os espelhos do jaguar e o que seus olhos viram na outra margem do rio. repensando o...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA LAÍSA FERNANDES TOSSIN OS ESPELHOS DO JAGUAR e o que seus olhos viram na outra margem do rio. Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas Campinas 2017

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

    DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA

    LAÍSA FERNANDES TOSSIN

    OS ESPELHOS DO JAGUAR

    e o que seus olhos viram na outra margem do rio. Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas

    Campinas 2017

  • LAÍSA FERNANDES TOSSIN

    OS ESPELHOS DO JAGUAR e o que seus olhos viram na outra margem do rio.

    Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas

    Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística, do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito para a obtenção do Título de Doutora em Linguística.

    Orientador: Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães

    Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela aluna Laísa Fernandes Tossin e orientada pelo Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães.

    Campinas 2017

  • Agência(s) de fomento e no(s) de processo(s): Não se aplica.

    Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas

    Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

    Informações para Biblioteca Digital

    Título em outro idioma: The jaguar's mirror and what his eyes saw on the other bank of the river : rethinking the scientific discourse on indigenous languages Palavras-chave em inglês: Indian languages - Discourse analysis Linguistic ideas - History Designation (Linguistics) Semantics of the event Linguistics - Research Public archives - Brazil Universities and colleges - Brazil Área de concentração: Linguística Titulação: Doutora em Linguística Banca examinadora: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães [Orientador] Lauro Baldini José Horta Nunes Gersem José dos Santos Luciano Isadora Machado Data de defesa: 20-06-2017 Programa de Pós-Graduação: Linguística

    Tossin, Laísa Fernandes, 1972- T639e TosOs espelhos do jaguar e o que seus olhos viram na outra margem do rio. repensando o discurso científico sobre as línguas indígenas / Laísa Fernandes Tossin. – Campinas, SP : [s.n.], 2017. T Orientador: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães. Tos Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Línguas indígenas - Análise do discurso. 2. Ideias linguísticas - História. 3. Designação (Linguística). 4. Semântica do acontecimento. 5. Linguística - Pesquisa. 6. Arquivos públicos - Brasil. 7. Universidades e faculdades - Brasil. I. Guimarães, Eduardo,1948-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

  • Comissão Examinadora Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães Orientador (Presidente) Dra. Isadora Lima Machado – Universidade Federal da Bahia Dr. Gersem José dos Santos Luciano – Universidade Federal do Amazonas Dr. José Horta Nunes – Universidade Estadual de Campinas Dr. Lauro José Siqueira Baldini – Universidade Estadual de Campinas Suplentes Dr. Eduardo Alves Vasconcelos – Universidade Federal do Amapá Dr. Claudia Freitas Reis – Instituto Federal de São Paulo – Araraquara Dra. Alcida Rita Ramos – Universidade de Brasília

    A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

  • Para Júlia, Pedro e Lucas

  • Resumo Nesta tese, faço uma extensa pesquisa documental e bibliográfica referente ao

    século XVI, em acervos digitais de grandes universidades e arquivos públicos. Por isso, este trabalho se posiciona na História das Ideias Linguísticas, como uma História dos Conceitos. Portanto, usei o procedimento metodológico previsto por Reinhart Koselleck. Para o corpus, foram escolhidas fontes primárias e textos clássicos. Para cada afirmação linguística presente nas fontes, foi apresentado um cenário histórico concreto. Para a interpretação dos textos, vali-me da Análise do Discurso, como proposta por Eni Orlandi. Para entender as relações entre o acontecimento histórico e as designações que se estabelecem como memórias discursivas posteriormente, usei categorias da Semântica do Acontecimento como elaboradas por Eduardo Guimarães. O que este tipo de interpretação demonstrou foi uma rigidez imperiosa de acomodar a realidade ao mesmo conjunto de categorias e conceitos. Examino a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e índios, e proponho que deste convívio teria surgido uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de línguas indígenas, mas onde não havia uma língua indígena homogênea e previamente existente no litoral do Brasil. O que serve de questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção lexical.

    Palavras-chave: História das ideias linguísticas; História dos conceitos; Discurso científico sobre Línguas Indígenas.

  • Abstract In this thesis, I do an extensive documentary and bibliographical research of 16th century, in digital collections of great universities and public archives. Therefore, this work is positioned in the History of Linguistic Ideas, as a History of Concepts. Therefore, I used the methodological procedure provided by Reinhart Koselleck. For the corpus were chosen primary sources and classic texts. For each linguistic assertion present in the sources, a concrete historical scenario was presented. For the interpretation of the texts, I used Discourse Analysis, as proposed by Eni Orlandi. In order to understand the relations between the historical event and the descriptions that are established as discursive memories later, I have used categories of the Semantics of the Event as elaborated by Eduardo Guimarães. What this type of interpretation demonstrated was an imperious rigidity of accommodating reality to the same set of categories and concepts. I examine the Tupi language, or General Language, from the point of view of the multiethnic and multilingual coexistence favored by the settlements and the simultaneous slavery of blacks and indians, and I propose that from this coexistence have arisen a Cryola language, influenced by Quimbundo, Angola language, and indigenous languages, but where there was no indigenous language previously existing on the Brazilian coast. This is an argument against the establishment of language families based on lexical retention. Keywords: History of Linguistics ideas; History of concepts; Cientific discourse about Indigenous languages.

  • SUMÁRIO 1. Introdução ...................................................................................................10

    1.1 Objetivo da tese .......................................................................................17

    1.2 Coleta de dados .......................................................................................18

    1.2.1 Os acervos .........................................................................................19

    1.3 Metodologia .............................................................................................21

    1.4 Estrutura da tese ......................................................................................23

    2. Palimpsestos caribenhos ..............................................................................27

    2.1 Narrativas sobre a alteridade, uma longa tradição ……………………30 2.2 A história de Colombo, uma narrativa fundadora ……………….…….34 2.3 De olhos bem fechados, a narrativa da descoberta ………………..…..40

    3. Caribes de Colombo, caraíbas de Cabral ..................................................53

    3.1 Caribes e aruacos ...................................................................................53 3.2 Caraíbas ou canibais? ............................................................................58 3.3 Caraíbas, os falsos profetas ………………………………...………….61 3.4 O branco caraíba ……………………………………………....……....64 3.5 Um problema conceitual .........................................................................67 3.6 A origem da humanidade, uma narrativa inacabada .............................68

    4. Tapuya de tembetá é tupinambá?...............................................................73

    4.1 Hic et ubique.............................................................................................76

    4.2 Narrativas da construção do Brasil, a miscigenação ……………...….. 82

    4.3 Língua geral ............................................................................................ 88

    4.4 Jês e Tupis ……………………………………………………………... 92

    4.5 Gramática Tupi …………………………………………………...…….98

    5. Cientificismo canibal ..................................................................................103

    5.1 Scientia et sapientia ................................................................................103 5.2 Uma história social do sujeito gramatical..............................................106 5.3 A voz que serve a Deus ………………………………………..…….....120

    6. A natureza pelo avesso.................................................................................123

    6.1 As regras da natureza ………………………………………..………...132 6.2 O dom da linguagem ………………………………………..………….128 6.3 O dom da palavra ....................................................................................133 6.4 Natureza e linguagem ..............................................................................138 6.5 A origem da humanidade, uma narrativa ainda inacabada ....................140

    7. A voz dos esquecidos......................................................................................143

    7.1 A linguagem no jogo do dito e do não-dito ..............................................149

  • 7.2 Fósseis linguísticos ....................................................................................155 8. Epílogo .............................................................................................................168

    9. Bibliografia ......................................................................................................172

    10. Anexo I .............................................................................................................187

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    1. INTRODUÇÃO

    A história das palavras científicas não

    passa unicamente pelos cientistas autênticos que as utilizaram

    cientemente. Esta história passa também por aqueles que herdaram o vocabulário sem o método, buscando

    nele inspiração barata, ou um meio de impressionar o público pouco apto a

    discernir as diferenças. (Starobinski, 2002, p. 43)

    Conta a história1 que, em um dia de muito calor, o jaguar encontrou o jacaré na

    beira do rio divertindo-se em mandar seus olhos passearem na outra margem e ficou

    fascinado com aquela possibilidade. Pediu, então, ao jacaré que mandasse seus olhos

    à outra margem também. O jacaré concordou e mandou os olhos do jaguar passearem

    do outro lado do rio, depois chamou-os de volta e os devolveu ao jaguar, mas o jaguar

    queria mais. O jacaré explicou que era muito perigoso, pois o peixe-monstro poderia

    comer os olhos dele, mas o jaguar insistiu e o jacaré, a contra gosto, enviou-lhe os

    olhos de novo à outra margem. O peixe-monstro estava à espreita e comeu os olhos do

    jaguar. Cego e triste o jaguar perambulou pela floresta até que o gavião real decidiu

    ajudá-lo a recuperar a visão, derramando leite de jatobá no vazio dos olhos do jaguar.

    O jaguar recuperou a visão e ganhou um par de olhos mais claros do que os anteriores

    e os dois se tornaram amigos. Por isso, ainda hoje, o jaguar deixa uma parte de sua

    caça para o gavião real.

    O jaguar evoca o animal xamânico por excelência. Com a pele do jaguar, o

    xamã cruza os limites humanos e entra no mundo metafísico, em sua jornada solitária

    na busca da cura e da manutenção do mundo, iluminada pelos espelhos2 do jaguar,

    como faróis na escuridão. Tomei emprestadas as lentes do jaguar para poder ver o que

    havia na outra margem do rio e vesti a pele do jaguar para poder transitar entre

    realidades, as várias que acompanham o desenrolar deste trabalho. Assim, protegida

    sob a pele do jaguar e com seus espelhos a iluminar meu caminho, empreendi minha

    jornada de cura e transformação.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 História do folclore amazônico compilada em Os animais e a psique, de Denise Gimenez Ramos, Summus Editorial, vol. 1, p. 212, 2005. 2 Os olhos dos felinos possuem uma estrutura refletora, localizada atrás da retina que espelha a luz que entra em seus olhos, seja o brilho de uma estrela ou um raio de luar, ajudando-os a enxergar com mais nitidez. Por isso, são os espelhos e não os olhos do jaguar a mostrar o caminho.!

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    Inicialmente, no mestrado, a jornada me levou ao Cerrado. Foi o contato com

    a descrição da língua Apinajé que me submergiu na realidade das sociedades rituais,

    das metades cerimoniais, das cerimônias de nomeação e dos desacertos com o

    trabalho descritivo da língua. Embora o trabalho tenha se configurado como

    exclusivamente bibliográfico, os desencontros com as descrições propostas por outras

    linguistas foram inevitáveis. Eu procurava entender se eram pertinentes as distinções

    sujeito e verbo, sujeito e objeto, como categorias gramaticais das línguas indígenas a

    priori, ou se estas eram apenas projeções de nossas categorias gramaticais ocidentais,

    construídas ao longo de um processo histórico de elaboração conceitual que se

    estabeleceu como científico e, portanto, universal.

    Foi com a segunda etapa da jornada sob a pele do jaguar já iniciada que ouvi

    de um jovem Tukano, estudante de pós-graduação em Antropologia, a pergunta mais

    difícil de ser respondida: “por que os índios? Por que não ajudar os teus parentes?”

    Havia na contestação dele uma raiva mal-dissimulada, ele estava inconformado com o

    arrepio que o exótico provoca, profundamente chateado com a imagem de selvagem

    que ele mesmo carrega. Eu não sabia o que dizer. Exausta pelo cansativo trabalho

    intelectual de redação da tese me perguntei se realmente não teria sido melhor ajudar

    meus parentes, mas eu escolhi estudar línguas indígenas, por quê? Para me forçar a

    lidar com a alteridade de maneira maximizada. Nesta empreitada, me deparei com

    uma realidade bifurcada: ou existe uma única verdade humana e a estamos revelando

    constantemente ou esbarramos, ininterruptamente, na redoma de vidro de nossas

    convicções conceituais. Optei pela perspectiva da redoma de vidro conceitual.

    ***

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    Primeiramente, pensei em começar a pesquisa com a fundação da

    Universidade de São Paulo (USP), em 1934. Conta Lucy Seki (1999, p. 236) que, no

    ano seguinte à sua criação, foi incluída, nos cursos de História e Geografia, a cadeira

    de Língua Tupi-Guarani e Tupinologia, ministrada por Plínio Ayrosa, com estudos de

    caráter filológico, etimológico e histórico, inaugurando assim o estudo superior

    dedicado ao índio. De acordo com Maria Cristina Altman (1998, p. 46-60), que

    estudou a pesquisa linguística no Brasil, a princípio, a implantação dos estudos de

    línguas indígenas esteve associada aos departamentos de Antropologia, ao longo do

    tempo, foi deslocada aos cursos de Letras, passando a integrar a cadeia de disciplinas

    de formação de professores de língua portuguesa para o ensino fundamental e médio.

    Assim, tanto a Linguística quanto os estudos de línguas indígenas entraram no

    currículo previsto para a formação profissionalizante do professor, não visando o

    desenvolvimento de reflexões propriamente linguísticas, mas servindo como uma

    ferramenta para o entendimento da complexidade da formação e do estabelecimento

    da língua nacional, entendida aqui como a língua portuguesa do Brasil. Bruna

    Franchetto e Ionne Leite (1983, p. 15-30), que historiografaram a pesquisa em

    Línguas Indígenas no Brasil, divulgaram que, com um programa financiado pela

    Fundação Ford que visava à melhoria do ensino da língua portuguesa e entendia as

    línguas indígenas como um “subproduto nacional”, a pesquisa em Línguas Indígenas,

    então sediada no Museu Nacional, se deslocou para o curso de Letras da UFRJ, com o

    intuito de formar professores.

    Ao longo da leitura de textos como Sobre a necessidade do estudo e ensino

    das línguas indígenas do Brazil, de Adolfo Varnhagen e Do método de estudo das

    línguas sul-americanas, de José Oiticica, de 1933, onde já vigoravam as ideias

    apresentadas por Aryon Rodrigues na reunião da Associação Brasileira de

    Antropologia, em 1966, em seu discurso Tarefas da Linguística no Brasil, percebi que

    havia consenso sobre a extinção das línguas e a necessidade de sua documentação e

    estudo. Percebi também que havia um nó no discurso científico sobre as línguas

    indígenas, um conjunto de categorias linguísticas que serviam como referências

    identitárias e de pertencimento. Estas categorias estavam cristalizadas como famílias

    linguísticas, são elas: tupi, guarani, arawak e caribe, e representam uma geografia

    nacional da nomeação do índio, intrinsecamente política, desde o descobrimento, e

    que foram transpostas para o estudo científico do índio como categorias linguísticas

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    específicas. O uso destas categorias se dá em decorrência do discurso gerado e

    compartilhado sobre as línguas indígenas, suas origens e suas relações históricas.

    Alexandra Aikhenvald e Robert Dixon (1999, p. xxvi), editores do grande

    manual The Amazonian Languages, garantiram que as contribuições publicadas em

    seu livro estão de acordo com a Teoria Linguística Básica (Basic Linguistic Theory),

    desenvolvida a partir das descrições linguísticas acumuladas em uma única tradição

    que já perdura 2.000 anos, evidenciando este arcabouço fidedigno com o exemplo da

    tradição das gramáticas que foram elaboradas exatamente sob esses parâmetros. Era

    exatamente este o problema que eu percebia. Se a tradição de descrição linguística

    acumula dados há 2.000 anos, então ela se desenvolveu junto ao processo histórico de

    elaboração conceitual científico ocidental, amalgamando os dois. Os conceitos

    elaborados pelo pensamento científico se solidificaram em conceitos linguísticos e

    gramaticais quase inseparáveis: sujeito, objeto, verbo, palavra, fonema e todas as suas

    subformas e variações. Como isso aconteceu? Bom... escrevi esta tese para entender o

    caminho histórico de elaboração conceitual científica, principalmente, sobre as

    línguas indígenas faladas no Brasil.

    Além da tradição da ciência e da filosofia desenvolvidas em torno das

    descrições linguísticas, há a tradição de descrição linguística acumulada ao longo do

    trabalho desenvolvido no Brasil que remonta ao descobrimento e passa

    inevitavelmente pelas descrições e gramáticas elaboradas pelos missionários e pelos

    naturalistas que estiveram aqui. Foi nestas fontes que decidi mergulhar e foi por meio

    delas que refiz o trajeto de constituição do discurso científico sobre as línguas

    indígenas faladas na América e suas implicações para a descrição linguística dessas

    línguas. Algumas reflexões já começaram a ser divulgadas. Refiro-me precisamente à

    minha dissertação de mestrado que, após os estudos iniciais do doutorado, passou por

    uma revisão, da qual surgiram dois artigos, um sobre os pronomes pessoais e a noção

    de pessoa Apinajé3, em que questiono a noção pronominal centrada no ‘eu’. E o outro

    sobre o termo kra, recentemente publicado, em que questiono o porquê de os

    classificadores em línguas indígenas sempre remeterem à esfera do concreto, da

    realidade imediata, do natural.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 Segundo Mansur Guérios (1948, p. 9), os etnômios “são dados pelas mesmas tribos, pelas vizinhas, e pelos europeus.” O autor ressaltou a consideração de Trombetti que observou que os etnômios em geral significam “humano verdadeiro”, mas no entanto a origem ou a história deste etnômio é frequentemente desconhecida. Adotei o termo Apinajé por ser a referência bibliográfica mais comum sobre o povo e a língua falada por este povo, exatamente por se tratar de um trabalho de compilação bibliográfica sem visita a campo.

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    14!

    Para o artigo sobre o termo kra, resgatei a discussão apontada por Christiane

    Oliveira (2005, p. 61), em sua tese de doutorado. Ela argumentou a impossibilidade

    de comprovar em campo a existência da vogal nasal [ã] em apinajé, rechaçando o

    proposto por Pamela Ham (1961, p. 4), portanto, não a incluiu em seu quadro de

    fonemas vogais da língua. Os pares krá/krã ou krá/kra, se usados como pares

    opositores, testam a presença dos fonemas da vogal ‘a’ aberta e nasal na língua. Tanto

    Pamela Ham quanto Christiane Oliveira trataram-nos como dois itens lexicais

    diferentes e consideraram que krá (vogal ‘a’ aberta) significa ‘filho/criança’. Pamela

    Ham (1961, p. 19) considerou que krã (vogal ‘a’ nasal) significa ‘cabeça’, e

    Christiane Oliveira (2005, p. 145) que kra (vogal ‘a’ média) também significa

    ‘cabeça’. Em ambos os casos, a distinção lexical é definida pela existência de

    oposição fonológica entre estas vogais. Talvez, krã/kra sequer signifique ‘cabeça’,

    mas sim conduza ao entendimento mais amplo da compreensão de corpo e de pessoa

    apinajé, assim como do mundo que os cerca. Porém, as concepções expressas por

    estas palavras representam algo bem maior e mais extenso do que sua limitada

    tradução para o português pôde abranger. Ao fazer uma pequena lista de palavras

    relacionadas a termos de parentesco, pude perceber que o termo krã ou kra, embora

    traduzido literalmente como ‘cabeça’, aparece diretamente relacionado à ‘criança’.

    Um homem chamará de ikrá aos seus filhos e aos filhos de suas cunhadas, embora

    faça distinção entre sua esposa e suas cunhadas em um relacionamento regido por

    piam (respeito). Da mesma forma, a mulher chamará de ikrá seus filhos e os filhos de

    suas irmãs, portanto, krá não é exclusivamente o filho gerado pela união sexual dos

    genitores, se aproxima mais de um termo de parentesco que estabelece lugares sociais

    para cada ente dentro do grupo. No sistema de nomeação apinajé, como explicitado

    por Roberto da Matta (1976, p. 85-112), os genitores escolhem, entre seus amigos

    formais, aquele que dará nomes à criança. Após estabelecida a formalidade, o

    nomeador e o nomeado passam a se tratar pelos seguintes termos:

    krã-geti ‘nomeador’ (literalmente, ‘cabeça velha’)

    pakrã ‘nomeado’ (literalmente, ‘cabeça nova’)

    Embora, literalmente seja ‘cabeça’, semanticamente, remete à ‘criança/filho’.

    Se visualizarmos que, ao nascer, a primeira parte do corpo do bebê que desponta no

    canal vaginal é a cabeça teríamos uma unidade semântica que se estende de krá/kra

    alcançando krã. Jean Starobinski (2002, p. 13) nos propôs que a história de cada

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    15!

    palavra seria criada no devir histórico de cada língua, tendo seus desenvolvimentos

    fortemente alicerçados em sua própria história. A questão colocada aqui seria como

    perceber essa história de construção de sentido, incluídas suas mudanças de sentido

    que seriam tão significativas quanto o sentido original, em línguas das quais não

    conhecemos a trajetória histórica de construção do sentido. Haveria possibilidade de

    acessar este conhecimento? Haveria possibilidade de transpor os nossos limites

    conceituais para compreender outros sentidos, construídos sob outra memória

    discursiva? Tentarei, tomando algumas considerações etnográficas elaboradas por

    Roberto da Matta, estabelecer uma relação de sentidos que possa apontar uma direção

    histórica de construção dos sentidos implicados no conjunto semântico krá/kra/ krã.

    Para Roberto da Matta (1976, p. 134), a cabeça é, das partes do corpo, a mais

    significativa para os Apinajé, visto o cuidado e a relevância do corte de cabelo e dos

    adornos cerimoniais identificadores de cada metade amarrados sobre o sulco criado

    pelo corte de cabelo. A cabeça e o corte de cabelo em muito se assemelham ao

    formato tradicional das casas que são arredondadas. Poderíamos supor, então, a

    existência de um categorizador da forma “redondo”, como descrito em Kaingang por

    Wilmar D’Angelis (2002, p. 215-242), aludindo à forma arredondada da cabeça e à

    esfericidade de alguns frutos. A questão seria, então, interpelar sobre a escolha da

    forma “redondo” como determinante do categorizador. Por que privilegiar o formato

    em detrimento das relações sociais?

    A resposta para esta pergunta é longa, passa inevitavelmente pelo labirinto

    teórico e conceitual desenvolvido pela ciência ocidental ao longo dos últimos 2.500

    anos aproximadamente. A ideia por trás da análise linguística convencional, que

    percebe um classificador de forma “redondo” como explicação, baseia-se no

    entendimento estruturalista de que o pensamento selvagem atua sobre o concreto e

    não sobre o abstrato. Esta consideração nos remete imediatamente às origens da

    linguística como disciplina científica, a Wilhelm von Humboldt, para quem povos de

    pouca complexidade social desenvolveriam línguas relativas ao prático com pouca ou

    nenhuma abstração, evocando a cadeia do ser do século XVI, na qual os povos seriam

    classificados por seu desenvolvimento espiritual em termos de maior ou menor

    humanidade, conceitos religiosos que remetem ao século XIII, e assim por diante. Há

    uma longa caminhada a ser feita por esse labirinto a partir de agora. Para mim, a

    descrição de línguas indígenas é uma das abordagens que se vale de conceitos

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    ocidentais para operar como ferramenta de análise com pressupostos universais sobre

    o funcionamento das línguas.

    Nesta tese faço uma extensa pesquisa documental e bibliográfica. Grande

    parte do trabalho foi fazer uma compilação com o intuito de mostrar o caminho da

    construção conceitual de termos e de ideias ainda hoje adotados pela Linguística

    Histórica, pela Linguística Comparada e pela Tipologia Linguística como verdadeiros

    sobre as línguas indígenas. Por isso, este trabalho se posiciona na História das Ideias

    Linguísticas, como uma História dos Conceitos. Procuro investigar a elaboração dos

    termos de maneira ampla, abrangente, porque o fermento intelectual e criativo de uma

    época não se encontra encerrado em um único texto. Em qualquer momento há

    debate, questionamentos e contribuições de diversas áreas. Pois as pessoas vivem

    embebidas no momento histórico ao qual pertencem.

    Parto do princípio, já bastante discutido por vários historiadores, entre eles,

    Jack Goody e Eric Wolf, de que a Europa era conectada por meio de rotas e alianças

    comerciais que se expandiam para a África e a Ásia. Para Eric Wolf (2005, p. 40), as

    redes estabelecidas entre Europa, Ásia e África são cruciais para compreender as

    relações entre o mundo conhecido e o mundo desconhecido: o Novo Mundo. Pois foi

    do encontro entre estes dois mundos diferentes que se estabeleceu um mundo de

    relações unificadas pelas atividades humanas, geograficamente estabelecido e acima

    de tudo um mundo que se relacionava entre si por meio de trocas comerciais. Entendo

    porém que não eram apenas as trocas comerciais que uniam o mundo ou faziam-no

    relacionar-se. As ideias científicas eram também fruto de um debate que se estendia

    não apenas territorialmente, mas distendia-se no tempo.

    A revitalização da produção intelectual grega funcionou como uma mão dupla

    na história da Europa. Estabeleceu uma nova fronteira, chegando agora até a Grécia, e

    concedeu profundidade histórica ao pensamento produzido na Europa, sugerindo uma

    continuidade do saber e do poder político que justificava a ascenção comercial

    europeia e sua separação territorial do restante da Eurásia. Tema já debatido e

    especulado por vários gregos, eles mesmos dando-se uma posição nem cá nem lá.

    Jack Goody (2008, p. 117-121) resgatou as ideias de Aristóteles sobre o tema, que

    localizou a Grécia em um ponto intermediário entre Europa e Ásia, e identificou os

    gregos como agregadores das qualidades de ambos os lados, acrescentando que o

    clima contribuía para a falta de inteligência e indústria na Europa, e que a falta de

    ânimo dos asiáticos os subjugava à escravidão perpétua em que viviam. Aristóteles

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    17!

    acreditava que a situação privilegiada dos gregos lhes permitia perceber elementos de

    sua própria cultura em outras culturas, como a etíope, a germânica e a persa.

    De alguma forma, os europeus se apropriaram tanto da produção intelectual

    quanto da visão “helenocêntrica”, fundando seus novos limites territoriais e

    epistemológicos. As grandes perguntas com densa profundidade histórica precisam

    ser feitas em algum momento. Dediquei-me a escavar as camadas fossilizadas das

    categorias linguísticas e do pensamento ocidental. As respostas, apresento-as nesta

    tese.

    1.1 Objetivo da tese

    Considerando a Teoria da Monogênese, seria necessário traçar a história

    linguística do continente americano, em marcha ré, até a separação do grupo asiático

    que empreendeu a migração pelo estreito de Behring4, para podermos estabelecer sua

    posição na árvore genealógica das línguas da humanidade. Por enquanto, os troncos e

    as famílias linguísticas americanas permanecem separadas do conjunto indo-euro-

    asiático e africano. Embora este modelo de linguística busque as relações históricas

    entre os diferentes grupos humanos e suas línguas por meio de migrações e de contato

    entre os povos, entende as relações linguísticas como um dado supra-histórico. A

    ideia de que a linguagem funciona como um processo mental universal de

    representação do mundo subjaz à teoria da monogênese e aos métodos genealógico e

    tipológico. Assim, criamos um humano genérico, uma língua genérica e uma

    representação genérica da realidade que tem por base exclusivamente o pensamento

    ocidental e suas teorias sobre a linguagem amparadas na ciência de base cristã

    desenvolvida ao longo de séculos. Uma das representações ocidentais que discuto

    nesta tese é o sujeito gramatical como categoria linguística que pressupõe uma

    hierarquia sobre o objeto.

    Outro objetivo desta tese, é identificar como a classificação das línguas

    indígenas em troncos e famílias linguísticas foi estabelecida. Não pretendo discutir o

    método em si, mas apontar as premissas ideológicas presentes nas teorias que o

    amparam. Como descreveu Otto Jespersen (1964, p. 367-395), em Language, o

    método que classifica as línguas em categorias chamadas de famílias linguísticas é a

    identificação de membros por retenção lexical semelhante, ou seja, línguas com

    palavras semelhantes pertenceriam à mesma família linguística. A mútua

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 Afinal esta ainda é a teoria mais aceita a respeito da chegada do humano ao continente americano.

  • !

    !

    18!

    compreensão entre línguas aparentemente diferentes indicaria a existência de dialetos

    que deveriam ser considerados como uma única língua. Este método se desenvolveu

    paralelamente aos estudos do indo-europeu e tem como premissa a Teoria da

    Monogênese da Linguagem. Então, se todas as línguas têm uma origem comum, por

    meio da comparação entre as línguas seria possível traçar seus parentescos e especular

    sobre sua origem. Por isso, a comparação entre as línguas resultou na elaboração da

    gênese das línguas como uma árvore genealógica com uma língua-mãe sendo o tronco

    comum do qual partem ramos que vão se dividindo uns a partir dos outros.

    No que diz respeito às línguas indígenas existentes no Brasil, a língua Tupi, ou

    Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida

    pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e índios, poderia ter surgido

    como uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de

    outras línguas indígenas, transportando sentidos através do oceano e ancorando uma

    nova língua no litoral do Brasil. Uma perspectiva com este viés, o do sentido, serve de

    questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção

    lexical.

    Paralelamente à classificação genealógica, se desenvolveu a classificação

    tipológica moderna das línguas, que distingue as línguas de acordo com suas

    caraterísticas estruturais morfológicas, com línguas isolantes, aglutinantes ou

    flexionais. Para esta teoria, a presença de radicais morfológicos nas palavras é uma

    forma de rastreamento da retenção lexical. Como nos exemplos retirados de Aryon

    Rodrigues (2002, p. 55), em Apinajé, ‘meu’ significa i-; em Xavante, ii-; em

    Kaingang, iñ-; em Yatê, i-; em Boróro, i-, e em Rikbaktsá, ik-. Todas estas línguas

    pertencem ao tronco Macro-Jê e, em todas elas, o prefixo possessivo vem acoplado

    aos nomes, como em ikrá, ‘meu filho’, em Apinajé. Nesta lógica, nomear o mundo

    define uma língua e a classifica.

    1.2 Coleta de dados

    Como não dispunha de financiamento para deslocar-me até as instituições que

    guardam os acervos, enviei meus olhos em um longo passeio pelos acervos digitais de

    grandes universidades e arquivos públicos, em sua maioria, disponíveis no Internet

    Archive , da empresa Google, que gerencia as bibliotecas

    virtuais de Library of Congress, Harvard Library, Boston College entre outras grandes

    bibliotecas que compõem o catálogo de acervos americanos, com aproximadamente

  • !

    !

    19!

    dois milhões de itens disponíveis para download. O sistema gerencia também mais de

    500.000 acervos digitalizados de universidades europeias, que disponibilizam mapas,

    livros e documentos diversos. Muitas gramáticas e dicionários históricos, assim como

    livros raros e edições esgotadas foram encontrados neste sistema.

    1.2.1 Os acervos

    No acervo digital da Universidade de Madrid, procurei por informações sobre

    as colônias espanholas na América, mapas e relatos de viagens, e acabei me

    embrenhando pela resistência basca e pelo acervo escassamente digitalizado referente

    à produção intelectual moçárabe da Andaluzia. Meus olhos irremediavelmente se

    prenderam aí. Qual seria a influência moçárabe e islâmica na escolástica produzida

    nos monastérios espanhóis do século XII? Infelizmente meus inexperientes espelhos

    não possuem ainda capacidade de dissipar tão densa escuridão.

    Na Universidade de Lisboa, que gerencia o arquivo digitalizado da Torre do

    Tombo, procurei mapas, relatos de viagem e documentos sobre as viagens marítimas

    para o Brasil, os chamados regimentos que cada navio era obrigado a fazer, neles

    constam o nome de cada tripulante embarcado, idade, endereço, função e

    remuneração, além do valor estimado da carga transportada e a descrição de toda a

    mercadoria e dos suprimentos para a tripulação, assim como o cálculo do imposto

    devido. Grande parte dos documentos digitalizados são informações mercantis,

    embora muitos papéis tenham se perdido durante o terremoto de Lisboa, em 1773, e

    nos incêndios que assolaram a cidade após o terremoto. Foi em um dos regimentos,

    que encontrei o nome da família Anes, um dos primeiros línguas que se estabeleceu

    no Brasil, mas embora exista uma infinidade de informações mercantis disponíveis

    nos acervos, as documentações relativas às famílias não estão digitalizadas. É difícil

    rastreá-las para entender suas relações e comprometimentos, pois são cartas guardadas

    em caixas de arquivos pessoais. Este me parece ser o caso dos línguas, dos quais é

    praticamente impossível saber a origem e o treinamento que receberam. Afinal, por

    que se tornaram línguas? Recentemente estes arquivos vêm recebendo a atenção de

    pesquisadores e historiadores que procuram outros vieses para suas pesquisas e

    algumas informações sobre arquivos pessoais já podem ser encontradas em teses e

    publicações. Este é o caso das relações familiares da casa de Martim Afonso

    Chichorro, extensamente descritas pela historiadora Alexandra Maria Pinheiro Pelúcia

    em sua tese de doutorado.

  • !

    !

    20!

    No arquivo digital do Vaticano, após horas de pesquisa, encontrei os

    manuscritos originais de Santo Tomás de Aquino da Summa Theologiae. Como não

    disponho de conhecimento de leitura paleográfica do latim escrito no século XIII, me

    contentei, emocionada, em admirar essa impressionante descoberta. O material

    pesquisado foi uma impressão espanhola, em latim, gentilmente emprestada pelo

    professor João Miguel Sautchuk, e as traduções das províncias beneditina para o

    português e dominicana para o inglês.

    No acervo digital do Banco da República da Colombia, gerenciadora do

    arquivo da extinta Gran Colombia que abrangia os territórios atuais da Colômbia, da

    Venezuela, do Equador e do Panamá, incluindo a documentação sobre o Caribe e o

    porto mais disputado da América, Cartagena de Índias, encontrei cinco volumes das

    Noticias Historiales de Fray Pedro Simón e a Recompilación de Leyes de Índias.

    No acervo digital da Biblioteca da Câmara dos Deputados, busquei por

    documentos jurídicos, regulamentações e decretos sobre os índios. Encontrei o

    Diretório dos Índios e inúmeras obras raras inteiramente digitalizadas, como o De

    Orbis Novo e a Corografia Brasília de Aires do Casal, além de publicações brasileiras

    do século XIX.

    O Arquivo Jesuítico em Roma não possui acervo digitalizado, por isso, toda a

    documentação a respeito da Companhia de Jesus foi investigada na extensa

    compilação do Padre Serafim Leite, História da Companhia de Jesus.

    No acervo digital da Universidade de Berlim, encontrei para download todos

    os livros dos irmãos Humboldt, em alemão, e algumas versões em francês.

    A seção de Obras Raras da Biblioteca Central da Universidade de Brasília me

    ofereceu a possibilidade de folhear o Glossaria Linguarum Brasiliensium de Martius

    e Spix. Demais documentos foram encontrados em compilações editadas e publicadas

    no Brasil, como História dos Índios do Brasil, Os primeiros documentos sobre a

    história natural do Brasil, Brasil 1500 – quarenta documentos, e o Catálogo da

    Biblioteca Nacional.

    Além dos acervos digitalizados, foram muito úteis dicionários online,

    aplicativos de tradução e de busca por palavras, dos quais tirei excelente proveito,

    embora tenha sido educada em tempos analógicos em que imperavam a máquina de

    escrever e o caderno. A web tem sido considerada uma fonte enganosa de informação,

    no entanto, me demonstrou que a fase de descrédito foi superada. O que se apresenta a

  • !

    !

    21!

    nós é uma biblioteca de letras imensurável, labiríntica e fenomenal. Me perguntei

    diversas vezes se Jorge Luis Borges não a teria vislumbrado ao escrever O Aleph.

    1.3 Metodologia

    Esta tese se encontra no domínio da História das Ideias Linguísticas, mais

    especificamente, no domínio da História dos Conceitos. Portanto, foi usado o

    procedimento metodológico previsto por Reinhart Koselleck (1992, p. 134-146), em

    Uma História dos Conceitos. Primeiramente, procedi à seleção do corpus, ou seja, a

    escolha do material textual a ser utilizado como fonte de pesquisa para verificar em

    que textos o termo escolhido ocorre, ampliando depois para um contexto mais

    abrangente em que se articulam os termos para além do texto escrito. Este

    procedimento exige a comparação entre diversas fontes textuais, o mais abrangentes

    possíveis, pois a partir de um único texto não é possível uma visão tão ampla. Então,

    foram escolhidas fontes primárias, chamadas de primárias, porque se articulam ao

    cotidiano e são únicas.

    Em um primeiro momento, as fontes escolhidas eram dedicadas à história da

    colônia e do relacionamento entre brancos e índios. Para este trabalho, em que foram

    historiografados os conceitos carib, arawak, caraíba e tupi, selecionei cartas dos

    missionários à Ordem e cartas dos senhores das capitanias ao Rei; alvarás e

    regimentos referentes à colônia e regimentos relativos às embarcações saídas de

    Portugal; cartas de autores-referência para os estudos sobre as línguas indígenas,

    como Karl von den Steinen e Theodor Koch-Grünberg.

    Outro conjunto de textos foi o dos livros impressos que retém um tipo de texto

    menos suscetível à mudança que as fontes primárias, os chamados textos clássicos do

    descobrimento, que mantêm uma estrutura repetitiva e praticamente inalterada ao

    longo de suas reimpressões e reedições. Este é o caso dos diários dos navegadores:

    Novus Mundus, De Orbis Novo; Arte de grammatica da lingoa mais usada na costa

    do Brasil; e os livros escritos pelos cronistas do século XVI, entre eles: Yves

    D’Evreux, Claude D’Abbeville, Fernão Cardim e Pero Gândavo.

    Entre as categorias estabelecidas por Reinhart Koselleck, não há a previsão

    dos depoimentos diretos dos indígenas que foram pinçados da documentação oficial

    da colônia e dos textos clássicos como forma de dar voz aos índios, demonstrando a

  • !

    !

    22!

    resistência5 e a interferência dos índios que, embora silenciados, contribuíram para o

    estabelecimentos dos sentidos postos em circulação durante a colonização.

    Em um segundo momento, as fontes escolhidas foram aquelas dedicadas aos

    estudos da linguagem, nas quais investiguei os termos: sujeito gramatical e objeto

    gramatical; e linguagem e língua. As fontes primárias foram cartas trocadas entre os

    irmãos Alexander e Wilhelm von Humboldt. Assim como as obras clássicas: Die

    Sprache de Wilhelm von Humboldt e a Summa Theologiae de Tomás de Aquino.

    Para cada afirmação linguística presente nas fontes, foi apresentado um

    cenário histórico concreto no qual é possível interpelar às fontes o que elas indiciam

    sobre a coprodução da história enquanto textos. Neste ponto, a semântica e a história

    dos conceitos se aproximam, por isso, usei a metodologia dos domínios semânticos de

    determinação, como proposto por Eduardo Guimarães (2010, p. 9-24), em O sentido

    de ‘história’ em dois estruturalistas brasileiros, para determinar os predicados de

    reescrituração dos termos língua e linguagem ao longo dos textos, buscando fazer

    uma relação entre os termos e os textos em que foram reescriturados de forma a

    acompanhar as variações ao longo do tempo. As variações não significam exatamente

    mudança, mas sim, a repetição do mesmo, por meio da reescrituração. O que este tipo

    de interpretação demonstrou foi uma rigidez imperiosa de acomodar a realidade ao

    mesmo conjunto de categorias e conceitos.

    Como metodologia para a interpretação dos textos, vali-me da Análise do

    Discurso, como proposta por Eni Orlandi (1999), em Análise de discurso. Princípios e

    procedimentos, e de sua forma de entender o controle dos sentidos por meio de uma

    força social que se reproduz pela memória discursiva que administra os sentidos.

    Tendo em vista que tratei de textos de obras clássicas, portanto consolidados

    discursivamente na história da linguística, foi profícuo entender que tanto as

    gramáticas quanto as obras clássicas são discursos sobre a língua e, portanto, passíveis

    de representarem, em seus discursos, sentidos, alimentados por uma memória

    institucional e discursiva sobre aquele saber.

    Também da Análise do Discurso acatei o princípio de que a memória

    discursiva especifica as condições nas quais um acontecimento histórico é suscetível

    de tornar-se uma memória. Para entender as relações entre o acontecimento histórico

    e as designações que se estabelecem como memórias discursivas posteriormente, usei

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5 A Professora Isadora Machado, em sua atenciosa leitura, propôs a inclusão da resistência dos silenciados no proceso de estabelecimento e circulação de sentidos.

  • !

    !

    23!

    categorias da Semântica do Acontecimento como elaboradas por Eduardo Guimarães

    (2014, p. 49-68), em Espaço de enunciação, cena enunciativa, designação, ao tratar

    das relações entre espaço de enunciação e cena enunciativa em episódios da história

    da colonização brasileira.

    Esta forma de análise semântica é feita levando-se em conta a distinção entre

    os processos enunciativos de reescrituração e articulação. O processo de

    reescrituração apresenta uma relação não reflexiva. É por meio da não reflexividade

    do processo que se atribui sentido, ou seja, se uma expressão é repetida no decorrer do

    texto, o que mais interessa não é a repetição em si, mas como esta repetição, em certa

    medida, se torna uma outra expressão. É este aspecto que dá sentido à expressão.

    Saber o que uma expressão significa num enunciado envolve saber como esta

    expressão se integra num enunciado que integra um texto. Deste modo, não é possível

    pensar o que é um enunciado, e o que ele significa, sem que esta unidade seja tratada

    enquanto integra um texto. Isto pode ocorrer de dois modos: retomando ou

    reescrevendo outra expressão, ou analisando como a expressão se articula localmente

    num sintagma específico. Quanto às operações de articulação, as mais comumente

    consideradas são: determinação, predicação, argumentação, narratividade, referência

    etc.

    A tradução exigiu também uma abordagem específica. Dada minha pouca

    competência no alemão e no latim, tomei muito tempo pesquisando traduções para

    outras línguas que não o português como forma de evitar equívocos e como estratégia

    para desenvolver uma perspectiva própria sobre cada autor. Em geral, comparei

    versões em duas ou mais línguas com o original para, depois de chegar à compreensão

    do texto, elaborar minha própria tradução dos trechos que considerei mais relevantes.

    1.4 Estrutura da tese

    No primeiro capítulo, faço um levantamento das narrativas que territorializam

    os índios e suas línguas na América, gerando uma geografia do simbólico. Há uma

    vasta bibliografia escrita por cronistas dos séculos XVI e XVII que descreveram os

    habitantes do Novo Mundo, levantando as bases do conhecimento sobre os índios e

    suas formas de vida. Os primeiros documentos escritos sobre as viagens marítimas de

    europeus para a América foram os diários de bordo de Colombo e de Pinzón, o último

    redigido pelo escrivão a bordo da caravela Niña, Pedro Martire d’Anghiera. Colombo

    supostamente escreveu seu próprio diário, um livro controverso cuja autoria ainda

  • !

    !

    24!

    hoje é discutida, mas que se legitimou como o primeiro documento escrito sobre a

    terra e sobre os índios que viviam nela. Durante a leitura do diário de Colombo e de

    textos de seus contemporâneos, identifiquei o uso de narrativas e imagens similares.

    Sorrateiramente, Marco Polo se revelou uma leitura obrigatória, dadas as

    coincidências estruturais narrativas presentes no Livro das Maravilhas e as narrativas

    da descoberta. Comecei a pensar que essas semelhanças pouco tinham a ver com os

    nativos, mas com os europeus e sua forma de ver o mundo. Ficou claro para mim, que

    as categorias usadas para entender o outro são e foram projeções que os europeus

    fizeram sobre os outros povos.

    No segundo capítulo, trato também do estabelecimento dos grupos étnicos

    caribenhos, mais especificamente os caribes e os arawaks, cuja distinção e existência

    partiram da experiência de Colombo e se calcificaram como categorias étnicas e

    famílias linguísticas inquestionáveis. Também traço a trajetória histórica do termo

    caraíba e suas implicações canibais tanto para portugueses quanto para indígenas.

    Para isso, analiso os textos dos primeiros cronistas sobre o Brasil e averiguo os termos

    que designam o branco, como caraíba. Como decorrência das implicações de caraíba

    como pajé, faço reflexões sobre o canibalismo tupi e a migração messiânica guarani.

    A descoberta de um novo continente trouxe a necessidade de reelaborar o mito de

    origem dos brancos cristãos, neste capítulo, apresento a primeira parte desta história

    que ainda não chegou ao fim.

    No terceiro capítulo, discuto a geografia da nomeação étnica como

    estritamente política, significando quase uma delimitação territorial de concessões

    portuguesas que se projetaram no discurso científico como famílias linguísticas que

    partilham semelhanças lexicais. Uso, para esta discussão, as narrativas de Caramuru e

    João Ramalho para estabelecer a geografia linguística e política que se desenrola a

    partir delas. Examino a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da

    convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão

    simultânea de negros e brancos, onde teria surgido uma língua criola, com influências

    do Quimbundo, da língua de Angola e de línguas indígenas, mas onde não existiria a

    presença de uma língua indígena homogênea e previamente existente no litoral do

    Brasil. O que serve de questionamento para o estabelecimento das famílias

    linguísticas com base na retenção lexical. Procuro trazer evidências linguísticas da

    dispersão ideológica causada pelos contatos históricos entre grupos indígenas na

    América, em período pré-colombiano, em vez de justificar o contato histórico por

  • !

    !

    25!

    meio da presença de retenção lexical. O pressuposto inicial é a existência de uma

    conexão entre os grupos que perpassava, pelo menos, toda a parte sul do continente

    americano, por onde circulavam bens, pessoas, tecnologia e, principalmente, no que

    diz respeito a esta pesquisa, sentidos. A existência pré-colombiana de complexos

    sistemas de integração pode ser percebida nos textos da arqueologia e da etnologia

    que descrevem ritos e rituais cujos significados são partilhados por grupos que não

    pertencem necessariamente à mesma família nem habitam territórios vizinhos.

    No quarto capítulo, analiso o método de descrição de línguas que pressupõe a

    existência de categorias universais e investigo as bases ideológicas destas categorias,

    revisitando as premissas estabelecidas por Tomás de Aquino, no século XIII.

    Apresento uma breve discussão a respeito do sujeito gramatical como categoria

    linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.

    No quinto capítulo, abordo a passagem dos naturalistas pela América, mais

    especificamente Alexander von Humboldt, e sua necessidade de classificar o mundo

    de acordo com uma estrutura orgânica e natural que desvendasse seu funcionamento.

    Para os naturalistas, a natureza era entendida como um caos que necessitava ser

    ordenado pela ciência, a partir desta ideia o modelo científico de produzir

    conhecimento se estabeleceu. O modelo científico era amplamente baseado na

    classificação botânica elaborada por Linneu. Da lógica naturalista de classificação,

    surgiram as listas de palavras a partir das quais as línguas dos grupos étnicos visitados

    por missionários e aventureiros do século XVI foram organizadas em famílias,

    consolidando assim o discurso científico sobre as línguas e suas filiações genéticas.

    Discorro sobre as ideias linguísticas de Wilhelm von Humboldt e suas concepções,

    resgatando discussões a respeito da natureza divina encarnada no corpo humano que

    foi debatida no Concílio de Niceia realizado no século IV. Desta discussão, contemplo

    a possibilidade de dar continuidade à narrativa da origem da humanidade iniciada no

    segundo capítulo.

    No sexto capítulo, discuto a ideia de abstração existente nas teorias sobre a

    língua e a linguagem. Resgato a discussão religiosa do século IV sobre a encarnação

    de Deus em Jesus Cristo e suas duas naturezas, uma divina e uma humana, presentes

    no mesmo corpo, e traço comparações, ao longo do processo histórico de construção

    das teorias linguísticas e dos termos, relacionados à língua e à linguagem. Discuto as

    implicações desta perspectiva sobre os estudos de línguas indígenas no Brasil,

  • !

    !

    26!

    apresentando uma breve discussão a respeito do sujeito gramatical como categoria

    linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.

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    !

    27!

    2. PALIMPSESTOS CARIBENHOS

    […] são dados tão particulares, e todos coincidentes, que não é crível possa

    uma mentira ter-se difundido em tantas línguas, e em tantas nações, com tantas

    cores de verdade. (Acuña, 1994, p. 153)

    Içadas as velas, a epopeia inicia. Perambulando silenciosamente pela cabine

    do Almirante, meus olhos passeiam por entre os instrumentos de bordo. Uma bússola

    sempre apontando para o norte, a Bíblia e o diário de um navegador que passa a

    eternidade em tumultuado sono. Folheio seu diário curiosa. Desentendimentos com

    Pinzón, insurreições da tripulação, a constante frustração de não saber onde estava

    exatamente, cálculos e projeções. Todos os elementos necessários para um poema

    estavam ali. Navegar em alto mar é um poema épico. Naveguemos, pois!

    Ernest Curtius (2013, p. 175) nos ensinou que as metáforas náuticas eram

    recursos muito usados na literatura romana, de Ovídio a Estácio, portanto nada mais

    épico que iniciar um capítulo sobre o descobrimento da América, epopeia de grandeza

    igualável à de Homero, com uma bela metáfora de navegação. Para Ernest Curtius

    (2013, p. 71), a educação era a portadora da tradição literária e a continuidade da

    literatura europeia estava ligada à escola. Ernest Curtius entendeu que a tradição

    literária começou com os gregos que viram em Homero “o reflexo ideal de seu

    passado, de sua existência e do mundo de seus deuses.” Por isso, discursivamente, a

    tradição grega se tornou Homero e o que os gregos fizeram os romanos replicaram. A

    Odisseia foi traduzida por Lívio Andrônico para as escolas romanas, mas foi somente

    com Virgílio e sua Eneida que os autores romanos conseguiram atingir o lugar de

    epopeia nacional e filiar-se à tradição de Homero. A escolástica da Idade Média teria

    adotado de gregos e romanos a ligação entre epopeia e escola e transformado a Eneida

    no pilar do ensino de latim.

    Ernest Curtius fez exatamente esse trajeto argumentativo, passou de gregos a

    romanos e depois à Idade Média. Os saltos temporais ainda são facilmente

    naturalizados por nós, pois à Antiguidade se sucede a Idade Média, e a Antiguidade é

    o apogeu de Grécia e Roma. Dada a lacuna temporal entre os períodos, percebo que a

    estratégia educativa medieval funcionou. Para Ernest Curtius (2013, p. 71), a

    estratégia medieval de fundar seu método no passado áureo das grandes civilizações

    resgatou os princípios gregos da educação baseada nas sete artes liberais, descritas por

  • !

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    28!

    Marciano Capela no De Nuptiis Philogiae et Mercur6, do século V, e entronizou o

    latim como língua de conhecimento fomentada pela literatura clássica. A Europa

    velejava.

    Tendo em vista o período das navegações ibéricas que me proponho a estudar,

    cabe lembrar que Portugal produziu sua epopeia nacional. Luis de Camões cantou em

    Os Lusíadas a saga das viagens em busca do caminho para a Índia, mas não as

    viagens à América. Os espanhóis sequer fizeram-na. Uma epopeia nacional

    significava a fundação de uma tradição, assim como a tradição fundada por Homero

    representava um ideal de vida e um método escolar. Para os portugueses, esse ideal

    estava associado à Índia, mas não à América. As narrativas da descoberta da América

    não foram poemas épicos destinados à grandeza nacional, em geral, foram relatos de

    navegadores e de navegações. Apesar de serem temas clássicos das epopeias e de

    terem se convertido em compêndios do conhecimento da época sob o qual as

    novidades do Novo Mundo eram discutidas, não alcançaram o status literário

    concedido às viagens à Índia. Mais do que narrativas aventurescas para noticiar o

    Novo Mundo, os diários dos navegadores serviram para fazer o conhecimento circular

    na Europa. A língua escrita7 estabeleceu, então, um modo de gerar conhecimento e

    verdades por meio dos livros, que assim cumpriam sua função didática e intelectual.

    Navegando pelos diários dos viajantes e pelas narrativas criadas por eles para

    hospedar os seres encontrados no Novo Mundo pude perceber a formação de uma

    intrincada rede de espaços de enunciação8 que uniam a Europa ao Novo Mundo e

    vice-versa. Havia um espaço de enunciação escolar, em que predominava o latim

    como língua de circulação do conhecimento. Este espaço estava centrado nas

    universidades e voltado para os escolásticos que produziam textos de alto nível

    intelectual para o pensamento cristão. Nesse espaço de enunciação, estão as

    gramáticas das línguas indígenas e os diários dos primeiros viajantes. Havia também

    um espaço de enunciação literário em que predominava a língua portuguesa. Nesse

    espaço de enunciação, estão a gramática do Português, Os Lusíadas, os diários dos

    viajantes, as cartas de Caminha e dos jesuítas que estiveram no Brasil. Em muitos

    sentidos, o corpus é o mesmo, havia um Novus Mundus, de Américo Vespúcio em

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6 O casamento de Filologia e Mercúrio (o deus do conhecimento), quando Filologia ganhou de presente de casamento sete servas, as sete artes liberais, entre elas a Gramática. 7 Sobre a hierarquia entre língua falada e língua escrita ver: GUIMARÃES, Eduardo. “Enunciação e política de línguas do Brasil.” Santa Maria, Revista Letras, n. 27, p. 47-53, dez. 2003. 8 Entendo o espaço de enunciação como proposto por Eduardo Guimarães em Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. 2002, p. 18.

  • !

    !

    29!

    latim e uma versão posterior para o português. A diferença estava no meio de

    circulação. A literatura produzida em latim se destinava ao meio escolar, possuía um

    valor de civilização e tinha um caráter predominantemente científico, gerava portanto,

    um discurso científico9 de base cristã. Santo Tomás de Aquino (1951, p. 16) já havia

    debatido com Santo Agostinho essa questão na Suma Teológica quando afirmou que

    “a santa doutrina é uma ciência10” em contraposição à ideia de Santo Agostinho de

    que a ciência deveria servir para o estudo e o conhecimento das escrituras sagradas.

    Assim, o latim era politicamente dominante na produção de conhecimento, mesmo

    sendo uma língua exclusivamente escrita.

    Historicamente reconhecida, a tradição escolástica se fundamentava em seus

    autores, no entanto, tomo a liberdade de observar esse fato histórico pelas lentes da

    teoria da enunciação e me atrevo a dizer que, da perspectiva das cenas enunciativas

    como elaborado por Eduardo Guimarães (2002, p. 23), temos um lugar constituído

    pelos dizeres sucessivos de uma linhagem de pensadores associados à escola de

    Alexandria que se prolongou no tempo e se dispersou no espaço. Segundo o autor, “na

    cena enunciativa ‘aquele que fala’ ou ‘para quem se fala’ não são pessoas mas uma

    configuração do agenciamento enunciativo. São lugares constituídos pelos dizeres e

    não pessoas donas de seu dizer.” Então, não eram os autores escolásticos donos de

    seus dizeres, eles ocupavam lugares constituídos pelos dizeres de uma linhagem de

    pensadores associados a uma escola. Da escola de Alexandria11, que propagava a

    didática alegórica de interpretação das escrituras sagradas em oposição à literalidade

    dos textos sagrados, falam Aristóteles, Orígenes, Santo Agostinho, Pico de la

    Mirândola, Tomás de Aquino, Francisco de Vitória e Lutero. Nas escolas catedrais

    fundadas em torno de alguns desses autores, se estabeleceram lugares cristãos e

    europeus constituídos pelos seus dizeres, a exemplo das universidades de Paris, de

    Salamanca e de Bolonha, lugares dos quais falam Nebrija, Vespúcio e Tomás de

    Aquino. Desta perspectiva, a cronologia estabelecida pelos escolásticos e desvendada

    por Ernest Curtius mostra-se perfeitamente conectada. Não exatamente por ser um

    continuum no tempo, mas porque as condições de produção do discurso científico

    ocidental, ou como eu prefiro dizer, de base cristã, produziram seus sentidos, que vem

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!9 Uso a definição de discurso de acordo com Eni Orlandi em Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 12 ed. Campinas: Pontes, 1999. 10 Sacram doctrinam unam scientiam esse. 11 MALATY, Fr. Trados. The school of Alexandria. Livros I e II. St. Mark’s Coptic Orthodox Church: Jersey City, 1995.

  • !

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    30!

    sendo replicados ao longo dos séculos, desde a escola de Alexandria, antes mesmo do

    surgimento mítico do cristianismo.

    Se os autores fundavam escolas que se constituíam como cenas de enunciação,

    as narrativas da descoberta de um novo mundo faziam circular o conhecimento

    elaborado de acordo com o ponto de vista dessas escolas. Dando ao conhecimento do

    Novo Mundo um lugar constituído pelos dizeres fundados mais remotamente na

    escola de Alexandria e propagados até o novo continente. Ao fazer circular o

    conhecimento, as narrativas geravam verdades. Uma das formas de gerar verdades por

    meio das narrativas é localizar geograficamente os lugares onde os fatos ou as

    histórias narradas aconteceram. Ao serem localizadas, as narrativas dão lugar e

    concedem veracidade ao espaço enunciativo no qual palavras, conceitos e categorias

    significarão. Jacques Rancière (2014, p. 101), ao traçar as relações entre o solo e os

    reis sepultados em Os nomes da História, se referiu à relação entre eles como a de

    “corpos territorializados e, ao mesmo tempo, enterrados, de corpos moldados pelo

    caráter de uma terra.” Foram esses corpos moldados pelo caráter europeu, corpos

    europeus territorializados na Europa que, por meio de suas narrativas,

    territorializaram outros corpos e suas vozes. Territorializaram os corpos ameríndios e

    suas línguas. É nesse espaço narrado e geografizado que se desenrolaram as relações

    simbólicas a respeito dos povos e das línguas indígenas, onde se estabeleceu uma

    geografia do simbólico. O mesmo espaço simbólico que deu às línguas indígenas um

    lugar, deu aos povos indígenas um lugar, deu a seus corpos um lugar e um

    significado.

    2.1 Narrativas sobre a alteridade, uma longa tradição

    Antes de embarcarmos no estudo das narrativas sobre o Novo Mundo é

    preciso fazer uma breve apreciação do lugar das narrativas sobre a alteridade no

    espaço de enunciação europeu do século XVI. A trajetória dessas narrativas é longa e

    constituiu um lugar em terra firme para “aquele que fala” a partir delas, pois elas

    significam uma história de enunciações sobre a alteridade. Por isso remontamos a

    Plínio, o Velho12, e sua Naturalis Historia, um enorme “inventário do mundo”,

    segundo suas próprias palavras, que inaugurou o gênero enciclopédico ao compilar

    mais de dois mil autores da época, elaborando verbetes sobre cosmologia, zoologia e

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!12 Francesco Maspero (Org.) Storie naturali (libri VIII-XI). Milão: Biblioteca Universitaria Rizzoli, 2011. Coleção Classici greci e latini. p. 21

  • !

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    31!

    mineralogia nos quais sereias, gigantes e centauros receberam igual tratamento

    descritivo que as pedras valiosas e a arte que a partir delas surgia.

    De acordo com Francesco Maspero (2011, p. 16), curador da obra reeditada

    em italiano, Plínio, supondo que o universo era governado por uma lei divina natural,

    fruto de seu pensamento estoico, entendia que a natureza era a derivação direta e

    inalienável do homem. Para ele, o progresso, que inevitavelmente afastaria o homem

    da natureza, aumentaria o desequilíbrio, gerando “o montruoso”. Roger Bartra (2011,

    p. 81), em El mito del salvaje, discorreu sobre a ideia de progresso para os gregos

    (que, no século XVIII, foi atualizada para a ideia de civilização), que se expressava

    por meio da polis, que significa ‘cidade’, ou seja, urbanidade e civilidade andam

    juntas. A palavra hemeros, que significa domesticado, era usada com o sentido de

    urbanizado. A ideia grega então era que os seres ditos naturais, centauros, amazonas,

    cíclopes e agrios, viviam o equilíbrio divino que regia o universo e, ao mesmo tempo,

    eram aqueles que não haviam sido domesticados nem urbanizados, portanto não

    obedeciam às leis humanas. Os homens que ainda viviam na natureza eram os agrios

    que existiam em oposição aos hemeros, selvagens em oposição a domesticados. Para

    os gregos, a ideia de selvagem não se aplicava aos bárbaros, pois os bárbaros eram os

    estrangeiros, aqueles que não falavam grego. Os selvagens tiveram que ser inventados

    como construto cultural interior, grego, antes de serem encontrados os bárbaros fora

    dos limites da sociedade grega.

    Jean Starobinski (2001, p. 56), em As máscaras da civilização, tomou o

    sentido atual de barbárie que designa “a crueldade e a agressividade” como oposto de

    civilização. Civilização, termo cunhado no século XVIII, teria assumido um sentido

    de processo de progresso da humanidade, não somente de adequação aos modos

    urbanos, como em ‘domesticado’ hemeros. Em ‘civilizado’, a origem da humanidade,

    sua infância por assim dizer, seria a barbárie e sua etapa polida (ou educada nos

    termos nacionais atuais) assumiria o significado de ‘domesticado’. Ambas valeriam

    como definidoras de uma mesma história, a história do passado, quando civilizados e

    selvagens se construíram um ao outro nas eras míticas que só existe em nossa

    memória literária; e a história do presente, a da humanidade civilizada.

    Para Roger Bartra (2011, p. 83), o selvagem legitimou a posição do civilizado,

    sendo central na construção da identidade do civilizado e criou fundamentalmente a

    noção ocidental de alteridade inseparável de sua contraparte, a de civilidade. Eduardo

    Guimarães (2004, p. 128) apontou que civilização e barbárie são opostos inseparáveis

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    32!

    e mutuamente significantes. Philippe Descola (2013, p. 61) referiu-se à natureza como

    um produto inventado pela cultura, para estabelecer uma rede de significados

    supostamente externos e opostos à sociedade. A natureza teria se tornado então o

    espaço simbólico e artificial onde centauros, amazonas, cíclopes e homens selvagens

    significariam em contraposição à cidade, espaço simbólico e social, onde significaria

    o civilizado. Para ele, não foi a ciência que explicou o mito, mas o contrário, o mito

    nos forneceu as pistas da maneira como a ciência moderna tem constituído suas bases

    conceituais mais profundas, a lógica que oferece o modelo para pensar a oposição

    entre natureza e cultura. Embora os conceitos selvagem e bárbaro não fossem

    similares, o selvagem e o bárbaro, por fim, perfilaram-se juntos em oposição a

    civilizado, tornando-se um no outro e assumindo sentidos iguais. A partir desta

    confluência de sentidos, podemos dizer que “todo selvagem é um bárbaro”, que

    funciona também na outra via, “todo bárbaro é um selvagem”. Os sentidos, por meio

    dos quais os conceitos de civilizado e de bárbaro/selvagem foram historicamente

    construídos, carregam um saber discursivo acumulado que determina uma oposição

    entre eles. Uma oposição determinante e classificatória ou se é civilizado ou se é

    selvagem/bárbaro.

    As ideias historicamente replicadas a respeito do selvagem, do índio, nos

    colocam a pertinente questão de quem somos nós neste jogo de papéis. Se os índios

    são os selvagens, nós somos os civilizados. Só é possível ser civilizado em oposição

    ao selvagem. Estabelecer papéis é também atribuir um espaço e um lugar social, no

    caso tratado nesta tese, ao determinar aos habitantes da América o papel de selvagens,

    os europeus validaram para si mesmos um espaço de enunciação e um lugar social, o

    mesmo que já ocupavam na Europa, recriando, assim, a oposição sobre a qual foram

    construídas as identidades do selvagem e do civilizado europeus. Para Norbert Elias

    (1994, p. 36), o binômio selvagem/civilizado permeou a colonização europeia no

    mundo, sustentou a elaboração dos modos e das maneiras de comportamento que

    diferenciaram os nobres dos plebeus na Europa, organizando as classes sociais dentro

    dos Estados. Para validá-la, adotou-se a massificação, todo não-europeu é selvagem,

    porque ser europeu pressupõe comportar-se de determinada forma, aprender de

    determinada forma, comer de determinada forma, ser limpo de determinada forma.

    Segundo Alcida Rita Ramos (1988, p. 93), atribuir uma identidade de massa a

    todos os povos considerados selvagens, negando suas configurações políticas

    preexistentes e suas diferenças étnicas, conduziu à hegemonia do ‘humano genérico’

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    33!

    que é o pressuposto básico para o universalismo. O universalismo alcançado às custas

    da existência de um humano genérico estabeleceu uma série de abordagens analíticas

    que, em grande medida, respaldam o entendimento que os ocidentais têm sobre si

    mesmos. Só é possível existir uma língua com conceitos abstratos em comparação

    com outra língua de conceitos concretos. Evidentemente o que atribui concretude ou

    abstração a um conceito é determinado mediante uma escolha legitimada teoricamente

    por premissas claramente hierárquicas de quem detêm o conhecimento e as

    ferramentas para usá-lo.

    Roger Bartra (2011, p. 18) considerou que o fio condutor da história do

    homem selvagem ocidental permeia toda a mitologia greco-latina, a judaico-cristã-

    islâmica e a celta. Ao fazer o resgate histórico do surgimento dos mitos do homem

    selvagem, encontrou-os em tempos babilônicos. Enkidu foi personagem lendário e

    literário da mitologia mesopotâmica, uma das figuras centrais da Epopeia de

    Gilgamesh, compilada no segundo milênio antes de Cristo. Ele era um homem

    selvagem, tinha o corpo coberto de pelos, foi modelado por Aruru a partir do barro e

    cresceu longe da humanidade. Criado por animais, permaneceu ignorante dos

    costumes humanos até o dia em que foi levado para lutar contra Gilgamesh. Enkidu

    evoca a imagem do homem peludo, vivendo na natureza, lascivo, sem fogo, sem lei

    nem governo, sem alma nem razão, que povoou a imaginação da sociedade ocidental

    antiga e medieval. Roger Bartra (2011, p. 93) contou que esse selvagem peludo

    chegou ao medievo com características visivelmente europeias, pele clara, nariz

    alongado, lábios estreitos, com uma espessa pelagem por todo o corpo. Para as

    mulheres selvagens, a presença de uma vasta cabeleira muito longa e encaracolada era

    marcante.

    Sem dúvida, o selvagem medieval não era um reflexo etnocêntrico diante das

    características físicas de povos exóticos do Oriente. Afinal, antes mesmo do início das

    navegações portuguesas, no final da segunda metade do século XIII, os comerciantes

    europeus já empreendiam longas viagens terrestres com o intuito de estabelecer

    relações políticas e identificar rotas mercantis. As rotas estabelecidas durante estas

    viagens conectaram a Europa a Pequim, Mali e Delhi, por terra. Surgiram neste

    período as fantásticas narrativas de Marco Polo. Afonso Arinos (2004, p. 32), ao

    recompilar a produção bibliográfica sobre o imaginário medieval, resgatou o Imago

    Mundi de Pierre d’Ailly, escritor medieval que elaborou a cosmografia mais completa

    das terras desconhecidas, apoiado nas informações de Plínio, Homero, Plutão,

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    34!

    Plutarco, Santo Isidoro de Sevilha, Roger Bacon, Marco Polo e Mandeville. Assim as

    sereias, os gigantes de um olho só e os grandes monstros marinhos capazes de engolir

    um navio foram localizados e geografizados. A pátria desses seres tão medonhos era a

    Índia, considerado por Afonso Arinos como um país distante e vago o suficiente para

    hospedá-los e atormentarem as mentes dos europeus durante a Idade Média com toda

    a sorte de estranhezas e coisas duvidosas inexistentes em terras mais conhecidas.

    Colombo, como qualquer outro homem embarcado nas caravelas que vieram

    ao Novo Mundo, trazia consigo um rol de crenças cristãs e o inestimável bestiário de

    Pierre d’Ailly, ambos amparados nas mais longínquas heranças culturais ocidentais.

    Foram esses seres e essa ideia de homem selvagem que cruzaram o oceano Atlântico,

    ancorando nas terras do Novo Mundo, para onde foram transplantados.

    2.2 A história de Colombo, uma narrativa fundadora

    A história imprecisa e tumultuada da vida de Colombo possui inúmeros

    episódios pitorescos narrados por seus vários biógrafos. Um deles é a história de seu

    sogro, Bartolomeu Perestrelo, que participou da conquista de Ceuta, em 1415, e por

    seus serviços recebeu a ilha de Porto Santo, a segunda maior ilha do arquipélago da

    Madeira. Na perspectiva de Alfred Crosby (2011, p. 86), em Imperialismo ecológico,

    a guerra contra os mouros e sua consequente expulsão do território português gerou

    um sistema de benesses reais que implicava a doação de feudos (terras) e títulos

    nobiliárquicos aos cavaleiros que lutassem e vencessem a favor do rei. Com o

    prolongamento das Cruzadas, já não havia feudos disponíveis para doação e o

    caminho encontrado pela casa Real portuguesa para cumprir com suas obrigações foi

    destinar, às fidalguias de segunda linha, terras nas ilhas próximas ao continente.

    Perestrelo, então, foi um dos primeiros portugueses a colonizar as novas terras de

    Portugal. Ao tornar-se proprietário de um feudo, Perestrelo poderia tornar-se nobre,

    mas para fundar uma casa nobiliárquica na Europa medieval exigia-se, além da

    propriedade rural ou feudo, uma relíquia13 em posse da família, um brasão conferido

    pelo rei e uma linhagem sucessória, como explicou Alexandra Maria Pelúcia (2007, p.

    117) em sua tese de doutorado. Perestrelo possuía, como relíquia de sua recém-

    fundada casa nobiliárquica, os mapas de navegação de Toscanelli14 que, mais tarde,

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!13 Para compreender o papel das relíquias na sociedade medieval ver: BLOCH, Marc. Los reyes taumaturgos. México: Fondo de Cultura Economica, 1988. Trad. Marcos Lara 14 Quanto à história, verídica ou não, sobre a morte de um marinheiro que deixou o misterioso mapa do Novo Mundo, ver: A Conquista do Paraíso de Kirkpatrick Sale, 1992, p. 229.

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    35!

    foram entregues a Colombo pela viúva de Perestrelo. Mapas com os quais ele

    começou sua empreeitada pelo financiamento da viagem à Índia. Como contou

    Marcos Faerman (1998, p. 23), com a morte de Perestrelo, a família perdeu a ilha de

    Porto Santo, e tanto a viúva quanto sua filha (com quem Colombo se casou) foram

    viver em um convento. Colombo teve apenas um filho desta união e o chamou Diego.

    A família só conseguiu recuperar a ilha quando Fernando, filho ilegítimo de Colombo,

    após a morte do pai, escreveu sua biografia para recuperar-lhe a honra e moveu, com

    a ajuda da casa Real portuguesa, ações para reaver as terras do avô de seu meio-

    irmão, recuperando assim seu título nobiliárquico e a ilha de Porto Santo. A relíquia

    familiar passou a ser o testamento de Colombo, o legado histórico deste estrangeiro

    que se intrometeu na nobiliarquia portuguesa com uma única finalidade, conseguir os

    mapas de Toscanelli.

    Existem diversas suposições a respeito da origem de Colombo. Há os que

    creem que ele era galego e que escreveu seu diário em galego. Há os que creem em

    sua origem genovesa, porque seu castelhano era sofrível. O dominicano Bartolomeo

    de las Casas comentou esse detalhe várias vezes em seus escritos. O diário original se

    perdeu e possivelmente só retornou a público, quase cinquenta anos depois do

    descobrimento, pelas mãos de Bartolomeo de las Casas, que além de traduzi-lo do

    latim também inseriu algumas anotações e inclusive julgamentos morais ao texto

    original. De qualquer forma, o próprio Bartolomeo de las Casas advertiu em sua curta

    introdução15 que não se tratava da tradução do original, nem de uma cópia, mas de um

    resumo, uma seleção de trechos. A impossibilidade de recuperar a versão original do

    diário e a intromissão de Bartolomeo de las Casas deixaram perguntas inevitáveis e

    sem resposta. Se o diário foi escrito pelo próprio Colombo porque ele se referiria e si

    mesmo como “o Almirante”? Por que o diário de bordo de Pinzón, escrito por Pietro

    Martire d'Anghiera, em latim, permaneceu restrito à Coroa espanhola por três séculos

    até ser divulgado por Alexander von Humboldt, em 1832, quando esteve visitando a

    América? A origem das informações divulgadas na carta de Humboldt, segundo

    Nelson Papavero e Dante Teixeira (2002, p. I), seriam provenientes do diário

    d’Anghiera, mas como Humboldt obteve acesso ao diário é um mistério. Haveria um

    diário de Colombo? Ou o diário d’Anghiera fora resumido, com as informações

    consideradas “interessantes” divulgadas e as “importantes” guardadas em sigilo?

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!15 COLÓN, Cristóbal. Diario de a bordo. Alpignano: ed. de J. Arce y J. Gil Esteve, 1971. p. 31

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    36!

    Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas, a viagem de Colombo

    e seu diário fomentaram a imaginação europeia a respeito da existência de selvagens,

    de animais exóticos e de terras paradisíacas. Sua narrativa seguia uma tradição havia

    muito consolidada como literatura sobre o desconhecido. Seguia a ordem cronológica

    de um diário, o que dava veracidade e profundidade temporal à narrativa. Também

    alimentava as expectativas medievais de encontrar, nos novos territórios, os monstros

    previamente elencadas no bestário de Pierre d’Ailly. E traçava uma inegável relação

    com o diário de viagem de Marco Polo, que embora tenha sido escrito três séculos

    antes, fazia parte do arcabouço da tradição descritiva da alteridade. A distância

    temporal entre os dois livros não impede a aproximação gerada por uma rede

    complexa de ordem linguística, socio-cognitiva e interacional entre o texto e seus

    leitores16. O Livro das Maravilhas, de Marco Polo, era considerado uma grande

    referência narrativa, uma espécie de inconsciente coletivo que fornecia informações

    sobre as terras distantes, em especial, sobre as terras onde Colombo queria chegar. A

    Índia já havia sido descrita por Marco Polo que também discorreu sobre os ventos e a

    localização de algumas ilhas, entre elas Cipango.

    As dúvidas a respeito da autenticidade do trabalho de Marco Polo são tão

    instigantes quanto as de Colombo. Marco Polo (1985, p. 35) ditou suas memórias de

    viagem a Rusticiano de Pisa, na prisão em que ambos se encontravam em Gênova, no

    ano de 1298, não relatou tudo o que viu, a propósito, “algumas não viu, mas escutou-

    as de outros homens sinceros e verdadeiros.” Por isso, alertou aos leitores que

    deveriam acreditar em tudo o que leriam, pois se tratava da verdade contada por um

    cidadão de espírito justo e bom. Rusticiano lembrou ao leitor que Marco Polo, por

    conhecer tão bem o Grande Khan, a quem serviu como embaixador durante sua

    permanência no Oriente, e saber de seu gosto por novidades, não relatou apenas o

    resultado das missões que o rei confiara a ele, mas sim todo o tipo de coisas estranhas,

    novidades e curiosidades que, no decorrer de sua viagem, havia visto. O peculiar,

    então, se tornou mais importante que os resultados da missão? Certamente não para

    Gengis Khan, mas para o leitor europeu, sim.

    Colombo se preocupou mais com o impacto que seu relato causaria nos reis de

    Espanha e em seus financiadores, por isso se empenhou muito em conferir resultados

    para a expedição, que são sempre as notícias sobre o ouro. As semelhanças existentes

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!16 KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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    37!

    entre as narrativas de ambos os autores em seus livros não costumam ser mencionadas

    pelos críticos de Colombo. Há um silenciamento sobre isso, em parte, porque

    Colombo costuma ser considerado um autor renascentista. Apesar de

    cronologicamente assentado no período ilustrado europeu, o texto de Colombo remete

    constantemente às crenças e ao contexto medieval. Não apenas por tomar Marco Polo

    como referência da rota para as ilha de Cipango, afinal, supostamente, ele tinha o

    mapa de Toscanelli com as rotas traçadas, mas por estar imerso no mundo medieval.

    Colombo, em uma de suas cartas anteriores à viagem para o Novo Mundo, extraídas

    do livro História do medo no Ocidente de Jean Delumeau (1989, p. 233),

    demonstrava-se seguro da proximidade do fim dos tempos: Desde a criação do mundo ou de Adão até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo houve 5.343 anos com 318 dias, segundo o cálculo do rei dom Afonso que parece ser o mais seguro (...) se a isso se acrescentarem 1.501, com um pouco menos, isso dá 6.845 anos menos alguns meses. Por essa conta não faltam mais que 155 anos até o cumprimento dos 7 mil anos, no curso dos quais (...) o mundo deverá acabar.

    Além de explorar as imagens de paraíso terrestre e do homem selvagem, usou

    também os recentes conflitos com os mouros, na Andaluzia, para ilustrar sua

    narrativa, fazendo um apelo às imagens evocadas pelas Cruzadas em busca do reino

    cristão do Oriente, do fim do mundo17 evocado pela existência dos homens selvagens

    e da redenção eterna por meio do juízo final.

    Stéphane Yerasimos (1985, p. 21), historiador que escreveu a Introdução à

    versão brasileira do Livro das Maravilhas explicou-nos que, nos tempos de Marco

    Polo, surgiu na Terra Santa, a história de que um rei vindo do Oriente, descendente de

    um dos reis magos, havia lutado e derrotado o rei dos Persas e dos Medas. Esse rei

    vitorioso era Prestes João. Marco Polo, em suas andanças não procurou recontar o

    mito, mas tentou sim encontrar as posições geográficas mais pertinentes que

    respaldassem o mito. As conqu