perío-dos distintos (meados e fim do século XIX); diferentes sociedades (Fran-ça, Peru, Inglaterra, Taiti e ilhas Marquesas); os escritos autobiográficosde Flora e a obra pictórica de Gauguin.

Todos os indícios pós-modernistas, pós-estruturalistas, pós-coloni-ais e comparatistas, detectados, mas não aprimorados nesse ensaio, emvirtude do enfoque culturalista a que nos propomos, servem para ratificara existência das mencionadas zonas de correspondência entre tais formu-lações críticas, as preocupações dos Estudos Culturais e as produçõesficcionais rotuladas como pós-modernas, na falta ainda de outro nome.

Uma vez que o romancista peruano é doutor em Filosofia e Letras7 etambém exerce atividades de crítico,8 parece transformar em prática literá-

7 Graduado em Literatura pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos (Lima,1958), no ano seguinte, o escritor recebeu bolsa de estudos para cursar doutorado emFilosofia e Letras na Universidad Complutense de Madrid. Defendeu a tese dedoutoramento em 1971. Cf. “MARIO VARGAS LLOSA”. Disponível em :http://www.mvargasllosa.com. Acesso em: 02/02/2006.

8 Entre as produções do crítico, estão: Carta de batalla por Tirant lo Blanc (1969); Historiasecreta de una novela (1969); García Márquez: historia de un deicidio (1971, tese de doutora-do); La orgía perpetua: Flaubert y Madame Bovary (1975); Entre Sartre y Camus (1981); Lautopía arcaica, José María Arguedas y las ficciones del indigenismo (1996); Cartas a un joven novelista(1997); El lenguaje de la pasión (1999); Bases para una interpretación de Ruben Darío (2001, tesede licenciatura); La verdad de las mentiras (2002); La tentación de lo imposible: Los Miserables deVictor Hugo (2004); Un demi-siècle avec Borges (2004).

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ria os seus conhecimentos das teorias mais proeminentes do século XX,abrindo-se a todas essas possíveis leituras, e pondo em ação a fecundainterdisciplinaridade que passara a balizar os Estudos Culturais na décadade 1970, a partir do reconhecimento dos limites dos estudiosos em relaçãoa áreas afins, como a economia, a história e a sociologia.

Dessa maneira, o autor em destaque vem a inserir, no plano de seuromance, os três mais importantes sinais que o Culturalismo desenvolveuaté os anos de 1980: o caráter interdisciplinar; a renovação dos objetos edos problemas da cultura; a combinação entre pesquisa e engajamento.9 Arecusa das hierarquias acadêmicas não passa apenas por aquela espécie deparódia da biografia, mas igualmente pela divulgação de textos popularese não-canônicos, aproveitados na narrativa ficcional lloseana.

No que se refere à construção de Flora, destacamos os opúsculosescritos pelo ser histórico que inspira essa personagem: A união operária;Peregrinações de uma excluída; As peregrinações de uma pária; Sobre a necessidade de daruma boa acolhida às estrangeiras; Passeios por Londres. Por outra via, as menções aFourier, Proudhon, Robert Owen, Saint-Simon, e ao livro A viagem porIcaria, de Étienne Cabet, provocam a recirculação desses autores, situadosà margem do “socialismo científico”. Muitas vezes tratados como repre-sentantes do “socialismo utópico”, sendo desprezados por sua carga deingenuidade e bizarrice, tais pensamentos desalojam outros “nobres”motivos de intertexto.

Igualmente, a organização dos capítulos dedicados à Flora é ori-entada por eventos que se desenrolam entre abril e novembro de 1844,à maneira de um diário íntimo, outra subespécie do espaço biográfico.As constantes viagens da memória, inseridas para recompor o passadoda protagonista, reforçam a modificação verificada no emprego dosobjetos dignos de estudo e o questionamento do cânone ocidental,literário ou historiográfico. É o que também ocorre no segmento

9 O engajamento assenta-se no compromisso com um projeto de transformação da exis-tência. Embora as ações engajadas circunscrevam-se ao século XX, sua ancestralidade éoutorgada a Pascal e Voltaire. Tais posturas encontram pontos de referência em Zola,Victor Hugo e Chateaubriand. A perspectiva do intelectual engajado, com figurinoideal em Jean-Paul Sartre, seria retomada por Pierre Bordieu. Cf. BENÔIT, Denis.Literatura e engajamento. Traduzido por Luiz Dagobert de Aguirra Roncari. São Paulo:EDUSC, 2002.

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centrado em Gauguin, pois todos os capítulos aí constantes são orga-nizados em função de telas produzidas pelo artista.10 Além disso, regis-tramos a referência ao livro que o teria inspirado a viajar ao Taiti: Lemariage de Loti ou Rarahu, de Pierre Loti.

Por curioso que possa parecer, não são as posições liberais de VargasLlosa que vêm à tona quando ele combina sua pesquisa histórica, resul-tante em artefato literário, com uma perspectiva engajada. Talengajamento se manifesta, entre outros fatos, na crítica à circulação dosistema literário, vulnerável às repercussões ideológicas da mídia, e re-presentada pelas dificuldades que a imprensa objeta à venda dos livrosde Flora, por ela mesma realizada, de porta em porta. Não deixa de serirônica a observação de uma das mais divulgadas premissas econômicasdo liberalismo — a lei do mercado — responsável pelo pauperismo dofim da vida de Gauguin, o qual somente após a morte alcança alta cota-ção nas flutuações das bolsas de arte européias.

Essas engrenagens mercadológicas assim nos são mostradas porNéstor Garcia Canclini:

Tanto o artista que, ao pendurar os quadros, propõe umaordem de leitura quanto o artesão, que articula suas peçasseguindo uma matriz única, descobrem que o mercado osdispersa e ressemantiza ao vendê-los em países diferentes, aconsumidores heterogêneos. Ao artista restam às vezes ascópias, ou slides, e algum dia um museu talvez reúna essesquadros, de acordo com a reavaliação que experimentaram,em uma mostra na qual uma ordem nova apagará a enunciação‘original’ do pintor. Ao artesão resta a possibilidade de repetirpeças semelhantes, ou ir vê-las — seriadas em uma ordem eem um discurso que não são os seus — num museu de artepopular ou em livros para turistas.11

10 As descrições das telas correspondem às reais pinturas de Gauguin. Cf.: “GAUGUIN,(Eugéne-Henri), Paul”. Disponível em: http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/gauguin. Acesso em: 31/01/2006.

11 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.4. ed. Traduzido por Heloíza Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. São Paulo: EDUSP, 2003.p. 330.

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Todavia, a remodelação da sociedade e de suas formas artísticas podecoincidir com as demandas dos movimentos sociais. A dimensão históri-ca do romance convoca vozes reprimidas pela história, ao elencar visõesde dois seres à margem da sociedade do século XIX, em função da etnia,da posição social, da sexualidade e do gênero. Além de contar com Florae Gauguin, a órbita romanesca é composta por outras personagens off-centro: escravos, homossexuais, índios, latino-americanos, meretrizes, mu-lheres, polinésios, proletários, negros. Apenas tangenciadas, quando nãoexcluídas, por tradicionais compêndios de feição historicista ou positivista,as histórias de seres ex-cêntricos são contempladas pelo narrador, entre-meando-se às vidas dos dois protagonistas.

Ilustram tal ocorrência, dentre outras, as passagens: da prostitutaencontrada por Gauguin no Panamá, conhecida por encarnar uma ver-são local do mito da “vagina dentada”; das meninas vendidas pela pró-pria família no Taiti; da freira arequipenha que se evade do convento,simulando a própria morte. Também compondo esse conjunto, desta-ca-se especialmente a figura feminina envolvida na atrapalhada revolu-ção que

começou quando, em Lima, a Convenção Nacional elegeu,para suceder ao presidente Agustín Gamarra, que terminouseu mandato, o grande marechal dom Luis José de Orbegoso,em vez do general Pedro Bermúdez, protegido de Gamarrae, sobretudo, da mulher deste, dona Francisca Zubiaga deGamarra, apelidada de Marechala, uma personagem cujaauréola de aventura e lenda a fascinou desde que dela ouvirafalar pela primeira vez. Dona Pancha, a Marechala, vestidade militar, havia combatido a cavalo ao lado de seu marido egovernado com ele. Quando Gamarra ocupou a presidência,ela teve tanta ou mais autoridade que o marechal nos assuntosdo governo e não vacilou em puxar uma arma para imporsua vontade, em brandir o chicote ou em esbofetear quemnão lhe obedecesse ou respeitasse, como teria feito o maisbeligerante macho (p. 277).

A interdisciplinaridade não se firma somente com as notadas ex-centricidades, peculiares ao Pós-Modernismo, mas também com as cor-rentes reestruturadoras dos estudos historiográficos. Do mesmo modoque os Estudos Culturais, essas tendências, abrigadas sob o rótulo de “Nova

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História”, cobraram vigor a partir da segunda metade do século XX.12

Como os novos historiógrafos, Vargas Llosa valoriza a oralidade, proce-dendo a freqüentes reenvios, contextualizações e rememorações de fatoscontados em outros momentos da trama.

Os casos lembrados pela memória recobram importância, remeten-do a essas narrativas, transmitidas de geração a geração, de que é exemploaquela controvertida batalha peruana:

E se todas aquelas batalhas fossem tão disparatadas comoa que você presenciou na Cidade Branca? Um caos humanoque, depois, os historiadores, para satisfazer o patriotismonacional, convertiam em coerentes manifestações deidealismo, valor, generosidade, princípios, nelas apagandotudo que fosse medo, estupidez, avidez, egoísmo,crueldade e ignorância da maioria, sacrificada de maneiraimplacável pela ambição, pela cobiça ou pelo fanatismoda minoria. [...] Sim, Florita: a história vivida era de umridículo cruel, e a escrita, um labirinto de imposturaspatrioteiras (p. 307-308).

A recorrência a personagens localizadas na base da pirâmide socialconforma o campo da “história vista de baixo”,13 ângulo também favo-recido pelo pintor da obra pictórica A irmã de caridade, cuja voz é proces-sada pelo autor do livro O paraíso na outra esquina: “Um quadro que mos-trava a total incompatibilidade de duas culturas, de seus costumes ereligiões, a superioridade estética e moral do povo fraco e avassalado e ainferioridade decadente e repressora do povo forte e avassalador” (p.480). Aos marcados intertextos com a economia e a história, soma-se odiálogo com a sociologia, por meio de uma perspectiva que não ratifica

12 Após 1930, novas tendências historiográficas reagiram à história política e factual, àobjetividade e à explicação centrada em ações individuais. Desde os anos de 60/70, achamada Nova História abarca as histórias da mulher, da cultura, as mentalidadesetc. Ver: BURKE, Peter. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:Ed. UNESP, 1992. LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes,1998.

13 O termo provém do ensaio de Edward Thompson (1966), nomeando abordagens alter-nativas à história das elites. Abre possibilidades de sínteses mais ricas do processo histó-rico, proporcionando meio de reintegrá-lo aos que podiam tê-lo por perdido. SHARPE,Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, 1992, p. 38-62.

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as redutoras oposições binárias opressor x oprimido, dominante x do-minado, centro-periferia, ao considerar as diversas condições atravésdas quais se processa a hegemonia, por cujo intermédio são alocadas adireção e a manutenção de determinada ordem social, tanto em socieda-des periféricas (América Latina, Polinésia) quanto em capitalistas cen-trais (Europa).

As ações dos grandes industriais e banqueiros europeus, das eliteslocais e dos colonos do terceiro mundo, aliadas à presença das igrejas cató-licas e protestantes, não são vistas como determinadas. Do contrário, éenfatizada a criação da própria história dos oprimidos por meio de sualuta social, a investir contra o poder financeiro e patriarcal no segmentoprotagonizado por Flora e contra a moral burguesa na parte centralizadaem Gauguin. Em lugar de um posicionamento populista, que abordariaas culturas à margem da dominante, mas continuaria a ter essa como legí-tima, notamos o relevo dado às estruturas de sentimento, responsáveis,junto a outros fatores, pelas diferenças entre as identidades nacionais, ét-nicas, sexuais ou regionais.

A observação mais próxima das interações sociais no cotidiano edos significados e valores culturais das diferentes sociedades revela umquadro em que a sombria Europa se descortina tão ou mais miserável doque a América Latina e a Polinésia. Essas duas regiões são narradas comsol e colorido, ainda que não seja omitido o enorme abismo entre suasclasses, nem obliteradas as circunstâncias e estruturas de suas pobrezas.

A presença de uma cultura dominante (branca européia) asseguracomunicação imediata entre todos os seus membros, radicados na pró-pria matriz ou em outros continentes, contribuindo à desmobilizaçãodas classes dominadas (índios, escravos, proletários europeus etc). Aordem estabelecida é legitimada através da hierarquização, de maneiraque as culturas dominadas se definem por sua distância em relação àdominante. A hierarquia se estabelece, fundamentalmente, por meiodo poder simbólico do jornal, do romance e do cristianismo, seja elecatólico ou protestante. As culturas locais ou regionais, contrapostas aessa forma de dominação, dão sinais de resistência, como nas festastaitianas onde os nativos usufruem a liberdade sexual, nas celebraçõesreligiosas dos indígenas peruanos, nas crenças e superstições desses po-vos, na manutenção das línguas quíchua no Peru e maori na Polinésia.

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Por sua vez, Flora e Gauguin resultam do consenso entre culturasem choque, mesmo que se oponham à cultura dominante. Eles capitali-zam simbolicamente os frutos dessa oposição e de suas inclinações àsculturas subalternas, transferindo-os à ação política e artística, que os tor-na reconhecidos nessas áreas, embora tardiamente. Contra a vontade deambos, a extrema-unção recebida pela feminista e o enterro do pintor emcemitério católico são sintomáticos do poder simbólico, “uma forma trans-formada, quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das ou-tras formas de poder”.14

A força dos símbolos hegemônicos, a advogar uma identidade cons-tituída na negação do Outro, transparece nos mundos sociais do séculoXIX. A representação dessas sociedades, alicerçadas sob a bandeira daconstrução de nacionalidades homogêneas, faz com que aflorem ques-tões correspondentes à “virada etnográfica”15 sofrida pelos Estudos Cul-turais a partir da década de 80 do século XX. Assim, Madame-la-Colère eKoke fazem parte de um manifesto processo de degradação dos limitesque moldam tanto suas identidades individuais quanto as culturas nacio-nais do Peru, Taiti e ilhas Marquesas, de França e Inglaterra.

Os protagonistas são definidos através de suas situações relativas adiversas coordenadas (classe, etnia, gênero, nação), não se reduzindo auma delas. Estreitamente vinculando-se a tal incidência, são levados emconta os fluxos migratórios, ocorridos massivamente nos anos de 1800.Do mesmo modo, a homogeneização/diferenciação, presentes em tal épo-ca, ainda que só tivessem se agravado no final do século XX, pondo emrisco a organização do Estado-nação, da cultura e da política nacional:

No mundo contemporâneo, essas ‘comunidades imaginadas’estão sendo contestadas e reconstituídas. A idéia de umaidentidade européia, por exemplo, defendida por partidospolíticos de extrema direita, surgiu, recentemente, como

14 BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. 7. ed. Trad. por Fernando Tomaz. São Paulo:Bertrand, 2004. p. 15.

15 A “virada etnográfica” pode ser pensada como identificação dos meios mais eficazes paraanalisar em campo enigmas ligados a processos de decomposição/recomposiçãoidentitária, compreender consumos culturais e “prazeres’ midiáticos” que poderiamparecer escandalosos a intelectuais marcados pelo marxismo. Confira: MATTELART,André; NEVEU, Érik. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola, 2004. p. 110.

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uma reação à suposta ameaça do ‘Outro’. Esse ‘Outro’ muitofreqüentemente se refere a trabalhadores da África do Norte(Marrocos, Tunísia e Argélia), os quais são representadoscomo uma ameaça cuja origem estaria no seu supostofundamentalismo islâmico. Essa atitude é, cada vez mais,encontrada nas políticas oficiais de imigração da UniãoEuropéia (King, 1995). Podemos vê-la como a projeção deuma nova forma daquilo que Edward Said (1978) chamoude ‘orientalismo’ — a tendência da cultura ocidental aproduzir um conjunto de pressupostos e representaçõessobre o ‘Oriente’ que o constrói como uma fonte defascinação e perigo, como exótico e, ao mesmo tempo,ameaçador.16

Ainda sob o prisma da reconfiguração dos Estudos Culturais, as lu-tas verificadas no romance dão-se no terreno dos movimentos sociais,como provam a insuflação dos marquesanos contra os impostos, realiza-da por Koke, e as pregações da Andaluza, visando à união dos operáriosfranceses, independentemente de agremiações partidárias. Outra impor-tante marca da virada etnográfica é o desvendamento dos mecanismos decodificação/decodificação, relacionado à ativa receptividade dos produ-tos da mídia, principalmente, da televisiva.

A aferição dessa incidência numa obra literária torna-se um poucodificultada, em virtude da indisponibilidade dos meios interativos de quea televisão se utiliza, muitos deles, financiados por merchandising, campa-nhas governamentais, anúncios publicitários etc. Entretanto, não deixade ser conveniente a averiguação da maneira pela qual o livro, como pro-duto cultural, tem sua recepção orientada, não por profissionais das le-tras, mas pelos representantes da grande imprensa.

No caso da edição brasileira d’O paraíso na outra esquina, isso é atestadopor sua contracapa, onde cintilam três releases apreciativos de talheimpressionista, extraídos dos jornais O Estado de São Paulo, Folha de São Pauloe O Globo, todos do centro do país. Na discussão do circuito de produção-circulação-recepção dos artefatos literários, também não poderíamos pas-

16 WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos cultu-rais. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 07-72, p. 24.

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sar ao largo de um fato que nos vem provocando, desde a primeira leiturado romance em apreciação: a simpatia do autor por suas personagens re-volucionárias e libertárias.

Isso poderia ser tomado como estratégia de marketing e se vinculara uma abordagem de economia política da mídia e da cultura, viés umpouco esquecido pelos Estudos Culturais desde os anos de 1980, com adespolitização e marginalização dos “pais fundadores” (Hoggart,Thompson, Williams, Hall), em benefício de autores catalogados comopós-modernos. Então, reconhecendo seu público-alvo naqueles que pode-riam comungar com suas discussões teóricas sobre a literatura, será queVargas Llosa estaria submetendo suas concepções ideológicas17 ao raciocí-nio econômico da rentabilidade em curto prazo e se orientando em fun-ção dos horizontes de expectativas de seus virtuais leitores?

Caso essa hipótese pudesse ser confirmada, não teria sido maisfácil associar-se à moda teoricista da relativização e da desconstruçãoindiscriminadas? No entanto, o escritor peruano conserva a perspecti-va do embate, da prática construtora dos espaços de negociação e trans-formação, aliando-se às questões com as quais se defrontavam os Estu-dos de Cultura nos anos de 1970 e que devem ser retomadas, não seriademais repetir. O estatuto do cultural, a observação das conexõesinterdisciplinares produtivas e o modo como o engajamento pode mo-ver o trabalho intelectual são trazidos à luz pelo romance em tela, cujaambientação no século XIX parece sinalizar para as mudanças na eco-nomia global.

Nesta fase do sistema econômico mundial, a que Frederic Jamesonchama de “capitalismo tardio”,18 as lutas passam a ser fragmentadas,agrupando-se majoritariamente em torno de entraves sofridos por gru-pos que, em muitos casos, já não são minoritários. As necessidades deentrada no mercado de trabalho, reconhecimento dos direitos civis, li-

17 Tais concepções podem ser conhecidas por meio do livro de memórias El pez en el agua(1993), bem como por publicações de cunho político, reunidas em: Contra viento y marea(1980-1993); A Writer’s Reality (1991); Desafíos a la libertad (1994); Making Waves (1996); Piedrade toque (2001).

18 JAMESON, Fredric. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. Traduzi-do por Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1996.

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vre orientação sexual ou mesmo de um visto de permanência revelam-se mais urgentes do que os dogmas revolucionários. As condições obje-tivas e subjetivas de uma radical transformação da ordem vigente vêem-se obstaculizadas em virtude da dispersão do proletariado, cujos pa-trões estão, a cada dia, mais distantes e inacessíveis, em função dainternacionalização do capital.

Em tal cenário, ganham importância a volta da história no domínioda literatura, a ênfase na recepção e a atenção aos estudos pós-coloniais,juntamente com a rejeição aos binarismos rígidos ao redor da cultura demassa e da alta cultura. Como os Estudos Culturais constituem-se numaformação discursiva, não têm origem única, abarcam discursos múltiplose se recusam a ser uma grande narrativa, resultam proveitosas as suasinterdisciplinaridades com a Literatura Comparada, o Pós-Colonialismo,o Pós-Estruturalismo e o Pós-Modernismo.

Esse não é nem pode ser rejeitado inteiramente, pois registra mu-danças estilísticas no que se pode chamar de dominante cultural. Sua arti-culação com o Culturalismo, o qual também não basta como paradigmaauto-suficiente para a prática analítica, mostra-se frutífera ao consideraras políticas culturais da diferença, de lutas em torno do diferente, da pro-dução de novas identidades e da entrada de novos sujeitos na cena políticae cultural, como bem observa Stuart Hall.19

É assim que a estruturação da obra literária O paraíso na outra esquinaoxigena o dominante gênero romanesco,20 valendo-se de estratégias daliteratura biográfica, leque narrativo que, por sua vez, se constitui emmanifestação de uma cultura residual, a termos em vista sua gênese eexpressividade no Ocidente do século XVIII, a pequena utilização poste-rior e a revitalização por que passa no final do século XX. Configura-seentão uma tradição emergente, geralmente associada a posicionamentosem torno da revitalização do passado discursivo e de novas identidades,até então marginalizadas pelo discurso literário hegemônico, mas quepassam a compor o cenário sócio-cultural da pós-modernidade.

19 HALL, op. cit., p. 25-50.20 WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Traduzi-

do por Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 261-262.

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Exemplar dessa emergência, o romance em exame mostra que ospluricentros geográficos nele representados correlacionam-se àsmultidimensionalidades dos sujeitos nele envolvidos. Narrador e perso-nagens indicam que o paraíso das utopias pode estar sempre mais adiante,mas o engajamento não foi abolido, nem substancialmente modificadoao se hibridizar na “atuação” de Canclini21 ou na “agência” de HomiBhabha.22 Mudaram, sim, as arenas onde os combates são travados, demodo que um livro, uma disciplina acadêmica, um trabalho crítico sedesincumbem da ilusória pretensão de sozinhos desafiarem as estruturasde um poderio multipolar que se solidifica vertiginosamente neste tercei-ro milênio.

Entretanto, ao revelarem os mecanismos de fixação e manutençãoda hegemonia, e ao oferecerem meios de expressão às culturas subalter-nas, operam como locais de combate, cuja eficácia fica comprometidacaso se desalojem de práticas sociais correspondentes e mutuamenteimplicadas às renovações da esfera teórica. Já que a obra aqui analisadadesvia-se das posições conservadoras publicamente assumidas por seu au-tor, resta-nos torcer para que o fracasso do político liberal continue aceder espaço ao sucesso do romancista engajado, num tempo em que, talcomo o operário daquele filme italiano, esquerda e direita também esbar-ram em problemas de identidade.23

21 Mais do que ações, as práticas culturais são atuações. Representam, simulam as açõessociais, mas só às vezes operam como ação. Talvez o maior interesse para a política deconsiderar a problemática simbólica não resida na eficácia pontual de certos bens oumensagens, mas em que os aspectos teatrais e rituais do social evidenciam o oblíquo, osimulado e o distinto em qualquer interação. CANCLINI, 2003, p. 350.

22 A agência pós-colonial é a ação que subverte o discurso imperialista. Os elementos deconsciência social imperativos para a agência (ação deliberativa, individuada eespecificidade de análise) podem ser pensados agora como externos à epistemologia queinsiste no sujeito anterior ao social ou no saber do social negando a diferença particularna homogeneidade transcendente do geral. Cf. BHABHA, Homi K. O pós-colonial e opós-moderno: a questão da agência. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2003. p. 239-274.

23 Referimo-nos ao filme A classe operária vai ao paraíso (1971), no qual um operário-modelodefronta-se com a tensão entre a descoberta da consciência de classe e os sonhos deconsumo da classe média. A CLASSE OPERÁRIA vai ao paraíso. Direção: Elio Petri.Produção: Ugo Tucci. Itália: Euro International Film, 1971. 01 videocassete.

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ABSTRACT

This paper aims at analyzing the novel El paraíso en laotra esquina [The paradise in the other corner], by MarioVargas Llosa, under some points of view developedby the Cultural Studies. The narrator’s engagedposition is put in relief, showing that this peculiaritycontradicts the ideological principles assumed by thePeruvian writer.

KEY-WORDS: Cultural Studies; Latin-AmericanNovel; Vargas Llosa.