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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA LAÍSA FERNANDES TOSSIN OS ESPELHOS DO JAGUAR e o que seus olhos viram na outra margem do rio. Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas Campinas 2017

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Page 1: OS ESPELHOS DO JAGUAR e o que seus olhos viram na outra ... · Graduação em Linguística, do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA

LAÍSA FERNANDES TOSSIN

OS ESPELHOS DO JAGUAR

e o que seus olhos viram na outra margem do rio. Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas

Campinas 2017

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LAÍSA FERNANDES TOSSIN

OS ESPELHOS DO JAGUAR e o que seus olhos viram na outra margem do rio.

Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística, do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito para a obtenção do Título de Doutora em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela aluna Laísa Fernandes Tossin e orientada pelo Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães.

Campinas 2017

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Agência(s) de fomento e no(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The jaguar's mirror and what his eyes saw on the other bank of the river : rethinking the scientific discourse on indigenous languages Palavras-chave em inglês: Indian languages - Discourse analysis Linguistic ideas - History Designation (Linguistics) Semantics of the event Linguistics - Research Public archives - Brazil Universities and colleges - Brazil Área de concentração: Linguística Titulação: Doutora em Linguística Banca examinadora: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães [Orientador] Lauro Baldini José Horta Nunes Gersem José dos Santos Luciano Isadora Machado Data de defesa: 20-06-2017 Programa de Pós-Graduação: Linguística

Tossin, Laísa Fernandes, 1972- T639e TosOs espelhos do jaguar e o que seus olhos viram na outra margem do rio. repensando o discurso científico sobre as línguas indígenas / Laísa Fernandes Tossin. – Campinas, SP : [s.n.], 2017. T Orientador: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães. Tos Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Línguas indígenas - Análise do discurso. 2. Ideias linguísticas - História. 3. Designação (Linguística). 4. Semântica do acontecimento. 5. Linguística - Pesquisa. 6. Arquivos públicos - Brasil. 7. Universidades e faculdades - Brasil. I. Guimarães, Eduardo,1948-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

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Comissão Examinadora Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães Orientador (Presidente) Dra. Isadora Lima Machado – Universidade Federal da Bahia Dr. Gersem José dos Santos Luciano – Universidade Federal do Amazonas Dr. José Horta Nunes – Universidade Estadual de Campinas Dr. Lauro José Siqueira Baldini – Universidade Estadual de Campinas Suplentes Dr. Eduardo Alves Vasconcelos – Universidade Federal do Amapá Dr. Claudia Freitas Reis – Instituto Federal de São Paulo – Araraquara Dra. Alcida Rita Ramos – Universidade de Brasília

A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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Para Júlia, Pedro e Lucas

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Resumo Nesta tese, faço uma extensa pesquisa documental e bibliográfica referente ao

século XVI, em acervos digitais de grandes universidades e arquivos públicos. Por isso, este trabalho se posiciona na História das Ideias Linguísticas, como uma História dos Conceitos. Portanto, usei o procedimento metodológico previsto por Reinhart Koselleck. Para o corpus, foram escolhidas fontes primárias e textos clássicos. Para cada afirmação linguística presente nas fontes, foi apresentado um cenário histórico concreto. Para a interpretação dos textos, vali-me da Análise do Discurso, como proposta por Eni Orlandi. Para entender as relações entre o acontecimento histórico e as designações que se estabelecem como memórias discursivas posteriormente, usei categorias da Semântica do Acontecimento como elaboradas por Eduardo Guimarães. O que este tipo de interpretação demonstrou foi uma rigidez imperiosa de acomodar a realidade ao mesmo conjunto de categorias e conceitos. Examino a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e índios, e proponho que deste convívio teria surgido uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de línguas indígenas, mas onde não havia uma língua indígena homogênea e previamente existente no litoral do Brasil. O que serve de questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção lexical.

Palavras-chave: História das ideias linguísticas; História dos conceitos; Discurso científico sobre Línguas Indígenas.

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Abstract In this thesis, I do an extensive documentary and bibliographical research of 16th century, in digital collections of great universities and public archives. Therefore, this work is positioned in the History of Linguistic Ideas, as a History of Concepts. Therefore, I used the methodological procedure provided by Reinhart Koselleck. For the corpus were chosen primary sources and classic texts. For each linguistic assertion present in the sources, a concrete historical scenario was presented. For the interpretation of the texts, I used Discourse Analysis, as proposed by Eni Orlandi. In order to understand the relations between the historical event and the descriptions that are established as discursive memories later, I have used categories of the Semantics of the Event as elaborated by Eduardo Guimarães. What this type of interpretation demonstrated was an imperious rigidity of accommodating reality to the same set of categories and concepts. I examine the Tupi language, or General Language, from the point of view of the multiethnic and multilingual coexistence favored by the settlements and the simultaneous slavery of blacks and indians, and I propose that from this coexistence have arisen a Cryola language, influenced by Quimbundo, Angola language, and indigenous languages, but where there was no indigenous language previously existing on the Brazilian coast. This is an argument against the establishment of language families based on lexical retention. Keywords: History of Linguistics ideas; History of concepts; Cientific discourse about Indigenous languages.

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SUMÁRIO 1. Introdução ...................................................................................................10

1.1 Objetivo da tese .......................................................................................17

1.2 Coleta de dados .......................................................................................18

1.2.1 Os acervos .........................................................................................19

1.3 Metodologia .............................................................................................21

1.4 Estrutura da tese ......................................................................................23

2. Palimpsestos caribenhos ..............................................................................27

2.1 Narrativas sobre a alteridade, uma longa tradição ……………………30

2.2 A história de Colombo, uma narrativa fundadora ……………….…….34

2.3 De olhos bem fechados, a narrativa da descoberta ………………..…..40

3. Caribes de Colombo, caraíbas de Cabral ..................................................53

3.1 Caribes e aruacos ...................................................................................53

3.2 Caraíbas ou canibais? ............................................................................58

3.3 Caraíbas, os falsos profetas ………………………………...………….61

3.4 O branco caraíba ……………………………………………....……....64

3.5 Um problema conceitual .........................................................................67

3.6 A origem da humanidade, uma narrativa inacabada .............................68

4. Tapuya de tembetá é tupinambá?...............................................................73

4.1 Hic et ubique.............................................................................................76

4.2 Narrativas da construção do Brasil, a miscigenação ……………...….. 82

4.3 Língua geral ............................................................................................ 88

4.4 Jês e Tupis ……………………………………………………………... 92

4.5 Gramática Tupi …………………………………………………...…….98

5. Cientificismo canibal ..................................................................................103

5.1 Scientia et sapientia ................................................................................103

5.2 Uma história social do sujeito gramatical..............................................106

5.3 A voz que serve a Deus ………………………………………..…….....120

6. A natureza pelo avesso.................................................................................123

6.1 As regras da natureza ………………………………………..………...132

6.2 O dom da linguagem ………………………………………..………….128

6.3 O dom da palavra ....................................................................................133

6.4 Natureza e linguagem ..............................................................................138

6.5 A origem da humanidade, uma narrativa ainda inacabada ....................140

7. A voz dos esquecidos......................................................................................143

7.1 A linguagem no jogo do dito e do não-dito ..............................................149

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7.2 Fósseis linguísticos ....................................................................................155

8. Epílogo .............................................................................................................168

9. Bibliografia ......................................................................................................172

10. Anexo I .............................................................................................................187

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1. INTRODUÇÃO

A história das palavras científicas não

passa unicamente pelos cientistas autênticos que as utilizaram

cientemente. Esta história passa também por aqueles que herdaram o vocabulário sem o método, buscando

nele inspiração barata, ou um meio de impressionar o público pouco apto a

discernir as diferenças. (Starobinski, 2002, p. 43)

Conta a história1 que, em um dia de muito calor, o jaguar encontrou o jacaré na

beira do rio divertindo-se em mandar seus olhos passearem na outra margem e ficou

fascinado com aquela possibilidade. Pediu, então, ao jacaré que mandasse seus olhos

à outra margem também. O jacaré concordou e mandou os olhos do jaguar passearem

do outro lado do rio, depois chamou-os de volta e os devolveu ao jaguar, mas o jaguar

queria mais. O jacaré explicou que era muito perigoso, pois o peixe-monstro poderia

comer os olhos dele, mas o jaguar insistiu e o jacaré, a contra gosto, enviou-lhe os

olhos de novo à outra margem. O peixe-monstro estava à espreita e comeu os olhos do

jaguar. Cego e triste o jaguar perambulou pela floresta até que o gavião real decidiu

ajudá-lo a recuperar a visão, derramando leite de jatobá no vazio dos olhos do jaguar.

O jaguar recuperou a visão e ganhou um par de olhos mais claros do que os anteriores

e os dois se tornaram amigos. Por isso, ainda hoje, o jaguar deixa uma parte de sua

caça para o gavião real.

O jaguar evoca o animal xamânico por excelência. Com a pele do jaguar, o

xamã cruza os limites humanos e entra no mundo metafísico, em sua jornada solitária

na busca da cura e da manutenção do mundo, iluminada pelos espelhos2 do jaguar,

como faróis na escuridão. Tomei emprestadas as lentes do jaguar para poder ver o que

havia na outra margem do rio e vesti a pele do jaguar para poder transitar entre

realidades, as várias que acompanham o desenrolar deste trabalho. Assim, protegida

sob a pele do jaguar e com seus espelhos a iluminar meu caminho, empreendi minha

jornada de cura e transformação.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 História do folclore amazônico compilada em Os animais e a psique, de Denise Gimenez Ramos, Summus Editorial, vol. 1, p. 212, 2005. 2 Os olhos dos felinos possuem uma estrutura refletora, localizada atrás da retina que espelha a luz que entra em seus olhos, seja o brilho de uma estrela ou um raio de luar, ajudando-os a enxergar com mais nitidez. Por isso, são os espelhos e não os olhos do jaguar a mostrar o caminho.!

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Inicialmente, no mestrado, a jornada me levou ao Cerrado. Foi o contato com

a descrição da língua Apinajé que me submergiu na realidade das sociedades rituais,

das metades cerimoniais, das cerimônias de nomeação e dos desacertos com o

trabalho descritivo da língua. Embora o trabalho tenha se configurado como

exclusivamente bibliográfico, os desencontros com as descrições propostas por outras

linguistas foram inevitáveis. Eu procurava entender se eram pertinentes as distinções

sujeito e verbo, sujeito e objeto, como categorias gramaticais das línguas indígenas a

priori, ou se estas eram apenas projeções de nossas categorias gramaticais ocidentais,

construídas ao longo de um processo histórico de elaboração conceitual que se

estabeleceu como científico e, portanto, universal.

Foi com a segunda etapa da jornada sob a pele do jaguar já iniciada que ouvi

de um jovem Tukano, estudante de pós-graduação em Antropologia, a pergunta mais

difícil de ser respondida: “por que os índios? Por que não ajudar os teus parentes?”

Havia na contestação dele uma raiva mal-dissimulada, ele estava inconformado com o

arrepio que o exótico provoca, profundamente chateado com a imagem de selvagem

que ele mesmo carrega. Eu não sabia o que dizer. Exausta pelo cansativo trabalho

intelectual de redação da tese me perguntei se realmente não teria sido melhor ajudar

meus parentes, mas eu escolhi estudar línguas indígenas, por quê? Para me forçar a

lidar com a alteridade de maneira maximizada. Nesta empreitada, me deparei com

uma realidade bifurcada: ou existe uma única verdade humana e a estamos revelando

constantemente ou esbarramos, ininterruptamente, na redoma de vidro de nossas

convicções conceituais. Optei pela perspectiva da redoma de vidro conceitual.

***

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Primeiramente, pensei em começar a pesquisa com a fundação da

Universidade de São Paulo (USP), em 1934. Conta Lucy Seki (1999, p. 236) que, no

ano seguinte à sua criação, foi incluída, nos cursos de História e Geografia, a cadeira

de Língua Tupi-Guarani e Tupinologia, ministrada por Plínio Ayrosa, com estudos de

caráter filológico, etimológico e histórico, inaugurando assim o estudo superior

dedicado ao índio. De acordo com Maria Cristina Altman (1998, p. 46-60), que

estudou a pesquisa linguística no Brasil, a princípio, a implantação dos estudos de

línguas indígenas esteve associada aos departamentos de Antropologia, ao longo do

tempo, foi deslocada aos cursos de Letras, passando a integrar a cadeia de disciplinas

de formação de professores de língua portuguesa para o ensino fundamental e médio.

Assim, tanto a Linguística quanto os estudos de línguas indígenas entraram no

currículo previsto para a formação profissionalizante do professor, não visando o

desenvolvimento de reflexões propriamente linguísticas, mas servindo como uma

ferramenta para o entendimento da complexidade da formação e do estabelecimento

da língua nacional, entendida aqui como a língua portuguesa do Brasil. Bruna

Franchetto e Ionne Leite (1983, p. 15-30), que historiografaram a pesquisa em

Línguas Indígenas no Brasil, divulgaram que, com um programa financiado pela

Fundação Ford que visava à melhoria do ensino da língua portuguesa e entendia as

línguas indígenas como um “subproduto nacional”, a pesquisa em Línguas Indígenas,

então sediada no Museu Nacional, se deslocou para o curso de Letras da UFRJ, com o

intuito de formar professores.

Ao longo da leitura de textos como Sobre a necessidade do estudo e ensino

das línguas indígenas do Brazil, de Adolfo Varnhagen e Do método de estudo das

línguas sul-americanas, de José Oiticica, de 1933, onde já vigoravam as ideias

apresentadas por Aryon Rodrigues na reunião da Associação Brasileira de

Antropologia, em 1966, em seu discurso Tarefas da Linguística no Brasil, percebi que

havia consenso sobre a extinção das línguas e a necessidade de sua documentação e

estudo. Percebi também que havia um nó no discurso científico sobre as línguas

indígenas, um conjunto de categorias linguísticas que serviam como referências

identitárias e de pertencimento. Estas categorias estavam cristalizadas como famílias

linguísticas, são elas: tupi, guarani, arawak e caribe, e representam uma geografia

nacional da nomeação do índio, intrinsecamente política, desde o descobrimento, e

que foram transpostas para o estudo científico do índio como categorias linguísticas

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específicas. O uso destas categorias se dá em decorrência do discurso gerado e

compartilhado sobre as línguas indígenas, suas origens e suas relações históricas.

Alexandra Aikhenvald e Robert Dixon (1999, p. xxvi), editores do grande

manual The Amazonian Languages, garantiram que as contribuições publicadas em

seu livro estão de acordo com a Teoria Linguística Básica (Basic Linguistic Theory),

desenvolvida a partir das descrições linguísticas acumuladas em uma única tradição

que já perdura 2.000 anos, evidenciando este arcabouço fidedigno com o exemplo da

tradição das gramáticas que foram elaboradas exatamente sob esses parâmetros. Era

exatamente este o problema que eu percebia. Se a tradição de descrição linguística

acumula dados há 2.000 anos, então ela se desenvolveu junto ao processo histórico de

elaboração conceitual científico ocidental, amalgamando os dois. Os conceitos

elaborados pelo pensamento científico se solidificaram em conceitos linguísticos e

gramaticais quase inseparáveis: sujeito, objeto, verbo, palavra, fonema e todas as suas

subformas e variações. Como isso aconteceu? Bom... escrevi esta tese para entender o

caminho histórico de elaboração conceitual científica, principalmente, sobre as

línguas indígenas faladas no Brasil.

Além da tradição da ciência e da filosofia desenvolvidas em torno das

descrições linguísticas, há a tradição de descrição linguística acumulada ao longo do

trabalho desenvolvido no Brasil que remonta ao descobrimento e passa

inevitavelmente pelas descrições e gramáticas elaboradas pelos missionários e pelos

naturalistas que estiveram aqui. Foi nestas fontes que decidi mergulhar e foi por meio

delas que refiz o trajeto de constituição do discurso científico sobre as línguas

indígenas faladas na América e suas implicações para a descrição linguística dessas

línguas. Algumas reflexões já começaram a ser divulgadas. Refiro-me precisamente à

minha dissertação de mestrado que, após os estudos iniciais do doutorado, passou por

uma revisão, da qual surgiram dois artigos, um sobre os pronomes pessoais e a noção

de pessoa Apinajé3, em que questiono a noção pronominal centrada no ‘eu’. E o outro

sobre o termo kra, recentemente publicado, em que questiono o porquê de os

classificadores em línguas indígenas sempre remeterem à esfera do concreto, da

realidade imediata, do natural.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 Segundo Mansur Guérios (1948, p. 9), os etnômios “são dados pelas mesmas tribos, pelas vizinhas, e pelos europeus.” O autor ressaltou a consideração de Trombetti que observou que os etnômios em geral significam “humano verdadeiro”, mas no entanto a origem ou a história deste etnômio é frequentemente desconhecida. Adotei o termo Apinajé por ser a referência bibliográfica mais comum sobre o povo e a língua falada por este povo, exatamente por se tratar de um trabalho de compilação bibliográfica sem visita a campo.

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Para o artigo sobre o termo kra, resgatei a discussão apontada por Christiane

Oliveira (2005, p. 61), em sua tese de doutorado. Ela argumentou a impossibilidade

de comprovar em campo a existência da vogal nasal [ã] em apinajé, rechaçando o

proposto por Pamela Ham (1961, p. 4), portanto, não a incluiu em seu quadro de

fonemas vogais da língua. Os pares krá/krã ou krá/kra, se usados como pares

opositores, testam a presença dos fonemas da vogal ‘a’ aberta e nasal na língua. Tanto

Pamela Ham quanto Christiane Oliveira trataram-nos como dois itens lexicais

diferentes e consideraram que krá (vogal ‘a’ aberta) significa ‘filho/criança’. Pamela

Ham (1961, p. 19) considerou que krã (vogal ‘a’ nasal) significa ‘cabeça’, e

Christiane Oliveira (2005, p. 145) que kra (vogal ‘a’ média) também significa

‘cabeça’. Em ambos os casos, a distinção lexical é definida pela existência de

oposição fonológica entre estas vogais. Talvez, krã/kra sequer signifique ‘cabeça’,

mas sim conduza ao entendimento mais amplo da compreensão de corpo e de pessoa

apinajé, assim como do mundo que os cerca. Porém, as concepções expressas por

estas palavras representam algo bem maior e mais extenso do que sua limitada

tradução para o português pôde abranger. Ao fazer uma pequena lista de palavras

relacionadas a termos de parentesco, pude perceber que o termo krã ou kra, embora

traduzido literalmente como ‘cabeça’, aparece diretamente relacionado à ‘criança’.

Um homem chamará de ikrá aos seus filhos e aos filhos de suas cunhadas, embora

faça distinção entre sua esposa e suas cunhadas em um relacionamento regido por

piam (respeito). Da mesma forma, a mulher chamará de ikrá seus filhos e os filhos de

suas irmãs, portanto, krá não é exclusivamente o filho gerado pela união sexual dos

genitores, se aproxima mais de um termo de parentesco que estabelece lugares sociais

para cada ente dentro do grupo. No sistema de nomeação apinajé, como explicitado

por Roberto da Matta (1976, p. 85-112), os genitores escolhem, entre seus amigos

formais, aquele que dará nomes à criança. Após estabelecida a formalidade, o

nomeador e o nomeado passam a se tratar pelos seguintes termos:

krã-geti ‘nomeador’ (literalmente, ‘cabeça velha’)

pakrã ‘nomeado’ (literalmente, ‘cabeça nova’)

Embora, literalmente seja ‘cabeça’, semanticamente, remete à ‘criança/filho’.

Se visualizarmos que, ao nascer, a primeira parte do corpo do bebê que desponta no

canal vaginal é a cabeça teríamos uma unidade semântica que se estende de krá/kra

alcançando krã. Jean Starobinski (2002, p. 13) nos propôs que a história de cada

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palavra seria criada no devir histórico de cada língua, tendo seus desenvolvimentos

fortemente alicerçados em sua própria história. A questão colocada aqui seria como

perceber essa história de construção de sentido, incluídas suas mudanças de sentido

que seriam tão significativas quanto o sentido original, em línguas das quais não

conhecemos a trajetória histórica de construção do sentido. Haveria possibilidade de

acessar este conhecimento? Haveria possibilidade de transpor os nossos limites

conceituais para compreender outros sentidos, construídos sob outra memória

discursiva? Tentarei, tomando algumas considerações etnográficas elaboradas por

Roberto da Matta, estabelecer uma relação de sentidos que possa apontar uma direção

histórica de construção dos sentidos implicados no conjunto semântico krá/kra/ krã.

Para Roberto da Matta (1976, p. 134), a cabeça é, das partes do corpo, a mais

significativa para os Apinajé, visto o cuidado e a relevância do corte de cabelo e dos

adornos cerimoniais identificadores de cada metade amarrados sobre o sulco criado

pelo corte de cabelo. A cabeça e o corte de cabelo em muito se assemelham ao

formato tradicional das casas que são arredondadas. Poderíamos supor, então, a

existência de um categorizador da forma “redondo”, como descrito em Kaingang por

Wilmar D’Angelis (2002, p. 215-242), aludindo à forma arredondada da cabeça e à

esfericidade de alguns frutos. A questão seria, então, interpelar sobre a escolha da

forma “redondo” como determinante do categorizador. Por que privilegiar o formato

em detrimento das relações sociais?

A resposta para esta pergunta é longa, passa inevitavelmente pelo labirinto

teórico e conceitual desenvolvido pela ciência ocidental ao longo dos últimos 2.500

anos aproximadamente. A ideia por trás da análise linguística convencional, que

percebe um classificador de forma “redondo” como explicação, baseia-se no

entendimento estruturalista de que o pensamento selvagem atua sobre o concreto e

não sobre o abstrato. Esta consideração nos remete imediatamente às origens da

linguística como disciplina científica, a Wilhelm von Humboldt, para quem povos de

pouca complexidade social desenvolveriam línguas relativas ao prático com pouca ou

nenhuma abstração, evocando a cadeia do ser do século XVI, na qual os povos seriam

classificados por seu desenvolvimento espiritual em termos de maior ou menor

humanidade, conceitos religiosos que remetem ao século XIII, e assim por diante. Há

uma longa caminhada a ser feita por esse labirinto a partir de agora. Para mim, a

descrição de línguas indígenas é uma das abordagens que se vale de conceitos

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ocidentais para operar como ferramenta de análise com pressupostos universais sobre

o funcionamento das línguas.

Nesta tese faço uma extensa pesquisa documental e bibliográfica. Grande

parte do trabalho foi fazer uma compilação com o intuito de mostrar o caminho da

construção conceitual de termos e de ideias ainda hoje adotados pela Linguística

Histórica, pela Linguística Comparada e pela Tipologia Linguística como verdadeiros

sobre as línguas indígenas. Por isso, este trabalho se posiciona na História das Ideias

Linguísticas, como uma História dos Conceitos. Procuro investigar a elaboração dos

termos de maneira ampla, abrangente, porque o fermento intelectual e criativo de uma

época não se encontra encerrado em um único texto. Em qualquer momento há

debate, questionamentos e contribuições de diversas áreas. Pois as pessoas vivem

embebidas no momento histórico ao qual pertencem.

Parto do princípio, já bastante discutido por vários historiadores, entre eles,

Jack Goody e Eric Wolf, de que a Europa era conectada por meio de rotas e alianças

comerciais que se expandiam para a África e a Ásia. Para Eric Wolf (2005, p. 40), as

redes estabelecidas entre Europa, Ásia e África são cruciais para compreender as

relações entre o mundo conhecido e o mundo desconhecido: o Novo Mundo. Pois foi

do encontro entre estes dois mundos diferentes que se estabeleceu um mundo de

relações unificadas pelas atividades humanas, geograficamente estabelecido e acima

de tudo um mundo que se relacionava entre si por meio de trocas comerciais. Entendo

porém que não eram apenas as trocas comerciais que uniam o mundo ou faziam-no

relacionar-se. As ideias científicas eram também fruto de um debate que se estendia

não apenas territorialmente, mas distendia-se no tempo.

A revitalização da produção intelectual grega funcionou como uma mão dupla

na história da Europa. Estabeleceu uma nova fronteira, chegando agora até a Grécia, e

concedeu profundidade histórica ao pensamento produzido na Europa, sugerindo uma

continuidade do saber e do poder político que justificava a ascenção comercial

europeia e sua separação territorial do restante da Eurásia. Tema já debatido e

especulado por vários gregos, eles mesmos dando-se uma posição nem cá nem lá.

Jack Goody (2008, p. 117-121) resgatou as ideias de Aristóteles sobre o tema, que

localizou a Grécia em um ponto intermediário entre Europa e Ásia, e identificou os

gregos como agregadores das qualidades de ambos os lados, acrescentando que o

clima contribuía para a falta de inteligência e indústria na Europa, e que a falta de

ânimo dos asiáticos os subjugava à escravidão perpétua em que viviam. Aristóteles

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acreditava que a situação privilegiada dos gregos lhes permitia perceber elementos de

sua própria cultura em outras culturas, como a etíope, a germânica e a persa.

De alguma forma, os europeus se apropriaram tanto da produção intelectual

quanto da visão “helenocêntrica”, fundando seus novos limites territoriais e

epistemológicos. As grandes perguntas com densa profundidade histórica precisam

ser feitas em algum momento. Dediquei-me a escavar as camadas fossilizadas das

categorias linguísticas e do pensamento ocidental. As respostas, apresento-as nesta

tese.

1.1 Objetivo da tese

Considerando a Teoria da Monogênese, seria necessário traçar a história

linguística do continente americano, em marcha ré, até a separação do grupo asiático

que empreendeu a migração pelo estreito de Behring4, para podermos estabelecer sua

posição na árvore genealógica das línguas da humanidade. Por enquanto, os troncos e

as famílias linguísticas americanas permanecem separadas do conjunto indo-euro-

asiático e africano. Embora este modelo de linguística busque as relações históricas

entre os diferentes grupos humanos e suas línguas por meio de migrações e de contato

entre os povos, entende as relações linguísticas como um dado supra-histórico. A

ideia de que a linguagem funciona como um processo mental universal de

representação do mundo subjaz à teoria da monogênese e aos métodos genealógico e

tipológico. Assim, criamos um humano genérico, uma língua genérica e uma

representação genérica da realidade que tem por base exclusivamente o pensamento

ocidental e suas teorias sobre a linguagem amparadas na ciência de base cristã

desenvolvida ao longo de séculos. Uma das representações ocidentais que discuto

nesta tese é o sujeito gramatical como categoria linguística que pressupõe uma

hierarquia sobre o objeto.

Outro objetivo desta tese, é identificar como a classificação das línguas

indígenas em troncos e famílias linguísticas foi estabelecida. Não pretendo discutir o

método em si, mas apontar as premissas ideológicas presentes nas teorias que o

amparam. Como descreveu Otto Jespersen (1964, p. 367-395), em Language, o

método que classifica as línguas em categorias chamadas de famílias linguísticas é a

identificação de membros por retenção lexical semelhante, ou seja, línguas com

palavras semelhantes pertenceriam à mesma família linguística. A mútua

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 Afinal esta ainda é a teoria mais aceita a respeito da chegada do humano ao continente americano.

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compreensão entre línguas aparentemente diferentes indicaria a existência de dialetos

que deveriam ser considerados como uma única língua. Este método se desenvolveu

paralelamente aos estudos do indo-europeu e tem como premissa a Teoria da

Monogênese da Linguagem. Então, se todas as línguas têm uma origem comum, por

meio da comparação entre as línguas seria possível traçar seus parentescos e especular

sobre sua origem. Por isso, a comparação entre as línguas resultou na elaboração da

gênese das línguas como uma árvore genealógica com uma língua-mãe sendo o tronco

comum do qual partem ramos que vão se dividindo uns a partir dos outros.

No que diz respeito às línguas indígenas existentes no Brasil, a língua Tupi, ou

Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida

pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e índios, poderia ter surgido

como uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de

outras línguas indígenas, transportando sentidos através do oceano e ancorando uma

nova língua no litoral do Brasil. Uma perspectiva com este viés, o do sentido, serve de

questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção

lexical.

Paralelamente à classificação genealógica, se desenvolveu a classificação

tipológica moderna das línguas, que distingue as línguas de acordo com suas

caraterísticas estruturais morfológicas, com línguas isolantes, aglutinantes ou

flexionais. Para esta teoria, a presença de radicais morfológicos nas palavras é uma

forma de rastreamento da retenção lexical. Como nos exemplos retirados de Aryon

Rodrigues (2002, p. 55), em Apinajé, ‘meu’ significa i-; em Xavante, ii-; em

Kaingang, iñ-; em Yatê, i-; em Boróro, i-, e em Rikbaktsá, ik-. Todas estas línguas

pertencem ao tronco Macro-Jê e, em todas elas, o prefixo possessivo vem acoplado

aos nomes, como em ikrá, ‘meu filho’, em Apinajé. Nesta lógica, nomear o mundo

define uma língua e a classifica.

1.2 Coleta de dados

Como não dispunha de financiamento para deslocar-me até as instituições que

guardam os acervos, enviei meus olhos em um longo passeio pelos acervos digitais de

grandes universidades e arquivos públicos, em sua maioria, disponíveis no Internet

Archive <https://archive.org>, da empresa Google, que gerencia as bibliotecas

virtuais de Library of Congress, Harvard Library, Boston College entre outras grandes

bibliotecas que compõem o catálogo de acervos americanos, com aproximadamente

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dois milhões de itens disponíveis para download. O sistema gerencia também mais de

500.000 acervos digitalizados de universidades europeias, que disponibilizam mapas,

livros e documentos diversos. Muitas gramáticas e dicionários históricos, assim como

livros raros e edições esgotadas foram encontrados neste sistema.

1.2.1 Os acervos

No acervo digital da Universidade de Madrid, procurei por informações sobre

as colônias espanholas na América, mapas e relatos de viagens, e acabei me

embrenhando pela resistência basca e pelo acervo escassamente digitalizado referente

à produção intelectual moçárabe da Andaluzia. Meus olhos irremediavelmente se

prenderam aí. Qual seria a influência moçárabe e islâmica na escolástica produzida

nos monastérios espanhóis do século XII? Infelizmente meus inexperientes espelhos

não possuem ainda capacidade de dissipar tão densa escuridão.

Na Universidade de Lisboa, que gerencia o arquivo digitalizado da Torre do

Tombo, procurei mapas, relatos de viagem e documentos sobre as viagens marítimas

para o Brasil, os chamados regimentos que cada navio era obrigado a fazer, neles

constam o nome de cada tripulante embarcado, idade, endereço, função e

remuneração, além do valor estimado da carga transportada e a descrição de toda a

mercadoria e dos suprimentos para a tripulação, assim como o cálculo do imposto

devido. Grande parte dos documentos digitalizados são informações mercantis,

embora muitos papéis tenham se perdido durante o terremoto de Lisboa, em 1773, e

nos incêndios que assolaram a cidade após o terremoto. Foi em um dos regimentos,

que encontrei o nome da família Anes, um dos primeiros línguas que se estabeleceu

no Brasil, mas embora exista uma infinidade de informações mercantis disponíveis

nos acervos, as documentações relativas às famílias não estão digitalizadas. É difícil

rastreá-las para entender suas relações e comprometimentos, pois são cartas guardadas

em caixas de arquivos pessoais. Este me parece ser o caso dos línguas, dos quais é

praticamente impossível saber a origem e o treinamento que receberam. Afinal, por

que se tornaram línguas? Recentemente estes arquivos vêm recebendo a atenção de

pesquisadores e historiadores que procuram outros vieses para suas pesquisas e

algumas informações sobre arquivos pessoais já podem ser encontradas em teses e

publicações. Este é o caso das relações familiares da casa de Martim Afonso

Chichorro, extensamente descritas pela historiadora Alexandra Maria Pinheiro Pelúcia

em sua tese de doutorado.

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No arquivo digital do Vaticano, após horas de pesquisa, encontrei os

manuscritos originais de Santo Tomás de Aquino da Summa Theologiae. Como não

disponho de conhecimento de leitura paleográfica do latim escrito no século XIII, me

contentei, emocionada, em admirar essa impressionante descoberta. O material

pesquisado foi uma impressão espanhola, em latim, gentilmente emprestada pelo

professor João Miguel Sautchuk, e as traduções das províncias beneditina para o

português e dominicana para o inglês.

No acervo digital do Banco da República da Colombia, gerenciadora do

arquivo da extinta Gran Colombia que abrangia os territórios atuais da Colômbia, da

Venezuela, do Equador e do Panamá, incluindo a documentação sobre o Caribe e o

porto mais disputado da América, Cartagena de Índias, encontrei cinco volumes das

Noticias Historiales de Fray Pedro Simón e a Recompilación de Leyes de Índias.

No acervo digital da Biblioteca da Câmara dos Deputados, busquei por

documentos jurídicos, regulamentações e decretos sobre os índios. Encontrei o

Diretório dos Índios e inúmeras obras raras inteiramente digitalizadas, como o De

Orbis Novo e a Corografia Brasília de Aires do Casal, além de publicações brasileiras

do século XIX.

O Arquivo Jesuítico em Roma não possui acervo digitalizado, por isso, toda a

documentação a respeito da Companhia de Jesus foi investigada na extensa

compilação do Padre Serafim Leite, História da Companhia de Jesus.

No acervo digital da Universidade de Berlim, encontrei para download todos

os livros dos irmãos Humboldt, em alemão, e algumas versões em francês.

A seção de Obras Raras da Biblioteca Central da Universidade de Brasília me

ofereceu a possibilidade de folhear o Glossaria Linguarum Brasiliensium de Martius

e Spix. Demais documentos foram encontrados em compilações editadas e publicadas

no Brasil, como História dos Índios do Brasil, Os primeiros documentos sobre a

história natural do Brasil, Brasil 1500 – quarenta documentos, e o Catálogo da

Biblioteca Nacional.

Além dos acervos digitalizados, foram muito úteis dicionários online,

aplicativos de tradução e de busca por palavras, dos quais tirei excelente proveito,

embora tenha sido educada em tempos analógicos em que imperavam a máquina de

escrever e o caderno. A web tem sido considerada uma fonte enganosa de informação,

no entanto, me demonstrou que a fase de descrédito foi superada. O que se apresenta a

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nós é uma biblioteca de letras imensurável, labiríntica e fenomenal. Me perguntei

diversas vezes se Jorge Luis Borges não a teria vislumbrado ao escrever O Aleph.

1.3 Metodologia

Esta tese se encontra no domínio da História das Ideias Linguísticas, mais

especificamente, no domínio da História dos Conceitos. Portanto, foi usado o

procedimento metodológico previsto por Reinhart Koselleck (1992, p. 134-146), em

Uma História dos Conceitos. Primeiramente, procedi à seleção do corpus, ou seja, a

escolha do material textual a ser utilizado como fonte de pesquisa para verificar em

que textos o termo escolhido ocorre, ampliando depois para um contexto mais

abrangente em que se articulam os termos para além do texto escrito. Este

procedimento exige a comparação entre diversas fontes textuais, o mais abrangentes

possíveis, pois a partir de um único texto não é possível uma visão tão ampla. Então,

foram escolhidas fontes primárias, chamadas de primárias, porque se articulam ao

cotidiano e são únicas.

Em um primeiro momento, as fontes escolhidas eram dedicadas à história da

colônia e do relacionamento entre brancos e índios. Para este trabalho, em que foram

historiografados os conceitos carib, arawak, caraíba e tupi, selecionei cartas dos

missionários à Ordem e cartas dos senhores das capitanias ao Rei; alvarás e

regimentos referentes à colônia e regimentos relativos às embarcações saídas de

Portugal; cartas de autores-referência para os estudos sobre as línguas indígenas,

como Karl von den Steinen e Theodor Koch-Grünberg.

Outro conjunto de textos foi o dos livros impressos que retém um tipo de texto

menos suscetível à mudança que as fontes primárias, os chamados textos clássicos do

descobrimento, que mantêm uma estrutura repetitiva e praticamente inalterada ao

longo de suas reimpressões e reedições. Este é o caso dos diários dos navegadores:

Novus Mundus, De Orbis Novo; Arte de grammatica da lingoa mais usada na costa

do Brasil; e os livros escritos pelos cronistas do século XVI, entre eles: Yves

D’Evreux, Claude D’Abbeville, Fernão Cardim e Pero Gândavo.

Entre as categorias estabelecidas por Reinhart Koselleck, não há a previsão

dos depoimentos diretos dos indígenas que foram pinçados da documentação oficial

da colônia e dos textos clássicos como forma de dar voz aos índios, demonstrando a

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resistência5 e a interferência dos índios que, embora silenciados, contribuíram para o

estabelecimentos dos sentidos postos em circulação durante a colonização.

Em um segundo momento, as fontes escolhidas foram aquelas dedicadas aos

estudos da linguagem, nas quais investiguei os termos: sujeito gramatical e objeto

gramatical; e linguagem e língua. As fontes primárias foram cartas trocadas entre os

irmãos Alexander e Wilhelm von Humboldt. Assim como as obras clássicas: Die

Sprache de Wilhelm von Humboldt e a Summa Theologiae de Tomás de Aquino.

Para cada afirmação linguística presente nas fontes, foi apresentado um

cenário histórico concreto no qual é possível interpelar às fontes o que elas indiciam

sobre a coprodução da história enquanto textos. Neste ponto, a semântica e a história

dos conceitos se aproximam, por isso, usei a metodologia dos domínios semânticos de

determinação, como proposto por Eduardo Guimarães (2010, p. 9-24), em O sentido

de ‘história’ em dois estruturalistas brasileiros, para determinar os predicados de

reescrituração dos termos língua e linguagem ao longo dos textos, buscando fazer

uma relação entre os termos e os textos em que foram reescriturados de forma a

acompanhar as variações ao longo do tempo. As variações não significam exatamente

mudança, mas sim, a repetição do mesmo, por meio da reescrituração. O que este tipo

de interpretação demonstrou foi uma rigidez imperiosa de acomodar a realidade ao

mesmo conjunto de categorias e conceitos.

Como metodologia para a interpretação dos textos, vali-me da Análise do

Discurso, como proposta por Eni Orlandi (1999), em Análise de discurso. Princípios e

procedimentos, e de sua forma de entender o controle dos sentidos por meio de uma

força social que se reproduz pela memória discursiva que administra os sentidos.

Tendo em vista que tratei de textos de obras clássicas, portanto consolidados

discursivamente na história da linguística, foi profícuo entender que tanto as

gramáticas quanto as obras clássicas são discursos sobre a língua e, portanto, passíveis

de representarem, em seus discursos, sentidos, alimentados por uma memória

institucional e discursiva sobre aquele saber.

Também da Análise do Discurso acatei o princípio de que a memória

discursiva especifica as condições nas quais um acontecimento histórico é suscetível

de tornar-se uma memória. Para entender as relações entre o acontecimento histórico

e as designações que se estabelecem como memórias discursivas posteriormente, usei

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5 A Professora Isadora Machado, em sua atenciosa leitura, propôs a inclusão da resistência dos silenciados no proceso de estabelecimento e circulação de sentidos.

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categorias da Semântica do Acontecimento como elaboradas por Eduardo Guimarães

(2014, p. 49-68), em Espaço de enunciação, cena enunciativa, designação, ao tratar

das relações entre espaço de enunciação e cena enunciativa em episódios da história

da colonização brasileira.

Esta forma de análise semântica é feita levando-se em conta a distinção entre

os processos enunciativos de reescrituração e articulação. O processo de

reescrituração apresenta uma relação não reflexiva. É por meio da não reflexividade

do processo que se atribui sentido, ou seja, se uma expressão é repetida no decorrer do

texto, o que mais interessa não é a repetição em si, mas como esta repetição, em certa

medida, se torna uma outra expressão. É este aspecto que dá sentido à expressão.

Saber o que uma expressão significa num enunciado envolve saber como esta

expressão se integra num enunciado que integra um texto. Deste modo, não é possível

pensar o que é um enunciado, e o que ele significa, sem que esta unidade seja tratada

enquanto integra um texto. Isto pode ocorrer de dois modos: retomando ou

reescrevendo outra expressão, ou analisando como a expressão se articula localmente

num sintagma específico. Quanto às operações de articulação, as mais comumente

consideradas são: determinação, predicação, argumentação, narratividade, referência

etc.

A tradução exigiu também uma abordagem específica. Dada minha pouca

competência no alemão e no latim, tomei muito tempo pesquisando traduções para

outras línguas que não o português como forma de evitar equívocos e como estratégia

para desenvolver uma perspectiva própria sobre cada autor. Em geral, comparei

versões em duas ou mais línguas com o original para, depois de chegar à compreensão

do texto, elaborar minha própria tradução dos trechos que considerei mais relevantes.

1.4 Estrutura da tese

No primeiro capítulo, faço um levantamento das narrativas que territorializam

os índios e suas línguas na América, gerando uma geografia do simbólico. Há uma

vasta bibliografia escrita por cronistas dos séculos XVI e XVII que descreveram os

habitantes do Novo Mundo, levantando as bases do conhecimento sobre os índios e

suas formas de vida. Os primeiros documentos escritos sobre as viagens marítimas de

europeus para a América foram os diários de bordo de Colombo e de Pinzón, o último

redigido pelo escrivão a bordo da caravela Niña, Pedro Martire d’Anghiera. Colombo

supostamente escreveu seu próprio diário, um livro controverso cuja autoria ainda

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hoje é discutida, mas que se legitimou como o primeiro documento escrito sobre a

terra e sobre os índios que viviam nela. Durante a leitura do diário de Colombo e de

textos de seus contemporâneos, identifiquei o uso de narrativas e imagens similares.

Sorrateiramente, Marco Polo se revelou uma leitura obrigatória, dadas as

coincidências estruturais narrativas presentes no Livro das Maravilhas e as narrativas

da descoberta. Comecei a pensar que essas semelhanças pouco tinham a ver com os

nativos, mas com os europeus e sua forma de ver o mundo. Ficou claro para mim, que

as categorias usadas para entender o outro são e foram projeções que os europeus

fizeram sobre os outros povos.

No segundo capítulo, trato também do estabelecimento dos grupos étnicos

caribenhos, mais especificamente os caribes e os arawaks, cuja distinção e existência

partiram da experiência de Colombo e se calcificaram como categorias étnicas e

famílias linguísticas inquestionáveis. Também traço a trajetória histórica do termo

caraíba e suas implicações canibais tanto para portugueses quanto para indígenas.

Para isso, analiso os textos dos primeiros cronistas sobre o Brasil e averiguo os termos

que designam o branco, como caraíba. Como decorrência das implicações de caraíba

como pajé, faço reflexões sobre o canibalismo tupi e a migração messiânica guarani.

A descoberta de um novo continente trouxe a necessidade de reelaborar o mito de

origem dos brancos cristãos, neste capítulo, apresento a primeira parte desta história

que ainda não chegou ao fim.

No terceiro capítulo, discuto a geografia da nomeação étnica como

estritamente política, significando quase uma delimitação territorial de concessões

portuguesas que se projetaram no discurso científico como famílias linguísticas que

partilham semelhanças lexicais. Uso, para esta discussão, as narrativas de Caramuru e

João Ramalho para estabelecer a geografia linguística e política que se desenrola a

partir delas. Examino a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da

convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão

simultânea de negros e brancos, onde teria surgido uma língua criola, com influências

do Quimbundo, da língua de Angola e de línguas indígenas, mas onde não existiria a

presença de uma língua indígena homogênea e previamente existente no litoral do

Brasil. O que serve de questionamento para o estabelecimento das famílias

linguísticas com base na retenção lexical. Procuro trazer evidências linguísticas da

dispersão ideológica causada pelos contatos históricos entre grupos indígenas na

América, em período pré-colombiano, em vez de justificar o contato histórico por

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meio da presença de retenção lexical. O pressuposto inicial é a existência de uma

conexão entre os grupos que perpassava, pelo menos, toda a parte sul do continente

americano, por onde circulavam bens, pessoas, tecnologia e, principalmente, no que

diz respeito a esta pesquisa, sentidos. A existência pré-colombiana de complexos

sistemas de integração pode ser percebida nos textos da arqueologia e da etnologia

que descrevem ritos e rituais cujos significados são partilhados por grupos que não

pertencem necessariamente à mesma família nem habitam territórios vizinhos.

No quarto capítulo, analiso o método de descrição de línguas que pressupõe a

existência de categorias universais e investigo as bases ideológicas destas categorias,

revisitando as premissas estabelecidas por Tomás de Aquino, no século XIII.

Apresento uma breve discussão a respeito do sujeito gramatical como categoria

linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.

No quinto capítulo, abordo a passagem dos naturalistas pela América, mais

especificamente Alexander von Humboldt, e sua necessidade de classificar o mundo

de acordo com uma estrutura orgânica e natural que desvendasse seu funcionamento.

Para os naturalistas, a natureza era entendida como um caos que necessitava ser

ordenado pela ciência, a partir desta ideia o modelo científico de produzir

conhecimento se estabeleceu. O modelo científico era amplamente baseado na

classificação botânica elaborada por Linneu. Da lógica naturalista de classificação,

surgiram as listas de palavras a partir das quais as línguas dos grupos étnicos visitados

por missionários e aventureiros do século XVI foram organizadas em famílias,

consolidando assim o discurso científico sobre as línguas e suas filiações genéticas.

Discorro sobre as ideias linguísticas de Wilhelm von Humboldt e suas concepções,

resgatando discussões a respeito da natureza divina encarnada no corpo humano que

foi debatida no Concílio de Niceia realizado no século IV. Desta discussão, contemplo

a possibilidade de dar continuidade à narrativa da origem da humanidade iniciada no

segundo capítulo.

No sexto capítulo, discuto a ideia de abstração existente nas teorias sobre a

língua e a linguagem. Resgato a discussão religiosa do século IV sobre a encarnação

de Deus em Jesus Cristo e suas duas naturezas, uma divina e uma humana, presentes

no mesmo corpo, e traço comparações, ao longo do processo histórico de construção

das teorias linguísticas e dos termos, relacionados à língua e à linguagem. Discuto as

implicações desta perspectiva sobre os estudos de línguas indígenas no Brasil,

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apresentando uma breve discussão a respeito do sujeito gramatical como categoria

linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.

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2. PALIMPSESTOS CARIBENHOS

[…] são dados tão particulares, e todos coincidentes, que não é crível possa

uma mentira ter-se difundido em tantas línguas, e em tantas nações, com tantas

cores de verdade. (Acuña, 1994, p. 153)

Içadas as velas, a epopeia inicia. Perambulando silenciosamente pela cabine

do Almirante, meus olhos passeiam por entre os instrumentos de bordo. Uma bússola

sempre apontando para o norte, a Bíblia e o diário de um navegador que passa a

eternidade em tumultuado sono. Folheio seu diário curiosa. Desentendimentos com

Pinzón, insurreições da tripulação, a constante frustração de não saber onde estava

exatamente, cálculos e projeções. Todos os elementos necessários para um poema

estavam ali. Navegar em alto mar é um poema épico. Naveguemos, pois!

Ernest Curtius (2013, p. 175) nos ensinou que as metáforas náuticas eram

recursos muito usados na literatura romana, de Ovídio a Estácio, portanto nada mais

épico que iniciar um capítulo sobre o descobrimento da América, epopeia de grandeza

igualável à de Homero, com uma bela metáfora de navegação. Para Ernest Curtius

(2013, p. 71), a educação era a portadora da tradição literária e a continuidade da

literatura europeia estava ligada à escola. Ernest Curtius entendeu que a tradição

literária começou com os gregos que viram em Homero “o reflexo ideal de seu

passado, de sua existência e do mundo de seus deuses.” Por isso, discursivamente, a

tradição grega se tornou Homero e o que os gregos fizeram os romanos replicaram. A

Odisseia foi traduzida por Lívio Andrônico para as escolas romanas, mas foi somente

com Virgílio e sua Eneida que os autores romanos conseguiram atingir o lugar de

epopeia nacional e filiar-se à tradição de Homero. A escolástica da Idade Média teria

adotado de gregos e romanos a ligação entre epopeia e escola e transformado a Eneida

no pilar do ensino de latim.

Ernest Curtius fez exatamente esse trajeto argumentativo, passou de gregos a

romanos e depois à Idade Média. Os saltos temporais ainda são facilmente

naturalizados por nós, pois à Antiguidade se sucede a Idade Média, e a Antiguidade é

o apogeu de Grécia e Roma. Dada a lacuna temporal entre os períodos, percebo que a

estratégia educativa medieval funcionou. Para Ernest Curtius (2013, p. 71), a

estratégia medieval de fundar seu método no passado áureo das grandes civilizações

resgatou os princípios gregos da educação baseada nas sete artes liberais, descritas por

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Marciano Capela no De Nuptiis Philogiae et Mercur6, do século V, e entronizou o

latim como língua de conhecimento fomentada pela literatura clássica. A Europa

velejava.

Tendo em vista o período das navegações ibéricas que me proponho a estudar,

cabe lembrar que Portugal produziu sua epopeia nacional. Luis de Camões cantou em

Os Lusíadas a saga das viagens em busca do caminho para a Índia, mas não as

viagens à América. Os espanhóis sequer fizeram-na. Uma epopeia nacional

significava a fundação de uma tradição, assim como a tradição fundada por Homero

representava um ideal de vida e um método escolar. Para os portugueses, esse ideal

estava associado à Índia, mas não à América. As narrativas da descoberta da América

não foram poemas épicos destinados à grandeza nacional, em geral, foram relatos de

navegadores e de navegações. Apesar de serem temas clássicos das epopeias e de

terem se convertido em compêndios do conhecimento da época sob o qual as

novidades do Novo Mundo eram discutidas, não alcançaram o status literário

concedido às viagens à Índia. Mais do que narrativas aventurescas para noticiar o

Novo Mundo, os diários dos navegadores serviram para fazer o conhecimento circular

na Europa. A língua escrita7 estabeleceu, então, um modo de gerar conhecimento e

verdades por meio dos livros, que assim cumpriam sua função didática e intelectual.

Navegando pelos diários dos viajantes e pelas narrativas criadas por eles para

hospedar os seres encontrados no Novo Mundo pude perceber a formação de uma

intrincada rede de espaços de enunciação8 que uniam a Europa ao Novo Mundo e

vice-versa. Havia um espaço de enunciação escolar, em que predominava o latim

como língua de circulação do conhecimento. Este espaço estava centrado nas

universidades e voltado para os escolásticos que produziam textos de alto nível

intelectual para o pensamento cristão. Nesse espaço de enunciação, estão as

gramáticas das línguas indígenas e os diários dos primeiros viajantes. Havia também

um espaço de enunciação literário em que predominava a língua portuguesa. Nesse

espaço de enunciação, estão a gramática do Português, Os Lusíadas, os diários dos

viajantes, as cartas de Caminha e dos jesuítas que estiveram no Brasil. Em muitos

sentidos, o corpus é o mesmo, havia um Novus Mundus, de Américo Vespúcio em

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6 O casamento de Filologia e Mercúrio (o deus do conhecimento), quando Filologia ganhou de presente de casamento sete servas, as sete artes liberais, entre elas a Gramática. 7 Sobre a hierarquia entre língua falada e língua escrita ver: GUIMARÃES, Eduardo. “Enunciação e política de línguas do Brasil.” Santa Maria, Revista Letras, n. 27, p. 47-53, dez. 2003. 8 Entendo o espaço de enunciação como proposto por Eduardo Guimarães em Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. 2002, p. 18.

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latim e uma versão posterior para o português. A diferença estava no meio de

circulação. A literatura produzida em latim se destinava ao meio escolar, possuía um

valor de civilização e tinha um caráter predominantemente científico, gerava portanto,

um discurso científico9 de base cristã. Santo Tomás de Aquino (1951, p. 16) já havia

debatido com Santo Agostinho essa questão na Suma Teológica quando afirmou que

“a santa doutrina é uma ciência10” em contraposição à ideia de Santo Agostinho de

que a ciência deveria servir para o estudo e o conhecimento das escrituras sagradas.

Assim, o latim era politicamente dominante na produção de conhecimento, mesmo

sendo uma língua exclusivamente escrita.

Historicamente reconhecida, a tradição escolástica se fundamentava em seus

autores, no entanto, tomo a liberdade de observar esse fato histórico pelas lentes da

teoria da enunciação e me atrevo a dizer que, da perspectiva das cenas enunciativas

como elaborado por Eduardo Guimarães (2002, p. 23), temos um lugar constituído

pelos dizeres sucessivos de uma linhagem de pensadores associados à escola de

Alexandria que se prolongou no tempo e se dispersou no espaço. Segundo o autor, “na

cena enunciativa ‘aquele que fala’ ou ‘para quem se fala’ não são pessoas mas uma

configuração do agenciamento enunciativo. São lugares constituídos pelos dizeres e

não pessoas donas de seu dizer.” Então, não eram os autores escolásticos donos de

seus dizeres, eles ocupavam lugares constituídos pelos dizeres de uma linhagem de

pensadores associados a uma escola. Da escola de Alexandria11, que propagava a

didática alegórica de interpretação das escrituras sagradas em oposição à literalidade

dos textos sagrados, falam Aristóteles, Orígenes, Santo Agostinho, Pico de la

Mirândola, Tomás de Aquino, Francisco de Vitória e Lutero. Nas escolas catedrais

fundadas em torno de alguns desses autores, se estabeleceram lugares cristãos e

europeus constituídos pelos seus dizeres, a exemplo das universidades de Paris, de

Salamanca e de Bolonha, lugares dos quais falam Nebrija, Vespúcio e Tomás de

Aquino. Desta perspectiva, a cronologia estabelecida pelos escolásticos e desvendada

por Ernest Curtius mostra-se perfeitamente conectada. Não exatamente por ser um

continuum no tempo, mas porque as condições de produção do discurso científico

ocidental, ou como eu prefiro dizer, de base cristã, produziram seus sentidos, que vem

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!9 Uso a definição de discurso de acordo com Eni Orlandi em Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 12 ed. Campinas: Pontes, 1999. 10 Sacram doctrinam unam scientiam esse. 11 MALATY, Fr. Trados. The school of Alexandria. Livros I e II. St. Mark’s Coptic Orthodox Church: Jersey City, 1995.

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sendo replicados ao longo dos séculos, desde a escola de Alexandria, antes mesmo do

surgimento mítico do cristianismo.

Se os autores fundavam escolas que se constituíam como cenas de enunciação,

as narrativas da descoberta de um novo mundo faziam circular o conhecimento

elaborado de acordo com o ponto de vista dessas escolas. Dando ao conhecimento do

Novo Mundo um lugar constituído pelos dizeres fundados mais remotamente na

escola de Alexandria e propagados até o novo continente. Ao fazer circular o

conhecimento, as narrativas geravam verdades. Uma das formas de gerar verdades por

meio das narrativas é localizar geograficamente os lugares onde os fatos ou as

histórias narradas aconteceram. Ao serem localizadas, as narrativas dão lugar e

concedem veracidade ao espaço enunciativo no qual palavras, conceitos e categorias

significarão. Jacques Rancière (2014, p. 101), ao traçar as relações entre o solo e os

reis sepultados em Os nomes da História, se referiu à relação entre eles como a de

“corpos territorializados e, ao mesmo tempo, enterrados, de corpos moldados pelo

caráter de uma terra.” Foram esses corpos moldados pelo caráter europeu, corpos

europeus territorializados na Europa que, por meio de suas narrativas,

territorializaram outros corpos e suas vozes. Territorializaram os corpos ameríndios e

suas línguas. É nesse espaço narrado e geografizado que se desenrolaram as relações

simbólicas a respeito dos povos e das línguas indígenas, onde se estabeleceu uma

geografia do simbólico. O mesmo espaço simbólico que deu às línguas indígenas um

lugar, deu aos povos indígenas um lugar, deu a seus corpos um lugar e um

significado.

2.1 Narrativas sobre a alteridade, uma longa tradição

Antes de embarcarmos no estudo das narrativas sobre o Novo Mundo é

preciso fazer uma breve apreciação do lugar das narrativas sobre a alteridade no

espaço de enunciação europeu do século XVI. A trajetória dessas narrativas é longa e

constituiu um lugar em terra firme para “aquele que fala” a partir delas, pois elas

significam uma história de enunciações sobre a alteridade. Por isso remontamos a

Plínio, o Velho12, e sua Naturalis Historia, um enorme “inventário do mundo”,

segundo suas próprias palavras, que inaugurou o gênero enciclopédico ao compilar

mais de dois mil autores da época, elaborando verbetes sobre cosmologia, zoologia e

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!12 Francesco Maspero (Org.) Storie naturali (libri VIII-XI). Milão: Biblioteca Universitaria Rizzoli, 2011. Coleção Classici greci e latini. p. 21

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mineralogia nos quais sereias, gigantes e centauros receberam igual tratamento

descritivo que as pedras valiosas e a arte que a partir delas surgia.

De acordo com Francesco Maspero (2011, p. 16), curador da obra reeditada

em italiano, Plínio, supondo que o universo era governado por uma lei divina natural,

fruto de seu pensamento estoico, entendia que a natureza era a derivação direta e

inalienável do homem. Para ele, o progresso, que inevitavelmente afastaria o homem

da natureza, aumentaria o desequilíbrio, gerando “o montruoso”. Roger Bartra (2011,

p. 81), em El mito del salvaje, discorreu sobre a ideia de progresso para os gregos

(que, no século XVIII, foi atualizada para a ideia de civilização), que se expressava

por meio da polis, que significa ‘cidade’, ou seja, urbanidade e civilidade andam

juntas. A palavra hemeros, que significa domesticado, era usada com o sentido de

urbanizado. A ideia grega então era que os seres ditos naturais, centauros, amazonas,

cíclopes e agrios, viviam o equilíbrio divino que regia o universo e, ao mesmo tempo,

eram aqueles que não haviam sido domesticados nem urbanizados, portanto não

obedeciam às leis humanas. Os homens que ainda viviam na natureza eram os agrios

que existiam em oposição aos hemeros, selvagens em oposição a domesticados. Para

os gregos, a ideia de selvagem não se aplicava aos bárbaros, pois os bárbaros eram os

estrangeiros, aqueles que não falavam grego. Os selvagens tiveram que ser inventados

como construto cultural interior, grego, antes de serem encontrados os bárbaros fora

dos limites da sociedade grega.

Jean Starobinski (2001, p. 56), em As máscaras da civilização, tomou o

sentido atual de barbárie que designa “a crueldade e a agressividade” como oposto de

civilização. Civilização, termo cunhado no século XVIII, teria assumido um sentido

de processo de progresso da humanidade, não somente de adequação aos modos

urbanos, como em ‘domesticado’ hemeros. Em ‘civilizado’, a origem da humanidade,

sua infância por assim dizer, seria a barbárie e sua etapa polida (ou educada nos

termos nacionais atuais) assumiria o significado de ‘domesticado’. Ambas valeriam

como definidoras de uma mesma história, a história do passado, quando civilizados e

selvagens se construíram um ao outro nas eras míticas que só existe em nossa

memória literária; e a história do presente, a da humanidade civilizada.

Para Roger Bartra (2011, p. 83), o selvagem legitimou a posição do civilizado,

sendo central na construção da identidade do civilizado e criou fundamentalmente a

noção ocidental de alteridade inseparável de sua contraparte, a de civilidade. Eduardo

Guimarães (2004, p. 128) apontou que civilização e barbárie são opostos inseparáveis

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e mutuamente significantes. Philippe Descola (2013, p. 61) referiu-se à natureza como

um produto inventado pela cultura, para estabelecer uma rede de significados

supostamente externos e opostos à sociedade. A natureza teria se tornado então o

espaço simbólico e artificial onde centauros, amazonas, cíclopes e homens selvagens

significariam em contraposição à cidade, espaço simbólico e social, onde significaria

o civilizado. Para ele, não foi a ciência que explicou o mito, mas o contrário, o mito

nos forneceu as pistas da maneira como a ciência moderna tem constituído suas bases

conceituais mais profundas, a lógica que oferece o modelo para pensar a oposição

entre natureza e cultura. Embora os conceitos selvagem e bárbaro não fossem

similares, o selvagem e o bárbaro, por fim, perfilaram-se juntos em oposição a

civilizado, tornando-se um no outro e assumindo sentidos iguais. A partir desta

confluência de sentidos, podemos dizer que “todo selvagem é um bárbaro”, que

funciona também na outra via, “todo bárbaro é um selvagem”. Os sentidos, por meio

dos quais os conceitos de civilizado e de bárbaro/selvagem foram historicamente

construídos, carregam um saber discursivo acumulado que determina uma oposição

entre eles. Uma oposição determinante e classificatória ou se é civilizado ou se é

selvagem/bárbaro.

As ideias historicamente replicadas a respeito do selvagem, do índio, nos

colocam a pertinente questão de quem somos nós neste jogo de papéis. Se os índios

são os selvagens, nós somos os civilizados. Só é possível ser civilizado em oposição

ao selvagem. Estabelecer papéis é também atribuir um espaço e um lugar social, no

caso tratado nesta tese, ao determinar aos habitantes da América o papel de selvagens,

os europeus validaram para si mesmos um espaço de enunciação e um lugar social, o

mesmo que já ocupavam na Europa, recriando, assim, a oposição sobre a qual foram

construídas as identidades do selvagem e do civilizado europeus. Para Norbert Elias

(1994, p. 36), o binômio selvagem/civilizado permeou a colonização europeia no

mundo, sustentou a elaboração dos modos e das maneiras de comportamento que

diferenciaram os nobres dos plebeus na Europa, organizando as classes sociais dentro

dos Estados. Para validá-la, adotou-se a massificação, todo não-europeu é selvagem,

porque ser europeu pressupõe comportar-se de determinada forma, aprender de

determinada forma, comer de determinada forma, ser limpo de determinada forma.

Segundo Alcida Rita Ramos (1988, p. 93), atribuir uma identidade de massa a

todos os povos considerados selvagens, negando suas configurações políticas

preexistentes e suas diferenças étnicas, conduziu à hegemonia do ‘humano genérico’

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que é o pressuposto básico para o universalismo. O universalismo alcançado às custas

da existência de um humano genérico estabeleceu uma série de abordagens analíticas

que, em grande medida, respaldam o entendimento que os ocidentais têm sobre si

mesmos. Só é possível existir uma língua com conceitos abstratos em comparação

com outra língua de conceitos concretos. Evidentemente o que atribui concretude ou

abstração a um conceito é determinado mediante uma escolha legitimada teoricamente

por premissas claramente hierárquicas de quem detêm o conhecimento e as

ferramentas para usá-lo.

Roger Bartra (2011, p. 18) considerou que o fio condutor da história do

homem selvagem ocidental permeia toda a mitologia greco-latina, a judaico-cristã-

islâmica e a celta. Ao fazer o resgate histórico do surgimento dos mitos do homem

selvagem, encontrou-os em tempos babilônicos. Enkidu foi personagem lendário e

literário da mitologia mesopotâmica, uma das figuras centrais da Epopeia de

Gilgamesh, compilada no segundo milênio antes de Cristo. Ele era um homem

selvagem, tinha o corpo coberto de pelos, foi modelado por Aruru a partir do barro e

cresceu longe da humanidade. Criado por animais, permaneceu ignorante dos

costumes humanos até o dia em que foi levado para lutar contra Gilgamesh. Enkidu

evoca a imagem do homem peludo, vivendo na natureza, lascivo, sem fogo, sem lei

nem governo, sem alma nem razão, que povoou a imaginação da sociedade ocidental

antiga e medieval. Roger Bartra (2011, p. 93) contou que esse selvagem peludo

chegou ao medievo com características visivelmente europeias, pele clara, nariz

alongado, lábios estreitos, com uma espessa pelagem por todo o corpo. Para as

mulheres selvagens, a presença de uma vasta cabeleira muito longa e encaracolada era

marcante.

Sem dúvida, o selvagem medieval não era um reflexo etnocêntrico diante das

características físicas de povos exóticos do Oriente. Afinal, antes mesmo do início das

navegações portuguesas, no final da segunda metade do século XIII, os comerciantes

europeus já empreendiam longas viagens terrestres com o intuito de estabelecer

relações políticas e identificar rotas mercantis. As rotas estabelecidas durante estas

viagens conectaram a Europa a Pequim, Mali e Delhi, por terra. Surgiram neste

período as fantásticas narrativas de Marco Polo. Afonso Arinos (2004, p. 32), ao

recompilar a produção bibliográfica sobre o imaginário medieval, resgatou o Imago

Mundi de Pierre d’Ailly, escritor medieval que elaborou a cosmografia mais completa

das terras desconhecidas, apoiado nas informações de Plínio, Homero, Plutão,

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Plutarco, Santo Isidoro de Sevilha, Roger Bacon, Marco Polo e Mandeville. Assim as

sereias, os gigantes de um olho só e os grandes monstros marinhos capazes de engolir

um navio foram localizados e geografizados. A pátria desses seres tão medonhos era a

Índia, considerado por Afonso Arinos como um país distante e vago o suficiente para

hospedá-los e atormentarem as mentes dos europeus durante a Idade Média com toda

a sorte de estranhezas e coisas duvidosas inexistentes em terras mais conhecidas.

Colombo, como qualquer outro homem embarcado nas caravelas que vieram

ao Novo Mundo, trazia consigo um rol de crenças cristãs e o inestimável bestiário de

Pierre d’Ailly, ambos amparados nas mais longínquas heranças culturais ocidentais.

Foram esses seres e essa ideia de homem selvagem que cruzaram o oceano Atlântico,

ancorando nas terras do Novo Mundo, para onde foram transplantados.

2.2 A história de Colombo, uma narrativa fundadora

A história imprecisa e tumultuada da vida de Colombo possui inúmeros

episódios pitorescos narrados por seus vários biógrafos. Um deles é a história de seu

sogro, Bartolomeu Perestrelo, que participou da conquista de Ceuta, em 1415, e por

seus serviços recebeu a ilha de Porto Santo, a segunda maior ilha do arquipélago da

Madeira. Na perspectiva de Alfred Crosby (2011, p. 86), em Imperialismo ecológico,

a guerra contra os mouros e sua consequente expulsão do território português gerou

um sistema de benesses reais que implicava a doação de feudos (terras) e títulos

nobiliárquicos aos cavaleiros que lutassem e vencessem a favor do rei. Com o

prolongamento das Cruzadas, já não havia feudos disponíveis para doação e o

caminho encontrado pela casa Real portuguesa para cumprir com suas obrigações foi

destinar, às fidalguias de segunda linha, terras nas ilhas próximas ao continente.

Perestrelo, então, foi um dos primeiros portugueses a colonizar as novas terras de

Portugal. Ao tornar-se proprietário de um feudo, Perestrelo poderia tornar-se nobre,

mas para fundar uma casa nobiliárquica na Europa medieval exigia-se, além da

propriedade rural ou feudo, uma relíquia13 em posse da família, um brasão conferido

pelo rei e uma linhagem sucessória, como explicou Alexandra Maria Pelúcia (2007, p.

117) em sua tese de doutorado. Perestrelo possuía, como relíquia de sua recém-

fundada casa nobiliárquica, os mapas de navegação de Toscanelli14 que, mais tarde,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!13 Para compreender o papel das relíquias na sociedade medieval ver: BLOCH, Marc. Los reyes taumaturgos. México: Fondo de Cultura Economica, 1988. Trad. Marcos Lara 14 Quanto à história, verídica ou não, sobre a morte de um marinheiro que deixou o misterioso mapa do Novo Mundo, ver: A Conquista do Paraíso de Kirkpatrick Sale, 1992, p. 229.

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foram entregues a Colombo pela viúva de Perestrelo. Mapas com os quais ele

começou sua empreeitada pelo financiamento da viagem à Índia. Como contou

Marcos Faerman (1998, p. 23), com a morte de Perestrelo, a família perdeu a ilha de

Porto Santo, e tanto a viúva quanto sua filha (com quem Colombo se casou) foram

viver em um convento. Colombo teve apenas um filho desta união e o chamou Diego.

A família só conseguiu recuperar a ilha quando Fernando, filho ilegítimo de Colombo,

após a morte do pai, escreveu sua biografia para recuperar-lhe a honra e moveu, com

a ajuda da casa Real portuguesa, ações para reaver as terras do avô de seu meio-

irmão, recuperando assim seu título nobiliárquico e a ilha de Porto Santo. A relíquia

familiar passou a ser o testamento de Colombo, o legado histórico deste estrangeiro

que se intrometeu na nobiliarquia portuguesa com uma única finalidade, conseguir os

mapas de Toscanelli.

Existem diversas suposições a respeito da origem de Colombo. Há os que

creem que ele era galego e que escreveu seu diário em galego. Há os que creem em

sua origem genovesa, porque seu castelhano era sofrível. O dominicano Bartolomeo

de las Casas comentou esse detalhe várias vezes em seus escritos. O diário original se

perdeu e possivelmente só retornou a público, quase cinquenta anos depois do

descobrimento, pelas mãos de Bartolomeo de las Casas, que além de traduzi-lo do

latim também inseriu algumas anotações e inclusive julgamentos morais ao texto

original. De qualquer forma, o próprio Bartolomeo de las Casas advertiu em sua curta

introdução15 que não se tratava da tradução do original, nem de uma cópia, mas de um

resumo, uma seleção de trechos. A impossibilidade de recuperar a versão original do

diário e a intromissão de Bartolomeo de las Casas deixaram perguntas inevitáveis e

sem resposta. Se o diário foi escrito pelo próprio Colombo porque ele se referiria e si

mesmo como “o Almirante”? Por que o diário de bordo de Pinzón, escrito por Pietro

Martire d'Anghiera, em latim, permaneceu restrito à Coroa espanhola por três séculos

até ser divulgado por Alexander von Humboldt, em 1832, quando esteve visitando a

América? A origem das informações divulgadas na carta de Humboldt, segundo

Nelson Papavero e Dante Teixeira (2002, p. I), seriam provenientes do diário

d’Anghiera, mas como Humboldt obteve acesso ao diário é um mistério. Haveria um

diário de Colombo? Ou o diário d’Anghiera fora resumido, com as informações

consideradas “interessantes” divulgadas e as “importantes” guardadas em sigilo?

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!15 COLÓN, Cristóbal. Diario de a bordo. Alpignano: ed. de J. Arce y J. Gil Esteve, 1971. p. 31

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Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas, a viagem de Colombo

e seu diário fomentaram a imaginação europeia a respeito da existência de selvagens,

de animais exóticos e de terras paradisíacas. Sua narrativa seguia uma tradição havia

muito consolidada como literatura sobre o desconhecido. Seguia a ordem cronológica

de um diário, o que dava veracidade e profundidade temporal à narrativa. Também

alimentava as expectativas medievais de encontrar, nos novos territórios, os monstros

previamente elencadas no bestário de Pierre d’Ailly. E traçava uma inegável relação

com o diário de viagem de Marco Polo, que embora tenha sido escrito três séculos

antes, fazia parte do arcabouço da tradição descritiva da alteridade. A distância

temporal entre os dois livros não impede a aproximação gerada por uma rede

complexa de ordem linguística, socio-cognitiva e interacional entre o texto e seus

leitores16. O Livro das Maravilhas, de Marco Polo, era considerado uma grande

referência narrativa, uma espécie de inconsciente coletivo que fornecia informações

sobre as terras distantes, em especial, sobre as terras onde Colombo queria chegar. A

Índia já havia sido descrita por Marco Polo que também discorreu sobre os ventos e a

localização de algumas ilhas, entre elas Cipango.

As dúvidas a respeito da autenticidade do trabalho de Marco Polo são tão

instigantes quanto as de Colombo. Marco Polo (1985, p. 35) ditou suas memórias de

viagem a Rusticiano de Pisa, na prisão em que ambos se encontravam em Gênova, no

ano de 1298, não relatou tudo o que viu, a propósito, “algumas não viu, mas escutou-

as de outros homens sinceros e verdadeiros.” Por isso, alertou aos leitores que

deveriam acreditar em tudo o que leriam, pois se tratava da verdade contada por um

cidadão de espírito justo e bom. Rusticiano lembrou ao leitor que Marco Polo, por

conhecer tão bem o Grande Khan, a quem serviu como embaixador durante sua

permanência no Oriente, e saber de seu gosto por novidades, não relatou apenas o

resultado das missões que o rei confiara a ele, mas sim todo o tipo de coisas estranhas,

novidades e curiosidades que, no decorrer de sua viagem, havia visto. O peculiar,

então, se tornou mais importante que os resultados da missão? Certamente não para

Gengis Khan, mas para o leitor europeu, sim.

Colombo se preocupou mais com o impacto que seu relato causaria nos reis de

Espanha e em seus financiadores, por isso se empenhou muito em conferir resultados

para a expedição, que são sempre as notícias sobre o ouro. As semelhanças existentes

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!16 KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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entre as narrativas de ambos os autores em seus livros não costumam ser mencionadas

pelos críticos de Colombo. Há um silenciamento sobre isso, em parte, porque

Colombo costuma ser considerado um autor renascentista. Apesar de

cronologicamente assentado no período ilustrado europeu, o texto de Colombo remete

constantemente às crenças e ao contexto medieval. Não apenas por tomar Marco Polo

como referência da rota para as ilha de Cipango, afinal, supostamente, ele tinha o

mapa de Toscanelli com as rotas traçadas, mas por estar imerso no mundo medieval.

Colombo, em uma de suas cartas anteriores à viagem para o Novo Mundo, extraídas

do livro História do medo no Ocidente de Jean Delumeau (1989, p. 233),

demonstrava-se seguro da proximidade do fim dos tempos: Desde a criação do mundo ou de Adão até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo houve 5.343 anos com 318 dias, segundo o cálculo do rei dom Afonso que parece ser o mais seguro (...) se a isso se acrescentarem 1.501, com um pouco menos, isso dá 6.845 anos menos alguns meses. Por essa conta não faltam mais que 155 anos até o cumprimento dos 7 mil anos, no curso dos quais (...) o mundo deverá acabar.

Além de explorar as imagens de paraíso terrestre e do homem selvagem, usou

também os recentes conflitos com os mouros, na Andaluzia, para ilustrar sua

narrativa, fazendo um apelo às imagens evocadas pelas Cruzadas em busca do reino

cristão do Oriente, do fim do mundo17 evocado pela existência dos homens selvagens

e da redenção eterna por meio do juízo final.

Stéphane Yerasimos (1985, p. 21), historiador que escreveu a Introdução à

versão brasileira do Livro das Maravilhas explicou-nos que, nos tempos de Marco

Polo, surgiu na Terra Santa, a história de que um rei vindo do Oriente, descendente de

um dos reis magos, havia lutado e derrotado o rei dos Persas e dos Medas. Esse rei

vitorioso era Prestes João. Marco Polo, em suas andanças não procurou recontar o

mito, mas tentou sim encontrar as posições geográficas mais pertinentes que

respaldassem o mito. As conquistas de Prestes João na Ásia estavam associadas às de

Alexandre, o Grande, que deixou várias “ilhas ocidentais” perdidas no Oriente, as

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!17 Klaas Woortman (2004, p. 123), em O selvagem e o Novo Mundo, relembrou a profecia de Santo Agostinho, que pregava insistentemente o fim do mundo como estratégia de conversão de fiéis para a sua fé. Suas homilias eram permeadas de imagens e de premonissões apocalípticas. A existência de um ser nem humano nem animal, como o homem selvagem, profetizava, nas palavras de Santo Agostinho, o destino que Deus havia planejado para o fim dos tempos. Johan Huizinga (2013, p. 33-34), em O outono da Idade Média, assinalou que a crença no fim dos tempos e os sinais de sua iminente chegada empurravam as pessoas para a vertigem do apelo apocalíptico propulsor das catarses coletivas que impulsionavam a coesão religiosa europeia.

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quais Marco Polo se empenhou em encontrar e registrar. A principal delas era o

túmulo do apóstolo São Tomé.

Para Charles Boxer (2002, p. 36), em O império marítimo português, havia um

embate entre as políticas seculares e os conceitos filosóficos medievais que

conduziam a elaboração das estratégias de ação do Estado português. No afã de

encontrar o Prestes João na África ou algum de seus descendentes, e por meio deste

reino cristão lutar contra os mouros e construir uma rota comercial para as Índias, os

reis portugueses converteram ao cristianismo e coroaram, em 1485, o líder bantu

Manikongo, como primeiro rei do Congo, batizado sob o nome de Afonso I. Segundo

Peter Forbath (1978, p. 86), em The river Congo, em vez de uma narrativa

romanceada e fictícia como a história de Prestes João, foi utilizada uma política

concreta do reino português para conseguir aliados na África que era reduto

muçulmano. José Tinhorão, renomado crítico de música popular, em Rei do Congo. A

mentira histórica que virou folclore, traçou um percurso da busca por um aliado

cristão na retaguarda do império muçulmano desde o século XII até o final do século

XVII quando a festa da congada surgiu no Brasil. Este tema, aparentemente

desconexo do estudo proposto nesta tese, reconstroi na longue durée da história, a

figura do rei do Congo, desde a criação artificial de um reino cristão nos moldes

europeus entre as tribos da costa africana atlântica que não estavam sob o império

islâmico até o surgimento da congada como a evocação simbólica da aliança entre

Portugal e o Congo. A congada foi a forma com que os súditos cristãos do reino do

Congo escravizados pelos portugueses encontraram para se defender da opressão e

exigirem, mediante sua inserção nas atividades católicas, seu reconhecimento como

aliados de Portugal. José Tinhorão (2016, p. 119) alegou que a criação da narrativa de

origem do Império Português foi acompanhada pela criação de narrativas específicas

nos países em que foram estabelecidas suas colônias. Da perspectiva da teoria da

enunciação, o acontecimento de enunciação entendido como as narrativas da

formação do Império Português criadas especificamente em cada um dos países onde

foram estabelecidas colônias é uma história de enunciações sobre a criação do

Império Português.

Segundo Stéphane Yerasimos (1985, p. 28), no livro de Marco Polo, o tema

mais antigo seria o mito da Árvore Só-Árvore Seca, exatamente com um nome duplo,

que implica uma origem partilhada e amalgamada de camadas míticas sobrepostas ao

longo dos séculos, cujos arquétipos mais longínquos podem ser encontrados em mitos

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mesopotâmicos que reverberaram até o livro de Daniel, o último do Antigo

Testamento, escrito nos tempos em que os Macabeus lutavam contra os sucessores de

Alexandre, o Grande. Neste livro, de acordo com Roger Bartra (2011, p. 58), a Árvore

Seca apareceu no sonho do rei Nabucodonosor, o último rei “selvagem” da Babilônia.

A princípio, uma árvore frondosa, de bela e verdejante folhagem e abundantes frutos

que alimentavam os pássaros nela aninhados, que sofreu a fúria do Anjo do Senhor e

se tornou seca pela cólera divina. Aqui a Árvore Seca, símbolo do pecado e do

arrependimento se uniu à Árvore Só que simboliza o fim do mundo conhecido, o

limite entre o humano e o além, o desconhecido. Ambas enlaçadas em uma só

simbolizariam o fim do mundo cristão e do mundo conhecido. A localização da

Árvore Seca é imprecisa, miticamente ocupou a fronteira com a Pérsia, mas deslocou-

se para Oriente sempre em direção a terras mais longínquas e desconhecidas que se

tornariam, segundo a profecia, o palco da luta final entre o Ocidente e o Oriente,

quando o Ocidente cristão triunfaria. O triunfo cristão faria então a Árvore Seca

revigorar, pois o arrependimento revigoraria e libertaria do pecado e alí seria o

Paraíso Terrestre. Marco Polo não conseguiu identificar o local preciso da Árvore Só-

Árvore Seca nem encontrou o túmulo de São Tomé.

Marco Polo iniciou o Livro da Índia, descrevendo a ilha de Cipango (atual

Japão). Havia na ilha um costume estranho. Se, por alguma razão, um homem fosse

capturado por outro homem que não fosse seu amigo, caso não tivesse dinheiro para

pagar sua soltura, o capturador mataria o homem preso e o comeria, guisado, na

companhia de seus parentes, e diziam que esta era a melhor carne que havia. Marco

Polo discorreu sobre a localização do mar da China e informou que existiriam, a oeste

de Cipango, mais de 7.448 ilhas, algumas habitadas outras não. Ele passou por várias

ilhas nas quais se deparou com atropófagos completamente selvagens, vivendo como

animais. Homens com cauda de cão, outros com cabeça e dentes de cão, que devoram

outros homens das tribos inimigas. Homens e mulheres que andavam nus, sem cobrir

parte alguma do corpo, elencando belos exemplares de selvagens dignos das mais

bestiais histórias europeias, eram definitivamente os confins da terra.

Na cabine do Almirante, bem ao lado dos mapas de Toscanelli estava o Livro

das Maravilhas de Marco Polo. As narrativas sobre os confins do mundo e sobre os

selvagens já estavam todas prontas bastou apenas transportá-las para o Novo Mundo.

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2.3 De olhos bem fechados, a narrativa da descoberta

Embora existissem informações a respeito de viagens à América que

antecederam a de 149218, a narrativa da descoberta é a de Colombo. Em sua descrição

literária no diário de bordo, Colombo descreveu a primeira ilha encontrada no Novo

Mundo como uma ilhota dos Lucaios ou Lequios19. Colombo (1998, p. 46) sabia que

ali não era a Índia, que, de fato, se tratava de alguma ilha localizada antes do

continente, visto que anotou em seu diário de bordo que procuraria pelo Japão no dia

seguinte. Afinal, Marco Polo (1985, p. 204) havia descrito um arquipélago e apontado

a existência de mais de 7.000 ilhas desconhecidas a oeste da China. Estas ilhas

estariam tão distantes de todo o mundo conhecido que sequer o Grande Khan enviara

seus coletores para cobrar impostos, nem mesmo Marco Polo viajou entre elas.

Mencionar a existência de uma ilha mítica já conduz nosso entendimento de que, para

o leitor europeu, Colombo navegava pelos confins do mundo, um terreno pouco real e

nada conhecido.

Havia muitos elementos que demonstravam os limites do mundo conhecido,

Caríbdis e Cila eram alguns deles. Caríbdis era o monstro marinho que guardava o

limite do mundo e Cila vivia depois dele, numa gruta. Se por ventura alguém

ultrapassasse o limite guardado por Caríbdis, Cila o devoraria. Como cantou

Homero20, em frente à gruta de Cila havia uma figueira seca, onde Ulisses se agarrou

para não morrer no turbilhão gerado por Caríbdis. A árvore seca marca o limite do

mundo conhecido e os monstros vigiam-no para que os humanos não o ultrapassem.

Entendo que, por desígnios determinados pelas correntes marinhas, as atuais Antilhas

são também conhecidas como o Caribe, que aciona a memória do monstro marinho,

do fim do mundo conhecido e da Odisséia. Mas há também uma referência não tão

óbvia escondida nos limites do mundo, não havia passagem do Atlântico para o

Pacífico. O Caribe encerrava em si a possibilidade de chegar à Índia. Sendo Colombo

financiando por mercadores genoveses, seu diário exprimia também a angústia do

fracasso da expedição, afinal, ele não havia chegado à Índia, não havia rota mais

curta. Para os mercadores genoveses, isso significava submeter-se ao poderio de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!18 Segundo João Meirelles Filho (2009, p. 23), em 1488, Jean Cousin teria navegado pela foz do Amazonas. 19 Luis Weckman (1993, p. 37), em La herencia medieval del Brasil, acredita que Lucaios ou Lequios eram uma ilha mítica existente entre a Europa e a Ásia, muito recorrente nas narrativas de viagem dos navegadores portugueses. Fernão Mendez Pinto (1829 [1614], p. 252), no relato de sua viagem à China no ano de 1554, também mencionou a ilha de Lequios, onde naufragou, foi feito prisioneiro e posteriormente libertado, e lhe deu a localização entre a China e o Japão. 20 Estrofe 175, Livro XII.

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Florença e de Veneza que já financiavam os portugueses. Era o novo limite do

mundo, o fim da viagem.

Colombo narrou, em seu diário, a presença de inúmeras árvores aromáticas

com folhagem sempre verde, exuberantes, em alusão à árvore do bálsamo sagrado da

Terra Santa. Árvores tão verdes em um local tão próximo ao fim do mundo, já seria

indicação mais do que clara de se tratar do Paraíso Terrestre. Como uma alegoria,

Colombo (1998, p. 51) comparou a beleza, o aroma e a brisa do Novo Mundo com o

da Andaluzia no mês de maio. O Paraíso terreno então se chamava Guanahaní21, pois

de acordo com Colombo (1998, p. 43), pareceu que o nomeavam assim os gentios.

Colombo havia encontrado o paraíso e lá havia gente nua, uma surpresa! O homem

selvagem existia e vivia no paraíso, um problema. Retomando o diário de bordo, no

retrato da sua primeira visão do gentio do Novo Mundo, lemos que “os cabelos não

são crespos, mas lisos e grossos [...], e entre eles não há nenhum negro, a não ser da

cor dos canários; nem se deve esperar outra coisa, pois esta terra está a lés-oeste da

ilha do Ferro, na Canária, em linha reta.” (COLOMBO, 1998, p. 45) A “cor dos

canários” é uma referência à cor da população original das ilhas Canárias, os

guanchos22, que eram da “cor de oliva (...) a cor dos camponeses queimados pelo sol”,

como descritos por Fernando Colombo (1959, p. 60) na biografia de seu pai. A alusão

à cor da pele no relato de ambos nos propõe que Colombo e Fernando, como homens

de sua época, partilhavam a teoria de que em latitudes iguais, como indicado no texto,

a terra estaria “a lés-oeste da ilha do Ferro, na Canária”, existiriam fauna e flora

idênticas, incluídos na fauna os humanos. Tema discutido por Vespúcio (1984, p. 81),

em sua carta relativa à terceira viagem, quando discorreu sobre a existência de tanta

gente vivendo na zona tórrida, constatação que contrariava a teoria de Aristóteles23

para quem a zona tórrida era inabitável. E não eram todos negros como os etíopes,

mas alguns brancos como os europeus, embora queimados pelo sol que os tornava “da

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!21 Juan Ignacio de Armas (1882, p. 43) considerou que Guanahaní, assim como Cuba e Bohío eram nomes arábicos.!22 Os guanchos foram, segundo Alfred Crosby (2011, p. 92-109), o primeiro povo a ser extinto pelo imperialismo moderno. Eram um povo marítimo e teriam chegado às Canárias vindos da África durante o Neolítico. Assim como acontece com todos os povos que permanecem isolados, a resistência epidemiológica decresceu e os guanchos se tornaram vítimas de doenças adquiridas pelo contato com os europeus que exterminaram grande parte da população. Outra parte pereceu lutando com paus e pedras contra os invasores armados de espadas e armas de fogo. Os sobreviventes foram traficados como escravos para abastecer o mercado europeu que carecia de camponeses, muitos mortos pela Peste Negra. Colombo (1998, p. 31), quando passou pelas Canárias indo em direção ao Novo Mundo, não pode se abastecer de água como planejara, pois as guerras da conquista fervilhavam. Atracou em Gomora, de onde assistiu ao grande incêndio que assolava a maior ilha do arquipélago, Tenerife. 23 PISONI, Guilielmi. Medicina brasiliensi. Libri quator. In: MACGRAVI, Georgi de Liebstad. Historiae rerum naturalium brasiliae. Libri octo. Lungdum: Franciscus Hackium, 1648. p. 2

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cor dos leões”. Para Vespúcio, esta variação de cor só poderia ser possível dadas as

condições climáticas e geográficas, como a abundância de água doce e os ventos

austrais e setentrionais que temperavam o ar tornando-o mais ameno e favorecendo a

ocorrência da cor branca na pele dos habitantes. No pensamento de Aristóteles

retomado por Vespúcio, as variações climáticas provocavam adaptações na cor da

pele dos seres humanos, o que me parece um embrião do que posteriormente foi

usado como argumento para o processo adaptativo desenvolvido na teoria da evolução

como explicação para a diferenciação da cor da pele nas diversas populações

humanas. Considerar a cor da pele dos ameríndios como branca24, adequava-os às

características do selvagem medieval europeu, branco com o corpo recoberto de

pelos. Um problema aqui é que os indígenas não possuíam pelos pelo corpo,

contrariando a ideia que os europeus tinham sobre o homem selvagem. Mais tarde,

após muitas especulações sobre o selvagem, o cronista Fernão Cardim (2009, p. 179)

resolveu o problema ao relatar que “[n]ão deixam criar cabelo nas partes de seu corpo,

porque todos os arrancam, somente os da cabeça deixam”, assumindo assim que os

indígenas não possuíam pelos por se rasparem durante o banho, hábito bastante

comum entre muçulmanos e de uso corrente nos banhos públicos romanos,

principalmente entre as mulheres.

Colombo ressaltou a beleza dos corpos nus dos habitantes de Guanahaní e

entendeu, por meio de gestos, que eram um povo que sofria ataques de seus vizinhos

do continente. Certificou-se disso pelas cicatrizes visíveis e concluiu que eles se

defendiam para não serem aprisionados e tornados escravos. Então Colombo (1998, p.

45) se apoderou de alguns deles e os levou para sua nau como cativos. Escravizar para

salvar, concepção bastante medieval. É surpreendente como Colombo era capaz de

entender tudo, tendo apenas chegado à ilha havia alguns dias, e claro, como suas

compreensões se parecem tanto com projeções de seu próprio ethos europeu. Sentia-

se, inclusive, capaz de comparar as línguas faladas nas ilhas pelas quais passou e

julgá-las idênticas ou semelhantes, considerando que eram todos um mesmo povo de

costumes parecidos. Vespúcio (1984, p. 109) também discorreu sobre a fala dos

índios, em um tom mais científico, afinal o público dele era outro. Alegou que os

gentios “usam os mesmos acentos como nós, porque formam as palavras ou no palato,

ou nos dentes, ou nos lábios; salvo que usam outros nomes para as coisas”.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!24 A cor da pele também é uma referência à descendência de Jafet. Assim, os gentios do Novo Mundo, por não possuírem a pele negra, não eram filhos de Cam, portanto, não carregavam sua maldição.

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A compreensão de Colombo era fantástica, de suas conversas com os gentios

entendia que estavam em guerra com o Khan, a quem chamavam Cami, que havia

muito ouro naquelas ilhas, que os navios do Khan vinham abastecer-se na ilha de

Cuba, que não muito longe havia uma ilha onde os homens tinham “um olho só e

outros com cara de cachorro, que eram antropófagos e que, quando capturavam

alguém, degolavam, bebendo-lhe o sangue e decepando as partes pudentas.”

(COLOMBO, 1998, p. 59) Colombo procurava incansavelmente pela ilha de Cipango,

que era, no final das contas, a referência mais exata dada por Marco Polo a oeste,

seguindo a rota seria possível chegar à Índia. Cipango assumiu diferentes nomes

conforme passavam os dias. Em um primeiro momento, o Almirante entendeu que a

ilha de Colba era a que ele tinha por Cipango, mas que Civao era também Cipango.

Nunca chegou à Cuba nem a Cipango, mas sempre interpelando por ouro, pérolas e

pedras preciosas, e sempre entendendo que o ouro estava um pouco mais “pra lá”,

entendeu que a ilha onde havia abundância de todos os seus desidérios era Bohío. Ali

habitavam os homens com cara de cachorro, havia também os cíclopes, e outros

homens chamados de canibais: “Toda a gente que encontrou até hoje diz que sente o

maior medo dos ‘caniba’ ou ‘canima’ que vivem nessa ilha de Bohío. Não queriam

falar, por receio de serem comidos, e não podia tirar-lhes o medo, pois diziam que só

tinham um olho e cara de cachorro.” (COLOMBO, 1998, p. 66) Os gentios então

informaram o Almirante de que a ilha onde verdadeiramente nascia ouro era Babeque

e Colombo seguiu na direção indicada. Nunca chegou à Babeque, mas ao conversar

com um cacique sobre onde encontrar ouro, entendeu que os habitantes de Caniba,

chamados caribes faziam incursões para capturá-los. “[O] Almirante disse-lhe que os

Reis de Castela mandariam aniquilar os caribes e que dariam ordens para serem

presos, de mãos atadas.” (COLOMBO, 1998, p. 84) Os caribes, um monstro marinho

encarnado em humano, apareceram pela primeira vez nesse momento, como inimigos

dos amigos de Colombo e receberam uma ameaça, seriam aniquilados.

Em um dos portos em que atracou para colher mantimentos, Colombo

encontrou um grupo de “cabelos bem compridos, apertados e amarrados na nuca, e

depois presos por uma redinha de penas de papagaio, [...] achou que deviam ser um

dos caribes, que são antropófagos.” Estes índios foram belicosos e tentaram emboscar

os espanhóis e possivelmente por isso, foram tomados por canibais. Eles eram os

atuais Ciguaios, habitantes da serra da ilha de Hispaniola, que não são canibais.

Colombo (1998, p. 94-96) nomeou este local de porto das Flechas, onde, após o

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embate bélico, recebeu informações de que havia muito cobre na ilha de Caribe, onde

viviam os antropófagos, e na ilha de Matinino, onde vivam as amazonas. Contaram ao

Almirante que, em certo período do ano, os homens da ilha Caribe visitavam as

mulheres de Matinino e se dessas uniões nascessem meninos, eles eram criados em

Caribe, se nascessem meninas eram criadas em Matinino. Marco Polo (1985, p. 241)

já havia contado esta mesma história sobre as ilhas além do reino de Rosmochoram,

onde havia duas ilhas a 30 milhas uma da outra. Os homens iriam à ilha das mulheres

e lá viveriam com elas por três meses e as mulheres nunca iriam à ilha dos homens.

Os filhos machos cresceriam com suas mães e depois seriam enviados a viver com

seus pais, as meninas permaneceriam na ilha. Colombo decidiu seguir em direção à

ilha Caribe, mas nunca chegou lá, antes aproveitou o vento e voltou à Espanha.

Com a cabeça cheia das imagens de Marco Polo, Colombo se aproximou e viu

esta terra com os olhos fechados. Não há, em seus relatos, uma verdadeira prática de

entendimento com os índios. Colombo entendia o que queria entender e via o que

imaginava ter lido no Livro das Maravilhas. Parece muito mais plausível que os

esforços por entendimento, reconhecimento e aprendizagem tenham partido dos

índios, afinal, nas palavras do próprio Colombo, “repetem logo o que a gente diz”.

Tzvetan Todorov (2003, p. 32) entendeu que o tipo de interpretação que Colombo deu

aos aspectos geográficos, naturais e humanos identificados em suas viagens era

baseada na autoridade, não tinha, então, nada de moderno, era profundamente

medieval, “não se trata mais de procurar a verdade, e sim de procurar confirmações

para uma verdade conhecida de antemão.”

Sobre a verdade, Hannah Arendt (1967, p. 37), em Verdade e Política, nos

revelou que existe um conflito entre a verdade e a mentira, no qual a mentira poderia

estabelecer ou salvaguardar a procura da verdade, porque poderia ser utilizada como

substituta da violência que, no caso da conquista da América, não aconteceu. Para a

autora, o sacrifício da verdade em nome da sobrevivência do mundo poderia ser

considerado um instrumento relativamente inofensivo de ação política. Embora ela

tenha reconhecido a necessidade da perseverança da existência do ser e do mundo

humano, a meu ver, de maneira implícita, ela reforçou a ideia de que sobreviver é

“dizer o que é”. Deparo-me então com a perspectiva de que “dizer” revela a verdade e

que a língua seria a promotora da aproximação à verdade. No entanto, para Michel

Pêcheux (2009, p. 167-168), a língua atua como cocriadora da verdade e da realidade.

Não somente agindo na construção conceitual, mas criando entidades portadoras de

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características, às quais nos remetemos no momento do enunciado, como são os casos

de selvagem, caribe e canibal. Assim como sugeriu Michel Foucault (1980, p. 118), o

que será tido como verdade depende das estratégias do poder envolvido mais do que

de critérios epistemológicos, aos quais eu acrescentaria os critérios etimológicos

também. Considerando as afirmações de Michel Pêcheux, Foucault e Hannah Arendt

expressas acima, penso que uma verdade é definida tanto a partir das contingências

históricas quanto das escolhas arbitrárias e conscientes de enunciadores imersos em

seus contextos sociopolíticos específicos que, por fim, torna-se patrimônio comum.

De modo que a contingência histórica é a chegada de Colombo às Antilhas, onde não

havia passagem para a Índia e onde ele se deparou com seres humanos desconhecidos,

mas que, no entanto, já povoavam sua imaginação desde as descrições de Pierre

d’Ailly. Ver os povos que vivam no Novo Mundo como selvagens, caribes ou

canibais, embora tenha correspondido às expectativas medievais do contexto

sociopolítico que ele vivia na Europa, foi uma escolha arbitrária e consciente.

Colombo poderia tê-los visto apenas como homens nus. A propósito, considerar

Colombo como um enunciador descolado de seu contexto sociopolítico seria um

engano. Seu diário ou, melhor, o texto supostamente atribuído a ele somente adquiriu

um valor de enunciador que formula e estabelece conceitos porque ocupava um lugar

discursivo na produção literária e científica europeia. Por isso, não podemos

considerar apenas Colombo como enunciador das novidades do Novo Mundo. De

fato, suas narrativas ocupam um lugar no espaço de enunciação do século XVI que

resgatam e fazem operar conceitos imemoriais associados a ideias de civilização, de

progresso e de ciência, revelando uma memória discursiva25 ampla da perspectiva

espacial e profunda do ponto de vista temporal.

No diário, podemos perceber a existência de dois línguas embarcados na

caravela de Colombo (1998, p. 57-58). Eles também foram peças importantes para a

designação dos nomes que identificaram as coisas novas e desconhecidas existentes

naquelas ilhas. Para Eduardo Guimarães (2014, p. 60), a designação de um nome é a

identificação de algo existente, mas não é uma relação imediata do mundo com a

língua, não é feita termo a termo, entre um objeto e um nome. A designação identifica

algo existente e atribui-lhe predicativos de maneira a determinar seu sentido. Estes

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!25 Entendo memória discursiva como conceitualizada por: ORLANDI, Eni. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 12 ed. Campinas: Pontes, 1999; e PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. 4a. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

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predicativos são a forma de relacionar a nova designação com o escopo do já existente

e já nomeado, diferenciando-a das nomeações já existentes na língua.

Os línguas eram um jovem chamado Luis de Torres, judeu convertido que

havia servido no Adiantado de Murcia, na Andaluzia, que dizia saber hebraico, caldeu

e um pouco de árabe, e um marinheiro que havia estado na Guiné. Ambos serviram

como intérpretes. Esses jovens eram os homens que ajudavam o Almirante a entender

os índios do Novo Mundo. Colombo muito entendia, e de muito entender a língua

falada pelos habitantes do Novo Mundo, rapidamente compreendeu o sistema político

deles, apesar de não conseguir identificar exatamente se cacique significava rei ou

juiz ou governador. Dez dias após haver alcançado as ilhas, Colombo escreveu em seu

diário que “partir[ia] a circundar esta ilha até conseguir falar com o cacique”, foi a

primeira vez que o termo cacique apareceu na história. Foi grafado de várias formas.

Na Primeria Década de Pietro Martire d'Anghiera (1530, folha 21), caci´chi; em

Fernandez de Oviedo (1959, p. 27), cazique; em Antonio de Mendonça (1976, p. 49),

calpisques; em Joaquim Acosta (1971, p. 32) quibi; quibio (p. 37); cacique ou quibio

(p. 39); e a partir de Bartolomeo de las Casas, cacique. A utilização de cacique na

América foi amplamente promovida pela coroa espanhola. A cédula real de 26 de

fevereiro de 153826 insistia para que qualquer autoridade indígena fosse chamada

unicamente de cacique, evitando o tratamento “senhor”. Para Gudrun Lenkersdorf

(2001, p. 3), o tratamento “senhor”, em castelhano, poderia implicar uma autoridade

efetiva e um tratamento reverencial. Joseph Acosta (1979, p. 32-39) discorreu sobre a

incompreensão do papel do cacique pelos europeus, visto que ele possuía uma

autoridade relativa com suas decisões vinculadas às assembleias indígenas. Juan

Ignacio de Armas (1882, p. 50), seguindo a ideia de Fray Pedro Simón (1892, p. 114),

acreditava que o vocábulo cacique era procedente do árabe, uma espécie de corrupção

de califa, do árabe clássico, ou calife, do moçárabe. O mundo árabe desenvolvido na

península ibérica foi a alteridade que Colombo mais conheceu. A Andaluzia era a

parte mais ilustrada da Europa, com escolas, bibliotecas e profundo conhecimento

sobre medicina e navegação, mas acima de tudo, era o “outro” indesejado,

conquistado e subjugado.

O califa, como nos contou Pedro Damián Cano (2012, p. 19-36), é o sucessor

de Maomé, líder político e espiritual, e deveria ser legitimamente aparentado por

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!26 Recopilación de Leyes de Indias, libro XV, título 7, ley 5.

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cosanguineidade, portanto, só haveria um califa para todo o islã. No entanto, as

sucessões das linhagens ao longo do tempo não foram tão simples assim, e entre a

família Omeya, que eram descendentes de um sobrinho do bisavô de Maomé, houve

uma disputa pela sucessão que levou à separação do califado de Damasco. Um dos

descendentes rebeldes migrou para al-Àndalus e anos mais tarde um de seus

descendentes deu início ao califado de Córdoba, religiosa e politicamente

independente. Teoricamente, um califado desta forma não poderia existir, mas sua

existência fazia parte do desmantelamento pelo qual o sistema de califado passava.

Assim, em al-Àndalus, surgiu um califado com características próprias e muitos

conflitos internos. Desde que o califa fora obrigado a abdicar, em 1009, até o ano de

1031, quando o califado foi abolido, se sucederam no trono de Córdoba treze califas.

Após a deposição do último califa, todas as coras (províncias) em al-Àndalus se

autoproclamaram independentes. Estas províncias eram regidas por clãs árabes,

andaluzes, bérberes ou eslavos e eram chamadas taifas. As taifas só existiram, como

organização política islâmica, na Andaluzia.

Assim como o califado dos califas, a organização política e social em torno

dos caciques foi chamada cacicado, e serviu como uma das formas de distinção do

grupo étnico identificado como caribe ou circuncaribenho. De acordo com Karlevo

Oberg (1955, p. 480), o cacicado caracterizava-se pela união de muitas aldeias,

governadas por chefes subordinados, sob o governo de um chefe supremo. A origem

do termo cacique remonta a Colombo, mas cacicado é bem mais recente. Foi Julian

Steward (1946, p. 6), ao editar o Handbook of South American Indians, quem

elaborou o termo. Em face de sua perspectiva neo-evolucionista, Steward organizou

as culturas da América do Sul de acordo com uma lógica tipológica ascendente,

iniciando em marginal (bando), seguido de floresta tropical (aldeia autônoma),

circuncaribenha (cacicados) e andina (Estado). De acordo com Robert Carneiro

(2007, p. 118), o termo de Julian Steward se dispersou pela literatura antropológica e

serviu para designar as sociedades polinésias do século XVIII e da pré-história, com o

sentido comum de organização social de uma sociedade “a caminho de”. Na

perspectiva de Julian Steward, os cacicados seriam uma forma anterior ao Estado,

seriam o caminho para tornar-se Estado. Não há mais cacicados no Caribe, eles foram

extintos junto com os Taíno, mas o termo persiste na literatura.

Desde Fray Pedro Simón, a similaridade entre os termos adotados por

Colombo e o espanhol falado na Andaluzia, fortemente influenciado pelo moçárabe,

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vem sendo percebida. Juan Ignacio de Armas foi o etimólogo cubano mais dedicado a

encontrar similitudes, muito embora sua proposta fosse comprovar que a língua

originalmente falada pelos Taíno era precária, inferior e, portanto, precisava dos

empréstimos do espanhol para nomear o mundo, seu criterioso trabalho de

investigação e de comparação dos termos indígenas anotados por Colombo com o

moçárabe medieval é surpreendente. Uma das ideias de Juan Ignacio de Armas era

que as línguas lucayas (Taíno) jamais poderiam ter influência sobre o espanhol, pois

para isso seria preciso uma “raza india fuerte, con una civilización avanzada y

poseedora de una lengua altamente desarrollada”, com um contato longo e frequente

para que tal língua pudesse causar alguma interferência no espanhol. O que, em sua

opinião, não aconteceu nem em Cuba nem em nenhum outro país americano. Ao

contrário, foi o espanhol que contribuiu para dar mais cor a estas línguas, trazendo

contribuições do basco, do árabe e de outras línguas indígenas mais fortes, como as

línguas do Peru e do México. Para ele,

[l]as lenguas antillanas eran necesariamente pobres de vocablos. Su construcción gramatical debió ser imperfecta, su articulación difícil y poco armoniosa (…) la lengua de Santo Domingo, la más importante para el filólogo moderno, padecía una gran penuria de vocablos y carecía de medios para contar objetos hasta más allá del número veinte. Hasta parece que sus posesores tenían alguna especie de imperfección orgánica, que en ciertos casos les impedía pronunciar bien dos vocales seguidas. (DE ARMAS, 1882, p. 9-10)

Ao usar o termo língua lucaya, ele fez uma referência à ilha mítica medieval

que Colombo usou em seu diário para designar a primeira ilha avistada do novo

continente, projetando e replicando uma categoria medieval e europeia para falar

sobre uma língua e um povo do Novo Mundo. Ele acreditava que muitas das palavras

citadas no diário nada mais eram que corrupções de formas espanholas, a considerar

que os navegadores que passaram pelas Antilhas possuíam deficiências no

conhecimento do espanhol adequado e usavam termos procedentes de seus próprios

dialetos, como o basco, o galego e o andaluz. Além do mais, muitos haviam estado

nas guerras de Granada e conheciam um pouco de moçárabe, outros eram judeus

convertidos. Enfim, uma enormidade de variantes dialetais do espanhol medieval

convivia nas embarcações e, para Juan Ignacio de Armas, este foi o maior testemunho

linguístico deixado pelos relatos. Discordo absolutamente do julgamento feito sobre

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as línguas indígenas, no entanto, o trabalho etimológico de Juan Ignacio de Armas é

profundamente coerente. Não há razões, por mais dispostos que nos ponhamos, para

acreditar que Colombo, de fato, compreendeu o que viu ou ouviu. É um exercício

muito menos pretencioso reconhecer o não entendimento e a transferência de

categorias que, ao longo dos séculos, vêm sendo usadas como referências inequívocas

de nosso entendimento a respeito dos povos indígenas.

Entre vários verbetes, destacarei alguns exemplos, pois esta tese não se

dedicará a averiguar a veracidade de suas suposições. Para Juan Ignacio de Armas

(1882, p. 20), maíz “milho”, que tem um fruto de aparência pontiaguda, canelada e da

qual saem fios amarelo-dourados, foi associado ao mahizo, uma peça de formato

semelhante à espiga, com o qual terminava o fuso das fiandeiras. O caminho

fonológico de mahizo até maíz parece ter sido traçado por um fenômeno que se

espalhou por todos os dialetos espanhois medievais, o apagamento da palatal y, como

apontado por José Maria Martínez (2008, p. 85). Em qualquer dialeto do espanhol

medieval, incluído o castelhano, a palatal y intervocálica foi hepentética com o fim de

evitar o hiato, como nas formas antigas seyello “sello” e reyina “reina”. Em muitos

casos, a palatal não se manteve, como em agina>ahina>aina, do século XIII. O

esquema de substituição proposto por José Maria Martínez é:

[y] /G/ > /y/ > [h] [h]>∅

A partir da análise de José Maria Martínez, posso inferir então, que mahizo, a

peça do fuso, já estaria em meio caminho de tornar-se maíz por substituição da palatal

y pela expirada h, com posterior apagamento de h, assim: mayizo>mahizo>maíz. Para

Corriente (1997, p. 504), se mahizo era a ponta superior do fuso, mazorca era o

próprio fio de lã ou de algodão enroscado no fuso, em uma variante moçárabe que

veio alterando sua forma desde a raiz persa māsure. Hoje, permanence no espanhol

significando a espiga do milho. Para os adeptos do cultismo de Colombo, maíz veio

do latim más, que significa “pano”, ou seja, o fio tecido. Afinal, como diz o

provérbio: cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso.

FIGURA 3 – Fiandeira, de António Carvalho de Silva Porto, 1850-1893 e Zea Mays, de Francisco Manuel Blanco, 1880-1883.

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Fonte: Acervo digital de Silva Porto. Fonte: Acervo digital de Manuel Blanco.

Canoa é outro caso interessante, afinal, no Novo Mundo, Colombo se deparou

com uma série de realidades antropológicas, zoológicas e botânicas completamente

desconhecidas para um europeu de 1492. Para nomeá-las, usou de descrições feitas

por meio de frases complicadas ou valeu-se do recurso mais comumente usado para

referir-se às coisas das quais não se tem conhecimento: a comparação com algo

semelhante e conhecido. Colombo (1998, p. 47, grifo meu) escreveu em seu diário, na

edição em língua portuguesa: “Vieram até a nau em pirogas, feitas do tronco de uma

árvore, como um barco comprido e de um só pedaço, e lavradas que eram uma

maravilha, segundo o costume local”. Na versão em castelhano, a palavra utilizada

por Colombo não é piroga, mas sim almadía, como no trecho: “cinco muy grandes

almadías, que los indios liaman canoas”. (COLÓN, 1979, p. 57) No dicionário Espasa

(2009, p. 68), almadía vem do árabe, é uma forma de transporte de toras, em que as

toras inteiras de árvores são amarradas juntas para flutuarem, muito usada nos

Pirineus para descê-las da floresta, onde eram abatidas, até as serrarias, para serem

cortadas. Piroga, com sentido semelhante à almadía já existia em língua portuguesa e

em espanhol, mas Colombo preferiu usar almadías para referir-se aos barcos dos

nativos, aos quais ele já havia dado um nome, canoa. Para Juan Ignacio de Armas

(1882, p. 19), canoa viria da raiz cana, como em canal e canela, fazendo alusão à

forma da embarcação, escavada em uma tora inteiriça, que remeteria ao tronco

escavado que servia para escorrer o guarapo nos engenhos.

Comumente usada em toda a América hispânica, ají significa pimenta ainda

nos dias de hoje. Para Sheila Hue (2008, p. 101), há um engano que se perpetuou por

muitos séculos, a origem das pimentas Capsicum, as ardidas, seria americana e não

asiática, como descrito pela história botânica. Para Juan Ignacio de Armas (1882, p.

45), ají teria sua origem em haxixa ou haaxí, do árabe, que ele descreveu como uma

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“planta espinhosa da África que dá flores de cor púrpura e uma frutinha vermelha”. O

haxixe, hashash ou hashish, e sua associação com os seguidores de Hassan Sabbah é

uma história há muito tempo conhecida. O centro desta seita era o castelo de Alamut,

que Marco Polo (1985, p. 73) descreveu no texto sobre a Província de Timocaim,

onde se encontrava a Árvore Só-Árvore Seca, e onde vivia o Velho da Montanha.

Antes mesmo de Marco Polo, ainda no período das Cruzadas, as histórias sobre os

guerreiros que fumavam haxixe para matar sem piedade se popularizaram no

Ocidente. Esses guerreiros eram comandados por Cheike el Djebel, literalmente, o

Velho da Montanha, e de “seguidores de Hassan” tornaram-se vulgarmente

conhecidos como “assassinos”27.

Associar assassinos muçulmanos a canibais americanos não era um devaneio,

mas uma estratégia narrativa que justificaria, posteriormente, as ações violentas contra

as populações indígenas, uma espécie de Cruzada contra o mal. A atribuição de

sentidos nas designações exemplificadas acima, ou seja, canibais e assassinos, passa

por um procedimento que Eduardo Guimarães (2014, p. 61) descreveu como

reescrituração, que é uma maneira de dizer o que já se disse atribuindo sentidos ao já

dito. A reescrituração do termo assassino é a atribuição de sentidos ao termo

assassino, como “seguidor de Hassan”, “muçulmano”, “impiedoso”, “usuário de

entorpecentes”, não-cristão”. Para canibais, o caso que mais nos interessa neste

momento, “comedor de gente”, não-cristão”, “assassinos” (com todas as implicações

supracitadas que ‘assassinos’ já carregava). A designação identifica algo existente e

atribui-lhe predicativos de maneira a determinar seu sentido. Estes predicativos são a

forma de relacionar a nova designação com o escopo do já existente e já nomeado,

diferenciando-a das nomeações já existentes na língua. Assim, “muçulmano” e

“assassino” determinam o sentido de canibais e caribes, pois a reescrituração do

consumo de haxixe em ají se projeta sobre os predicados estabelecidos para

determinar quem são os caribes ou os canibais. Essa projeção provoca um

embaralhamento dos sentidos de canibais e de muçulmanos, ambos inimigos do rei de

Espanha.

A mais famosa narrativa da descoberta da América traçou suas origens

diretamente do livro de Heródoto, pois retomou dos gregos a tradição narrativa sobre

a alteridade, projetando suas perspectivas de entendimento da realidade, seus

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!27 ECO, Humberto. O pêndulo de Foucault. 2a. ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. Trad. Ivo Barroso, p. 276-277

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discursos sobre a civilização e sobre o selvagem, temas e motivos oriundos do período

clássico. De forma bem específica, resgatou Marco Polo ao reproduzir quase

inteiramente algumas de suas histórias e Plínio, ao discorrer sobre seus seres

medonhos como homens com cara de cão, cíclopes e antropófagos. Mas não passou

por desatualizada, levou a bordo as impressões sobre os guanchos e os mouros, se

valendo de termos do moçárabe para descrever habitantes e costumes locais.

Guanahaní e seus taínos são o palimpesto das Canárias e seus guanchos, e da

Andaluzia e seus mouros.

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3. CARIBES DE COLOMBO, CARAÍBAS DE CABRAL

Eis, portanto, que aparece a bile negra, a substância grossa, corrosiva,

tenebrosa, designada pelo sentido literal de ‘melancolia’.

(Starobinski, 2016, p. 20)

Colombo inaugurou a elaboração de categorias que proporcionaram a divisão

destes povos em grupos distintos. As categorias usadas eram todas exclusivamente

europeias, fruto das crenças e dos valores que o próprio navegador trazia, além de

estarem politicamente comprometidas com os anseios de expansão comercial e

territorial do Estado recentemente instaurado na Europa. Assim, os habitantes de

Guanahaní encarnaram o monstro Caríbdis, e de caribes se tornaram canibais, o que

significava que eram “comedores de gente”. Devidamente localizados, identificados e

territorializados os selvagens canibais existiam e viviam no paraíso terrestre,

Guanahaní.

3.1 Caribes e aruacos

A associação dos caribe ao canibalismo decorreu, principalmente, das

expectativas medievais de Colombo de encontrar monstruosidades, que assim

formulou a imagem canibal e violenta dos caribe. Ser caribe implicava ser canibal.

De acordo com Nancy E. van Deusen, (2015, p. 3), em Global indios. The indigenous

struggle for Justice in Sixteenth-Century Spain, ao longo do contato com os

espanhóis, a ambiguidade do status entre caribe (nativo resistente às ordens da Coroa)

e canibal (comedor de gente) foi alterada, muito em razão da lei da Rainha Isabel que

proclamava que se fizesse escravo de todo canibal que resistisse às ordens

espanholas, mostrando que havia uma confusão entre os dois status que os nivelava.

Como já havia antecipado o Almirante, em nome dos reis de Castela, aniquilaria os

caribe. Neil Whitehead (2002, p. 52-59) considerou que pouco se tem analisado os

textos de Colombo a respeito das categorias linguísticas, políticas e antropológicas

sobre o novo continente ali formuladas, em especial, sobre a história da classificação

linguística arawak e carib, construídas uma em oposição à outra. Ele considerou que

os modelos de evolução histórica des-historizam as relações linguísticas, que são

assumidas como supra-históricas, sendo portanto um dado e não um problema a ser

investigado. A diferença em sua análise está em tratar as mudanças glotocronológicas

como um processo histórico que produz a mudança ao invés de tratar a mudança

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como a evidência histórica de um relacionamento linguístico prévio.

Para exemplificar seu pressuposto, ele retomou os textos de Colombo e seus

contemporâneos, visto que foi exatamente nas categorias elaboradas nestes textos que

a supremacia da diferença linguística sobre a relação histórica dos povos do novo

continente começou. O trabalho de identificar uma língua na terra recentemente

colonizada era altamente político. Em primeiro lugar, porque dialogar com os

habitantes era necessário para o propósito colonizador, por isso o trabalho dos

missionários foi fundamentalmente relevante para o projeto colonial. Em segundo,

porque simultaneamente ao identificar uma nova língua, descobria-se uma nova

cultura e portanto, um novo povo a ser agregado à colônia. Colombo foi o primeiro a

fazer distinções político-linguísticas entre a população destas terras que, sem a

necessária reavaliação de nossos próprios preconceitos culturais sobre as ideias do

que são língua e cultura, se perpetuaram nas teorias glotocronológicas e de linguística

histórica, produzindo um cenário confuso do que realmente foram as identidades

étnicas e as relações culturais naquele momento. A mais contundente das confusões é

a atribuição étnica dos povos que habitavam as ilhas caribenhas no momento do

desembarque. Ao fazer uma revisão das descrições de Colombo e dos primeiros

relatos feitos por missionários espanhóis e franceses, Neil Whitehead (2002, p. 53-

55), em Comparative arawakan histories. Rethinking language family and culture

area in amazonia, resgatou a evidência de que haviam dois grupos diferentes

divididos por Colombo como “tratáveis” (guatiao, aruaca) e “selvagens” (caribe,

caniba). Embora esta não fosse uma distinção linguística, informou a política colonial

a ser adotada e induziu mudanças nas sociedades existentes como resposta à

discriminação inicial. O autor interpreta que o dualismo poderia não ser apenas

projeção colonial nem mera distinção linguística, mas como funcionava política,

linguística e culturalmente é ainda ponto de controvérsia entre inúmeros estudiosos.

Durante a ocupação colonial das ilhas a partir do século XVI, os habitantes das ilhas

(guatiao) foram dispersos ou exterminados e posteriormente substituídos pelos

aruacos continentais, atualmente conhecidos como Lokono28. Havia então o binômio

caribe/aruaco além de outra distinção que operava como categoria classificatória na

colônia: ilha/continente. Embora este último binômio não tenha sido muito bem

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!28 Historicamente o termo aruaca refere-se aos Lokono, habitantes do norte amazônico, do rio Essequibo ocupando a costa do Atlântico até a foz dos rios Demerara, Berbice e Corentyn, região hoje conhecida como Guianas.

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percebido pelos espanhóis que se ativeram mais ao caráter caribe ou aruaco da

população, foi bem documentado pelos missionários franceses que acrescentaram

mais uma distinção ao grupo de categorias: os Galibi (Kaliña), caribe das ilhas; e os

caraïbe, caribe do continente.

Segundo o Frei Raymond Breton (1900, p. 61), o primeiro a descrever a língua

dos caribe das ilhas, os Galibi (Kaliña). Nesta língua29, os homens chamam a si

mesmos de Kalinago e as mulheres de Kalipuna. O mito de origem desse grupo, como

descrito pelo Frei Raymond Breton, conta que antes dos Kalinago chegarem, haviam

homens e mulheres Iñeri (supostamente um grupo aruaco das ilhas). Os Kalinago

(supostamente caribe do continente) exterminaram os homens Iñeri, casaram-se com

as mulheres Iñeri e estabeleceram famílias. Assim, as crianças nascidas destas uniões

teriam aprendido a língua Iñeri com suas mães e, no caso de serem meninos, ao

crescerem, para acompanhar seus pais nas tarefas masculinas, teriam aprendido a

língua Kaliña. Um ponto interessante aparece aqui. Apesar de ser considerado o mito

de origem desse grupo ainda hoje, a história contada por Frei Breton lembra

inquietantemente as histórias de Marco Polo sobre Rosmochoram e de Colombo sobre

Matinino.

Ainda hoje, o debate sobre o que ou quem é caribe ou aruaco ocupa a cena

científica. Praticamente toda a produção de literatura posterior ao contato esteve

empenhada em formular esta diferença com inúmeras descrições da morfologia

cultural e do caráter de cada um dos povos, tentando estabelecer áreas culturais e

determinar suas relações linguísticas. Caribe, segundo Dieter Heinen (1983, p. 4),

assim como canibal, deriva do Lokono caniba que significa “povo da mandioca”, e

fazia referência àqueles que viviam ao sul, na costa. Para Tzvetan Todorov (2013, p.

44), não haveria dúvidas de que, no entendimento de Colombo, caniba era o povo do

Grande Khan, que subjugava e escravizava a todos eles. Qual das suposições é a mais

correta é difícil julgar, mas o que posso perceber facilmente é que caniba em muito se

assemelha a maniva, a estaca da qual se faz o plantio da mandioca e que tem seu

significado fortemente associado a este tipo de agricultura que não usa sementes,

mantendo-se inalterado até os dias de hoje. Em direção oposta, Karl von den Steinen,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!29 Segundo Anthony Pagden (1988, p. 241), em 1580, Miguel Cabello Valboa registrou o fenômeno espantoso dos grupos caribe (Kalinago/Kalipuna) em que homens e mulheres falavam línguas diferentes, e considerou que tamanha desordem linguística indicava o estado de desordem do mundo índio. Mais tarde, em 1724, o padre jesuíta Joseph-François Lafitau reconheu estas duas línguas diferentes como formas rituais de tratamento. De acordo com Hoff (1995, p. 37-59), a língua Kaliña é considerada um jargão comercial usado pelos homens em seus negócios com os habitantes de outras ilhas ou do continente.!

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em uma carta destinada a Nordeskiöld e Frödin, em 191230, percebia os caribe como

os “senhores” do algodão e do fuso em oposição aos aruaco que não possuíam o fuso

nem o conhecimento de fiar, assumindo o algodão fiado como a especialidade tribal.

Assim, o relato de Colombo (1998, p. 45) a respeito da quantidade de papagaios e

novelos de algodão fiado que lhe eram oferecidos “querendo trocar por qualquer coisa

que a gente desse”, assumiria um sentido muito mais significativo da identidade

étnica do grupo. Estabelecer uma troca era a forma de estabelecer uma relação com os

europeus que haviam chegado, de incorporá-los à dinâmica local. De acordo com

David Graeber (2011, p. 134), produzir objetos específicos para a troca faz parte de

um roteiro de estabelecimento de relações, de um processo de interação em que as

partes buscam um resultado satisfatório de suas trocas e de suas relações.

Aruaco31 seria um derivado de aru que, em Lokono, significa ‘farinha de

mandioca’, a principal mercadoria de suas transações comerciais com os espanhóis.

Aruaco seria então, para Neil Whitehead (2002, p. 73), ‘o povo da farinha de

mandioca’, em um idioma que só fazia sentido na relação comercial entre espanhóis e

Lokonos. Aparentemente, caribe e aruaco eram “comedores de mandioca”. Aliás um

fato que se extende por quase todo o continente. Se todos comem então esta não seria

uma característica étnica definidora do grupo, talvez de uma identidade comum,

partilhada e atribuída, como a de americano, por exemplo, mas não seria suficiente

para definir as diferenças entre caribe e aruaco. Boomert (1984, p. 123-188) sugeriu

que o nome teria surgido de Aruacay um lugar situado na margem esquerda do baixo

Orinoco, ao norte de Barrancas, na Venezuela e que daí teria se espalhado, passando a

referir-se não somente aos habitantes de Aruacay, mas também aos indivíduos que

falavam a mesma língua. Para Colombo, alguns termos bastante semelhantes tinham

significados um pouco diferentes, nucay (1998, p. 58) significava ouro, e Carcay

(1998, p. 85) era o nome de uma ilha. Posso então supor que Colombo construiu este

termo para se referir ao conjunto de povos que comercializavam farinha de mandioca

com os espanhóis, tendo suas expectativas e convicções comerciais e pessoais

unicamente envolvidas nesta formulação. Em depoimento dado à linguista Marie-

France Patte (2010, p. 10), uma liderança guianesa da Organização Guianesa de

Povos Indígenas (GOIP) disse que eles consideravam arawak uma atribuição externa:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!30 COELHO, Vera Penteado. Karl von den Steinen: um século de antropologia no Xingu. São Paulo: Edusp, 1993. p. 32 31 Segundo Payne (1991, p. 355-499), atualmente a forma de se referir aos Arawak é o uso do termo Maipure, que designa um grupo mais amplo de populações que partilham línguas com retenção de léxico semelhante.

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“nós não dizemos arawak na GOIP, pois esta palavra só passou a existir depois de

Colombo, em 1492.”

Segundo Neil Whitehead (2002, p. 57), caribe e aruaco estavam em oposição,

principalmente no que diz respeito aos negócios e aos projetos coloniais que

precisavam mobilizar forças de aliados e inimigos para serem implantados. Os

Lokono foram aliados da Coroa espanhola e eram os guardiões das plantações de

tabaco implantadas pelos espanhóis, cuidando eles próprios do abastecimento de

escravos para o cultivo. Os caribe eram os inimigos passíveis de serem escravizados.

Assim, o trabalho dos missionários linguistas, durante o século XVI, se constituiu

basicamente em demonstrar as diferenças linguísticas e culturais existentes entre

aruacos e caribes que persistem ainda hoje como categorias analíticas do trabalho

científico da descrição linguística.

O rol de características elaborado para a distinção entre os dois grupos

apresenta a morfologia das aldeias, com um pátio circular no centro, atribuída aos

aruaco; o canibalismo, atribuído aos caribe; e os mitos de origem serviriam como

delimitadores culturais. Entretanto Guahayona é o ancestral mítico tanto de grupos

aruaco quanto de grupos caribe. André Prous (1992, p. 425) apontou as evidências de

grandes aldeias com pátio circular, inclusive, em ocupações no recôncavo baiano e no

centro-oeste do Brasil desde 400 anos antes da chegada dos europeus, sendo estes

territórios associados aos Tupi e aos Jê. Segundo Eduardo Viveiros de Castro (1986,

p. 287), o formato das aldeias Araweté, grupo Tupi-guarani, são assemelhadas às dos

Caribe e às de outros grupos do norte-amazônico. O uso do fuso de fiar, como

apontado por Karl von den Steinen também se mostrou frágil. Jose Gómez (2016, p.

184) discorreu, em sua tese de doutorado, sobre a prática e a importância de fiar como

estabelecedor da diferença entre masculino e feminino, em um grupo de língua

chibcha, de Sierra Nevada, para quem a construção do mundo se daria no movimento

espiral do fuso de fiar.

As características apontadas como definidoras da identidade étnica dos grupos

parece mais relacionada aos projetos coloniais do que de fato aos grupos aos quais se

referem, refletindo uma pontinha do sistema produtivo europeu e de sua estrutura de

classes. Outra reflexão importante que tais comparações suscitam é o fato de que

aruaco e caribe seriam duas categorias sociais que estabeleceram e descreveram as

relações dos povos contatados com os europeus, mas que não significavam

necessariamente populações culturalmente e linguisticamente diferentes.

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Posteriormente, tornaram-se categorias científicas de análise e de descrição

linguística, chegando a serem estabelecidas famílias linguísticas com relações

genéticas e culturais implicadas. Estabelecer uma diferença linguística entre esses

dois grupos era necessário. Para haver um povo “tratável”, de língua compreensível,

era necessário um outro povo “selvagem”, de língua rude. Os critérios que levavam

em conta a diferença linguística não eram exatamente linguísticos, eram mais

propriamente critérios comerciais ou coloniais. O critério de selvageria precisava

existir, pois esta era uma das premissas para a escravidão: ser selvagem justificava a

escravidão.

3.2 Caraíbas ou canibais?

Desde a publicacão do dicionário de Friederici, em 1917, a relação entre os

termos caraíba, canibal e caribe não é avaliada do ponto de vista linguístico. Então,

chegou a hora de fazermos uma análise das relações semânticas e históricas entre elas.

A história da palavra caraíba remonta ao diário de Colombo, e assim como a

narrativa da descoberta, é também paradoxal. Seu sentido cruzou a fronteira entre

brancos e índios e se estabeleceu em ambos os lados com sentidos semelhantes sem

nunca ter pertencido anteriormente a nenhuma das línguas, pois é filha legítima do

contato. No diário de Colombo (1998, p. 74, grifo meu), a primeira aparição de

caraíba se deu quando os índios de uma aldeia fugiram de medo ao verem os homens

de Colombo, bem armados, desembarcando na praia, “o índio que os cristãos levavam

correu atrás deles, aos brados, pedindo que não tivessem medo, que os cristãos não

eram caraíbas, antes, pelo contrário, vinham do céu”.

Vespúcio (1984, p. 59) narrou, na carta de 1497, que, ao percorrer um trecho

da costa onde a população vivia sobre paliçadas que lembraram-lhe Veneza, nomeou-

a Venezuela32. Ao tentar aproximar-se da costa, Vespúcio foi recebido de maneira

belicosa. Decidiu seguir adiante e ainda no continente encontrou outra população

onde foi bem-recebido. Após dias de festa e de um batismo coletivo, Vespúcio (1984,

p. 117) foi designado carabi que, segundo seu relato, significava “homem de grande

sabedoria”. O povo que o recebeu pediu que ele e seus homens os acompanhassem em

uma vingança contra os canibais que os subjugavam e que viviam em uma das ilhas.

Vespúcio (1984, p. 118), então, comandou um ataque contra a ilhota chamada Iti,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!32 Para Tzvetan Todorov (2003, p. 38), esta forma de nomear, por semelhança direta, é uma das formas adotadas por Colombo quando nomeava cada monte, remanso ou rio “com um ímpeto compulsivo, algo que se aproxima ao tomar posse da terra nomeando-a”.

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capturou 250 escravos, queimou a aldeia, entregou sete escravos aos caraíbas

(população que estava sendo vingada) e voltou à Espanha. Mais uma vez, nos

deparamos com as reescriturações de textos anteriores. O ataque à ilha, a captura de

escravos e o incêndio remetem às guerras da conquista nas Canárias, quando

incendiaram a ilha de Tenerife, registradas por Colombo em seu diário. Além da

peripécia épica de guerrar contra índios ferozes e canibais, há outro fato interessante

nessa carta, caraíba recebeu dois sentidos diferentes no relato de uma única história.

Carabi é o título de “homem de grande sabedoria” recebido por Vespúcio e, ao

mesmo tempo, caraíba é o nome do povo que conferiu o título a ele, mas não é

sinônimo de antropófago, pois os antropófagos eram os habitantes da ilha Iti. No

diário de Colombo, caraíba possuía um sentido agressivo, significando caribe ou

canibal, mas na narrativa de Vespúcio tinha sentido de ancião, visto que “homem de

grande sabedoria” evoca o tempo vivido para a aquisição da sabedoria.

Uma vez mais retornamos a Marco Polo, afinal já entendemos que os

discursos narrativos tanto de Colombo quanto de Vespúcio retomam constantemente o

de Marco Polo, não somente por se tratar das ilhas que Marco Polo mencionou, mas

porque ainda pulsavam (e pulsam) no inconsciente ocidental, os mitos e as lendas

contados por Marco Polo (2015, p. 158). Este é o caso da Província de Caraiã, ou

melhor, sobre o reino de Caraiã, onde matavam os hóspedes que pernoitassem na

cidade, para que “sua figura e sua graça, a sua inteligência, assim como as suas

armas, ficassem na casa.” Marco Polo apenas ouviu essas histórias, pois isso

acontecia antes, muito tempo antes de o Grande Khan os ter conquistado. Caraiã era

uma província que ficava a cinco jornadas em direção ao Levante, após o reino de

Cogatim, atualmente de difícil localização geográfica e muito provavelmente

inexistente também na época de Marco Polo. Caraiã foi um dos lugares mais exóticos

visitado por ele, habitados por seres maléficos, cobras enormes e com habitantes que

matavam por uma causa obscura, dissimulada, que visava à aquisição de armas, mais

especificamente, as armas de seus hóspedes.

Ao transpor a Caraiã de Marco Polo para as Antilhas, Vespúcio identificou um

lugar e uma intenção e as nomeou caraíba. A partir de Vespúcio, caraíba ganhou

também o sentido de ancião e de assassino, remetendo ao Velho da Montanha e às

suas práticas de consumo de entorpecentes antes das batalhas e de assassinatos

premeditados envolvendo disputas políticas e vinganças. Temas bastante recorrentes

entre os cronistas que descreveram os karaíwas Tupi das terras brasileiras. Vespúcio

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(1984, p. 72), em sua carta sobre a viagem de 1502, quando chegou até a Bahia,

descreveu os antropófagos como seres extremamente belicosos e movidos por uma

fúria diabólica que os levava à guerra por vingança. Vingança herdada de seus

ancestrais, pois matavam para vingar a morte de seus antepassados. Vespúcio não

mencionou nem ancião nem feiticeiro que incitasse a guerra, mas contou que, após

matar os inimigos, os prisioneiros eram escravizados, mortos a flechadas e comidos

posteriormente junto com os filhos e as esposas que porventura tivessem tido durante

o cativeiro. Tudo isso presenciou Vespúcio durante os 27 dias em que esteve

navegando pela costa norte do novo continente. Na Lettera, Vespúcio narrou o mesmo

episódio, dessa vez, incluindo “o parente mais velho que vai arengando pelos

caminhos para que vão com ele vingar a morte daquele parente seu.” A razão da

vingança que Vespúcio usou como explicação para a guerra se deu diante do fato de

que, por serem povo sem lei nem rei, não guerreavam para expandir seus territórios ou

sobrepujar seus vizinhos, restando apenas a vigança como explicação, amparada na

concepção médica de Hipócrates33 de que em terras quentes o excesso de produção de

bile negra geraria uma raiva incontrolável, motivadora de vinganças violentas. Ele

descreveu os humores humanos que determinavam os caráteres das populações. O frio

seco existente no norte provocaria irracionalidade e o calor úmido existente no sul

produziria excesso de bile negra.

Jean Starobinski (2016, p. 23) em A tinta da melancolia, fez um resgate da

literatura médica que tratou da existência da bile negra e dos humores associados a

ela. Ele compreendeu que os quatro humores determinantes da saúde ou da doença: a

bile negra, o sangue, a bile amarela e a pituíta possuíam uma relação com os quatro

elementos: água, fogo, terra e ar; com as quatro qualidades: seco, úmido, quente e

frio; com as quatro idades da vida; com as quatro estações; e as quatro direções de

onde sopram os quatro ventos. Assim, se construiria um cosmo coerente e

quadriporcionado no qual se encontraria e viveria o corpo humano em acordo com as

quatro partes, relacionando-se de maneira equânime com elas ao longo de sua

existência, em um ciclo regular de tempo expresso pelas quatro estações. Conta o

autor que Galeno conferiu diferenças marcantes na localização do humor provocado

pela bile negra. Se localizado no corpo se manifestava em epilepsia. Se localizado na

inteligência, melancolia. A existência da selvageria poderia ser explicada, então,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!33 LOPES, Octacílio de Carvalho. A medicina no tempo. Notas de História da Medicina. São Paulo: Melhoramentos; Edusp, 1969. p. 109

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utilizando-se a oposição clássica da geografia entre norte e sul, e a oposição usada por

Hipócrates e Herôdoto entre frio e quente.

Caraíba se tornou uma palavra-chave para os cronistas do século XVI que

fizeram as descrições dos índios com os quais travaram conhecimento no Brasil. Para

Nóbrega (2015, p. 111) e para Anchieta (1964, p. 49), caraíbas eram os feiticeiros

que enganavam os índios seus compatriotas e os incitavam à guerra contra seus

inimigos, persuadindo-os por influência do demônio. André Thevet (1978, p. 116-

131) nomeou de caraíba aos profetas ou pajés que curavam doenças, faziam feitiços

de vingança e previam eventos importantes para a aldeia durante rituais elaborados

especificamente para isso. No entanto, nas assembleias, nas quais eram decididas as

guerras, as arengas eram feitas por anciãos não por pajés nem caraíbas. Ao narrar a

prática antropófaga dos índios de devorarem seus inimigos, André Thevet recuperou o

tema da antropofagia na Cítia34, discutindo o fato de a antropofagia não ser uma

exclusividade dos índios do Brasil. Também lembrou que, durante a invasão dos

romanos a Jerusalém, as mães tiveram que matar os filhos e comê-los devido à fome.

Deste modo, a raiva canina do canibalismo Cita seria fruto da irracionalidade, e o

canibalismo “de honra” Tupinambá fruto das paixões incontroláveis geradas pelo

excesso de produção da bile negra, resultando no espírito de vingança que alimentava

o ciclo de guerra e antropofagia.

3.3 Caraíbas, os falsos profetas

Jean de Léry (2007, p. 209) entendeu que os caraíbas eram ‘falsos profetas’ e

os comparou aos religiosos “que andam de aldeia em aldeia como os tiradores de

ladainha”35. Como ‘falsos profetas’, enganariam os índios dizendo que “se comunicam

com os espíritos e assim dão força […] para vencer e suplantar os inimigos na guerra,

[…] e fazer com que cresçam e engrossem as raízes e frutos da terra do Brasil.”

Fernão Cardim (2009, p. 175), em 1584, ao contrário de seus contemporâneos que

entendiam o caraíba como o incitador da guerra por vingança, descreveu o caraíba

como aquele que conduzia o povo em peregrinação à Terra sem Males, onde as roças

cresceriam sem precisarem ser cultivadas. Yves D’Evreux (2002, p. 71), em 1613,

utilizou o termo caraíba, significando homem branco. O padre capuchinho Claude !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!34 Herôdoto (1985, p. 206) localiza o território dos andrófagos após o largo trecho desabitado que ficaria ao norte do rio Boristenes. Os citas são povos iranianos que habitavam uma região próxima à Líbia. 35 Os ‘tiradores de ladainha’ eram os frades mendicantes que, na Europa, vagavam de aldeia em aldeia rezando em troca de esmolas. Na liturgia católica, a ladainha é uma oração à Virgem ou aos santos, com o responsório: “Rogai por nós!”

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d’Abbeville (2002, p. 284; 265), em 1614, ao descrever os Tupinambá do Maranhão,

usou o termo tapuitim para referir-se ao ‘branco inimigo’. Em todos os cronistas, a

antropofagia se fazia presente sob a mesma descrição ritual. André Thevet, padre

franciscano, foi o único a comparar os atos de barbárie selvagem ao comportamento

civilizado do europeu com grande ironia. Contou-nos a carnificina vivida pelos

protestantes durante o período da Contra-reforma, descrevendo os assassinatos,

esfolamentos e esquatejamentos públicos dos reformistas, inclusive a venda

inaceitável da gordura dos corpos queimados. Norman Cohn (1980, p. 53), em Los

demonios familiares de Europa, ao recordar a história de Atalo, cristão torturado em

Lyon no período da perseguição romana, que gritava sentado na cadeira de ferro em

que era queimado: “Isto sim é comer homens…”, considerou irônico que os cristãos

tenham iniciado seu percurso na história reconhecidos como terríveis canibais,

praticantes de infanticídio e incesto.

Os jesuítas peregrinavam de aldeia em aldeia fazendo alianças com os chefes

locais e arregimentando-os para a guerra contra normandos, holandeses, espanhóis ou,

como Duarte Coelho contava em suas cartas a El-Rey 36 , contra outros grupos

indígenas que se opunham aos projetos da Coroa portuguesa, dependendo da situação

e da necessidade. A vocação messiânica que acompanhava o trabalho missionário

impulsionou muitas migrações de índios, como a do padre jesuíta Francisco Pinto

Luis Figueira, a quem o padre Claude d’Abbeville (2002, p. 93-100) chamou de

“grande profeta”, ironizando a atuação do colega missionário que, em 1609, marchou

acompanhado de doze mil índios de Jaguaribe até a serra de Ibiapaba, como relatado

pelo Barão de Studart (1921, p. 1-42) em seu Documentos para a História do Brasil.

Além desta migração, Alfred Métraux (1979, p. 196) relatou a existência de outra

grande migração Tupi, de 1539 a 1549 até Chachapoyas, no Peru, conduzida por um

português supostamente chamado Mateus. Alfred Métraux (1979, p. 195) organizou

diversos relatos sobre migrações Tupi retiradas de cartas do século XVI e XVII e de

estudos realizados sobre o tema no século XIX e concluiu que as migrações de fundo

messiânico foram fruto de um sentimento de incapacidade “de suster a ruína

ameaçadora e angustiante”, uma espécie de “psicose gregária frequente nas

populações incultas”.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!36 ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier de; MELLO José Antônio Gonsalves de. Cartas de Duarte Coelho a El Rey. 2a. edição. Recife: Massangana, 1997. p. 112

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Após acompanhar a elaborada argumentação de Alfred Métraux, pude

perceber uma recorrência comum. Nos exemplos citados, a migração do “grande

profeta” foi conduzida de leste para oeste, a de Mateus, também. Essa coincidência,

associada a algumas outras rotas descritas por Métraux, também neste sentido, leste-

oeste, me conduziram a pensar na descrição de Klaas Woortmann (2004, p. 220-229)

sobre a noção de história no pensamento medieval, conhecida como gesta Dei, e que

se desenvolvia no plano espacial, acompanhando a linha do movimento solar. Era

baseada no esquema das idades do homem, para determinar a história universal. Se

era universal, então, a América estava incluída no esquema conhecido como

translatio imperii que significava a transferência de saber e poder de cada império

decadente para seu successor sempre do Oriente para o Ocidente, como havia

acontecido da Pérsia para a Macedônia e da Macedônia para Roma. Afinal, do Oriente

vieram o Homem e o Filho do Homem, no Oriente estava o Éden e o Santo Sepulcro.

O movimento para Oeste exprimia também um movimento de florescimento da vida

religiosa, a possibilidade de progresso da religião. No meu ponto de vista, estas duas

concepções associadas parecem ser o motor das migrações Tupi em direção ao oeste,

conduzidas por portugueses católicos com profundas intenções de fundarem sua

própria santidade, sua rota de peregrinação e talvez seu monastério às custas da

conversão dos índios em um novo povo escolhido que peregrinaria pelo deserto até

encontrar a terra prometida.

Em alguns mitos sobre a Terra sem Males dos Tupi-guarani, descritos por

Eduardo Navarro (1995, p. 66), a migração em direção ao Leste (desta vez em direção

ao império instalado, Portugal) conduziria os índios a uma maloca onde não seria

necessário nem plantar para colher nem caçar, e onde dançariam até que a maloca se

alçaria ao céu para que eles dançassem pela eternidade. Se pensarmos em termos da

gesta dei, ir em direção ao leste era ir em direção à luz, da qual receberiam o poder a

ser transmitido do oeste, reforçando a hierarquia geográfica sobre o Novo Mundo,

terra jovem e herdeira do poder e do império que viria da Europa. De certa forma, esta

expectativa se concretizou com a vinda da família real portuguesa e a transferência da

corte para o Rio de Janeiro, em 1808. Posteriormente, com a ascenção política e

econômica dos Estados Unidos.

Assim caraíba, jesuíta português e migrações messiânicas acabaram por se

relacionarem semântica e historicamente, sendo todas mutuamente definidoras. Jean

Starobinski (2002, p. 13) considerou que a história da língua seria indissociável da

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história da sociedade. Para ele, os sentidos arcaicos resgatados pela história semântica

possibilitariam o entendimento do momento atual, não por representarem uma

verdade filosófica, mas porque a própria variação seria significativa, revelando as

mudanças nos estados de língua e de cultura, como uma espécie de termômetro que

nos permitiria perceber nossas mudanças. A história de cada sentido estaria associada

à história de cada sociedade, a propósito, a história do sentido do termo sociedade

seria também fruto da história dessa sociedade que usa este termo para referir-se a si

mesma como conjunto de indivíduos.

3.4 O branco caraíba

Na história do contato com os Galibi (Kaliña), de acordo com Odile Renault-

Lescure (2002, p. 87), um dos mais antigos do continente, remontando ao início do

século XVI, foi preciso reelaborar a narrativa mítica de sua origem para incorporar o

branco ao léxico e à cosmologia. Foi necessário incluir um novo ser, o ‘espírito do

mar’ palanakili. Não há referências cosmológicas de um espírito do mar nos mitos

Kaliña, por isso, o termo foi considerado um neologismo surgido por meio do contato

com os europeus. A etimologia sugerida para o termo é palana ‘mar’, designando o

oceano que banha a costa norte da Guiana; e kili ‘espírito’. A este espírito estão

associadas a doença e a violência, que remetem à história do contato. O fato de o

termo ter surgido na costa da Guiana sugere que o contato com outros grupos

dispersou-o para o interior, passando a ser uma das formas corriqueiras, nas línguas

indígenas da região, para referir-se ao branco, embora em sua origem tenha servido

para categorizar o branco apenas no mundo Kaliña.

Catherine Howard (2002, p. 41) relatou que os Waiwai, apelido que os

Wapichana, seus parceiros de trocas comerciais de longa data, deram a eles e que

significa ‘tapioca’, tiveram este nome adotado pelos missionários que se instalaram

em Essequibo em 1950. Segundo ela (2002, p. 30), Waiwai é o nome genérico para as

diferentes populações, “Parukwoto, Tarumá, Mwayana, Xerew, Katuena, Tunayana,

Cikyana, Karafawyana, Hixkaryana, Wapixana, Tiriyó e os Waiwai originários (...)

que viviam dispersos pelas matas das bacias do Essequibo, Mapuera e Trombetas e

interligadas por redes de trocas, intercasamentos, rituais e incursões guerreiras”,

partilhando semelhanças culturais e linguísticas, sendo a maioria de falantes de

línguas Caribe mutuamente relacionadas. Para eles, a distinção é feita entre karaiwa e

paranakari, sendo o primeiro referente aos brasileiros e portugueses, do sul, e o

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segundo, aos ingleses e norte-americanos, do norte. Assim, ajustaram a existência

destes seres à sua cosmologia, os karaiwa são filhos de Wooxi, o irmão mais novo e

os paranakari de Mawari, o mais velho, que se dirigiram para sul e norte,

respectivamente. Embora tenham duas formas para categorizar os brancos, ao

distinguir brancos de índios o que importa é a relação com a cidade. Os Waiwai

definem-se a si mesmo como ˆcomota ˆchewno que significa ‘habitantes da floresta’ e

incluem neste grupo os quilombolas em oposição aos ewtoymo pono komo ‘aqueles

que vivem na cidade’, sendo cidade ewtoymo, ewto ‘aldeia’ e –ymo ‘enorme’. Assim,

a distinção genérica campo/cidade evoca “uma vaga semelhança com a nossa

distinção entre ‘brancos’ e ‘índios’”. Os termos karaiwa e paranakari, segundo

Catherine Howard (2002, p. 41-42), não são próprios da língua falada pelos Waiwai.

Karaiwa ou karaíba existe em várias línguas de grupos amazônicos e guianenses. Um

dos sentidos é branco, mas historicamente faz referência ao outro, o inimigo.

Paranakari é uma das formas com que palanakili se dispersou pelo interior do

continente como uma das categorias dos grupos guianenses para nomearem os

brancos. Os Waiwai, segundo Catherine Howard (2002, p. 26), têm uma larga rede de

trocas intertribais, pelas quais há muito tempo, muito antes do contato com o branco,

circulam bens manufaturados (miçangas, terçados, anzóis, tesouras, machados e

facas) em troca de produtos locais (papagaios treinados para falar, cães de caça, redes,

tangas e raladores de mandioca) em uma vasta área que incorpora aldeias espalhadas

pelo norte da Guiana Francesa, do Brasil, Suriname, Guiana e Venezuela. Seguindo a

lógica de dispersão linguística por meio de um profuso contato entre os grupos

ameríndios não é surpreendente o fato de que os termos karaiwa e paranakari tenham

sido amplamente dispersos.

Os Waiãpi do Amapari fazem uma distinção entre brasileiros karai-ko e

franceses prainsi-ko devido às suas reivindicações territoriais em ambas as fronteiras

nacionais. Segundo Dominique Galois (2002, p. 226-227), devido ao contato, a

categoria mítica de inimigo apã sofreu modificações que acompanharam as mudanças

de sentido do termo ‘parente’ jane kwer. Como estratégia para estabelecer uma nova

relação entre lideranças regionais que incluem grupos considerados inimigos, surgiu

indio-ko que não significa ‘inimigo’ nem ‘parente’, mas agrega lideranças de outros

grupos étnicos que partilham reivindicações semelhantes. Desta forma, indio-ko não

significa uma categoria que faz sentido como oposição a branco, mas uma categoria

que alinha inimigos ancestrais e míticos como aliados políticos.

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Para Lúcia van Velthem, entre os Wayana existe uma categoria que abarca

indígenas, brancos e negros em sua totalidade, mesmo os desconhecidos, e que se

aproxima da nossa noção de humanidade, arnë. Esta categoria se divide em duas

categorias opostas, os wekê ‘parentes’, atribuída exclusivamente aos outros Wayana e

aos Aparai que são seus parentes consanguíneos e afins, e os wekê tapek ‘falso

parente’ ou os ‘outros’, que são todos os demais humanos conhecidos e

desconhecidos. Os outros em seu conjunto são karipunó ‘inimigo’, derivado da

palavra garimpeiro em português. Os Wayana consideram o branco ipun kukukhem

‘experimentadores da nossa carne’ muito em decorrência das incursões organizadas

por brancos às suas aldeias, quando os homens estavam fora caçando, nas quais havia

a chacina de crianças, mulheres e idosos. Conforme relatou Lúcia van Velthem (2002,

p. 65-66), um Wayana descreveu o seguinte episódio: “[c]hegavam na aldeia, as

mulheres estavam sozinhas, os homens tinha ido caçar. Amarravam a gente nos

esteios (das casas), ainda viva. Aí começavam a cortar. (...) Depois comiam a carne ali

mesmo, crua, com sal.” Na cosmologia Wayana, o branco é concebido como um

“inimigo canibal” que devora o corpo dos Wayana, comendo-o com suas doenças ou

por meio do trabalho exaustivo, inscrevendo o branco no rol das criaturas

antropófagas, os ipó. Essa associação vem particularmente da pele e da pilosidade do

branco, pois a coloração da pele, sempre branca ou sempre negra é considerada uma

característica animalesca, visto que os humanos se diferenciam dos animais

exatamente por modificarem sua cor de pele por meio das pinturas vermelhas feitas

com urucum. Além do mais, a pele dos brancos possui em geral manchas e pintas,

como as peles dos ipó. No entanto, quando se referem às doenças trazidas pelo

branco, como a catapora e o sarampo, usam o termo karaiwá etamexi ‘doença de

branco’, revelando o uso corrente do termo karaíwa como designador do branco em

geral.

A história do contato com os Wayana nos mostra que o branco também

carrega sua carga de bestialidade e nos revela como ela é percebida pelos canibais,

visto que os Wayana são um dos povos de língua Carib que foram considerados

canibais hostis pelos europeus. Os Wayana não são os únicos a contarem casos

bestiais dos brancos. Philippe Erikson (2002, p. 188) recontou a história de duas

mulheres Matis, no início do século XX, que foram raptadas junto com seus filhos por

colonos do rio Branco. Elas conseguiram fugir, mas tiveram que deixar seus filhos

para trás. Ao chegarem em casa, relataram detalhes sobre o comportamento dos

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brancos e entre outros mal-entendidos, disseram que o esperma dos brancos era

vermelho, desnudando uma tragédia do ponto de vista ginecológico, e ampliando a

carga de não humanidade atribuída aos nawa ‘brancos’, que não são incluídos na

categoria matsi utsi ‘outra gente’, atribuída a seus vizinhos Pano, e nem se misturam

com seus inimigos míticos, os Inca.

Para os brancos, jesuítas e colonos, o caraíba era pajé e canibal. Para os

índios, caraíba foi pouco a pouco incorporando as diferentes facetas da relação

europeu/índio, sendo compreendido como assassino e canibal, dada a virulência das

ações da colonização. Então, a produção dos sentidos postos em circulação determina

quem pode e quem não pode ser caraíba, caribe ou canibal. Apesar de serem sentidos

produzidos pelo contato, a colonização não garante a sua estabilização. Afinal, a

história da colônia é permeada de memórias orais dos sentidos modificados, ao longo

do contato, nas várias línguas em que se materializaram essas mudanças.

3.5 Um problema conceitual

Reinhart Koselleck (1992, p. 135), em Uma História dos conceitos, dedicou-se

a diferenciar palavra de conceito. Afinal, apenas dos conceitos seria possível conceber

uma história. Para o autor, “cada palavra remete-nos a um sentido, que por sua vez

indica um conteúdo.” No entanto, nem todos os sentidos de um conteúdo seriam

relevantes para a elaboração de uma história e seria necessário fazer uma distinção

entre “palavras importantes e significativas” e palavras e sentidos irrelevantes. O mais

importante, no final das contas, seria indicar a partir de quando um conceito passou a

ser teorizado e quanto tempo levou até que estabilizasse seus sentidos ou a ele fossem

atribuídos sentidos novos.

Dos casos que estamos tratando neste capítulo, caribe, aruaco e caraíba as

repetições semânticas meticulosamente investigadas em textos históricos selecionados

a partir de um corpus imenso da produção textual37 sobre o Novo Mundo, mostrou-nos

que se trata de conceitos dignos de serem estudados. Além da repetição linguística em

cada fonte textual investigada, havia uma relação direta com a história concreta, com

os fatos históricos descritos, com o momento em que foram descritos e por quem os

havia descrito. Foram conceitos que, enquanto presentes em textos, coproduziram

história. Em grande medida, a articulação desses conceitos com a realidade concreta e

a produção intelectual escolástica do século XVI iniciaram a história das línguas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!37 Incluídos aqui leis, bulas papais, mapas, cartas, alvarás e livros.

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indígenas americanas para o mundo. Para Michel Pêcheux (ACHARD, 1999, p. 49),

em Papel da memória, a inscrição de um acontecimento histórico na memória38 é dada

pela relação entre a história concreta e a historicidade do discurso. Delimitando a

historicidade do discurso por meio das condições de produção. Entendo que, neste

ponto, a historicidade do discurso se justapõe à historicidade dos conceitos, ambos

trabalhando com a memória discursiva gerada pela história de enunciações que

delimitam por meio de predicados os conceitos/discursos sobre as línguas indígenas.

Assim, as condições de produção do discurso sobre as línguas indígenas

inaugurado no século XVI não gerou exatemente uma novidade a romper sentidos e

instaurar novos sentidos disfarçados de conceitos antigos. Antes, se apoiou sobre as

sólidas bases do discurso já existente sobre a alteridade e o projetou sem filtros sobre

os indígenas americanos. Essa projeção teve a intenção de propagar os discursos já

estabelecidos, sufocando qualquer possibilidade de se instaurarem novos sentidos a

partir da intervenção das vozes novas encontradas no Novo Mundo. A partir da força

de um interdiscurso historicamente constituído na Europa, o discurso científico sobre

as línguas indígenas se estabeleceu, forjando categorias que passaram a determinar

povos e línguas que não possuíam as características projetadas sobre eles.

3.6 A origem da humanidade, uma narrativa inacabada

O encontro entre estas duas humanidades afetou as ideias que ambos tinham

do lugar de si próprios no mundo. Tanto índios quanto europeus tiveram que reavaliar

seus mitos de origem e inserir uns aos outros em suas cosmologias. Relatamos

algumas estratégias indígenas no tópico anterior e agora trataremos de entender como

a narrativa cristã sobre a origem da humanidade precisou ser alterada. Klaas

Woortmann (2004, p. 220-228) ao resgatar o debate entre Boemus e Bodin sobre a

origem dos habitantes da América concluiu que negar a humanidade dos índios punha

em dúvida o Gênesis, contrariando os princípios teológicos de criação da humanidade

que, se supunha, surgira de uma única origem, rompendo assim a unidade da

humanidade e evocando um problema ainda maior no pensamento europeu do século

XVI, o delicado limite entre animais e humanos. Em 1537, o Papa Paulo III, emanou

a bula papal Veritas ipsa, na qual reconhecia a condição de seres humanos dos índios

do Novo Mundo, proibindo sua escravização. Como consta em Serafim Leite (1938, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!38 Trata-se de uma memória coletiva, da discursividade, do simbólico, do mítico e da significação, não de uma memória individual.

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p. 252), o Papa afirmava na bula: “Os índios [...] embora se encontrem fora da fé de

Cristo, não devem estar privados nem devem ser privados de sua liberdade, nem do

domínio de suas coisas, e mais ainda podem usar, possuir e gozar livre e licitamente

desta liberdade e deste domínio, nem devem ser reduzidos à escravidão”. A esta bula

seguiram-se outras nas quais sempre se retomava a questão da humanidade e da

presença de alma nos seres humanos das terras recém-descobertas. A bula não

resolveu o problema, porque, afinal de contas, o que estava em jogo, não era

exatamente a humanidade daquelas pessoas recém-encontradas, mas sim seu grau de

humanidade.

Para Klaas Woortmann (2004, p. 231), a estreiteza dos limites do pensamento

teológico da época impedia que se estabelecesse uma ordem gradual de humanos

entre os anjos e os animais. Então os homens da América só poderiam ser humanos,

mas se a humanidade descendia de Adão e Eva e se os habitantes do Novo Mundo

eram também descendentes de Adão e Eva, como teriam herdado o pecado original se

andavam nus sem vergonha alguma? A solução para este problema tão complicado foi

aceitar que a humanidade encontrada na América era pós-diluviana, descendentes de

Gog e Magog, filhos de Jafet, filho de Noé, cuja descendência teria dado origem aos

povos brancos hoje conhecidos como indo-europeus. Os descendentes de Gog e

Magog teriam sido levados pelo demônio para a América para evitar que se cumprisse

a profecia de que o Evangelho seria pregado a toda a humanidade. Porém, havia

também outra teoria vigente na época, que supunha que Caim ao ser expulso para

leste do Éden, teria dado origem a uma descendência que gerou os Citas e os

selvagens da América e cujo comportamento provocou o dilúvio.

Em ambas as teorias, pré e pós-diluviana, a chave para o entendimento eram

os capítulos iniciais da Bíblia. Os laços genealógicos detalhados ali lançariam luzes

sobre o povoamento do mundo, seu despovoamente e repovoamento. Era necessário,

então, encontrar um lugar geográfico, temporalmente dentro da origem bíblica, para

os índios do novo continente. O Padre Joseph Acosta (1979, p. 45-66) elaborou uma

reformulação do mito de origem da humanidade ao hipotetizar sobre a travessia do

estreito de Behring. Embora tenha sido desacreditada pelos navegadores da época que

sustentavam a inexistência desse trecho de terra para a passagem, foi a proposta de

Acosta que venceu como teoria explicativa para a existência de seres humanos na

América. Os descendentes de Gog e Magog haviam migrado para leste, atravessando

da Ásia para a América por uma faixa estreita de terra localizada no norte. Esta

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caminhada hipotética39 é ainda hoje válida como teoria explicativa sobre as migrações

humanas da Ásia para a América.

Segundo Klaas Woortmann (2004, p. 122-141), a escravidão dos índios se

sucedeu ao tema da origem da humanidade como grande debate da comunidade

intelectual europeia do século XVI, em especial, entre os escolásticos de Salamanca,

dos quais Vespúcio foi aluno. Para o autor, a decisão dos escolásticos legitimaria as

ações dos europeus na América, em especial, quanto à condução dos agentes

colonizadores espanhois e portugueses, afinal, a subordinação dos indígenas era

indiscutível. Todas as definições do que seria a essência do humano variou ao longo

do tempo, mas o que definitivamente caracterizava o humano era a razão, o livre-

arbítrio e a responsabilidade moral, capacidades nem sempre atribuídas aos índios. Os

cristãos, em geral, consideravam os índios humanos degenerados e aprisionados pelo

demônio, pois essa era a posição mais coerente com a história de Noé, cujos filhos se

dispersaram pela terra para fundar os povos conhecidos. Esta ideia servia tanto para a

lógica da grande cadeia do ser quanto para a demonologia.

Os bastiões desse debate foram Sepúlveda e Bartolomeo de las Casas, embora

nenhum dos dois fosse da Universidade de Salamanca, coube aos escolásticos a

palavra final sobre o assunto, principalmente, sobre qual seria a posição da Coroa

espanhola neste debate. Bartolomeo de las Casas (2001, p. 37), missionário em

colônias espanholas, denunciava a truculência com que os índios do novo mundo

eram tratados, as chacinas, as punições desnecessariamente violentas e demonstrava

os números das mortes como argumento a favor de sua tese de evangelizar e converter

pelo amor. Nas cartas dos missionários do século XVI, amor é uma palavra bastante

usada. O amor dos padres dedicado aos índios, e o amor dos índios dedicado aos

padres era sempre exaltado e comprovado pelo número de conversões e batismos e,

em especial, pelo abandono das práticas pagãs após ouvirem as repreensões dos

religiosos, certamente, todas profundamente amorosas. Em geral, o sentido que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!39 No sítio arqueológico de Unaí, Goiás, além de cerâmica na qual foram usados antiplásticos de cariapé, cinzas de um vegetal considerado de uso exclusivo da região amazônica, segundo André Prous (1992, p. 334), foi encontrado o corpo de uma criança parcialmente mumificado datado de 4.000 a.C. Após estudo laboratorial fecal, desenvolvida pela equipe de Ulisses Confalonieri (1981, p. 875), os coprólitos isolados indicaram a presença de Ancylostoma duodenale. Este parasita intestinal, originário do Velho Mundo, faz parte de seu ciclo de vida na terra úmida e quente, contaminando o ser humano pela pele, em geral, dos pés. A comprovação da existência deste parasita, em terras americanas antes da chegada dos europeus, contradiz a teoria corrente de que haveria sido trazido pelos europeus durante o período colonial. A outra possibilidade de chegada deste parasita às terras americanas seria por migrações via marítima de populações tropicais, e não migrações de populações vindas através das terras frias do estreito de Behring, pois o parasita não sobrevive na terra fria. Esta descoberta reforça a teoria de Paul Rivet sobre as origens múltiplas dos indígenas americanos, hoje abandonada.!

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acompanha o uso do termo amor é o medo, como é possível vislumbrar no trecho

extraído de uma carta do padre Sepp40 à Companhia.

Se alguém pergunta: de que maneira costumais castigar esses índios? Respondo brevemente: como um pai castiga aos filhos que ama, assim castigamos os que merecem! Naturalmente não é o padre que pega de açoite, mas o primeiro índio que estiver à mão – aqui não temo vara de bétula ou outras semelhantes – e coça o delinquente assim como na Europa um pai surra o filho ou o patrão seu aprendiz. Assim são castigados grandes e pequenos e mulheres. Castigar desta maneira paternal tem resultado extraordinário, também entre os bárbaros mais selvagens, de sorte que nos amam em verdade, como os filhos ao pai. Não haverá no mundo todo um povo que tanto nos ame. (HEMMING, 2007, p. 678, grifos meus)

O amor cristão se misturava ao temor, à violência e ao gosto popular bastante

disseminado pela Europa de tirar prazer do sofrimento alheio. Esta mistura de

prazeres e de amores embarcou junto aos povoadores, colonizadores, catequizadores

ou exploradores do Novo Mundo. O que fazia das terríveis imagens descritas por

Bartolomeo de las Casas um senso comum jornalesco de apelo pouco enternecido aos

índios. Afinal, o maravilhamento provocado pelo Novo Mundo nos caraíba, os

canibais europeus, nada mais era que o sangue indígena, o ouro vermelho destas

terras.

Se Bartolomeo de las Casas queria evangelizar os índios por meio do amor,

Sepúlveda considerava os índios seres satânicos e pregava uma guerra santa que

trouxesse seu extermínio. Afinal, uma guerra santa contra o diabo poderia trazer

benesses reais ou papais para os combatentes que vencessem a favor do rei e do papa.

Segundo Klaas Woortmann (2004, p. 122-141), o debate se dedicava

basicamente em estabelecer razões para a escravidão dos índios, em geral, os

meandros do pensamento escolástico se faziam resgatando as teorias de Aristóteles,

que presumia a aptidão natural de alguns povos à servidão. Este foi um dos

argumentos favoráveis à escravidão. Contra a escravidão, a opinião vencedora do

debate foi elaborada pelo teólogo Francisco de Vitória, a partir de uma exegese de

Santo Tomás de Aquino. Francisco de Vitória transportou os índios de seu estado de

natureza para a infância da humanidade, de acordo com a concepção grega das quatro

idades do homem, explicando que uma criança seria uma responsabilidade, um dever,

reforçando a perspectiva da ideia de translatio imperii, e justificando a cristianização !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!40 O padre Sepp viveu na missão de São Miguel, atualmente, província de Sacramento no Uruguai.

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dos índios, ou seja, sua domesticação (civilização) e sua educação, como meio para

elevá-los a um nível superior de humanidade. Para o escolástico, civilizar os índios

significava que eles deveriam ser levados a cidades (aldeamentos), o princípio maior

de civilidade, para serem cristianizados por meio da evangelização e aprenderem os

temas aos quais estavam dedicadas as sete artes liberais. Dado o caráter evangelizador

da missão, a tutela educacional dos índios passaria a ser dos missionários, o que

significava, grosso modo, conduzir os descimentos e estabelecer os aldeamentos. Rita

de Almeida (1997, p. 256) considerou que o problema de infantilizar o índio era que

cabia ao tutor decretar quando a maioridade fosse atingida. De acordo com Luis

Felipe Baêta Neves (1978, p. 113), os aldeamentos organizados pelos jesuítas eram

multilíngues e multiculturais. Eram basicamente a reunião, em um mesmo local, do

maior número possível de índios capturados nas incursões a suas aldeias (esses eram

os ditos descimentos). Para o autor, esse modelo de conversão forçada substituiu o

modelo tradicional de pregação no qual o padre visitava aldeia por aldeia a pé. Assim,

o sentido do deslocamento mudou, em vez de caminharem os jesuítas, moviam-se os

índios. E eles eram movidos para aldeias criadas por cristãos, localizadas em áreas

consideradas adequadas pelos cristãos, formando assim um mapa étnico-cristão e

social da colônia. Não eram mais os acampamentos nômades de antes, cada aldeia e

cada missão possuía seu lugar fixo, seu território estabelecido pelo colonizador

europeu em detrimento da vontade indígena. Para ele, as aldeias jesuíticas não podem

ser confundidas com as aldeias indígenas. Aquelas produzidas pelos jesuítas seriam

territorialmente precisas, mapeadas, geografizadas e localizadas como território

cristão e fazem contraste com o movimento disperso do nomadismo característico dos

indígenas. Às aldeias, foi concedido um caráter quase municipal, onde passaram a ser

gerenciados os conflitos entre colonos, escravos e jesuítas. Para Rita Almeida (1997,

p. 347), tendo em vista que os índios eram a mão de obra disponível para o trabalho

na colônia, sem custos, porque os negros tinham que ser comprados e trazidos em

navios, missionários e colonos entraram em conflito, questionando a proibição da

escravidão indígena.

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4. TAPUYA DE TEMBETÁ É TUPINAMBÁ? Que o exemplo dos tupinambás seja uma lição àqueles que se recusam a

enfrentar o realismo das coisas. (Métraux, 1979, p. 195)

O processo de construção do discurso sobre as línguas indígenas brasileiras

remonta aos primeiros contatos dos europeus com os índios, tendo seus registros mais

antigos nos diários de bordo dos navegadores que descreveram estas terras e essas

gentes. Vimos, no final do capítulo anterior, que houve um esforço institucional

europeu de territorialização do índio por meio de aldeamentos forçados, multilíngues

e multiculturais. A intenção de localizar, de geografizar a alteridade, servia aos

propósitos coloniais de controle da mão de obra indígena, da civilização por meio da

educação e da cristianização e também dava aos europeus uma referência localizadora

estática, ao contrário do movimento cíclico das aldeias indígenas que circulavam por

um território maior, não fixo. Assim, o índio poderia então ser localizado

geograficamente e suas línguas poderiam ser territoralizadas também.

Temos, então, a presença do índio de forma significativa na história da

colônia, portanto, se faz necessário saber quem ou o que eram os índios. Para Ressnier

(1980, p. 25), “índio” remete à história europeia anterior ao descobrimento e tem

implicações diacrônicas. O índio se projetou no tempo e ocupou a história das

populações que viviam nestas terras antes da chegada dos europeus. Tanto as

populações que existiam antes do contato quanto aquelas que viveram o contato

tornaram-se índios. A história da existência do índio é a história da colonização, sua

história só importa em relação à história europeia. Por isso, não se trata de um direito

à memória dos povos indígenas, nem tampouco do estabelecimento de uma identidade

cultural brasileira, mas sim de uma perspectiva histórica que negamos e da qual

fazemos parte.

Afonso Arinos, em seu livro O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as

origens brasileiras da teoria da bondade natural, argumentou que as convicções a

respeito do índio encontraram solo fértil nas ideias políticas renascentistas que

motivaram a Revolução Francesa, impulsionando o pensamento filosófico da época a

respeito da liberdade individual e do Estado laico, criando uma concepção de estado

natural idealizada, e revitalizando o pensamento político grego. O “índio” despertou

reflexões a respeito da liberdade e do Estado laico, justamente, como forma de

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corroborar as tomadas de decisões políticas que conduziram o movimento de ascensão

do individualismo, do capitalismo mercantil e da institucionalização do Estado como

sistema político. Se, por um lado o índio despertava questionamentos sociais e

políticos, de outro servia adequadamente aos propósitos da colonização. O “índio” foi,

desde o princípio, um assunto de Estado, um tema suscetível a políticas de controle e

legitimação, definindo a relação entre índios e europeus. Afinal, foi nomeando a todos

os habitantes do Novo Mundo “índios” que se tornou possível construir a dialética da

colonização.

Colombo usou o termo “gentios” para referir-se aos habitantes recém-

contatados no Caribe e não “índios”, o que nos leva a ponderar sobre o uso político de

“gentio” que era pejorativo desde o século XIII, usado como sinônimo de “pagão” em

oposição a “cristão”, o que justificaria uma cruzada evangelizadora. Para Bartolomeo

de las Casas, missionário divulgador do trabalho de Colombo, o uso do termo

“índios” fazia parte de sua disputa intelectual, na Europa, contra a escravidão dos

indígenas americanos. Eduardo Guimarães (2014, p. 60-61), ao fazer uma análise da

reescrituação e dos modos de determinação do termo “índio” na História da Província

Santa Cruz, de Pêro Gândavo, identificou que a designação desse termo seria

determinada por gentio e bárbaro. Para ele, a designação identificaria o existente no

sentido que estabeleceria uma relação desse nome com as coisas tomadas como

existentes, embora não seja referencial. Aos índios, eram atribuídos os nomes de

“índios da terra” ou “brasis”, como se referiram a eles Pêro Gândavo e Anchieta.

Nomear o índio não era apenas nomeá-lo “índio”, embora pareça responder a uma

necessidade de distinção étnica, os “nomes para os índios” historicamente atribuídos

pelos europeus aos “índios” com quem se relacionavam apenas mascaravam as

diferenças étnicas, obscurecendo os conflitos e criando tipos de índios: o índio

genérico, o índio aliado, o índio inimigo, os canibais, sempre de acordo com os

interesses europeus do momento.

Beatriz Perrone-Moisés inventariou a legislação indigenista de 1500 até 1800,

que foi publicada em História dos índios no Brasil, livro organizado por Manuela

Carneiro da Cunha (2006, p. 529-536). Fiz uma leitura da legislação para averiguar de

que modo o termo “índio” havia sido introduzido como forma de nomear os indígenas

e verifiquei que o termo usado para se referir à população local, nos alvarás e

regimentos de viagens, traslado de escravos, compra e doação de terras, conflitos

mercantis e guerra, era “gentios”. A aparição do termo “índios” se deu pela primeira

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vez em um documento oficial em 1558, na Carta Régia “dirigida à Câmara da Cidade

do Salvador sobre os índios convertidos serem bem tratados”, oscilando entre

“gentios” e “índios”, sem distinção de uso entre os termos até 1628. A partir de 1657

iniciou, na legislação portuguesa, uma distinção entre “índios da terra” e “gentio”,

sendo “gentio” para os casos de guerra declarada de portugueses contra o “gentio

bárbaro”, o “gentio do sertão”, o “gentio tapuya” que ameaçava suas fazendas e

aldeias. Os “índios” eram, geralmente, os habitantes dos aldeamentos feito pelos

missionários, o que significava que eram, para a perspectiva europeia, mais humanos

e mais civilizados que os “gentios”, pois viviam em uma aldeia onde poderiam ser

educados como cristãos. Os “índios” também eram os escravos ou os grupos aliados

aos portugueses na guerra contra o “gentio”. Em 1688, a Carta Régia para Antonio

d’Albuquerque Coelho de Carvalho tratava de uma restituição em detrimento das

perdas sofridas em um aldeamento jesuíta quando os “Índios matarão os missionários

da Companhia”. A partir de então “índios” e “gentios” partilharam o mesmo destino,

havendo guerra contra o “gentio de amanejus”, em 1690, e, em 1691, contra os

“índios de amanejus”; em 1697, guerra aos “índios Joanes”, de Marajó, e guerra aos

“índios do Itapicuru”, no Maranhão. Em 1700, foi nomeado um juiz para os “índios e

tapuyas”, exaltando a diferença política existente entre esses dois termos. Em 1728,

uma Carta Régia pedia defesa à aldeia dos “índios da nação Trememe”, demonstrando

ainda alguma oscilação entre o uso do termo “índio” para aliados da Coroa. Em 1730,

outra Carta Régia declarava guerra aos “índios que infestam os caminhos”, assumindo

a oposição entre índios e colonos portugueses/brasileiros. Até 1800, a acepção de

“índio” como inimigo da Coroa e dos colonos portugueses e brasileiros se estabeleceu

definitivamente na documentação oficial.

A identidade de massa atribuída pelo nome genérico de índio apaga a história

dos sentidos existentes nas auto-atribuições de nome de um povo. Mansur Guérios

(1948, p. 9), retomando Ehrenreich, discutiu que os nomes étnicos seriam designações

arbitrárias que considerariam certas particularidades externas dos indígenas como

cortes de cabelos ou adornos, mas também poderiam ser referências a seus chefes,

assim os potiguares seriam os índios que acompanhariam o chefe chamado Potiguar.

De qualquer forma, se desconhece a história e o significado dos nomes étnicos que

anteceda o contato com o europeu. Atualmente, considera-se que os etnônimos

signifiquem “gente”, como nome auto-atribuído de grupos indígenas, o que é também

uma maneira de apagar a história dos significados indígenas. O que significaria, para

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um indígena, apresentar-se como “gente”? Significaria necessariamente designar-se

humano ou seria uma formalidade discursiva de etiqueta social?

4.1 Hic et ubique

Contou Pêro Gândavo (1576, p. 13) que, um ano após a viagem de Cabral,

Dom Manuel I enviou seis naus para maior reconhecimento da nova terra,

capitaneadas por Gonçalo Coelho que assentou cinco padrões ao longo da costa. Após

o naufrágio de duas naus, ele deixou uma colônia formada pelos náufragos e por dois

padres franciscanos41 em Porto Seguro. Além dos náufragos deixados na Bahia, dos

quais não se contou a quantidade, some-se os dois degredados deixados por Cabral e

outros dois grumetes que fugiram à noite de uma das naus da armada, em um bote,

como relatou Pero Vaz de Caminha (1998, p. 54) e poderemos contar um número

razoável de portugueses tentando conviver com os índios e aprender seu idioma.

Muito se pode especular sobre quais poderiam ter sido as impressões que degredados

e marinheiros tiveram e qual nível de discernimento possuíam para julgar suas

impressões, mas não há registros destas experiências. Vespúcio (1984, p. 57) em seu

relato da terceira viagem, de 1502, quando desceu para o sul navegando ao longo da

costa da Terra de Santa Cruz, disse que levaria três homens para Portugal para que

ensinassem aos europeus a língua que falavam. Não há notícias da sobrevivência dos

homens, nem se chegaram a ensinar a língua que falavam42.

John Hemming (2007, p. 46) relatou que os normandos adotaram um modelo

de contato diferente dos portugueses, em vez de construírem armazéns e deixarem

marinheiros cuidando dos negócios com os índios, incentivavam que seus negociantes

vivessem junto aos índios, a seu modo, casando-se com mulheres índias, aprendendo !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!41 Os franciscanos foram os primeiros missionários a evangelizar os índios no Brasil, pregavam em português e sofriam inúmeras zombarias dos portugueses com os quais conviviam visto que os índios não compreendiam uma palavra do que os missionários diziam. (ANCHIETA, 1964, p. 26) 42 Há relatos de três índios da região de Porto Seguro, Bahia, levados por Jorge Lopes Bixorda para uma visita ao rei Dom Manuel I, em 1513, como conta Damião de Góis (1911, p. 11) em sua Chronica de El Rey D. Manuel. Paramentados com plumas, mantiveram conversação com o rei utilizando um intérprete português versado na língua. Estas e outras anedotas que constam do Novus Mundus foram trazidas à tona pelo Padre Manuel Aires do Casal (1817, p. 32), em sua Corografia Brasílica, questionando profundamente a veracidade das cartas de Vespúcio, tendo em vista que o Novus Mundus foi uma compilação dessas cartas. Para Aires do Casal, a única carta escrita e a única viagem realizada por Vespúcio foi a de 1504, custeada por um comerciante italiano, Piero Soderini, a quem escreveu uma carta relatando-a, em 4 de setembro de 1504. Luiz Renato Martins (1984, p. 19) admitiu que, em parte, a semelhança das narrativas se deve ao fato de que Vespúcio estava embarcado na armada de Colombo. Segundo Nelson Papavero e Dante Teixeira (2002, p. 120), já não se cogita mais a respeito da autenticidade de Novus Mundus, entende-se e aceita-se que foi uma compilação de narrativas sobre a descoberta do Novo Mundo. O editor Montalbondo, em 1503, foi o primeiro a compilar as narrativas e traduzi-las para o latim, que era a língua de divulgação do conhecimento naquela época, e na qual foi publicada a primeira versão de Novus Mundus, amplamente divulgada na Europa do século XVI e posteriormente também. O livro recebeu diversas versões, tendo sido traduzido para o italiano, o alemão e o holandês. Foi impresso em sucessivas edições, enfim, um sucesso editorial.

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a língua e fortalecendo relações comerciais e alianças militares. Esses homens eram

conhecidos como truchements e foi por meio deles, segundo Eni Orlandi (2008, p.

122), que a maioria das descrições linguísticas e das informações sobre os hábitos

indígenas vieram à tona. O papel dos truchements era o de intérpretes ou línguas e o

fato de serem poucos explicaria a repetição tão coesa, quase idêntica, das histórias e a

descrição de rituais que supostamente demorariam anos para serem realizados. Os

truchements eram a fonte. A mesma fonte que passou as informações a Montaigne

para que ele pudesse escrever Les Cannibales. Eram os donos de um conhecimento

que informava aos europeus como agir com os habitantes destas terras, que informava

também os hábitos nos quais acreditar sobre os habitantes destas terras. As histórias

de vida dos truchements, contadas por Lussagnet e retomadas por Eni Orlandi, não

diferiam muito das narrativas dos primeiros navegadores. Eram comerciantes

normandos que estabeleciam relacionamentos estreitos com os índios, casavam-se

com suas filhas e, por valor e reconhecimento, tornavam-se chefes indígenas. É

sempre interessante perceber que os avanços nos estudos etnográficos não renovaram

nunca essa perspectiva tão errônea a respeito das sucessões políticas nos grupos

indígenas, que são influenciadas por implicações genealógicas e linhagens

sucessórias. Sob a perspectiva do descobrimento, qualquer forasteiro recém-chegado

poderia tornar-se chefe, um grande engano.

Foi na carta de 1504 escrita pelo Capitão Gonneville, um comerciante

normando que atracou em um entreposto para reabastecer-se de água, lenha e

escravos, que apareceram as primeiras palavras em língua de índios transcritas ou

pelo menos a tentativa de trancrevê-las. Contou Gonneville que, em retribuição aos

favores e à cortesia do chefe que o havia recebido, levara em seu navio o filho do

chefe indígena e um acompanhante mais velho para que aprendessem a usar armas de

fogo com os europeus. Gonneville se esmerou em transcrever os nomes: Arosca

(chefe), Essemericq (filho do chefe) e Namoa (pagem). Nelson Papavero e Dante

Teixeira (2002, p. 152) buscaram uma tradução para esses nomes e sugeriram para

Arosca = arô içá ‘chefe de guerra’; para Essemericq = içá mirim ‘chefe pequeno’; e

para Namoa = os que vêm de longe.

Em 1511, o Regimento da nau Bretoa 43 , descreveu detalhadamente as

mercadorias e os custos da tripulação embarcada para uma viagem comercial à terra

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!43 Os primeiros documentos sobre a história natural do Brasil. Viagens de Pinzón, Cabral, Vespucci, Albuquerque, do Capitão Gonneville e da Nau Bretoa, de Nelson Papavero e Dante Martins Teixeira, 2002.

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do Brasil. Entre as informações apresentadas está o nome de Pedro Anes, embarcado

como língua44. Este sobrenome passou a me interessar quando encontrei o mesmo

Pedro Anes como piloto e língua do bergantim de Pêro de Souza e novamente em

uma carta de Nóbrega, de 1549, que relatava seu encontro com Domingos Anes

‘Pecorella’, que vivia havia vinte anos na vila de Salvador45 e que era língua Tupi.

Segundo Serafim Leite (1938, p. 121), ele serviu como intérprete ao jesuíta em seus

trabalhos de catequização. A família Anes, em Portugual, era nobiliárquica,

confundindo suas origens com a do próprio reino. Participante do conselho da Ordem

de Cristo, tinha grande influência e muitas propriedades rurais, sendo estreitamente

relacionada à casa de Martim Afonso de Souza Chichorro, como descrito por

Alexandra Pelúcia (2007, p. 117). De posse dessas informações, eu poderia dizer que

tais relações de parentesco sugerem que o papel dos línguas estava bem ancorado no

projeto de Estado vislumbrado pela elite portuguesa, não sendo destinado a

degredados ou náufragos recolhidos acidentalmente ao longo das viagens

exploratórias. Os línguas desempenhavam um papel importante, não apenas de

comunicação, mas de tradução intercultural, agindo como diplomatas ao identificar e

equalizar hierarquias, por exemplo, guaraní = guerreiro; içá = chefe, transferindo as

categorias portuguesas medievais46 para a realidade brasílica. Infelizmente não há

muita informação disponível sobre os línguas, suas origens, seu treinamento e as

atividades que desempenhavam, sendo essa pesquisa documental um interessante

desdobramento futuro desta tese.

Tal estreiteza de contato e vocação descritiva apresentadas pelo Capitão

Gonneville só viriam a aparecer novamente em 1534, no diário das viagens de Martim

Afonso, escrito por seu irmão Pêro Lopes de Souza. Eduardo Guimarães (2014, p. 56-

58), ao analisar o diário da armada, destacou dois eventos enunciativos que ocorreram

próximos a Pernambuco, no Cabo de Santo Agostinho. No diário (1839 [1531], p. 13),

o relato, em 3 de fevereiro de 1531, dizia: “Este dia vieram de terra, a nado, às naos

índios a perguntar-nos se queriamos brasil”. E no dia seguinte:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!44 Língua era o termo usado pelos portugueses para designar aqueles portugueses que falavam a língua brasílica e posteriormente aos brasis que falavam português. 45 Pêro de Souza (1531, p. 17) relatou em seu diário, durante a passagem pela Bahia de todos os Santos, o encontro com este mesmo língua, porém não lhe deu o nome. “Nesta bahia achamos hum homem português, que havia vinte e dous anos que estava nesta terra; e deu rezam larga do que nella havia.” 46 Luis Weckman (1993), em seu livro La herencia medieval del Brasil, se propõe a corrigir a ideia de que o Brasil surgiu em plena Era Moderna e discorreu sobre o transplante do feudalismo medieval para o Brasil nas primeiras décadas da colônia.

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Sábado pela menhãa quatro de febreiro mandou o Campitam J. a Heitor de Sousa, Capitam da nao Sam Miguel que fosse a terra com o batel e com mercadorias, ver se poderia trazer algua agua, de que tinhamos muita necessidade: e se tornou sem trazer agua, por lha nam querer dar a gente da terra.

Eduardo Guimarães ressaltou que, não havia “referência às línguas envolvidas

nas enunciações entre as partes”, mesmo que estivessem implicadas as participações

das línguas portuguesa e dos índios, além das línguas de outros navegadores que

transitavam pela costa brasileira naquele período, os castelhanos e os normandos. No

entanto, o entendimento para a negociação de bens, pau brasil e água, se deu entre os

falantes com ou sem o uso de intérpretes, pois houve a negativa na troca por água,

embora não saibamos a resposta sobre a oferta de pau brasil. A negação, no relato, da

menção às línguas teria como propósito o silenciamento de outras línguas que não

fossem o português, legitimando-a como a língua da terra de Santa Cruz. Eduardo

Guimarães propôs uma leitura enunciativa em que haveria um embate entre as

histórias enunciativas de Portugal e dos índios que aqui viviam. Ao nomear, ou

renomear, a terra, a história enunciativa dos índios fora apagada, negada,

transportando para a colônia a história de Portugal.

Saindo de Pernambuco, a armada dirigiu-se à Bahia de Todos os Santos, onde

foi recebida com festa pelo feitor na qual os principais da terra foram “fazer

obediência” a Martim Afonso. Pêro de Souza (1531, p. 17-18) descreveu seu encontro

com um língua que vivia por lá “havia vinte e dous anos”. Foi esse língua quem

relatou os acontecimentos descritos por Pêro de Souza um pouco mais adiante no

diário, como os bailes indígenas, a guerra entre os grupos existentes nas margens

opostas do rio, e a morte por canibalismo dos prisioneiros feitos nessas guerras. Pêro

de Souza destacou a beleza das mulheres e a robustez dos homens, ressaltando que

eram de pele clara. Assim também era a gente que vivia no Rio de Janeiro, de pele

clara, “senam quanto he mais gentil gente”, observou Pêro de Souza (1531, p. 26). A

gentileza em grande medida se expressava pelas notícias do ouro e da prata que

existiriam no rio Paraguay trazidas por um “grande rei”, senhor de todas aquelas

terras. Ao passarem pela ilha da Cananea, próxima a São Vicente, recolheram o

Bacharel da Cananea e Francisco de Chaves, degredados havia 30 anos e que eram

línguas da terra. Neste ponto, apresentamos os principais intérpretes ou línguas

existentes no Brasil no século XVI: Pecorella, Francisco de Chaves, o Bacharel da

Cananea e o grande chefe indígena. Eles não foram apenas intérpretes, serviram

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também como personagens da geografia nacional, fundando-a, como veremos mais a

frente. Até aqui, índios e portugueses apareceram como mutuamente inteligíveis,

fazendo acordos, festas, negócios.

Depois da parada em São Vicente, a viagem tornou-se exploratória, Pêro de

Souza seguiu sem Martim Afonso e navegou para o sul. A última latitude dada foi a

de 33 graus, próximo a atual cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a que

Pêro de Souza nomeou terra dos Carandins. Pêro de Souza descreveu a restinga da

lagoa dos Patos, destacando a quantidade de aves que havia ali, e descreveu sua

chegada à foz de um grande rio que parecia mar, pois não se podia avistar as margens.

Dado o clima descrito: frio, chuvoso e nevoento, parecia que haviam chegado ao rio

da Prata, pelo qual se enveredaram buscando acesso ao rio Paraguay, seguindo as

informações de Francisco de Chaves. Navegando pelos braços largos do rio, Pêro de

Souza (1531, p. 41; 54-55) encontrou gente. Não eram como a do Brasil, usavam

almadías com remos enfeitados de penas, tinham cabelos longos e os narizes furados

onde colocavam adornos de cobre, cobriam-se de peles e falavam como os mouros,

com o papo.

Considerou-os muito tristes por chorarem47 muito e por não demonstrarem

interesse pelas mercadorias europeias, impressionou-o o fato de cortarem as falanges

dos dedos quando morria um parente e de as mulheres parirem com facilidade.

Durante sua passagem pela terra dos Carandins, Pêro de Souza (1531, p. 48, grifo

meu) relatou que avistaram um índio em terra que “falou-nos duas ou três palavras

guaranís, e entenderam-as os línguas (…), tornaram-lhe a falar na mesma língua, nam

entendeu”. Pouco depois encontrou outros três índios e uma índia vestidos com peles

de onça com os quais trocou conversação. Os línguas entenderam que o jovem que

acompanhava os guaraní era de outro povo chamado chaná e que os guaraní iriam

buscar seus parentes e voltariam em seis dias. Nunca voltaram. Se era exatamente isso

que disseram os guaraní não há como saber, mas há de se imaginar que os línguas não

eram tão proficientes nas línguas quanto propagandeavam e de certo entenderam o

que quiseram da conversação. O autor anotou que o nome de um deles era Ynhandú.

Este possivelmente não era o nome daquele homem guaraní, segundo Silveira Bueno

(1998, p. 242) nhandú significa ‘ema’, embora Francisco Adolfo de Varnhagen (1839,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!47 Considerá-los tristes ou melancólicos é um efeito da crença de que em clima quente haveria maior produção de bile negra, cujo excesso se manifestaria no corpo como epilepsia e na inteligência como melancolia ou tristeza (STAROBINSKI, 2016, p. 22). O choro intenso, mais tarde, foi descrito como a “saudação lacrimosa” tão característica dos Tupinambás.

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p. 102) admita que seja possível, pois “os americanos tomam para si os nomes das

feras e aves”. Mas, o mais relevante, é que pela primeira vez apareceu uma forma de

etnônimo para a população que vivia naquela área: guaraní, que embora não fosse o

etnônimo daquele povo permanence até hoje como identificador e como classificador

etnográfico e linguístico.

As referências ao diário de Colombo foram bastante claras, em primeiro lugar,

as embarcações dos índios eram almadías, como as dos caribes de Colombo. Depois,

a comparação direta dos índios aos mouros, ao tratar de sua fala, “falam com o papo,

como os mouros”. Esses índios eram os guaraní, possivelmente apenas guanahaní,

como havia entendido Colombo em sua primeira viagem. Juan Ignacio de Armas

(1882, p. 43) já havia especulado sobre as vozes árabes presentes nas palavras sobre o

Novo Mundo. Para ele, tanto guaraní quanto guanahaní eram vozes árabes. Portanto,

há que se considerar a circulação de notícias e histórias sobre os índios americanos

por toda a Europa, assim como levar em consideração que Pêro de Souza era um

homem letrado, muito bem instruído nos conhecimentos de sua época e

profundamente comprometido com o projeto de Estado português, nada, em seu

diário, é fruto do acaso. As notícias das navegações ainda eram referência em meados

do século XIX, afinal José Bonifácio de Andrada e Silva (2000, p. 67), em seu

Projetos para o Brasil, se referiu aos “vermelhos mexicanos” como guachinangos,

uma referência aos guanchos das ilhas Canárias.

Haveria, então, uma confluência de significados. Na terra dos carandins,

viviam os guaraní, que foram nomeados carijó por Francisco de Chaves quando

encontrou Pêro de Souza e Martim Afonso na ilha da Cananea. Francisco de Chaves,

naquele momento, dava informações sobre o rio Paraguay e se oferecia para trazer

quinhentos carijó caso fosse o interesse da armada. Giovanni Caboto, navegador

italiano, já navegava o rio Uruguay, desde 1525, criando conflitos internacionais tanto

quanto os normandos na baía da Guanabara48. Existiam muitas notícias de suas

viagens levando quinhentos escravos carijó em cada ida para a Europa. Os carijó

eram conhecidos também como os índios de Caboto. A partir da visita e da posse da

terra por Martim Afonso, esses índios, ditos carijós ou guaranís, que viviam na terra

dos carandins, passaram a ser os índios de Martim Afonso, mais tarde, projetados

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!48 Quanto às datas da navegação pelo rio Uruguay, ver: mapa do Estado do Brasil, de 1549, Anexo I. Quanto aos problemas internacionais causados por Caboto, ver: HEMMING, John. Ouro vermelho. A conquista dos índios brasileiros. São Paulo: Edusp, 2007.

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sobre João Ramalho, figura emblemática da construção do Brasil. Assim, foi

destinado aos guaranís uma existência, um lugar geográfico e uma história. Se havia

uma coesão indígena de Pernambuco ao Rio de Janeiro: os Tupinambá; havia outra de

São Vicente ao rio da Prata: os Guaraní, documentados por Martim Afonso.

4.2 Narrativas da construção do Brasil, a miscigenação

Nas primeiras décadas após a descoberta, como contou Aires do Casal (1817,

p. 33), portugueses, espanhois, normandos e holandeses visitavam a costa do Brasil,

estabelecendo contatos comerciais e instalando pequenos entrepostos de

abastecimento. Deixavam marinheiros cuidando de armazéns ou mesmo homens com

instruções específicas de se estabelecerem entre os índios. No entanto, a

implementação do projeto colonizador português era necessária e era preciso

transplantar o Estado, por isso, Martim Afonso foi enviado pelo rei Dom João III ao

Brasil, para dar início ao sistema de capitanias, implantar a coleta de impostos e a

regulação das sesmarias destinadas aos colonos portugueses. Segundo Alexandra

Pelúcia (2007, p. 172-246), além desse fundamental papel, Martim Afonso articulou

também a fundação da Companhia de Jesus, financiada por Dom João III, custeando

com seus próprios recursos a instalação e a manutenção dos jesuítas na Índia. No

Brasil, Tomé de Souza, primeiro governador-geral, meio-irmão de Martim Afonso, foi

o principal responsável pelo financiamento dos jesuítas que chegaram junto com ele à

vila do Salvador em 1549. A implantação da ordem dos jesuítas nos territórios recém-

ocupados pelos portugueses não era de todo desprovida de intenção, havia na mística

da revelação de Ignacio de Loyola um apelo ao aprendizado das línguas do mundo

com ênfase gloriosa na missão do Brasil, como relatado por Serafim Leite (1953, p.

5), aliando assim sua missão de fé ao projeto de Estado delineado pela elite

portuguesa. Para a Companhia de Jesus, a missão do Brasil era a mais gloriosa, rendia

benesses do Papa e influência internacional, no entanto, para a elite nobiliárquica

portuguesa não era nem a mais gloriosa nem a mais rentável comercialmente. Havia

um grande desinteresse pelo Brasil, pois as especiarias extraídas daqui não valiam

tanto quanto as vindas da Ásia, assim como não havia benesses reais oriundas dos

embates bélicos contra os nativos. A este propósito, era um desprestígio, para a mente

cavaleiresca medieval ainda operante na época, a guerra contra os selvagens, portanto,

para Alexandra Pelúcia (2007, p. 246), o campo de batalha glorioso para a elite

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portuguesa era, ainda, o Marrocos, revelando um acentuado desequilíbrio de causa

entre esses dois grupos que se uniram para implantar o modelo de Estado português

no Brasil. Além do estabelecimento de alianças políticas e militares com os brasis, aos

jesuítas coube garantir que no Brasil haveria uma população de colonos portugueses

digna de ser súdita do rei de Portugal, com prole legitimada por meio do casamento

religioso, assegurando os direitos de transmissão patrimonial, e replicando o modelo

nobiliárquico de constituição de linhagens. Assim, se fazia presente no Brasil de Dom

João III uma elite nobiliárquica portuguesa alimentada pelo sangue da linhagem da

Casa Real, cujos direitos patrimoniais hereditários expandiam os bens e o poder

político territorial da Coroa portuguesa para além-mar. Aos jesuítas, coube ainda

educar e catequizar os índios, e organizar o trabalho indígena dos quais eram, segundo

John Hemming (2007, p. 678), quase exclusivamente senhores.

O contexto medieval ainda presente durante o período da colônia, me permite

perceber que, assim como a fundação do reino unificado de Portugal se deu

concomitante ao surgimento de ordens honoríficas, como a Ordem de Cristo, que

tinham fins militares mais do que religiosos, envolvidas com as casas nobiliárquicas e

a Casa Real com as quais estavam ligadas por laços de parentesco. No Brasil, a elite

brasileira, por meio da elite portuguesa da qual descendia, possuía estreitos laços de

parentesco com a Casa Real portuguesa que fundou a Companhia de Jesus, ordem

monástico-militar, com fins mais religiosos que militares, para desempenhar fins

políticos e, em grande medida, para servir de intérprete nas negociações comerciais e

de guerra e paz entre portugueses e índios no Brasil e na Índia. Segundo Luis

Weckman (1993, p. 18), a Companhia de Jesus foi assim designada por Ignacio de

Loyola para indicar seu verdadeiro líder, Jesus, e demonstrar o espírito de soldado de

seus missionários. Foi aprovada pelo Papa Paulo III, na Bula Regimini militantes

ecclesia, de 27 de setembro de 1540. O nome viria de Societas Jesu, ordem militar

aprovada pelo Papa Pio II, em 1450, cujo objetivo era lutar contra os turcos e divulgar

a fé cristã. Se, em 1450, era uma ordem militar para lutar contra os turcos, em 1540,

era uma ordem monástico-militar para civilizar os índios, educando-os, proposta bem

adequada às ideias de evolução espiritual pela educação elaboradas pelos escolásticos

durante os anos de debate sobre a escravidão indígena.

Tanto as expectativas sociais, transmissão de patrimônio e de linhagens,

quanto as expectativas em relação aos índios eram ainda fruto do pensamento

medieval de luta contra os muçulmanos. Esses dois personagens Martim Afonso e a

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Companhia de Jesus, na figura de seus missionários, foram os pilares na construção

das narrativas sobre a formação histórica da matriz brasileira e de seus

prolongamentos, entre os quais, o que nos interessa aqui, a distinção das línguas

indígenas e a determinação de seus grupos em famílias linguísticas localizadas

geograficamente no território brasileiro. As narrativas que dão forma ao surgimento

das elites brasileiras associaram-se estreitamente às narrativas históricas de formação

da matriz cultural brasileira, em outras palavras, da teoria da miscigenação, replicando

ao longo do território brasileiro a mesma imagem, a mesma história, em praias

diferentes. A teoria da miscigenação, como proposta por Gilberto Freyre e Sérgio

Buarque de Holanda, idealizou que o processo gerado pelo convívio estreito entre as

diferentes raças: europeus, negros e índios; tornou-os similares e solidários no

cotidiano, incorporando hábitos de um e de outro de acordo com a necessidade. Para

Alfredo Bosi (1992, p. 21), esta interpretação psicocultural do passado brasileiro

deixou em segundo plano a violência que marcou o período da colonização, seja nos

engenhos, nas missões ou nas bandeiras. É exatamente desta história do contato e da

colonização que quero tratar, mais precisamente, das histórias nas quais os línguas

intervieram e agiram para a construção da narrativa de criação da nação.

A primeira delas é a história de João Ramalho: primeiro povoador de São

Vicente. Conta a lenda que João Ramalho era um náufrago que se fez muito amigo

dos índios Tupinambá que vivam na aldeia Piratininga. Graças ao respeito adquirido

pela amizade, tornou-se genro de Tibiriçá, cacique poderoso que se tornou aliado de

Portugal. Tibiriçá foi batizado e tornou-se cristão sob o nome de seu padrinho de

batismo, assim passou a ser chamado de Martim Afonso Tibiriçá. Seu papel na

expugnação da Fortaleza de Villegaingon no Rio de Janeiro, foi ressaltado por Afonso

de Taunay (1953, p. 60, grifo meu) que descreveu as “cinco centúrias de sagitários”

levadas por ele até a barra da Bertioga, após receber o chamado desesperado de um

padre jesuíta. O socorro prestado aos portugueses pelo chefe indígena ainda era

recontado em meados do século XIX por José Bonifácio (2000, p. 49). A história de

João Ramalho tem sido a mais emblemática, pois além de associar diretamente João

Ramalho a Martim Afonso, enalteceu a relação entre Martim Afonso e os jesuítas,

afinal foi um missionário quem correu a pedir ajuda a João Ramalho e a seu sogro

para expulsar os franceses. A história de Afonso de Taunay resgatou as narrativas

clássicas, até centauros (sagitários) estiveram envolvidos na batalha. Quem seriam os

sagitários? Índios a cavalo? Provavelmente não, mas inegavelmente essa imagem

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remete o índio ao estado de homem selvagem, nivelando-o aos seres plinianos. Outro

fator interessante é a quantidade de centauros: cinco centúrias. As centúrias eram

unidades da infantaria romana, lideradas por um centurião, que poderiam conter mais

ou menos cem soldados cada uma. Assim, Afonso de Taunay comparou ao exército

romano a ajuda militar que Tibiriçá teria prestado aos portugueses. Quinhentos carijó

foi a quantidade ofertada por Francisco de Chaves a Pêro de Souza e quinhentos era a

quantidade de índios levados por Caboto em cada viagem. Deste número só posso

entender que quinhentos passou a ser uma medida, por meio da qual se agrupavam

índios, um lote de índios, por assim dizer, deveria conter quinhentos indivíduos.

O próprio Villegaingon não escapou de semelhante destino. Chermont de

Britto contou, na biografia resgata por Vasco Mariz e Lucien Provençal (2015, p. 63),

que ele cumpriu seu voto de castidade feito à Ordem de Malta, mesmo tendo sido

assediado pela formosa Jacy, filha do cacique Tupinambá da Guanabara (seria

Coniambebe?), que queria casar-se com ele. É possível que o fato de não ter-se casado

com a filha do cacique selou seu destino e Villegaingon foi derrotado e expulso da

Guanabara.

Caramuru e Paraguaçú foram outro casal estratégico, desta vez, para o

surgimento da elite baiana. Ainda hoje, na página virtual da família D’Ávila49, é

possível encontrar a árvore genealógica que liga os D’Ávila à Caramuru e Paraguaçú,

por meio de um casamento entre sua filha e um dos netos do casal Caramuru. A

veracidade desses relacionamentos é contestável, visto que não há registros nas

crônicas da época nem documentos oficiais que tratem desses casamentos ou dessas

pessoas. Conta a lenda que Caramuru era um náufrago português muito temido pelos

índios, pois possuía uma espingarda. O estampido da arma quando disparada originou

seu nome que significaria estrondo ou trovão em Tupinambá. Caramuru casou-se com

a filha do cacique Tupinambá Arcoverde. Ela tornou-se Catarina do Brasil, batizada e

coroada na Europa. Ele realizou inúmeras façanhas na guerra contra os holandeses de

Pernambuco, contribuindo para sua expulsão.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!49 “A Casa da Torre de Garcia d'Ávila - 10 Gerações - (9 Morgados). I - Garcia d'Ávila, fundador da Casa da Torre, chegado ao Brasil na comitiva do 1o Governador-Geral Tomé de Sousa, em 1549, foi nomeado "feitor e almoxarife da Cidade do Salvador e da Alfândega". Casou-se com Mécia Rodrigues, não tendo sucessão. Com a índia tupi Francisca Rodrigues, teve: II – Isabel de Avila, casada em primeiras núpcias com o fidalgo genovês Gil Vicente de Vasconcelos. Falecido o marido, Isabel casou-se com Diogo Dias, filho de Vicente Dias de Beja, Fidalgo da Casa do Infante D. Luiz, natural do Alentejo - Portugal e de sua mulher Genebra Álvares, filha de Diogo e Catarina Álvares Caramuru.” Disponível em: http://www.casadatorre.org.br/historia. Acesso em: 16 ago 2016. 16:05

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Nas três narrativas, João Ramalho, Villegaingon e Caramuru, o termo usado

para designar os chefes indígenas foi cacique, trazendo para o litoral brasileiro uma

particularidade do caribe ou, então, a língua e o sistema político caribenho chegariam

até São Vicente. A resposta mais provável para essa dúvida é que o termo cacique

viajou em vários navios, atracou em muitos portos e se tornou um vernáculo corrente

para designar chefes indígenas. Bom, se servia para designar “chefes indígenas” então

temos que supor que eles existiam como tais. Afirmação bastante difícil de ser feita

tendo em mente a incapacidade europeia de entender a dinâmica das assembleias

indígenas, como assegurado por Bartolomeo de las Casas. No mais, europeus

transpunham suas categorias medievais para a realidade indígena com muita

frequência. O uso das narrativas cavaleirescas e a estratégia de “casar” um português

com a filha de um grande chefe indígena, fazendo com que se tornasse herdeiro do

poderio militar e político deste chefe recriava o contexto europeu medieval dos

pequenos reinos em guerra, uns contra os outros, estabelecendo alianças matrimoniais

e políticas. O tema de grupos rivais em guerra acompanha as narrativas sobre os

povos indígenas desde Colombo. No Brasil, principalmente, assumiu o caráter

constitutivo de um povo. Os Tupinambá guerreavam entre si e, por honra e vingança,

devoravam-se uns aos outros. Há também, na elaboração das narrativas, uma

estratégia geográfica. As narrativas sobre os náufragos delimitaram o território

ocupado por Portugal e ressignificaram as relações com os índios que viviam nessas

regiões. Os náufragos sobreviveram em São Vicente, capitania de Martim Afonso; e

na Bahia de Todos os Santos, onde seu meio-irmão Tomás de Souza, estabeleceu-se

como governador-geral na vila do Salvador. A sobrevivência desses náufragos traçou

uma imprescindível relação entre eles e Martim Afonso de Souza, afinal, foram eles

os grandes financiadores da obra jesuítica no mundo e os jesuítas foram os grandes

fomentadores e divulgadores dessas narrativas pelo mundo, a propósito do Frei Santa

Rita Durão, agostiniano defensor da Companhia durante a perseguição aos jesuítas no

final do século XVIII, que imortalizou a história de Caramuru em poema romanceado.

A elaboração da estratégia geográfica da sobrevivêcia dos náufragos é quase

simultânea ao surgimento de uma geografia nacional, de uma história contada a partir

da geografia e de uma linguística definida sob os limites geográficos estabelecidos,

afinal localizar é tornar verdadeiro, geografizar e elaborar mapas serve para dominar,

e dominar é classificar e circunscrever espacialmente. A construção da geografia

nacional surgiu, segundo Yuri Rocha et alli (2007, p. 751-765), com os primeiros

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mapas e relatos sobre a costa brasileira, onde figuravam papagaios, pau-brasil e índios

enfeitados com penas, sem nenhuma referência a canibais. As anotações sobre as rotas

de navegação de acordo com ventos e constelações, e a descrição dos rios e do relevo

que permitiram escolher, conforme a melhor condição (profundidade, agitação do

mar, largura da entrada), o lugar mais adequado para aportar e desembarcar no Novo

Mundo. Assim, inaugurou-se a cosmologia brasileira. Segundo Carl Saurer (1925, p.

299), a maior manifestação do conhecimento geográfico estaria expresso nos mapas

que operariam como símbolos imemoriais no sentido que mantêm vívidas as sagas e

os mitos ancestrais que trataram da competição do homem com a natureza e

marcaram a paisagem com suas ações e histórias. Para Carl Saurer (1925, p. 303), a

paisagem não seria exclusivamente o resultado de um processo de modelagem

causado por forças geofísicas, a paisagem poderia ser definida também como uma

área sob influência de ambas as pressões: físicas e culturais. A floresta seria um lugar

onde cresceria vegetação abundante, mas, em termos de área física, seria a soma dos

recursos que o homem disporia naquela área. O resultado da interferência do homem

sobre aquele lugar seria a expressão cultural. Assim, não existiria diferença entre as

duas formas de paisagem. Quanto à geografia inaugural dos novos mundos, Antonello

Gerbi (1996, p. 46) fez uma interessante consideração.

Nem ao menos a história imprimiu-lhe um caráter bem definido: são geógrafos que narram as histórias dos citas, dos indianos, dos etíopes e dos americanos, ao passo que os historiadores de outros países vêem-se forçados a conhecer e descrever em primeiro lugar sua geografia. Esta é talvez a primeira formulação da frase que terá tanto eco, sobre a América, como sendo “geografia” e não “história”, futuro e não passado.

Indiscutivelmente, o papel dos exploradores nas sociedades de geografia foi o

destacado Honra ao Mérito, perseverando no interesse dos estudos de corologia em

vez do conhecimento da paisagem e da terra. Aqui, nos deparamos com o fato de que

a geografia descrita pelos cronistas e pelos cosmógrafos do século XVI dizia respeito

exclusivamente à percepção dos europeus sobre a terra nova, da qual selecionavam

somente as informações que pareciam relevantes a seus olhos. Não há relatos sobre as

histórias dos índios a respeito de seus territórios ou suas histórias sobre as rochas da

baía da Guanabara, por exemplo, mas há a presença trágica das narrativas sobre

Zumé, ou São Tomé, que teria peregrinado entre os índios antes da chegada dos

europeus pelo mar. Replicando o mito medieval de Prestes João, do paraíso terrestre e

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da necessidade de converter e educar os índios, vítimas infantis dos enganos

elaborados pelo diabo contra eles.

4.3 Língua geral

Se no século XVI era necessário, na Europa, estabelecer centros dispersores de

poder linguístico, como Lisboa e Castela, o mesmo se apresentava importante no

estabelecimento da geografia linguística brasílica, e nada mais politicamente

adequado que escolher a capitania de Martim Afonso, financiador da empresa

jesuítica no mundo, como centro do Brasil e determinar que a língua usada nesta

região seria a mais falada. Assim como a língua de Lisboa não era a mais falada no

território unificado de Portugal, também não era a de Castela na Espanha, nem o Tupi

no Brasil. A ideia da existência de uma língua única, uma língua geral de

comunicação entre os diferentes grupos étnicos no Brasil, também sofria a pressão

exercida pelas línguas de Estado, como o Huastec e o Quechua, descritos em 156050.

O Quechua falado no Peru, sob o Império Inca; e o Huastec falado no México, sob o

domínio asteca, imponentes organizações políticas americanas, muito ao contrário do

encontrado no Brasil, onde inexistia um poder centralizado. Não possuir uma língua

de domínio e um Estado centralizador colocava os indígenas brasileiros em posição

evolutiva inferior, mais bárbaros que os outros. Determinantes que serviram como

características das culturas primárias para Wilhelm Schmidt (1942, p. 22), em meados

do século XIX, elaborar o ciclo evolutivo das culturas, segmentando-as em círculos

evolutivos por tipos, as mais evoluídas eram as culturas andinas e as culturas

marginais incluíam Tupis e Jês, além de alguns outros grupos amazônicos. A forte

aliança firmada entre Martim Afonso e a Companhia de Jesus serviram para

homogeneizar as línguas existentes no Brasil. Assim, o Tupi se tornou a língua mais

falada no litoral, de norte a sul, sendo na parte sul um dialeto particularmente forte, o

Tupi-guarani. Afinal, como predicou Wilhelm Schmidt, uma língua unificada

significava, acima de tudo, que existia um mesmo sistema político operando no

território.

A Arte de Grammatica da lingua mais usada na costa do Brasil, escrita por

Padre Anchieta em 1595, foi redigida na capitania de São Vicente, que pertencia a

Martim Afonso. Anchieta tomou o cuidado de ressaltar as diferenças dialetais na

pronúncia de verbos entre os grupos aos quais chamava genericamente Tupi, e

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!50 American Indian Languages. The historical linguistics of Native America, de Lyle Campbel, 1997, p. 30.

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demarcou, logo nas primeiras páginas d’A Arte, a extensão do território Tupi que iria

“desde Pitaguátes do Paraíba51 até os Tamôyos do Rio de Janeiro” e “os Tupis de São

Vicente que são além dos Tamôyos do Rio de Janeiro”. Muito embora os jesuítas

tivessem se estabelecido primeiramente na Bahia de Todos os Santos, as referências

geográficas que localizavam os grupos étnicos descritos na gramática estavam todas

centralizadas na capitania de São Vicente (atual São Paulo), que incluía o atual Rio de

Janeiro e parte do atual Espírito Santo. Somente 100 anos depois de escrita a Arte de

Anchieta, Mamiani escreveu a gramática de uma língua existente na Bahia e em

Sergipe, o Kiriri. Ao escrever a gramática da língua mais falada na costa, Anchieta

elevou o status do Tupi e criou uma distinção bastante clara entre os índios da costa

que possuíam uma língua gramaticalizada, embora fossem canibais, e os do interior,

os Tapuya que, segundo Gabriel Soares de Souza (2010, p. 75), falavam uma língua

“como a dos bascos, ininteligível.” Tapuya, então, passou a designar os bárbaros que

não falavam Tupi.

O Tupi, então, deveria ser falado ao longo de toda a costa brasileira, mas o

próprio Anchieta delimitou a extensão do território Tupi que iria do Rio de Janeiro a

São Vicente. O que faria do Tupinambá a língua falada do Maranhão até São Vicente

e do Tupi-Guarani a língua falada de São Vicente até o Paraguai. Havia uma distinção

em três territórios e em três línguas que funcionaria, na lógica medieval europeia,

como a anexação de três reinos ao reino de Portugal, cada qual com seus súditos

legítimos, os portugueses colonizadores; seus súditos conquistados, os índios; e seus

escravos africanos. Anchieta (1964, p. 45, grifo meu) também mapeou a língua única

falada por todo o sertão chegando até as serras do Peru, que seria diferente apenas da

língua dos carijó (Tupi-guaraní) e da língua falada na costa (Tupi). De certa forma,

Anchieta descrevia para o reino de Portugal a existência de outro reino, que poderia

ser subjugado, empurrando as fronteiras do território português até os Andes.

As mudanças políticas de controle do território pela corte portuguesa

provocaram alterações na nomenclatura das línguas utilizadas. José Freire (2014, p.

368) pesquisou essas alterações e propôs que o Tupi era falado no Estado do Brasil e,

no Estado do Maranhão e Grão-Pará, o Tupinambá. A divisão do território em duas

unidades políticas chamadas de Estado deu a elas independência política para tratarem

de seus problemas diretamente com a Coroa, sem terem de passar pelo governo-geral.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!51 O Paraíba citado no trecho é o rio que corre junto à serra da Mantiqueira, no Rio de Janeiro, não o Paraíba que cruza a capitania de Itamaracá, no nordeste brasileiro. Ver: Mapa do Estado do Brasil, 1549. Anexo I.

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Dois Estados, duas línguas. Com a entrada para o interior do continente, essas duas

línguas passaram a se expandir, o Tupi, como Língua Geral ou Língua Geral Paulista

chegou ao Mato Grosso e o Tupinambá, na forma do Nheengatu, a Manaus. No século

XVIII, as línguas oficiais eram reconhecidas como Língua Geral Paulista, no litoral; e

Língua Geral Amazônica, no Grão-Pará. Teodoro Sampaio (1901, p. 20), já no século

XX, fez uma distinção interessante: o Tupi falado na Amazônia seria o nhehen-gatú,

ou seja, ‘língua boa’ e o Tupi falado entre os índios do restante do território brasileiro

seria aba-nhehen, ‘língua de gente’, considerando que o Tupi seria a língua indígena

falada em todo o território brasileiro, ele inverteu a ideia geral de que o Tupi era uma

língua originária do litoral meridional brasileiro, tornando-a a língua legítima dos

índios amazônicos. Sistematizando as informações acima, teremos o seguinte quadro:

Estado do Maranhão e Grão-Pará Estado do Brasil

da Amazônia até o Maranhão do Maranhão até

São Vicente São Vicente

de São Vicente

até o Paraguai

séc. XVI

e

séc. XVII

Tupinambá Tupinambá

Língua

brasílica Tupi-guarani

Tupi

séc. XVIII

(Línguas

Oficiais)

Língua Geral

Amazônica

Língua Geral

Paulista

Língua Geral

Paulista

Língua Geral

Paulista

séc. XIX Português Português Português Português

séc. XX (índios) nhehen-gatú aba-nhehen aba-nhehen aba-nhehen

Frederico Edelweiss (1969, p.7-10), em seu Estudos Tupis e Tupi-guaranis,

discorreu sobre as discrepâncias entre Tupi, Tupinambá, Tupi-guarani e Nheengatu.

Para ele não fazia sentido, apesar de haver algumas diferenças claras entre as línguas,

que elas fossem tratadas como línguas distintas. Afinal, ele considerava a todas como

variações do Tupi original que, ao longo do tempo e do contato, sofreu alterações

regionais dada a miscigenação entre negros, brancos e índios de outras etnias não

Tupi. O Tupi original era uma língua falada por um grupo étnico, os Tupi que seriam

maioria no território brasileiro. Do contato entre Tupi e português, teria surgido o que

ele chamava de brasiliano e deste o Nheengatu. Frederico Edelweiss acreditava que a

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cultura nacional, devido à integridade do território, estava profundamente estruturada

pelo Tupi antigo, aquele falado antes do contato com os portugueses. A meu ver, essa

ideia de uma língua/ um povo/ uma cultura servia perfeitamente à descrição da

construção dos Estados europeus, mas não se aplicava à realidade indígena existente

no período da colônia. O Tupi antigo, aquele descrito por Anchieta em sua gramática,

era considerado por Frederico Edelweiss o legítimo Tupi dos índios, que não deveria

ser confundido, em hipótese alguma, com a Língua Geral falada por negros, colonos

portugueses e seus descendentes. No discurso de Frederico Edelweiss, o Tupi é o

fundador do caráter nacional brasileiro, da cultura brasileira, de uma ideia de nação

que provavelmente não existia para os índios que viviam nestas terras antes da

chegada dos portugueses.

Se o Tupi antigo era a língua mais falada ao longo da costa brasileira, resta-

nos saber qual era a costa brasileira no século XVI. Segundo Angelo Carrara (2014, p.

7), as províncias implantadas nas capitanias eram Natal, Parahyba, Olinda, Penedo,

Aracaju, Santa Luzia, Sergipe, Salvador, São Jorge dos Ilhéus, Porto Seguro,

Caravellas, Vila Velha, Rio de Janeiro, Vila de Iperoig, São Vicente, Santos e São

Paulo de Piratininga. Essa era a costa brasileira, não é que corresse todo o litoral, mas

era de onde se extraía o pau-brasil, por isso, costa brasileira, e posteriormente onde

foram implantados os engenhos de açúcar, de fato eram grupos de freguesias

espalhadas pelo litoral. Se o Tupi era a língua corrente nas freguesias, a mais falada

entre os habitantes da costa brasileira, então teríamos que nos perguntar quem eram

esses habitantes. Segundo as informações do próprio Anchieta (1964, p. 33), a costa

brasileira, de norte a sul, estava cheia de portugueses, índios da terra e negros da

Guiné que viviam nas freguesias e trabalhavam nos engenhos e nas lavouras de

legumes, além disso, havia as aldeias dos índios onde viviam com eles os jesuítas. Em

1585, Anchieta (1964, p. 13) estimava que houvesse na colônia uma população de

57.600 almas, sendo 5.600 portugueses, 13.000 escravos africanos e 17.500 índios

cristãos, aqueles que viviam aldeados junto aos jesuítas. Em Pernambuco, havia o

total de 8.000 índios e 10.000 escravos africanos; na Bahia, 3.000 escravos africanos e

4.000 índios. O restante distribuído pelas outras capitanias, com predominância de

população indígena em São Vicente. É importante ressaltar que a população indígena

aldeada não pertencia a um único grupo étnico. Eram o resultado dos descimentos e

dos resgates das guerras justas, eram aldeamentos multiculturais e multilíngues. A

distribuição da população de escravos africanos no Brasil colonial se estendia,

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predominante, pela faixa litorânea, de São Vicente ao Maranhão e praticamente

equivalia à quantidade de índios aldeados ou índios cristãos, ambos envolvidos no

trabalho da lavoura e dos engenhos. Eram grupos que se misturavam. Havia uma

geografia do negro que se sobrepunha à geografia do português e à geografia do

aldeamento indígena missionário, onde havia portugueses havia índios Tupi e

escravos africanos. Onde havia Língua Geral, fosse amazônica ou paulista, havia

negros convivendo com índios e colonos portugueses desde a chegada dos europeus a

este continente, afinal, havia escravos africanos embarcados na nau Bretoa em 1511.

O Tupi antigo, o Tupinambá, e o Nheengatu costumam ser consideradas as

línguas francas de comunicação do século XVI, usadas entre índios e portugueses. Em

geral, a contribuição e a participação dos escravos africanos nesta rede comunicativa é

negada, como se o sistema colonial operasse em duas frentes insolúveis, a escravidão

indígena e a escravidão africana. Não é apenas a participação africana que é negada, a

capacidade indígena de interagir para a construção de uma língua franca também é

suplantada pela supremacia latina. Uma das críticas à gramática de Anchieta sobre o

Tupi, é exatamente a influência da língua portuguesa sobre a língua indígena. Afinal,

o Tupi era a língua dos dominados e, por isso, era frágil. Dizer que o Tupi teria

recebido influências do português é diferente de dizer que, no início da colonização,

os escravos negros e os escravos indígenas aldeados conviviam em um ambiente

multilíngue que produziu uma língua franca de comunicação usada inclusive pelos

portugueses em suas incursões pelo interior. Uma dinâmica de convívio que se

expandiu no tempo, afinal Deni Moore (2014, p. 108-142) apresentou recentemente o

caso do Nheengatu amazônico atual que, com os séculos, vem incorporando léxico do

português.

Diante do cenário das provícias da chamada costa brasileira, onde europeus e

negros africanos conviviam com índios descidos ou resgatados nas guerras justas e

aldeados por missionários, nos resta perguntar então quem eram os Tupi, os

Tupinambá e os Tapuya. O que fazia de cada um deles um grupo coeso étnica e

linguisticamente nas descrições dos cronistas da colônia recém-implantada é tão

incoerente quanto as distinções entre caribes e aruacos no Caribe.

4.4 Jês e Tupis

Para ilustrar as considerações expostas no item anterior, vou trazer o caso dos

Apinajé que estudei no mestrado. Os Apinajé são um dos grupos Jê que habitam o

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Brasil Central. Suas aldeias, circulares, com caminhos radiais e uma praça central,

foram tradicionalmente construídas ao longo do rio Tocantins, mas não à beira

d’água, e ocupam o território hoje conhecido como Bico do Papagaio. Considerados

como um ramo da família Timbira, sua língua apresenta maior similaridade ao

Kayapó e ao Suyá que aos outros Timbira: Canela, Krahô e Krinkatí. Como relatado

por Nimuendajú (1956, p. 1-2), as primeiras referências aos Apinajé apareceram nos

textos do jesuíta Antonio Vieira que, entre 1633 e 1658, realizou quatro entradas ao

Sertão com o fim de fazer descimentos de índios para o aldeamento de Belém. Ele

esteve na região, medida por latitude e minuto, como era costume da época, que

correspondia exatamente ao atual território Apinajé, mas os índios resgatados nesse

território foram Tupinambás e Potiguares, como descrito pelo jesuíta. O entendimento

geral, a partir daí, é que povos Tupi habitavam a região que, após ser despovoada

pelos missionários em seus resgates e descimentos, foi ocupada pelos Apinajé. Da

perspectiva dos Apinajé, eles sempre estiveram no território deles. Em 1721, outro

jesuíta o padre Manoel Motta encontrou, na mesma região, um povo “tão estranho e

verdadeiramente novo, que tinham por asco ver homens vestidos”. Descreveu-os

como sendo os óto, auto-nomeação cujo significado é “pontal”, o canto de terra onde

dois rios confluem. Somente em 1774, quando os óto cercaram, atacaram e impediram

a passagem de Antonio Luiz Tavares, os Apinajé começaram a fazer parte da

documentação colonial, por meio dos relatos de seus conflitos com colonos e a

administração da colônia. Nesses relatos, há descrição das incursões para captura de

escravos, as correrias feitas pelos índios para levar ferramentas e armas dos postos da

administração e as matanças.

Que os Apinajé só foram nomeados como Apinajé, no período colonial, em

decorrência dos conflitos já não é novidade alguma. A surpresa que encontrei nesse

relatório de Nimuendajú foi a menção aos primeiros índios capturados no território

dos Apinajé que não eram Apinajé, mas Tupinambás e Potiguares. Tomar a impressão

do padre Antonio Vieira para considerar que aquele era um território Tupi antes de ser

Apinajé parece uma explicação às cegas. A única prova que ampara esta ideia é a

existência de pequenas peças de cerâmica decorada encontrada pelos próprios Apinajé

em um local próximo à aldeia Bacaba, como nos informou Nimuendajú (1956, p. 13).

Mesmo assim, não há evidências de que se trata de cerâmica de outro grupo étnico.

Estas peças poderiam ser restos de uma produção de cerâmica anterior que foi

abandonada como atividade do grupo ou fruto de troca com outros grupos, ambas as

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atividades desenvolvidas muito tempo antes da chegada de Nimuendajú entre eles. A

simples associação da presença de peças de cerâmica com a consideração do padre

Antonio Vieira de que os índios capturados eram Tupinambá e Potiguares não

esclarece a existência de um território Tupi anterior naquele local. De fato, podemos

nos interpelar de modo mais profundo se os índios capturados pelo jesuíta, sendo

Tupinambá e Potiguar, não eram apenas Apinajé. O que faria dos Apinajé

semelhantes aos Tupinambá e aos Potiguar? Afinal, quem eram os Tupinambá?

Costuma-se entender as populações Jê como parcialmente isoladas dos demais

grupos, supostamente eles viviam à margem das trocas comerciais que circulavam

pelo continente ou participavam perifericamente de um “escambo silencioso [com os

tupi-guarani], envolvendo as famosas pedras verdes (para a confecção de tembetás) e

penas (para a confecção de adornos).”52 Seria bastante complicado imaginar uma

transação silenciosa, já que o princípio da troca é a negociação, e a negociação

pressupõe uma troca verbal. Portanto, espera-se conversação não silêncio. Na carta de

Caminha, já havia uma referência a tais pedras. “Trazia este velho o beiço tão furado,

que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde,

ruim, que cerrava por fora esse buraco.”53 Ângelo Corrêa (2011, p. 232) relatou suas

recentes descobertas arqueológicas a respeito de uma indústria lítica voltada para a

produção de tembetás para trocas em um sítio localizado ao sul do Ceará. A presença

da pedra no local e a existência de inúmeros tembetás produzidos sem alcançarem a

etapa final de lapidação devido às imperfeições da pedra que geravam rachaduras ou

rupturas demonstram que havia uma atividade concentrada naquela região de

produção de tembetás que atendiam às necessidades de outros assentamentos ou

grupos étnicos. Segundo C. F. Ott (1944, p. 22), não há dúvida a respeito do uso de

tembetás entre os Tupinambá e os Tupiniquim. Mas é bem provável que os tembetás

feitos de pedra tivessem sido mais usados no sertão, onde havia abundância do

material empregado em seu fabrico, principalmente da pedra verde e, como

geralmente se admite, os habitantes do litoral recebiam do sertão os exemplares

necessários. Alfred Métraux (1979, p. 168) supôs “que os tupinambá aprenderam com

os tapuias o uso do botoque.” Os Jês ou Tapuias não eram periféricos nem estavam à

margem da importante rede de trocas e comunicação que se articulava por uma grande

extensão territorial. Assim entendido, podemos perceber que há um preconceito que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!52 Os índios antes do Brasil, de Carlos Fausto, 2010, p. 80. 53 A carta de Pero Vaz de Caminha. O descobrimento do Brasil, de Silvio Castro, 2015, p. 61.

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torna os grupos do Brasil Central mais selvagens que os do litoral. Ser mais selvagem

implicaria produzir uma cultura material inferior em qualidade técnica e estética que

os outros grupos e, por isso mesmo, tomar emprestados técnica e léxico. Pois as

suposições mais correntes consideram que a transferência de tecnologia implica

empréstimo lexical. A dicotomia Tapuia/ Tupinambá ou Tapuia / Tupi reproduz, de

certa forma, a distinção entre Caribe e Aruaco, geografizando povos para determinar

suas implicações com os europeus.

O próprio Nimuendajú nos dá algumas informações que cruzam os limites

étnicos estabelecidos para cada grupo, sugerindo algum tipo de relacionamento entre

os grupos que não se limitam às guerras. Um ritual bastante Tupinambá por parte dos

Apinajé, descrito por Nimuendajú (1956, p. 68), é o choro cerimonial, também

chamado de saudação lacrimosa, desprendido pelas mulheres quando algum parente

ou visitante querido retornava à aldeia. Este choro é acompanhado de lamentações e é

realizado por todas as mulheres aparentadas da pessoa que chegou. Nimuendajú

descreveu esse evento quando ele mesmo havia retornado à aldeia depois de um longo

período sem fazê-los uma visita. A descrição desse choro cerimonial ou da saudação

lacrimosa apareceu em Anchieta e Jean de Léry como uma das coisas marcantes e

impressionantes sobre os Tupi da Guanabara, em geral, junto com o ritual

antropofágico. Alfred Métraux (1979, p. 157-161) descreveu a saudação lacrimosa

como um rito de polidez entre os Tupinambá e fez um levantamento da literatura

divulgada até o momento de produção de seu livro A religião dos Tupinambás para

compilar as informações sobre a ocorrência da saudação lacrimosa em diferentes

grupos indígenas. Dessas informações elaborou um mapa que mostra a dispersão do

rito pelo litoral Atlântico e o centro-oeste, chegando, ao norte, até Cayena, alcançando

a América Central e apresentando dispersão por toda a região do Mississipi até a costa

do Texas, na América do Norte. Os autores citados por Alfred Métraux elaboraram

conjecturas a respeito das origens do rito e das razões que levam as mulheres a

chorarem os recém-chegados, mas nenhum deles se debruçou sobre o fato de que o

rito extrapola os limites linguísticos, étnicos e territoriais dos grupos estudados por

cada um deles. Essas convergências de práticas e de sentidos nos dão um panorama de

inter-relação e partilha entre os diferentes grupos aqui existentes. Não interessa

exatamente a origem do rito, interessa que ele foi incorporado na dinâmica social de

diferentes grupos como uma regra de etiqueta, de bom convívio.

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Nimuendajú (1956, p. 51) também descreveu um jogo realizado com bolas de

borracha de dois tamanhos diferentes e tacos de madeira acoplados aos braços dos

jogadores. O objetivo do jogo é não deixar as bolas tocarem o chão. Nimuendajú

anotou que este jogo também foi descrito entre os Guarani, que vivem ao longo de

toda América do Sul concentrando o maior número de falantes na parte sul e noroeste;

entre os Tembé, família Tupi-Guarani que vive no Maranhão, Amazonas e Pará; os

Xipaya, família Xipaya que vive na Bolívia; e os Warrau54, grupo de língua isolada

que vive no delta do Orinoco. O mito que conta a origem deste jogo também é o

mesmo entre todos esses grupos de famílias linguísticas diferentes. O mesmo mito em

famílias linguísticas diferentes nos aponta a possibilidade de haver tido mais do que

trocas materiais entre eles. Talvez uma troca mais profunda que implicou adquirir

hábitos e desenvolver gostos, como o gosto pelo jogo de bolas de borracha, que vai

muito além de apenas troca. Os jogos praticados não estavam restritos às aldeias,

havia campeonatos ou algo semelhante, onde se encontravam os grupos e os times

para partilhar comidas, bebidas e competir. Uma grande festa competitiva e

esportiva55. Por isso, o significado desse jogo não está expresso na morfologia de seu

nome. O sentido é historicamente construído e nesse caso, a história desse jogo pode

ser uma história de relações entre diversos povos que ultrapassava os limites étnico-

territoriais, mas se ancora em um mito comum que permite a partilha do esporte e do

sentido que circula por uma região, sem necessariamente haver partilha da morfologia

ou empréstimo linguístico.

A amplitude dessas dispersões nos dá a dimensão da rede comunicativa da

qual faziam parte todos esses povos com suas diferentes línguas. Não significa que

eles possuíam uma origem ancestral comum, da qual descenderam os grupos de

populações que migraram para povoar o restante do continente. A partilha do rito

significa exatamente o rito partilhado. O sentido expresso pelo rito é partilhado por

uma rede multilinguística que não se encerra em si mesma. Costumes, regras de

etiqueta e gostos nos revelam mais a respeito da interação entre os grupos do que

propriamente das origens ancestrais comuns desses grupos. São aproximações

paulatinamente constituídas nas e pelas relações de uns com os outros,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!54 Outras formas de grafar são Warao, Guarauno, Guarao. 55 Pirjo Virtanen esclarece, em seu artigo Constancy in continuity? p. 290, incluído no livro Ethnicity in ancient amazonia, organizado por Alf Hornborg e Jonathan Hill, que existem geoglifos no Acre marcando o lugar onde havia competições de jogos de bola de borracha entre vários clãs. Ela salienta que a prática deste jogo se estendia do Brasil central até o Caribe.

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compreendendo essas relações em termos da interação, dos entendimentos comuns e

de práticas integradas, em vez de prever o isolamento ou a segregação entre os

grupos. Imaginar um continente permeado por uma história mutuamente significativa

é diferente de imaginar um continente de empréstimos linguísticos decorrentes de

trocas materiais, tecnológicas e migrações.

Compreendo que sentidos não são empréstimos linguísticos, mas são fruto de

uma ressignificação da condição humana de todo um grupo exposto a um contato

mutuamente significativo, e percebo os sentidos partilhados como indicações de uma

regionalização da memória discursiva que faz significar aquele sentido em contraste

com outras regiões onde aquele sentido não significa ou ao menos não significa da

mesma maneira. Em outras palavras, partilha da ideologia. Aqui, entendo ideologia

como a manifestação concreta no discurso das formações discursivas materializadas

pelas formações sociais expressas pelas relações do homem com o mundo, como

elaborado por Michel Pêcheux e Catherine Fuchs (1990, p. 166) em A propósito da

análise automática do discurso.

Apesar das conjecturas a respeito de uma origem ancestral comum entre Tupi

e Jê aventadas por reconstruções de proto-línguas (RODRIGUES, 1993, p. 509), as

amostras arqueológicas estudadas por Walter Neves e sua equipe (2011, p. 114)

demonstraram que não há proximidade genética entre os dois grupos, “as séries

etnográficas pertencentes ao tronco linguístico Macro-Jê incluídas no estudo

(Botocudo do Brasil Central, Botocudo do Sul do Brasil, Kaingang e Kamakã)”

estariam associadas aos Paleoíndios do Brasil Central. Esta associação sugere que a

morfologia craniana dos Jê do centro-leste e sul do país seria a mesma das primeiras

levas de ocupação destas terras, sobrevivendo até o século XVI sem interferência

gênica.

As descobertas da equipe de Neves nos revelam acima de tudo que o fluxo de

ideias que circulava entre os grupos que viviam na parte sul-americana do continente

são relevantes para o entendimento das relações linguísticas dos grupos humanos pré-

coloniais aqui existentes.

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4.5 Gramática Tupi

A gramática de Anchieta fazia parte de uma forma de produção intelectual

maior, não estava sozinha. Não exatamente porque já havia a descrição do Quechua,

mas porque estava inserida na produção intelectual escolástica e servia aos propósitos

de produzir conhecimento intelectual cristão de alto nível. Não havia na decisão de

Anchieta nenhum arroubo intelectual de descrição linguística da língua mais falada na

costa do Brasil, no sentido de que abrangeria de fato a língua mais falada, ele apenas

repetiu as lições de Nebrija e de Fernão Oliveira. Afinal vimos até agora que o Tupi

não era exatamente a língua dos índios do Brasil, nem eram os Tupi a população

indígena de maior porte na colônia, os aldeamentos eram mistos e ainda havia os

negros e os portugueses.

A Arte de Anchieta foi organizada na forma de listas de palavras e de frases

que expressavam conceitos importantes para a doutrina cristã. Então, o verbo ‘matar’

e sua forma negativa ‘não matar’ eram tão importantes quanto ‘amar’ e sua forma

negativa ‘não amar’, pois faziam parte do conjunto dos dez mandamentos divinos. Na

Arte de Anchieta, ‘vingar-me dele’ ayepîc cecê era fundamental. A vingança

localizava o Tupinambá na rede textual da época, dava veracidade ao canibalismo e

autorizava o expansionismo europeu pela via da cristianização.

Na Arte de Anchieta, abâ significa ‘homem’; abacatú significa ‘homem bom’

ou tubá ete que significa ‘pai verdadeiro’, enquanto tubá significa ‘pai’, e ete significa

‘verdadeiro’ no sentido metafísico do Pai cristão, não no sentido de ancestral.

Portanto, catu e ete são sufixos relacionados a bom e verdadeiro. Homem bom é um

valor semântico, desenvolvido pelos pressupostos cristãos e possivelmente não tinham

relação alguma com as concepções de homem dos indígenas. Para a moral cristã

elaborada por Tomás de Aquino (1947, p. 62), o homem é a potência de si mesmo, o

desenvolvimento pleno da potência humana, no sentido transcendental, fazia de um

homem verdadeiro e bom. Todo o agir humano, entendido como o livre arbítrio,

expressaria a realização das potências humanas pelo trabalho, pela educação e pelo

amor e seria uma colaboração do homem ao agir divino. Pai verdadeiro, antes de ser o

demiurgo que deu origem ao grupo, designa Deus. Alfred Métraux (1979, p. 11)

considerou a relação expressa por Tamöi como a de ancestral, demiurgo, e por isso a

referência ao avô como progenitor do grupo. Anchieta descreveu Tamuya “avós; os

mais velhos”, como um termo de parentesco usado pelos homens. Com o sentido de

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ancestral, a referência de Lussagnet che rypykuere ‘meus ancestrais’, retomada por

Eni Orlandi (2008, p. 129) em Terra à Vista, nos oferecem melhor perspectiva de

como foram construídos os sentidos nas descrições missionárias.

Tratando a gramática de Anchieta desta forma, estaríamos replicando os

estudos feitos até hoje sobre o Tupi, mas minha intenção é mostrar algo um pouco

mais arrojado. Por isso, trarei a Arte da Lingoa de Angola, do padre jesuíta Pedro

Dias, escrita em 1697, e que passou por uma avaliação do padre Francisco de Lima do

Colégio da Bahia antes de ser publicada em Portugal. Esse é um fato interessante.

Antes de ser publicada em Lisboa, a gramática foi avaliada por um padre do Colégio

da Bahia, demonstrando que a rede por onde circulava e se produzia conhecimento

escolástico de fato passava pelas colônias. Embora escrita 100 anos depois da Arte de

Anchieta, ela pode trazer reflexões interessantes para nossa perspectiva de família

linguística, principalmente, para o tronco Tupi. A primeira reflexão é sobre os nomes

apelativos que, no singular, começam com mu e pertencem a homens e mulheres em

seus ofícios. Por exemplo: mubica ‘escravo’ (1697, p. 44); mubiri ‘pastor de gado’

(1697, p. 7); mubuchi ‘barbeiro’ (1697, p. 32).

Em Tupi antigo, morómboeçára significava ‘mestre’ ou ‘senhor’. Segundo

Anchieta (1595, p.15), também poderia ser usada acêjará ‘senhor de homem’, ‘o pai’,

palavra composta precedida por acê, pronome da terceira pessoa, significando

‘homem’. Para significar ‘o senhor’, seria necessário acrescentar o absolutivo moró,

morojará, que é uma possibilidade gramatical, porém não era falada. Esta forma de

criar absolutivos, acrescentando moró antes da palavra, era mais utilizada para formas

deverbais, em especial, derivados de particípios, por exemplo, morómboeçára ‘o

mestre’. Anchieta não explicou como se formou toda a palavra morómboeçára, mas

podemos inferir que se moró era usado para criar absolutivos de particípios, então

havia um particípio sendo usado, mboe ou mbó ‘a mão’, cujo genitivo é pó. Embora o

absolutivo seja moró, o único exemplo dado por Anchieta é morómboeçára, todos os

demais absolutivos usam apenas o m como prefixo que, além de prefixo absolutivo,

funciona também como possessivo, então também poderia significar, mbó ‘minha

mão’. O uso da mão, talvez a mão que açoita, determinava o título de mestre ou o

cargo de senhor ou a profissão de chefe. Em uma perspectiva mais ‘coisificada’ do

escravo, mboe poderia ser mbae ‘coisa’, em que teríamos ‘o senhor da coisa’. Em

vários cronistas do século XVI, compilados por Eni Orlandi (2008, p. 129), a palavra

morubixaba foi transcrita, sempre com o sentido de chefe e sempre com morfologia

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semelhante, em Montoya, morbichaousassoub; em Fernão Cardim, mburubich; em

Evreux, morubixaba; em Claude d’Abbeville, muruuichave. O uso de um prefixo

absolutivo moró ou mu ou mbu ou m para indicar o mestre ou o senhor já nos daria

pistas suficientes para entender que morubixaba não é um termo de parentesco, nem

de linhagem sucessória que significasse o líder de um grupo étnico. É provavelmente

um dos tantos termos nascidos da confluência linguística do convívio na colônia.

Como os escravos negros trazidos para trabalhar nas fazendas e nos engenhos

faziam parte de vários grupos étnicos e linguísticos, assim como os índios aldeados, é

preciso considerar outras influências que não somente a língua de Angola, outras

línguas banto estiveram bastante presentes, também o jeje e o yorubá. O encontro

consonantal mb faz parte dos grupos consonantais do Quimbundo, uma das línguas

banto, mb, mp e nd, nj, ng e não ocorrem em língua portuguesa, mas estão presentes

no Nheengatu atual, assim como no Tupi antigo descrito por Anchieta. Renato

Mendonça (2012, p. 71) analisou comparativamente a evolução desses grupos

consonantais, tanto do Quimbundo quanto do Nheengatu, em seu caminho para a

incorporação ao léxico português. Do Quimbundo para o Português, há duas formas

diferentes de incorporação do mb: 1) a inserção de uma vogal prostética: mbundu /

ambudo;

2) a perda da nasal inicial: mbirimbau / birimbau.

Do Nheengatu para o Português, o encontro consonantal mb reagiu da mesma

forma: 1) a inserção de uma vogal prostética: mbirá / embira;

2) a perda da nasal inicial: mbeiú / beju.

Acrescento uma curiosidade, mboia ‘cobra’ perdeu a nasal inicial e se tornou

boitatá ou boiaçu. A peculiar nota que Estevão Pinto escreveu ao livro de Alfred

Métraux (1979, p. 55) sobre a raiz mboia, existente tanto na África56 quanto no Brasil

significando cobra, seja cobra-de-fogo, boitatá; seja a cobra-grande, boiaçu. Couto de

Magalhães (1876, p. 172-174) alegou que, no Brasil, tradicionalmente, mboia é uma

pequena serpente de fogo que vive na água. Johann von Spix e Carl von Martius

(1976, p. 135) documentaram mbuya, significando ‘cobra’. Analisado por vários

especialistas em Tupi, todos concordam entre si que o problema da ocorrência

idêntica nos dois continentes se fundava nos critérios falhos dos folcloristas e

etimólogos que se basearam apenas em analogias nominais.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!56 Lenda incluída na Anthologie nègre de Blaise Cendrars, traduzida por Osvaldo Orico para o português.

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Deni Moore (2014, p. 108-142), demonstrou que, no Nheengatu, a série de

pronomes pessoais livres foi incorporada do Tupinambá, mantendo-se muito próxima

do original, são eles:

išé 1 sg. indé 2 sg. aʔé 3 sg.

yãndé 1 pl. peyẽ 2 pl. aetá 3 pl

A série de pronomes livres do Tupinambá é:

ixe 1 sg. (e)nde 2 sg. ae 3 sg.

îandi 1 pl. ore 1 pl. exc. pee 2 pl.

Os pronomes livres em Tupi antigo, como descrito por Anchieta (1595, p. 11)

em sua Arte, são os seguintes:

yxê 1 sg. (e)ndê 2 sg.

iandê 1 pl. orê 1 pl. pée 2 pl.

Na Arte da língua de Angola, o padre Pedro Dias (1697, p. 8) elencou o

conjunto dos pronomes livres, são eles:

ime 1 sg. iyé 2 sg. ae 3 sg.

itu 1 pl. inu 2pl. ao 3 pl.

Com relação aos pronomes livres singulares, podemos dizer que são os

mesmos, apenas acrescentados da variação fonética causada por algum esforço de

adaptação do contato. Quanto aos pronomes pessoais plurais, é possível perceber que

o esforço foi feito no sentido de incorporar afixos que marcam o plural em uma

dinâmica própria. Porém, ao tratar dos prefixos que fazem o plural na língua de

Angola, o padre Pedro Dias anotou à página 5 o termo ndandu ‘parente’, que pode

ter-se desenrolado em yãndé ‘nós’, em Nheengatu, com sentido bastante semelhante

ao do termo em Angola.

A situação de multilinguismo ininteligível era possivelmente vivenciada por

índios, negros e brancos no período colonial. Línguas crioulas estão sempre

relacionadas com uma história de contato linguístico entre grupos de línguas

mutuamente ininteligíveis. O pidgin estabelecido no princípio do contato passaria a

ser uma língua crioula quando a criança nascida nesse contexto usasse a língua como

língua materna. Afinal de contas, o Tupi é uma língua crioula? Se há uma base

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linguística para um pidgin, qual teria sido ela no caso do Tupi, uma língua indígena

ou uma língua africana? Estas perguntas merecem resposta, no entanto, o propósito

desta tese, não é respondê-las.

Acredito que antes de afirmar que existiu uma língua Tupi ou Tupinambá

original, exclusivamente indígena, seria preciso averiguar com profundidade as

relações com as línguas africanas que se estabeleceram, por meio de seus falantes, na

costa do Brasil, bem antes dos missionários chegarem para documentá-las. Também

não é pertinente estabelecer um tronco linguístico Tupi, não há esta tal proto-língua-

mãe da qual historicamente descenderam seus ramos.

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5. CIENTIFICISMO CANIBAL

Sacram doctrinam unam scientiam esse. Est enim unitas potentiae et habitus consideranda secundum

obiectum, non quidem materialiter, sed secundum rationem formalem obiecti.

Et ideo comprehenduntur sub sacra doctrina sicut sub scientia una.57

(Sancti Thomae Aquinatis, 1951, p. 6)

O movimento intelectual europeu começado no século XII, também chamado

de Renascença do século XII, fermentou ideias resgatadas dos filósofos gregos para

desenvolver os domínios nos quais está alicerçada a ciência moderna. É bastante

comum nos referirmos às ciências como naturais (da natureza) ou sociais (da

sociedade), refletindo uma separação entre estes dois domínios que não foi sempre tão

evidente. Embora alguns autores apontem a Grécia como ponto dispersor deste

pensamento, para os termos linguísticos aos quais me proponho discutir, prefiro

estabelecer o resgate europeu do pensamento aristotélico feito pelos escolásticos no

século XII como ponto de partida. Foi nesse momento que se lançaram as bases do

cientificismo ocidental: as dimensões apartadas dos domínios científicos, a distinção

entre física e política, o afastamento do olho do espectador da pintura por meio do uso

da perspectiva, a separação entre cultura e natureza, o desdobramento do tempo e do

espaço como categorias diferentes uma da outra, a hierarquia entre sujeito e objeto.

As ideias propagadas na Suma Teológica de Tomás de Aquino se expandiram e

assumiram os contornos das descobertas científicas subsequentes, realimentando a

cadeia argumentativa que separava o homem da natureza, determinando leis próprias

ao funcionamento de cada domínio científico e transformando o mundo em um

maquinário que só poderia ser desmontado e reordenado pela ciência. A geografia, a

educação e a descrição das línguas da América acompanharam esse movimento

intelectual.

5.1 Scientia et sapientia

Após um longo passeio pelo estabelecimento da educação na Europa, Ernest

Curtius (2013, p. 91-95), em seu livro Literatura europeia e Idade Média Latina, nos

apresentou à Renascença do século XII, que foi a instalação das universidades nas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!57 A doutrina sagrada é uma ciência. A unidade de uma faculdade ou hábito deve ser considerada no que respeita ao objeto, não materialmente, mas enquanto a razão que lhe dá forma. E, portanto, está incluída sob a doutrina sagrada como sob a ciência.

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escolas-catedrais, conduzidas por um escolástico e a reintrodução do pensamento de

Aristóteles, por meio de textos árabes traduzidos de uma versão síria do original

grego. Dadas as perspectivas nada cristãs dos tradutores de Aristóteles, seu estudo foi

proibido e a Igreja financiou um grande empreendimento filosófico iniciado por

Tomás de Aquino e concluído por Alberto Magno para cristianizar os princípios

aristotélicos. A Suma Teológica marcava a transformação científica europeia. Os

autores se tornaram autoridades científicas e assim continuaram até o século XVI.

Ernest Curtius (2013, p. 73-90) considerou o De Nuptiis Philologiae et Mercur como

a forma mais apreciada de erudição, na Idade Média, graças às figuras alegóricas

elaboradas por Marciano Capela. Das sete artes, a gramática era a primeira, a mais

importante e a mais estudada. A Gramática, uma das servas dadas como presente de

casamento à Filologia, era uma anciã orgulhosa de descender do rei egípcio Osíris. O

apreço pelas figuras alegóricas greco-latinas levou ao desenvolvimento de um

argumento que persistiu ao longo de toda a Idade Média e ganhou forte repercussão.

A ciência, embora pagã, deveria servir ao cristianismo, ou à verdade, como expôs

Santo Agostinho em sua De Doctrina Christiana. Para ele, como disposto por Ernest

Curtius (2013, p. 76-79), as artes serviam, acima de tudo, para entender a Bíblia.

Embora Santo Agostinho não tenha sido claro em suas explicações, seu pensamento

justificou as artes e encerrou os indícios de que elas emanariam de Deus. As artes

representavam a ordem fundamental do espírito. Verdade e ciência existiriam juntas

como um caminho a ser trilhado pelo homem, assim como o vinho existiria na videira

e a árvore na semente, as artes e o conhecimento verdadeiro estariam em Deus antes

mesmo da criação.

Esta ideia presente no pensamento de Santo Agostinho é perceptivelmente

baseada na cosmologia hebraica, cujo modelo espiritual foi explicado por Elias

Lipiner (1992, p. 59), em As letras do Alfabeto no criação do mundo. Yahweh criou

tudo o que existe por meio das letras (oth que, simultaneamente, significa “letras” e

“maravilha”), portanto, o alfabeto, não somente a linguagem, como na concepção

cristã, existiria metafisicamente antes da matéria. A escrita, precede a existência do

universo e é divina não podendo jamais sua criação ser atribuída à humanidade.

Segundo Elias Lipiner (1992, p. 21), as letras carregariam em si uma ideia primordial

que daria o tom das palavras nas quais predominassem. Por isso estas letras são

denominadas de raízes ou radicais, apontando a relação existente entre os nomes das

letras, seus ideogramas e um valor ideológico que transpassa todas as palavras

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formadas por aquelas letras, por exemplo, a letra Guímel ou Gamel, cujo significado é

“camelo” e que possui um símbolo semelhante à corcova deste animal no alfabeto

arcaico, quando usada na formação de palavras, traz a ideia de arqueamento,

curvatura, como em GaG que significa “abóbada”.

Inserir conhecimento na rede de autores escolástica, de acordo com o modelo

de estudo escolástico, tornava-o compreensível e o fazia circular por toda a rede, que

abrangia a América, a África e a Ásia, por meio das colônias, a partir do século XVI.

Elaborar gramáticas das línguas indígenas americanas e traduzir preces para as

línguas indígenas americanas alçava Portugal e Espanha para a posição de geradores e

disseminadores de verdade científica, ou seja, de conhecimento. Uma espécie de

reinvidicação de espaço intelectual para os cristãos frente aos judeus e aos

muçulmanos. As gramáticas das línguas indígenas, mais do que instrumentos

pedagógicos de conversão, serviam como método de estudo da nova realidade, a

realidade americana. As gramáticas produziam uma literatura específica que circulava

em forma de livro, impressa, e geradora de verdade. A verdade propagada pelas

gramáticas era geografizadora, localizava os povos que falavam aquela língua descrita

e era amparada pela literatura sobre o Novo Mundo que circulava pela Europa. O

modelo de produção de conhecimento escolástico era baseado em autores

considerados autoridades no assunto e portanto replicado para qualquer realidade.

Segundo Sylvain Auroux (2014, p. 98), a gramaticalização das línguas

baseada em uma única tradição linguística, a greco-latina, foi produto da rede de

comunicação que a Europa estabeleceu a partir do século V. Sylvain Auroux (2014, p.

43) explicou que o modelo greco-latino foi usado universalmente para a descrição

gramatical no século XVI, e propôs que, se essa língua chegou a este ponto deve-se ao

fato de que era uma língua já gramaticalizada anteriormente e que atingiu o status de

ser uma segunda língua (a religiosa e a científica) e tornou-se massivamente usada

com fins pedagógicos. Yonne Leite (2007, p. 8) ponderou que é senso comum

justificar a gramaticalização do Tupi como método pedagógico de conversão devido à

variedade de línguas e dialetos existentes no Brasil do século XVI, o que dificultava a

tradução dos conceitos cristãos. No entanto, é preciso lembrar que as gramáticas não

serviram a seus propósitos. Os missionários não pregavam em língua indígena. Não

há registros nas crônicas nem nas cartas entre os missionários e a Companhia que

mencione tal fato, portanto não a aprenderam. Tampouco os índios foram

alfabetizados em sua língua materna. Além dessas razões, a crença geral na Europa

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medieval, bastante difundida pela escolástica, era de que a língua que mais favorecia

o aprendizado era o latim.

Roberto Pineda (2000, p. 37) comentou que, na colônia, corriqueiramente os

índios aprendiam as orações mais comuns como o Pai Nosso, a Ave Maria, o Credo e

Salve em latim antes mesmo de as aprenderem em espanhol ou português. Segundo

Roberto Pineda (2000, p. 52), pouco tempo após iniciada a empreitada de elaboração

das artes, já havia recomendações reais incentivando o ensino do português/espanhol.

O que pode ser lido nas cartas dos jesuítas e em outros documentos era o gradual

aprendizado do português pelos índios e o uso de alguns termos em língua indígena

que designavam plantas, animais ou alguma técnica utilizada com frequência. A

constante reclamação de que não havia nas línguas indígenas palavras adequadas para

traduzir os conceitos básicos do cristianismo, como espírito, por exemplo, justificava

o abandono do exercício de tradução para as línguas indígenas e incentivava a prática

do ensino do português.

5.2 Uma história social do sujeito gramatical

Antonio de Nebrija, em 1492, publicou a Gramática de la lengua castellana58,

apoiado por Isabel de Castela, que servia aos propósitos políticos da guerra de

reconquista e da consolidação do reino de Castela e Léon como unificadores da

Espanha59, valorizando o castelhano em detrimento das outras línguas faladas no

território unificado. Fernão Oliveira escreveu, em 1536, a Grammatica da lingoagem

portuguesa, centralizada na fala de Lisboa. De acordo com o próprio autor, assim

procedeu porque “o tempo e a terra mudam a língua, cada região possui sua

particularidade e para evitar defeitos na língua fica esta sob a guarda dos que mais

leram, mais viram e mais viveram com pouca afeição pela mudança” (OLIVEIRA,

1536, p. 59, com alterações de ortografia), “portanto não nos desprezemos dela a qual

foi sempre e agora é tratada por homens que se entendem e sabem o que falam, cuja

imitação nos fará galantes e primos a nós e a nosso falar”. (OLIVEIRA, 1536, p. 80,

com alterações de ortografia) O desenvolvimento das gramáticas das línguas

nacionais fazia parte do projeto de construção dos Estados europeus nos quais

vigorava a ideia de um povo e uma língua em uma nação. Esta língua, que seria a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!58 Línguas indígenas brasileiras e a esperança de um futuro, de Yonne Leite, 2007, p. 43. 59 El derecho a la lengua. Una historia de la política linguística en Colombia, de Roberto Pineda, 2000, p. 49.

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língua nacional, era a língua da elite política e econômica que traçava os planos do

projeto colonial no mundo.

Fernão Oliveira (1536, p. 56) escreveu sobre o fato de não incluir a fala dos

velhos e a dos aldeãos em sua gramática, pois suas falas não seriam “moderadas”, o

que significa dizer que, por estarem impregnadas de marcas sociais, deturpariam a

pureza da língua portuguesa. Já em Fernão Oliveira, era vigente a ideia de quanto

mais complexo o entorno mais sofisticada a capacidade para interpretar e adaptar o

mundo em que se vive, sendo uma das mais importantes referências de civilidade e de

desenvolvimento científico o estado em que se encontra a linguagem deste homem.

Assim a língua seria uma fonte de transformação sobre o meio. O homem

verdadeiramente civilizado desenvolveria uma linguagem de acordo com suas

possibilidades culturais da mesma forma que possuiria aparatos técnicos para

satisfazer suas necessidades materiais. No século XVI, estudiosos como os padres

Joseph de Acosta e Nóbrega acreditavam que as línguas ameríndias eram pouco

complexas, pois como dizia Fernão Oliveira (1536, p. 18), “os homens fazem a língua

e não a língua os homens”. Portanto, línguas que careciam de termos para exprimir

ideias abstratas e universais, tais como as listadas por Charles-Marie de la Condamine

(1992, p. 56): tempo, duração, espaço, ser, substância, matéria, corpo, virtude,

reconhecimento, justiça, liberdade, ingratidão, que eram o coração das especulações

filosóficas da época, seriam provas evidentes do pouco progresso dos espíritos desses

povos. Havia dúvidas se a linguagem era, conforme Platão, a expressão das coisas,

como escreveu Fernão Oliveira (1536, p. 10), remetendo à consideração de Cícero

feita a Brutus e a Quintiliano, “das coisas nascem as palavras não das palavras as

coisas” ou, se como em Aristóteles, era o veículo para expressar formas que já

existiam na sociedade. O padre Joseph de Acosta (1979, p. 82) predicava que as

línguas ameríndias eram muito mais simples que o hebraico, o grego e o latim, mas as

tentativas frustradas de aprendê-las não deixavam esta impressão muito convincente.

Fernão Oliveira (1536, p. 36) filosofou, ao dizer que o homem senhoreava o

mundo, que, se algo aconteceu ao homem, foi por desígnio de Deus, pois acima do

homem, apenas Deus. Consideração bem respaldada por Anchieta (1977, p. 37) em

uma carta na qual relatou o ataque de uma onça “A fera sem medo de tanta gente

armada, atirou-se a um, e agarrando-o com as unhas pela cabeça e peito o teria

matado, se uma flecha dirigida pelo Senhor, a não atingisse no coração e derrubasse

morta.” Em outros termos, significa dizer que o homem é agente nas orações em que

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toma decisões por conta própria, mas ao cair em um buraco ou ser atropelado por uma

carroça, não sendo ele responsável pelo ocorrido, obviamente só poderia ser castigo

de Deus que o fez sofrer esses danos em razão de algum mal-feito. Sintaticamente,

isto significa que, em verbos como cair, não poderia haver um sujeito, somente um

paciente. Da mesma maneira que a etimologia à moda de Isidoro, para quem conhecer

a origem das palavras era conhecer a origem das coisas, era a revelação de sua

natureza, citado por Sylvain Auroux (2014, p. 97), em A revolução tecnológica da

gramatização, nos dizia que homo vem de húmus, porque o homem vem da terra.

Assim, as categorias sintáticas esbarravam nas convicções religiosas que conduzem

nossa história há bastante tempo. Reduzir as categorias da representação às nossas

próprias convicções, para Sylvain Auroux (2014, p. 94-95), seria supor que estas

categorias existiriam identicamente em todas as línguas sob as mesmas propriedades

tais como tempo, espaço, ser, sugerindo uma relação entre linguagem e pensamento.

Há que se considerar, no entanto, o fato de que as gramáticas das línguas indígenas

americanas foram escritas por homens ocidentais do século XVI, para os quais o

sujeito gramatical, tal como elaborado por Fernão Oliveira, senhoreava o mundo, por

meio de pronomes pessoais relacionados a verbos. No entanto, nada pode nos

certificar de que ao dizer ‘eu sou’ ou ‘eu corro’, o ‘eu’ e o ‘ser’ ou o ‘correr’ se

distinguem do corpo de ‘eu’ alocado no espaço de um território determinado pelas

ações e significações humanas do grupo ao qual ‘eu’ pertence.

Jean Starobinski (2002, p. 27) nos alertou que o princípio aristotélico de

movimento foi amplamente absorvido pelas ideias escolásticas. Segundo o autor, para

Aristóteles, o movimento pressuporia uma ação recíproca onde o paciente agiria em

retorno sobre o agente. Esta seria a ideia da faca que, ao cortar a carne, perderia o fio

da lâmina ou do ferro em brasa que, ao ser submergido, aqueceria a água fria. Para

cada ação, haveria uma ação recíproca, uma resistência. Então o que corta seria

embotado pelo cortado, o que aquece seria esfriado pelo aquecido. O início do

movimento seria imóvel e eterno, esse motor imóvel seria divino. Abaixo da esfera

divina estaria o primeiro móvel, a esfera superior do céu, que moveria as demais

esferas celestes por propagação do movimento até chegar ao mundo inferior, abaixo

da lua, onde vivem os humanos. A vinculação das esferas fez do movimento circular o

princípio ao qual estariam fixados o céu e a natureza, o divino e o humano, em níveis

hieráquicos bem distintos, sendo o divino superior ao homem e o homem inserido

entre os outros seres que o cercam. O movimento inicial seria o movimento circular,

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em cujos ciclos de sucessão das gerações viveriam todos os seres. Embora o paciente

reagisse em retorno ao agente que lhe infringira uma ação, os astros não receberiam a

ação recíproca dos seres ou dos elementos das esferas sublunares, pois a ação

recíproca pressupunha similitude entre agente e paciente, assim o ferro em brasa

aqueceria a água em que fora mergulhado. Portanto, os elementos das esferas

inferiores não agiriam reciprocamente ao sol, o que significa dizer que o divino não

receberia do homem uma ação reativa, embora o homem fosse o agente primordial na

esfera terrestre, pois o homem teria seu movimento expresso pelos ciclos

generacionais. Isso significa dizer que as qualidades constituintes do agente e do

paciente teriam uma mesma natureza, formada pelos quatro elementos: o ar (quente e

úmido), o fogo (quente e seco), a terra (fria e seca) e a água (fria e úmida). Haveria no

mundo terrestre potências ativas e potências passivas, embora o movimento do mundo

tenha sua origem em uma potência ativa, porém impassível, pois o movimento

universal teria como causa a perfeição do motor imóvel. Os astros agiriam sobre os

objetos do mundo inferior, mas não sofreriam nenhuma ação em retorno.

Retomando a discussão feita por Tomás de Aquino a partir de Aristóteles na

Suma Teológica, Jean Starobinski (2002, p. 19-31) nos esclareceu que Tomás de

Aquino propagou o movimento primordial até o homem, imbuindo-o de uma agência

divina capaz de gerar movimento a partir de si, ao dizer que “o movimento é o ser em

ato” e que “tudo o que é movido é movido por um outro”. Sempre remetendo a

Aristóteles ao pressupor que haveria semelhança de gênero e diferença de espécie

entre o agente e o paciente. Nesta física, a ação implicaria a vitória de um agente

sobre um paciente. No meu entender, este agente seria o homem, porém o homem que

tivesse conhecimento de Deus e de seu poder divino como motor primordial do

movimento do qual o próprio homem se encontrava imbuído. Este homem seria

indubitavelmente cristão e seu Deus, apenas Deus, jamais Yahweh ou Alá.

A meu ver, em termos gramaticais, mover-se faria de um ser agente, portanto,

sujeito. Ser capaz de reagir ao movimento ou à ação sofrida, não apenas sofrê-la, faria

de um ser paciente, mas nunca objeto. Dadas as semelhanças de gênero que pressupõe

a ação reativa, os objetos não poderiam reagir aos agentes. No caso do ferro em brasa

que aquece a água, ambos, água e ferro em brasa, estariam envolvidos em um

movimento de reação, um ao outro, mas seriam ambos objetos sofrendo a ação do real

agente, neste caso, o homem que aqueceu o ferro e o imergiu na água, sem devolver-

lhe parte de sua ação em forma de reação, mesmo se considerarmos que o vapor

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provocado pela imersão do ferro em brasa na água seja a reação de ambos os objetos

ao agente. O homem senhoreava o mundo e se separava dele ao senhoreá-lo. Alguns

exemplos clássicos, em língua portuguesa, usados em teorias linguísticas como a

teoria Gerativa, ainda hoje, carregam em si grande carga de aristotelismo. No caso da

frase:

(1) A manteiga derreteu.

Segundo Eliseu (1984, p. 15), o verbo derreter pode ser considerado um verbo

inacusativo, pois o sujeito “a manteiga”, assim considerado por sua posição anterior

ao verbo, corresponderia ao objeto direto, impossibilitado de tornar-se sujeito por não

possuir o traço semântico [+ agentivo]. O alçamento do objeto direto para a posição

de sujeito é um artifício linguístico que ocasiona o fenômeno sintático da

inacusatividade no verbo “derreter”. Como a manteiga não pode ser agente, seu

derretimento, portanto, é fruto de sua exposição ao calor, provavelmente, o calor do

sol, visto que não há nenhuma outra indicação de fonte de calor na frase. De acordo

com as suposições arsitotélicas e de Tomás de Aquino, não haveria a menor

possibilidade de um pedaço de manteiga devolver parte da ação sofrida pelo calor do

sol ao astro. Mesmo considerando que a manteiga seja um produto humano, não

haveria a menor possibilidade de a manteiga devolver parte da ação sofrida de volta

ao homem. Ela seria, portanto, um objeto inquestionável, o que não a faz agente nem

paciente sob hipótese alguma.

Os valores semânticos atribuídos por meio de traços semânticos não são nada

mais que as concepções filosóficas usadas no discurso científico sobre o que

acreditamos que seja a manteiga e de como achamos que sua relação com o humano e

com os astros funciona. Philippe Descola (2016, p. 13), contou uma pequena história

sobre o valor dos sonhos para os Achuar, que vivem na Amazônia, fronteira entre o

Peru e o Equador. Uma senhora havia sonhado com meninas que reclamavam porque

estavam sendo envenenadas. A senhora interpretou o sonho como uma reclamação

vinda das mudas de amendoim que haviam sido plantadas muito próximas de uma

planta venenosa usada para fazer veneno de pesca. As mudas de amendoim tomaram a

forma humana para comunicarem-se, pelos sonhos, com a senhora Achuar. Um valor

bastante agentivo para uma planta silenciosamente imóvel. Valores semânticos não

são, de maneira alguma, universais.

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A lição aprendida pelos verbos inacusativos da língua portuguesa poderia ser

observada em um fenômeno sintático presente na análise de línguas indígenas, trata-se

da ergatividade. Em termos gerais, para a teoria da Tipologia linguística, ergatividade

significa que o sujeito gramatical de um verbo intransitivo (S) receberia o mesmo

caso que o objeto de um verbo transitivo (O). Os verbos intransitivos oferecem apenas

uma posição sintática para ser preenchida que é sempre o sujeito gramatical (S). Os

verbos transitivos oferecem duas posições sintáticas, sendo uma o sujeito (A) e a outra

o objeto (O). S (sujeito intransitivo) teria sempre o mesmo caso que O (objeto), em

vez de receber o mesmo caso que A (sujeito transitivo), associando sob um mesmo

alinhamento sintático duas categorias sintáticas aparentemente opostas. Fenômeno

linguístico que só ocorre nas línguas em que a ergatividade sintática estiver presente,

em geral, línguas não ocidentais, como as línguas yanomamö, por exemplo.

(2) Joahiw a+ ia+ ma nome 3sg+comer+passado Joaquim comeu.

(3) Joahiw-nö ihiru a + naka+ ö nome erg. criança 3sg+chamar+dinâmico (presente) Joaquim chama a criança.

Vemos então que em (2), Joahiw e, em (3), ihiru criança receberam o

chamado caso absolutivo, que não apresenta marca, em oposição a Joahiw-nö, em (3),

que recebeu a marca sintática de ergatividade -nö. Embora tenhamos a tendência de

entender Joahiw-nö como o agente da ação de chamar, o alinhamento sintático

proposto pela ergatividade nos conduziria à outra leitura, deslocando a subjetividade

de Joahiw-nö para ihiru. Este deslocamento nos produziria um grande embaraço ao

tentarmos traduzir esta simples oração para o português. Teríamos como opção ‘a

criança chamada por Joahiw’ ou ‘a chamada da criança por Joahiw’. Em ambos os

casos, perde-se o caráter verbal da oração, inclusive apagando o sentido de ‘som

saindo da boca no momento da fala’ que a partícula ö expressa, aproximando-a de um

sintagma nominal, o que fortaleceria a compreensão de que orações ergativas seriam

um desenvolvimento de orações anteriormente passivas, em especial, nas línguas em

que o ergativo coincide com a partícula que marca instrumento. Como no exemplo:

(4) Akuri-nö Joahiw-nö juri a +hanö+ma faca-instr. nome-erg. peixe 3sg+cortar+passado Joahiw junto com a faca cortou o peixe.

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Entre as traduções possíveis, nunca se consideraria como uma tradução

legítima ‘Joahiw junto com a faca cortou o peixe’. A impossibilidade formal da

diferença expressa pela marca ergativa acoplada ao nome Joahiw impede que se aceite

esta tradução, tornando as traduções e a compreensão reféns de um jogo para

iniciados cujas regras se amparam na estrutura formal da oração. Ultrapassando a

superficialidade das relações sintáticas formais, poderíamos buscar alguma orientação

no sentido expresso pelas orações. Assim, teríamos na semântica uma aliada, muito

embora ela seja considerada uma escolha metodológica fraca por teorias como a

Tipologia, sob o argumento de não possuir sentidos universais. A semântica nos

permite percorrer os trajetos significativos trilhados pelos elementos que receberam o

caso absolutivo, não marcado, ou ao menos, lançar alguma luz sobre este tema

obscuro. No exemplo (5),

(5) kamij-nö war ja +p + nia-ma eu erg. porco 1sg/erg. +3pl/abs. +flechar-passado Eu flechei os porcos.

Em geral, a tradução mais aceita para uma frase ergativa como a do exemplo

(5) seria ‘a flechada dos porcos por mim’ o que reproduziria os mesmos problemas

apontados no exemplo (3), distanciamento do sentido verbal aproximando-se de um

sintagma nominal, transformação em passiva, e deslocamento do foco para ‘a

flechada’. Enquanto não encontramos solução para o alinhamento sintático, a

pergunta que permanece é por que não considerar Joahiw-nö tão sujeito quanto

Joahiw? Se considerarmos que existe equivalência de agentividade entre Joahiw e

Joahiw-nö, teríamos então que resolver a coincidência da partícula -nö em uso como

marcador instrumental como no exemplo (4). Assim, o alinhamento sintático tão

esperado estaria entre sujeito e instrumento, ambos, juntos, desempenhando uma

modificação no objeto, seja cortando-o ou perfurando-o. No entanto, o que a

Tipologia nos propõe em termos de alinhamento sintático ergativo seria uma forma de

nivelar o ‘peixe’ e ‘Joahiw’ ou de nivelar ‘eu’ e ‘os porcos’, ambos no papel de

objetos. Seria mais fácil, para o linguista ocidental, nivelar o selvagem ao objeto que

elevar o objeto para nivelá-lo ao humano. Em geral, o “outro” não é percebido como

sujeito, Isabelle Stengers (2005, p. 994-1003) nos alertou que se exclui também do

termo sujeito tudo aquilo que não é humano nem visível. Ideias que se projetam sobre

o estabelecimento do papel de sujeito gramatical, sempre sob os argumentos

científicos que distinguem humanos e coisas e estabelecem hierarquias entre ambos.

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Se a relação entre o ‘peixe’ e ‘Joahiw’ ou entre ‘eu’ e ‘os porcos’ é equivalente à

relação entre o ferro em brasa e a água, ou seja, trata-se de dois objetos em relação um

ao outro, quem seria o agente real que fomentaria a relação entre os dois objetos?

Deus ou o linguista? Não responder a estas perguntas antes de elaborar uma teoria

sobre alinhamento sintático como um pressuposto universal nos conduz ao círculo

vicioso do método descritivo, pasteurizando sob o título de universal toda e qualquer

memória discursiva indígena presente em seus sentidos, sob o pretexto da

neutralidade científica.

Voltando ao princípio escolástico do movimento como o “ser em ato”60. O

homem como motor primordial da esfera terrestre, foi a base do pensamento

cartesiano, principalmente, a ideia que separou a alma do corpo61, estabelecendo a

supremacia da alma (res cogitans) sobre o corpo (res extensa). A alma (mente) seria o

reflexo divino no homem e o corpo sua existência material, uma espécie de estoicismo

à moda cristã, justificando a subjugação do homem ao divino. As esferas arsitotélicas

celestes e terrestre foram separadas umas das outras pela doutrina galileana que

assumira o mundo como sendo uno, visto que as mesmas potências o governavam em

todas as partes e que estas poderiam ser calculadas. O princípio do motor original se

tornou a inércia e as esferas celestes obedeciam a regras próprias diferentes das regras

de funcionamento da esfera terrestre, onde o homem senhoreava o mundo. René

Descartes elaborou em seu pensamento que, dada a dualidade do ser62, tendo em vista

que as diferenças individuais eram inesgotáveis, o espírito humano, sendo uno,

evocaria um método universal63, possível de ser estimado, desde que entendido e

dedicado ao espírito humano (alma/mente), o substrato abstrato do ser humano. A

meu ver, esta ideia surgiu com o intuito de libertar o homem do domínio exercido pela

linhagem de anjos e sacerdotes que mediavam o acesso ao divino, embora ainda o

submetesse ao divino, pois o espírito divino já estaria no homem, alicerçando a ideia

de domínio do humano sobre as demais criaturas e sobre a natureza. Este princípio

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!60 Homo est dominus sui actus. Quaestio VI, art. III. Summa Theologiae, 1951, p. 58.!61 Esse enim hominis consist in anima et corpore: et quamvis esse corporis dependeat ab anima, esse tamen humanae animae non dependet a corpore, ut supra ostensum est; ipsumque corpus et proper animam, sicut materia propter forman et instrumente propter motorem ut per ea suas actiones exerat. Quaestio II, art. V. Summa Theologiae, 1951, p. 14-15. 62 “De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.” Discurso sobre o método, 1973, p. 47. 63 Studiorum finis esse debet ingenii directio ad solida et vera. de iis omnibus quae occurrunt, proferenda iudicia. Regulae ad directionem ingenii, 1907, p. 3.

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contradizia a concepção aristotélica de que no mundo sublunar somente haveria

decadência e, inclusive, subvertia a ideia cristã de que, no mundo humano, imperava a

desordem que impelia o mundo ao colapso apocalíptico, no entanto, não separava o

homem de Deus.

As ideias de René Descartes influenciaram fortemente a gramática elaborada

pelos pensadores do monastério de Port-Royal-des-Champs, em 1660, conhecida

como a gramática de Port-Royal. Para eles, o pensamento determinaria a linguagem,

pois a ordem dos elementos do enunciado não seria linguística, mas sim lógica. A

lógica seria a expressão do espírito ou da alma ou da mente, elevando a atividade

humana da fala à expressão do divino manifestado pela matéria. Assim comprovava-

se que o pensamento passava para a língua por meio das palavras, sendo o conceito

(pensamento) a base da operação do raciocínio. A gramática, entendida como

conjunto de regras, seria, então, um conjunto de processos do espírito ou da alma ou

da mente, visto que o espírito humano seria uno, a gramática seria universal, portanto,

as línguas obedeceriam a regras universais de funcionamento. Estas regras seriam

fruto do desenvolvimento do pensamento escolástico e das perspectivas que o homem

assumiu para si na significação de sua própria enunciação.

Eni Orlandi (2009, p. 22-24) contrastou as ideias dos gramáticos de Port-

Royal, as de Étienne Condillac e as de Charles Batteux em relação a linguagem /

pensamento / mundo, exercício do qual farei um pequeno apanhado acrescentado de

um par de considerações minhas. As ideias de Étienne Condillac estavam baseadas

nos pensamentos de César Chesneau Dumarsais e J. Harris que concebiam as partes

do discurso como a relação do homem com o mundo sensível e a relação do homem

com o mundo concreto. Uma concepção que implicava a relação do homem com o

mundo dividido em duas partes: o mundo sensível e o mundo concreto. A percepção

do mundo, seja o mundo sensível seja o mundo concreto, viria a partir dos sentidos

que seriam os propulsores das ideias. A meu ver, a concepção filosófica dual de César

Chesneau Dumarsais e J. Harris descreveu de maneira menos divinizada o efeito de

Deus sobre o humano, separando em dois blocos o sujeito. O primeiro, o sujeito

experienciador, determinado pela relação do homem com o mundo sensível, que

significa os sentimentos associados aos desígnios experimentados e que coloca o

sujeito gramatical em uma posição quase de paciente. O segundo, o sujeito agente,

determinado pela ação concreta do homem sobre o mundo ou, em outras palavras, o

homem senhoreando o mundo formado por objetos. Assim, teríamos o sujeito

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gramatical dividido em duas formas de sujeito/homem: o homem que se relaciona

com o mundo sensível: o sujeito experienciador; e o homem que se relaciona com o

mundo concreto: o sujeito agente. A expressão da relação entre os dois, homem e

mundo, seria o verbo. No caso de relações com o mundo concreto, sobre o qual o

homem senhoreia, o mundo concreto seria expresso pelo papel gramatical de objeto.

Nas relações com o mundo sensível, os sentimentos inerentes ao sujeito gramatical

estariam expressos pelo papel gramatical de predicativo, trazendo o divino para dentro

do corpo humano. Para mim, aqui está a contribuição da dupla, Deus faz parte do

homem.

O aporte de Étienne Condillac ao pensamento da dupla foi trazer o

conhecimento linguístico para o homem, pois o mundo poderia ser conhecido e

apreendido por meio dos sentidos humanos experimentados por seu corpo, recusando

o conhecimento a priori proveniente de Deus. Ele entendeu que a constituição das

partes do discurso, sujeito, verbo e objeto, deveria ser vista como o resultado da vida

dos homens em sociedade, resgatando Aristóteles e, de certa forma, replicando a

dicotomia hierárquica entre sujeito e objeto. A partir de Étienne Condillac, que trouxe

o conhecimento do mundo para a experiência humana por meio dos sentidos, Charles

Batteux deu o salto definitivo que acompanhou a ascenção do individualismo

provocada pela reforma calvinista. Uma tão grande revolução no pensamento europeu

não passaria longe do pensamento científico, mesmo que levasse algum tempo para se

estabelecer como possibilidade teórica e filosófica. Ao romper com a lógica, que

regularia o pensamento e que seria o substrato da linguagem, Charles Batteux tomou a

linguagem como determinante do pensamento, subvertendo a ordem divina. A

linguagem, manifestação humana, determinaria o pensamento adquirido pela

experiência do mundo vivida por meio dos sentidos do homem. Ele retirou de Deus o

caráter universal, dotando o homem de intemporalidade e poder criador, e tornou a

Natureza, universal e intemporal, ordenadora da fala humana. Charles Batteux

colaborou com as ideias filosóficas que pretendiam dar liberdade ao homem,

libertando-o sobretudo de Deus. Para libertar o homem de Deus, foi necessário

libertar também a Natureza de Deus, assim, o homem tornou-se apartado da Natureza

e a Natureza apartada de Deus. Ambos vivendo sob regras próprias. O homem

vivendo sob as regras sociais e a Natureza sob as regras naturais, que pressupunham

um ciclo vital independente do ciclo vital do homem. Mas havia ainda entre o homem

e a Natureza uma ponte, o eterno, uma das imagens do divino.

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Um dos problemas de considerar a língua como uma atividade mental é que

damos à ela uma subjetividade singular, ao mesmo tempo em que ela é

individualmente corporal é também coletiva. Tomando as ideias de Étienne Condillac,

para quem o conhecimento do mundo é experimentado pelo corpo por meio dos

sentidos, podemos dar continuidade à sua especulação sobre os processos mentais

relacionados aos sentidos ao conectá-lo com as descrições atuais do funcionamento

cerebral. Os processos mentais, do ponto de vista cerebral, são atividades neurais de

troca e recepção de impulsos elétricos entre os neurônios envolvidos. Assim, o sentido

da visão depende da luz que entra pelos olhos para estimular o cortex e desencadear

uma série de reações químicas de troca e recepção de impulsos elétricos entre os

neurônios especializados para a visão. Os olhos dos mamíferos, ao longo de seu

processo de evolução, desenvolveram um mecanismo muscular que reduz ou amplia a

entrada de luz que estimulará o cortex. O músculo do olho que desempenha esta

função foi treinado pela exposição repetida à luz e à penumbra, até que o movimento

de retração e dilatação se tornasse algo automático.

Para Kim Sterenlny (2012, p. 2147), a visão é considerada o sentido

primordial no desenvolvimento da linguagem como ferramenta de comunicação entre

os hominídeos, pois o uso das mãos e do rosto teriam sido predominantes frente à

vocalização para a comunicação. Hernández-Muella e sua equipe (2004, p. S64)

entendem que uma das pegadas neurológicas deixadas por esse uso é a plasticidade

dos neurônios específicos da audição que, em caso de perda auditiva “migram” para a

função da visão. Esta migração seria o retorno para a função primordial daquele

conjunto de neurônios que posteriormente separou-se, especializando-se em duas

atividades sensoriais distintas: visão e audição. Para Dietrich Stout e sua equipe

(2000, p. 1221) entre as várias áreas cerebrais ativadas durante a fabricação de

ferramentas de pedra estavam as sensório-motoras, como visão, tato e sentido da

posição da corpo. A ativação dessas áreas permitiu uma associação entre elas

particularmente importante no curso da evolução humana, permitindo que o cérebro

humano se tornasse capaz de desenvolver atividades cada vez mais complexas.

Este automatismo neuronal resultante de uma atividade anteriormente não

autônoma nos leva a questionar quais seriam os limites entre comportamento e

instinto. Este é um debate bastante antigo, visto que o exemplo do olho dos mamíferos

mencionado acima, foi o calcanhar de Aquiles dos teóricos do Behaviorismo,

atacados incessantemente por seus críticos. Para William Baum (2006, p. 24), a

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formulação teórica do behaviorismo (comportamento) metodológico, que influenciou

Bloomfield, pode ser representada pela relação entre o estímulo do ambiente e a

resposta do organismo. O ambiente seria o mundo real, externo, do qual só seria

possível obter dados sensoriais sem nunca conhecê-lo diretamente, e a resposta seria a

elaboração interna, subjetiva, do eu sobre esta realidade. Embora aclamada como a

teoria que possibilitava o estudo objetivo da língua, esbarrou em sua própria

definição. Os críticos se perguntavam, afinal, o que era comportamento; sendo fruto

da experiência subjetiva sobre a realidade exterior não seria, então, algo pouco

observável, profundamente subjetivo e, portanto, nada objetivo?

Quanto a mim, prefiro especular sobre a natureza autônoma dos processos

cerebrais, dos mentais e dos sensoriais e gosto de imaginar que sobre eles existiu um

processo de “domesticação”. Usar “domesticação” para me referir a processos

neuronais pressupõe o entendimento de que a evolução humana não foi mero acaso

nem pura necessidade, mas sim, uma escolha deliberada de técnicas, de práticas e de

interação social entre grupos de hominídeos. Porque, se pensarmos que o músculo do

olho passou por um processo de “domesticação”, então o funcionamento cerebral é

fruto da “domesticação” das sinapses cerebrais. O que podemos considerar é que a

“domesticação” das sinapses estaria inevitavelmente associada ao desenvolvimento da

língua. Mas afinal o que surgiu antes, a língua, a cultura ou o pensamento? De acordo

com Steven Mithen (2002, p. 64), nem língua, nem cultura, nem pensamento. A

construção recíproca do pensamento, da língua e da cultura, por meio da interação

entre o humano e o meio, o humano e o outro, o humano consigo mesmo desencadeou

um processo que tomou o rumo do que hoje tratamos como pensamento, língua e

cultura. Não é que sejam a mesma coisa traduzida de maneiras diferentes por

disciplinas diferentes. Nesse sentido, proponho uma questão fundamental sobre a

visão. O objeto se tornou objeto porque minha visão faz dele uma entidade distinta do

fundo sob o qual ele se situa ou porque uma elaboração “domesticada” tornou

possível fazê-lo diferente do fundo sob o qual se situa? O que diferencia e faz

significar tem uma história, tem um processo no tempo, é fruto de interação e, só

assim, significa. Isso torna impossível dizer que existe uma estrutura universal da

língua.

De René Descartes a Charles Batteux, o homem foi dividido em dois e

separado de Deus. A porção humana que antes pertencia a Deus passou a obedecer

aos sentidos captados pelo corpo, o que trouxe para a vontade do homem a vontade de

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Deus, mesmo que seja considerada uma vontade inconsciente. No que diz respeito ao

sujeito agente, à agencialidade humana sobre o mundo, pouco mudou, o homem ainda

senhoreia o mundo. Mas já não poderíamos entender o paciente, ou sujeito paciente,

da mesma forma. Sofrer ou experienciar o mundo não era mais um atributo divino, era

uma experiência cognitiva baseada nas informações adquiridas pelos sentidos. Mais

complexa se tornou a experiência da Natureza. Sofrer os desígnios divinos

pacientemente ou passivamente eram fatos vividos por qualquer ser sob a lua, fosse o

homem ou a manteiga. Ao deixar a Natureza vivendo sob suas próprias regras, dela

foi tirada a possibilidade de agir ou reagir em retorno à ação sofrida. Plantas, animais

e homens selvagens estariam submersos na imobilidade objetificada. Tornaram-se

objetos incapazes. A objetificação da Natureza e de seus seres iniciou com as

hipóteses sobre a vida comum das latitudes semelhantes, elaborada por Aristóteles, e

alcançou seu ápice com Alexander von Humboldt e suas hipóteses sobre a vida

comum das altitudes iguais. Veremos mais adiante como os naturalistas objetificaram

a Natureza, o mundo e o Outro.

Linguisticamente, os traços semânticos atribuídos a todas essas categorias

gramaticais: agente, paciente e objeto, mudaram ao longo dos séculos em que foram

disputadas filosoficamente a verdade e a realidade, por isso, considero que traços

semânticos não são universais, tampouco são atemporais. As interpretações sobre a

hierarquia gramatical entre sujeito e objeto se tornam mais complicadas se usarmos

um exemplo que trate de nós mesmos:

(6) Eu caí.

A intransitividade verbal se tornou um campo de trabalho bastante produtivo.

Eis mais um bom exemplo. O pressuposto aqui é que ninguém cai intencionalmente.

Bom, se ninguém cai intencionalmente, então ninguém cai, somos todos derrubados,

seja pela gravidade seja por um abalo sísmico. É exatamente a não intencionalidade

da queda que faz deste sujeito-agente prototípico um caso de sujeito-experienciador.

Embora seja centrada no ego, a experiência de cair revela a força de externalidade do

pronome pessoal “eu”. No exemplo (6), “eu” não pode cair por si próprio, então a

quem revelamos nos sentidos ocultos de “eu”? Em primeiro lugar, é externo a “eu”;

em segundo, é uma força superior a “eu”. O aterrador desta perspectiva é que, embora

sejam todas caraterísticas externas a “eu”, estão todas presentes em “eu”, quando “eu”

cai. As coisas podem complicar quando a frase trata de nosso próprio corpo:

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(7) Eu cortei o dedo.

Considerando que “eu” é o sujeito agente a priori do verbo “cortei”, o objeto

sob o qual “eu” age é “o dedo”. Um tanto estranho pressupor que entre eu e meu dedo

haja uma diferença existencial que faz de mim algo distante a ponto de eu e meu dedo

não sermos a mesma coisa. Há a suposição intrínseca de uma ideia de valor que faz do

ser um ente abstrato representado por sua alma, seu espírito ou sua mente e expresso

materialmente na língua por meio de “eu”, que possui em si a agência e que é superior

ao corpo. O corpo é o objeto do espírito, sobre ele o “eu” age. Ainda posso complicar

um pouco mais em:

(8) Eu me cortei.

Já não havendo mais a concretização do corpo, como no caso de “o dedo”,

temos que supor que “me” designa o corpo de “eu”. Intencionalmente ou não, meu ser

agiu sobre meu corpo, machucando-o. Surpreendentemente, há a possibilidade

gramatical de dizer a mesma coisa em:

(9) Me cortei.

É aqui que percebo mais claramente a hierarquia entre o corpo e a alma.

Temos que supor que existe um sujeito “eu”, implícito, agindo sobre o meu corpo,

mesmo que eu não precise materializá-lo na língua para expressar o que me

aconteceu. O fato de que meu corpo corta a si mesmo sem a presença de “eu” é

inconcebível, pois há na agentividade do sujeito gramatical expresso pelo pronome

“eu”, inculcada, a memória esquecida de que o corpo é inerte e a alma o habita, que é

o mesmo que dizer que o homem é feito do barro animado pelo sopro divino. Se

nosso mito de origem, nossa ideia de criação, é um dos determinantes das categorias

gramaticais que estabelecemos para nos designar e nos colocarmos em nossos lugares

de enunciadores, não podemos supor que sejam universais e se prestem a esclarecer

quaisquer relações gramaticais em línguas de povos que não partilham nosso mito de

origem.

Não me refiro ao aspecto ontológico da manifestação do ser, mas me refiro

sim aos aspectos de predicação que determinam as categorias gramaticais sujeito e

objeto. Refiro-me precisamente às narrativas míticas cristãs embutidas nas teorias e

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descrições metodológicas que a ciência ocidental vem propagando como

conhecimento científico de base cristã em contraposição às tradições judaica e

islâmica que já usufruíam de um prestígio consolidado de sistematização do

conhecimento monoteísta.

5.3 A voz que serve a Deus

As gramáticas valorizavam a etimologia como estudo da língua, pois por meio

dela era possível conhecer a natureza das coisas, fossem elas coisas ou homens. Como

se as palavras, após pronunciadas, em uma era primordial, se materializassem nas

próprias coisas. Essa ideia de palavra evoca as letras metafísicas usadas na criação do

mundo, segundo o mito hebraico, como vimos no capítulo anterior. A diferença aqui,

embora cristãos e judeus partilhem o Gênesis, é que a voz ou o verbo divino tomou a

dianteira na tarefa da criação sem a intervenção protagonista das letras metafísicas. A

palavra divina cria ao ser pronunciada, por isso, Tomás de Aquino resgatou a

advertência de Santo Agostinho quanto ao fato de que, por ser Deus imóvel, não havia

em Deus o cogito. O pensar pressupõe movimento antes mesmo da fala, portanto, o

pensar é ato humano e faz da palavra humana diferente da palavra divina64. Para

Tomás de Aquino, a palavra humana não cria, apenas expressa o entendimento da

coisa (ratio), por meio da contemplação da verdade. O exercício do entendimento da

coisa (ratio) passaria pela identificação da coisa já existente no conhecimento humano

guardado na alma como verdade divina e somente depois de percorrido este caminho

interno se tornaria palavra humana quando dita. Por isso, a fala seria própria do

pensamento. A fala seria um esforço do pensamento (ratio) de encontrar na alma a

verdade para pronunciá-la65.

Em seu De differentia verbi divini et humani, Tomás de Aquino (1993, p. 6) se

dedicou a explicar a palavra humana e sua origem, contrapondo-a com a palavra

divina. Para ele, o intelecto era tripartido, e a palavra humana, por ser fruto do

intelecto e não da alma, era mero acidente. A palavra verdadeira seria apenas a

palavra de Deus, guardada nas almas humanas no ato de sua criação. Assim, todas as

coisas já teriam sido nomeadas por Deus ao terem sido criadas e seus nomes

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!64 Sic ergo verbum nostrum prius in potentia quam in actu. Sed Verbum divinum Semper est in actu, et ideo nomen cogitationis Verbo Dei proprie non convenit. Dicit enim Augustinus, III De Trinitatis, “Ita dicitur illud Verbum Dei, ut cogitando non dicatur, ne quid quasi volubile in Deo credatur”. Et illud quod Anselmus dicit, quod “dicere summo Patri, nihil aliud est quam cogitando intueri”, improprie dictum est. Quaestio IV, art. 4. Sancti Thomae Aquinitis, De diferencia verbi divini et humani. 65 Locutio est proprium opus rationis. Quaestio 91, art. 3. Sancti Thomae Aquinitis, Summa Theologiae I.

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guardados em nossas almas desde aquele momento. Ao conceber um intelecto

tripartido a partir do qual teríamos capacidade para falar, Tomás de Aquino elaborou

as distinções entre sentido e fala, sendo o sentido unicamente interior, fruto das três

operações do intelecto: a intelecção propriamente dita; o conhecimento da espécie da

coisa, previamente aprendido; e a potência do intelecto que dá ao intelecto capacidade

de conhecer mais. A fala é a palavra exterior, aquela que sai de quem fala mediante

sua voz. Assim, a palavra sempre procede do intelecto, somente existe no intelecto e é

semelhante ao conhecimento da coisa (ratio) que o intelecto possui sobre a coisa. Esta

palavra formada no intelecto é a palavra proferida, a palavra exterior, ou seja, a fala.

Aquela que é formada e expressa na alma, a palavra interior, possui em si a natureza

da coisa que fomentou a palavra exterior, não sua semelhança, mas o próprio

entendimento da coisa.

Destrinchando o pensamento de Tomás de Aquino em partes mais palatáveis,

ou melhor, mais conhecidas pelo nosso intelecto do século XX, vimos que a fala tem

como atributos a similitude entre coisa e nome, desencadeada por um processo

mental. Em oposição, o sentido verdadeiro de um nome jamais poderia ser

pronunciado, apenas vislumbrado no interior das reflexões da alma, em cujo âmago

estaria o conhecimento de todas as coisas criadas por Deus. O sentido do nome e a

essência da coisa são iguais. Nesta lógica, o nome e a coisa se correspondem, em uma

única direção, do divino para a matéria, estabelecendo a ordem de um nome, ou item

lexical, para cada coisa existente. Dessa forma, o sentido pertence à alma, a fala ao

corpo. Ambos se encontram no pensamento onde opera o processo de entendimento

da coisa. A palavra então possui uma dupla materialidade, a sonora e a abstrata66. A

materialidade abstrata é indivisível e imutável. A materialidade sonora somente chega

a sua expressão após um processo mental que vasculha a alma em busca de

significado. O processo mental se distingue em duas etapas. A primeira é a imagem

mental da coisa e a segunda é a expressão sonora dessa imagem.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!66 Et si quidem eadem res sit intelligens et intellecta, tunc est ratio et similitudo intellectus a quo procedit. Si autem aliud sit intellectus et intellectum, tunc verbum non est ratio intelligentis, sed rei intellectae: sicut conceptio quam habet aliquis de lapide est similitudo lapidis tantum. Sed quando intellectus intellegit se, tunc tale verbum est ratio et similitudo intellectus. De differentia verbi divini et humani, Tomás de Aquino (1993, p. 6, tradução minha) E se, de fato, a coisa inteligível é igual à intelecta, então o conhecimento da coisa (ratio) se assemelha ao inteligível do qual procede. Se um é entendido e outro inteligível, então a palavra não é inteligível, é coisa entendida: como a concepção que alguém tem de pedra que é unicamente uma semelhança da pedra. No entanto, se o intelecto entende, então, em tal palavra, o conhecimento da coisa (ratio) é semelhante ao entendido. !

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Tim Ingold (2015, p. 26), em Lineas, buscou entender os intrincados caminhos

dos múltiplos significados de uma palavra e revisitou a Idade Média para entender

como compreendiam a palavra os escolásticos. Segundo o autor, a voz humana era,

para os escolásticos, a porta-voz da palavra de Deus. Em seu livro, Tim Ingold

também trouxe o trabalho de Walter Ong, Orality and literacy, que discorre sobre a

experiência de povos ágrafos frente às palavras faladas. Para o autor, os povos de

“oralidade primária” não pensam nas palavras separadas de seus sons, para eles, as

palavras são seus sons, não coisas transmitidas pelos sons.

A questão que se apresenta para nós é o fato de que, ao tratarmos de homens

selvagens, como eram entendidos os índios, dos quais sequer se tinha certeza da

humanidade ou da existência de alma em seus corpos, a sua capacidade para a

linguagem era também questionada. O entendimento geral era que o homem selvagem

não possuía capacidade para a linguagem, pois a linguagem era considerada uma

expressão racional da alma e os selvagens apenas podiam comunicar sentimentos,

pois eram irracionais. Para tratar desse tema, Roger Bartra (2011, p. 414) comparou o

Ensaio sobre a origem das línguas de Rousseau com Sobre a origem e o progresso da

linguagem de Étienne Condillac, e concluiu que ambos os autores usaram variações

do mesmo exemplo para especular sobre a linguagem dos homens selvagens.

Rousseau supôs que o homem selvagem, ao avistar outro homem selvagem, sentiria

medo, o que o levaria a chamá-lo de gigante. Étienne Condillac, por sua vez, supôs

que os gritos com os quais as crianças abandonadas nos bosques se comunicam

expressariam seu medo. O medo seria o motor da ideia que estaria ligada à palavra

gigante e aos gritos das crianças. Embora considerassem que havia uma atividade

mental (ideia) relacionada à palavra gigante e aos gritos, a linguagem dos selvagens

era considerada figurativa, porque exprimia juízos precipitados da realidade não

sendo fruto da razão e sujeita ao exagero. Tendo em vista que os índios sul-

americanos haviam sido atingidos em sua inteligência pela bile negra que os deixava

melancólicos, seria necessário extrair de suas almas, caso tivessem uma, a

contemplação da verdade expressa por sua bruta linguagem. A mera suposição de

uma alma cristã em um corpo indígena é bastante desconfortável, quiçá uma verdade

cristã para a expressão de uma palavra em língua indígena.

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6. A NATUREZA PELO AVESSO

Graças à descoberta da antiga língua da Índia, o sânscrito, como é chamada […] e graças à descoberta do estreito

parentesco que une esta língua aos idiomas das principais raças da

Europa, e que foi descrito pelo gênio de Schelgel, Humboldt, Bopp e outros

mais, aconteceu uma revolução completa na maneira de se estudar a

história primitiva do mundo. (Müller, 1868, p. 136-137)

A princípio, a visita dos naturalistas à América ainda prescrutava o espírito

selvagem em busca da alma dos índios, percebemos isso muito claramente no

comentário de Charles-Marie de la Condamine sobre as línguas indígenas das quais

anotou pequenos vocabulários. Seu interesse recaía exatamente sobre a existência de

palavras como honra, justiça e espírito, as quais não encontrou equivalente nas línguas

que conheceu. Charles-Marie de la Condamine67 não era um aventureiro solitário na

América, sua tarefa era levar informações geográficas para determinar se a Terra era

uma esfera (proposta cartesiana francesa) ou se seria um esferoide achatado nos polos

(proposta newtoniana inglesa), e coletar espécies para contribuir com a grande

catalogação proposta e publicada por Lineu em 1735, chamada Systema Naturae68.

Neste livro, Lineu propunha a classificação dos vegetais de acordo com seus órgãos

reprodutores para as espécies conhecidas dos europeus tanto quanto para as

desconhecidas. Este sistema foi o desenvolvimento posterior do sistema binomial69

proposto pelo suíço Caspard Bauhin70, em 1596, para designar espécies botânicas,

identificando a espécie e o agrupamento taxonômico no qual poderia ser incluída. O

sistema não prosperou nem obteve seguidores, talvez porque Bauhin fosse um

hunguenote exilado na Confederação Helvética. Afinal, as narrativas científicas

participam de uma arena bibliográfica onde disputam publicações e autores. Os

lugares de fala de cada autor fazem toda a diferença nesse embate, e o fato de ser

reformista durante o período de controle da contra-reforma deixava Bauhin à margem

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!67 Histoire de l’Académie Royale des Scienses. Éloge de M. de la Condamine. 1778, p. 86 e 102. 68 Systema naturae per regna tria naturae, secundum classes, ordines, genera, species, cum characteribus differentiis, synonymis, locis. 69 Pinax Theatri Botanici, sive Index in Theophrasti, Dioscoridis, Plinii, et botanicorum qui a seculo scripserunt opera. 70 Enciclopaedia Britannica. 11 ed. v. 3, 1911, p. 539.

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das disputas intelectuais de sua época, embora tenha publicado um vasto compêndio

de flora medicinal, integralmente reaproveitado por Lineu.

Um pouco mais tarde, Alexander von Humboldt empreendeu sua fascinante

viagem descritiva sobre a natureza americana publicada sob o título de Quadros da

Natureza. Alexander Humboldt descreveu e catalogou tudo o que lhe passou em

frente aos olhos, mas, mais do que isso, permitiu às iluminadas mentes europeias uma

antevisão do progresso vindouro, das melhorias advindas da exploração ordenada e da

produção intensiva. Uma das imagens mais interessantes que Alexander von

Humboldt (1965, p. 302-307) produziu está no seu Quadros da Natureza no qual

descreveu minuciosamente as espécies vegetais que encontrou nos diferentes níveis de

altitude durante a subida do Chimborazo, montanha equatoriana que tem 6.268 metros

de altura. Esses pequenos nomes escritos em diferentes direções identificam as

espécies botânicas distribuídas pelo espaço que ocupam na altitude a que pertencem.

A intenção de Alexander von Humboldt era inventariar as diferentes espécies que

ocupavam a mesma altitude em todo o planeta, algo parecido com a proposta de

Aristóteles a respeito das latitudes iguais, porém, em vez de especulação filosófica,

dedicou-se ao trabalho de campo, anotando e catalogando cada uma das espécies em

seu devido lugar de aparição. Uma tarefa ainda hoje considerada digna de um bom e

dedicado trabalho científico, mas que, no entanto, ignora e mascara a presença

humana nesse território. Encontramos no texto de Alexander von Humboldt (1965, p.

304-305) uma longa especulação a respeito da origem e do significado do nome

Chimborazo que, aparentemente, relaciona-se com a história local. No entanto, os

autores citados como fonte de informação a respeito do significado do nome foram:

Charles-Marie de la Condamine, que supôs se tratar de uma derivação de chimpa

‘passar um rio’, em quíchua, já que a montanha fica em frente à aldeia Chimbo na

outra margem do rio; Fray Diego Gonzáles Holguín, jesuíta, autor do Vocabulário da

Língua Geral de todo o Peru, que discordou da explicação dada por “muitos

indígenas da província de Quito” que afirmavam que Chimborazo queria dizer ‘neve

do Chimbo’, alegando que o verdadeiro nome da neve seria ritti; Buschmann, que

esclareceu o nome de neve no dialeto chinchai-suio como sendo rajui com j gutural.

Para responder à sua inquietação, elaborou ele mesmo uma derivação de chimpu, que,

em quíchua, significa ‘fiapo de lã ou franja colorida’, referindo-se ao acabamento que

se dá ao pano tecido, como uma bainha desfiada, intencionalmente ou não,

relacionando-a ao mito do sol e da lua devido à cor avermelhada do céu no pico da

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125!

montanha e às auréolas do sol e da lua. Não satisfeito com sua própria explicação,

questionou a antiguidade da língua Inca, supondo, como seu irmão Wilhelm

propunha, que os nomes de rios e montanhas seriam os monumentos autênticos da

história das línguas, sendo possível traçar por meio deles a difusão das raças. Citou

Juan de Velasco, e sua História de Quito e William Prescott, History of the conquest

of Peru, amparando cientificamente suas ideias com toda a bibliografia disponível

sobre a área naquele momento. Os “indígenas da província de Quito” ficaram

silenciados e perdidos no meio da explicação de Fray Diego Gonzáles Holguín.

Em As formas do silêncio, Eni Orlandi (2007, p. 73) afirmou que o

silenciamento sublinha que o dizer do sujeito esconde sempre outros dizeres, outros

sentidos. Os recortes dos dizeres e o procedimento de mostrar uma coisa e esconder

outras tem uma conotação política. A política do silêncio está relacionada com o

Outro, com as maneiras de significar o Outro. Tanto Fray Diego Gonzáles Holguín

quanto Alexander von Humboldt silenciaram os indígenas da província de Quito ao

contradizerem suas hipóteses, desconstruindo-as sob as luzes científicas da verdade

comprovável, mensurável e etimologicamente correta. A verdade científica sobre a

origem do nome Chimborazo pertencia aos pesquisadores europeus, à ciência

europeia. A natureza, a geografia e as línguas pertenciam a quem as descrevia e as

catalogava, a quem dominava a forma narrativa do discurso científico. Mas afinal,

quem guiou Alexander von Humboldt pelo Chimborazo? Foi seu guia indígena quem

lhe mostrou as diferentes plantas e lhe disse seus nomes e seus usos?

O apagamento da existência indígena e de seus relacionamentos com o

pesquisador, seus relacionamentos históricos com a paisagem e com outros grupos

étnicos em muito se parece com a forma de elaborar os mapas etnolinguísticos de Curt

Nimuendajú.

IMAGEM 3 - Tableau physique de Alexander von Humboldt, 1803. Fonte: http://www2.humboldt.edu/scimus/AvH_HSU_Centenial%20Exhibit/Chim_picColor_36.jpg

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MAPA 2 – Mapa etnolinguístico do planalto central e adjacências por volta de 1700

d.C.

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Fonte: Rodrigo Martins dos Santos. <http://repositorio.unb.br/handle/10482/13288>.

Assim como no desenho do Chimborazo, neste mapa, as línguas ou os grupos

étnicos foram enumerados, listados e distribuídos no território conforme sua presença.

Uma forma descritiva e imagética elaborada pela história natural romântica que se

difundiu no trabalho científico como conhecimento científico sobre os índios,

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associando ambos, índios e plantas, ao mundo natural. Alexander von Humboldt não

elaborou apenas a forma de apresentar o conhecimento, para Raja Gabaglia (1965, p.

VI), no Prefácio à edição brasileira de Quadros da Natureza, ele foi um dos criadores

da Geografia Científica. Todos os viajantes, sejam eles missionários do século XVI ou

aventureiros do século XVIII, que fizeram viagens anteriores a de Alexander von

Humboldt descreveram as possibilidades de extração, colonização das terras e

escravização das pessoas nos lugares em que estiveram. No entanto, foi somente a

partir dos textos de Alexander von Humboldt que o caráter científico tomou corpo e

se estabeleceu como modelo de análise teórica. Para Mary-Louise Pratt (1999, p. 43-

63), em Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação, a catalogação

sistematizada da natureza era um novo tipo de projeto imperialista europeu, cuja

autoridade científica estava respaldada no prelo. Enquanto o mapeamento marítimo,

costeiro e fluvial buscava rotas para o comércio e terras para colonizar, a exploração

do interior proposta pela “história natural” buscava ordenar discursivamente o caos no

qual o mundo estava submerso. Mary-Louise Pratt (1999, p. 186) considerou que o

papel do cientista era, então, fundamental. A partir da intervenção intelectual era

possível estabelecer uma ordem, colocando-a em seu lugar apropriado no sistema

científico: o livro, a coleção ou o jardim. Michel Foucault (2010, p. 179) analisou o

pensamento classificatório da história natural do século XVIII comparando-o a uma

“sequência de linguagem descritiva (…) que poderia ainda ser uma ciência geral da

ordem”.

6.1 As regras da natureza

Em seus relatos de viagem, Alexander von Humboldt replicou a supremacia

europeia e a hierarquia racial, visto que são comuns, em seu texto, expressões como:

“são esses índios, pela maior parte, selvagens a quem repugna toda a cultura.”71;

“submergidos em completa selvageria, não distinguem estes povos por nomes

geográficos senão os objetos que possam ser confundidos.” e “em sítio selvagem,

cujos habitantes foram sempre tão grosseiros como hoje”. Inicialmente considerarei a

presença dos conceitos índio e selvagem, apresentados e bem discutidos nos capítulos

anteriores. A presença desses predicados para determinar e descrever as populações

indígenas ainda no século XVIII nos dá a percepção do quão atávicas e imemoriais

são essas atribuições de sentido ao Outro.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!71 Quadros da Natureza, 1965, p. 165, 213 e 171.

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No primeiro exemplo, destaco o uso de cultura, conceito alemão que “alude a

fatos intelectuais, artísticos e religiosos”, como explicou Norbert Elias (1994, p. 24-

25), uma forma de fazer produtos humanos como obras de arte, livros, sistemas

filosóficos e religiosos, sempre impulsionados, sempre com movimento, em um

constante desenvolvimento “para frente” que expressaria a individualidade de um

povo, enfatizando as diferenças nacionais e a identidade particular de grupos, em

oposição à civilização, outro conceito trabalhado em capítulos anteriores, que se

referia basicamente ao comportamento e às atitudes das pessoas, com conotações

morais, mas sem a exigência de uma realização concreta. A antítese entre cultura e

civilização teve suas origens literárias fundadas no frutífero período do século XVIII

em que viveram e produziram os irmãos Humboldt, no entanto, foi Kant quem

primeiro elaborou esta dicotomia, em seu Idéias de uma história universal, do Ponto

de vista de um Cidadão do mundo, de 1784. Segundo Norbert Elias (1994, p. 28), a

construção desta dicotomia conceitual se fundamentava, na Alemanha, em uma

dicotomia social: a nobreza que falava francês e era civilizada, obedecendo às regras

de etiqueta cortesã e que não produzia; e a nova burguesia alemã, a intelligentsia de

classe média, que falava alemão e que se legitimava em termos de suas realizações

artísticas, intelectuais ou científicas. A partir de 1792, a França entrou em guerra

contra várias partes do Sacro Império Romano Germânico, ininterruptamente, até

derrotá-lo, em 1806, sob o comando de Napoleão Bonaparte. Derrotados por seu

opositor mimético, o francês que detestavam em sua própria corte, os intelectuais e

artistas burgueses alemães utilizaram todo o seu potencial criativo de trabalho para

fazer oposição política contra os franceses. Embora não tenha sido um movimento

político, como em geral se descrevem os movimentos políticos, pois não havia

manifestos, nem encontros, não havia local de reunião dos militantes que estavam

espalhados por todo o território subjugado a Napoleão. Os sentimentos expressos nos

livros escritos por esta vanguarda foram se tornando cada vez mais correntes entre a

intelligentsia. A nova geração manifestava ódio violento a príncipes, cortes,

aristocracias, afrancesadores, e desabrochava em sonhos de uma nação unida, sem o

freio da “razão fria”, como nos esclareceu Norbert Elias (1997, p. 130), pois a razão

era a marca civilizatória francesa, o controle dos sentimentos individuais por meio da

razão. A razão francesa era mal vista nos círculos da intelligentsia. Em uma carta

dirigida a Gentz, em 1791, Wilhelm von Humboldt (1943, p. 78, tradução minha,

grifo meu) mencionou que nenhum regime de Estado estabelecido pela razão poderia

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realizar seus propósitos. Em sua Teoria Geral do Estado, escrita entre 1791 e 1792,

mencionou que “o supremo e último fim de todo homem é o desenvolvimento mais

elevado e proporcionado de suas forças, dentro de sua particularidade individual.”72 Já

havia em seus escritos políticos a semente que conduziu a elaboração de seus estudos

linguísticos. Foi neste contexto, em que a auto-imagem de uma nação ainda abstrata,

uma die deutsche kultur, se estabelecia e se propagava, que os trabalhos de Goethe,

Schiller, Kant e dos irmãos Humboldt progrediram. Por isso, a repugnância à cultura

manifestada pelos povos americanos, expressa no primeiro exemplo, foi entendida

como uma forma de deterioração humana, afinal a ausência de desenvolvimento em

nível individual provocaria a degradação social. A recusa em aprender e dominar a

linguagem científica era pior do que a própria falta de cultura.

No segundo exemplo, não conhecer o mundo da maneira proposta pelo

cientificismo, que implicava conhecer nomes geográficos para o relevo da região em

que viviam, justificava a pouca capacidade intelectual desses homens. A inteligência

do selvagem já havia passado por diversas avaliações anteriores, como vimos nos

capítulos anteriores, sua melancolia se devia ao fato de que a bile negra produzida em

excesso nas regiões de clima quente atingia sua inteligência e não seu corpo. Assim,

justificava-se a exclusão do humano das regiões visitadas e mapeadas, o apagamento

das relações históricas entre os diferentes grupos, afinal, como está bastante claro no

terceiro exemplo, esta situação era permanente, eles teriam sido sempre selvagens.

Estavam reafirmadas as bases da hierarquia das raças, que mais tarde se desencadearia

na Eugenia e na supremacia dos arianos, alavancados pelo positivismo do início do

século XX e pela força política do nacional-socialismo alemão.

Andrea Wulf (2016, p. 150), em A invenção da natureza, fez um apanhado das

cartas de Alexander von Humboldt e delineou que, embora sua posição política contra

a escravidão e a favor do liberalismo, apoiando as revoluções francesa e americana,

fosse largamente conhecida, Alexander naturalizou as relações sociais das colônias e a

hierarquia racial e, acima de tudo, descreveu os americanos em termos de sua

disponibilidade para o trabalho. As fortes concepções políticas de ambos os irmãos

(Alexander e Wilhelm) Humboldt estiveram presentes nas elaborações de seus

trabalhos científicos tanto quanto as ideias religiosas protestantes. Ao privilegiar a

capacidade mental de alguns indivíduos como propulsores do desenvolvimento de um

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!72 Estudos Politicos, 1943, p. 94.

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povo, replicou o discurso a respeito da auto-imagem da intelligentsia alemã do século

XVIII, indivíduos solitários em sua empreitada científica para melhorar as condições

morais de seus compatriotas. Na última frase do capítulo 2 de On language,

transparece toda a preocupação de Wilhelm von Humboldt (1999, p. 26) de fomentar

nos indivíduos “perdidos na massa da população” o “poder intelectualmente criativo”,

tema antes já discutido em Sobre a Organização Interna e Externa das Instituições

Científicas Superiores em Berlim73, em que argumentou a respeito da responsabilidade

das instituições de ensino pelo “enriquecimento da cultura moral da Nação.” A

educação, então, se destinava a moldar a massa para que correspondesse às

expectativas de desenvolvimento cultural almejado pela intelligentsia. Exatamente no

que acreditava seu irmão Alexander von Humboldt (WULF, 2016, p. 277) que lhe

escreveu uma carta na qual dizia que “a educação seria o alicerce para uma sociedade

livre e feliz”.

O conceito indivíduo é um dos pontos fundamentais de seus trabalhos e remete

fortemente ao protestantismo, pois esse indivíduo é europeu por excelência, no

entanto, europeu do norte, afinal, na península ibérica imperara a contra-reforma. A

reforma protestante impulsionou a força expressiva do indivíduo, gerando um sujeito

descolado do mundo e relativamente autônomo em relação a seu comprometimento

cultural. Louis Dumont (2000, p. 12-65), em O individualismo, traçou uma linha de

construção do individualismo que remonta às origens do cristianismo como ideia

constituinte e fundadora do próprio cristianismo. O autor fez uma revisão das

exegeses que trataram do tema e concluiu que o individualismo foi uma maneira, nos

primórdios do cristianismo, de individualizar o humano para Deus, porque embora na

vida terrena alguns fossem servos e outros reis, perante os olhos de Deus todos eram

seus filhos. A reforma, para Louis Dumont (2000, p. 91-129) trouxe a

individualização do humano para o mundo, colocando na vontade humana a

obediência à vontade de Deus, transformada em vontade individual. A vontade ou a

ordem divina era a lei que se tornou a vontade do legislador ou do rei. Essa lei

baseada na vontade divina, teve implicações na formação e no funcionamento dos

Estados, pois era o reconhecimento do poder do indivíduo, emanado de um Deus que

simbolizava a cristandade. Assim a subjetividade do homem teria suplantado a ideia

de comunidade e se transformado na ideia de societas, conceito elaborado por

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!73 CASPER, G.; HUMBOLDT, W. von. Um mundo sem Universidades?, 1997, p. 79.

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Ockham, que significa um grupo de indivíduos vivendo juntos, e que é a base do

Estado moderno.

Para Louis Dumont (2000, p. 126), foi Herder, em 1774, quem afirmou a

diversidade das culturas, a individualidade de cada cultura composta por sua

comunidade específica de indivíduos em oposição à ideia de universalismo cristão. As

ideias de Herder sobre as culturas específicas de cada povo reforçaram o sentimento

de que a humanidade seria representada pelo “nós” em oposição ao Outro. Herder

procurava argumentos para exaltar a nação alemã e justificar sua ascenção e domínio

sobre os demais povos. As mudanças promovidas pela Reforma operavam com a

oposição entre o selvagem e o civilizado, desta vez expresso por um povo, de cultura

superior, e um outro povo, de cultura inferior. Por isso, nascer culturalmente

civilizado traz implicações para o desenvolvimento de uma perspectiva analítica das

demais culturas ou nações. No caso, a elaboração da teoria étnica das nacionalidades

que os sucessores de Herder transformaram em hierarquia das culturas ou das nações.

Outra implicação da teoria étnica das nacionalidades foi a super importância das

culturas para o estabelecimento de diferenças entre povos. Esta foi amplamente

adotada pelos naturalistas do século XIX no estabelecimento dos grupos étnicos e

línguas sulamericanos. Era preciso ser um povo, com um nome, um território, uma

língua, e uma cultura específica para servir ao propósito científico de catalogação da

natureza, entre os seres da natureza estavam, é claro, os selvagens.

Um bom exemplo da europeização do indivíduo foi a construção científica do

homo sapiens. Conceito elaborado por Lineu, em 1758, após inúmeros debates em

que foi considerada a necessidade de classificar o ser humano como tal no sistema

natural proposto por ele alguns anos antes. A elaboração sistemática de Lineu, que

tomou vulto internacional e que ainda está vigente nos estudos de botânica, previa

uma classificação a partir dos órgãos reprodutores das plantas. A dificuldade então era

identificar os diferentes tipos de humanos, afinal os órgãos reprodutores eram os

mesmos. A especulação sobre os elos naturais entre primatas, selvagens e civilizados

já estavam em debate desde o período clássico, como vimos no primeiro capítulo.

Segundo Gustav Jahoda (1999, p. 63-65), em seu Images of savages, foi Monboddo,

em 1773, quem dedicou-se a estabelecer uma relação teórica entre o surgimento da

linguagem e o progresso da humanidade, valendo-se das ideias herderianas do

desenvolvimento das potencialidades individuais como propulsores do

desenvolvimento cultural, para concluir que, no princípio, haviam nações de primatas,

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cujo desenvolvimento das habilidades teria se disseminado hereditariamente. Ele teria

sido o primeiro a usar o termo ‘raça’ para referir-se a espécies diferentes de homens,

mas foi com Blumenbach e sua proposta de medida craniana, o chamado índice

cefálico, que a determinação das raças começou, embora, para ele, a humanidade

fosse composta de uma única espécie, o que demonstrava de que lado do debate ele

estava e expressava suas ideias monogenistas da criação. A proposta de Blumenbach

pressupunha a divisão da humanidade em cinco grandes raças: caucasiana, mongólica,

etíope, americana e malásia. A raça caucasiana era a mais elevada e as demais seriam

degenerações dela. As ideias de Monboddo e de Blumenbach levaram à hipótese de

que haveria uma língua primeva, a original, ou pelo menos a língua primeva e original

da raça caucasiana, da qual todas as demais teriam se originado, ou degenerado, como

preferiria Blumenbach.

6.2 O dom da linguagem

Para Wilhelm von Humboldt (1972, p. 24), a linguagem era um dom atribuído

às nações como um destino inato, uma forma de emanação involuntária do intelecto.

Haveria no ser humano uma vitalidade (lebenskraft)74 exclusivamente humana e

desenvolvida ao longo da história de cada povo como a expressão de seu destino,

desencadeada pela capacidade intelectual dos indivíduos que comporiam aquele povo.

A linguagem, então, seria a manifestação exteriorizada das mentes dos povos e, ao

mesmo tempo, seria a alma dos povos e a alma dos povos seria sua linguagem. Para

Wilhelm von Humboldt (1972, p. 25), não haveria distinção entre linguagem e

intelectualidade, ele considerava que, apesar das explicações sobre o desenvolvimento

da linguagem ser fruto de sucessivos desenvolvimentos intelectuais na espécie

humana, seria preciso considerar que os sucessivos desenvolvimentos intelectuais se

originaram da peculiaridade intelectual da espécie humana considerada por ele como

o livre arbítrio e a consciência.

Ao estabelecer a linguagem como um dom inato, um “poder de falar”,

impossível de ser inventada, portanto, a qualidade que faz do humano, um humano,

Wilhelm von Humboldt criou um abismo entre o humano e todas as demais criaturas

existentes, abrindo uma lacuna no devir evolutivo que pressuporia o aparecimento do

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!74 A tradução corrente de lebenskraft é vitalidade, mas me parece que o sentido não é o mesmo. Lebenskraft seria melhor traduzido por prana ou chi, que expressam o sentido de força vital criadora engajado no lebenskraft de Wilhelm von Humboldt. O sentido de vitalidade, em língua portuguesa, está mais associado a bem-estar e vigor físico.

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ser humano em algum momento do processo de evolução. Muito embora ele

considerasse a transmissão desse dom, ao longo das sucessivas gerações, um fato

genético, ele elaborou seu argumento sobre a origem intelectual da linguagem

contradizendo os argumentos evolucionistas que se apoiaram posteriormente em seu

trabalho. Segundo Gerda Hassler (2014, p. 3), são atribuídas ideias à Wilhelm von

Humboldt que não fizeram parte de seu acervo intelectual, uma delas é a perspectiva

evolucionista a respeito do ser humano. Gerda Hassler (2014, p. 11) nos explicou que,

em geral, as ideias de Wilhelm von Humboldt estão relacionadas ao estruturalismo,

pois ele atribui um valor para cada item lexical.

Embora Wilhelm von Humboldt textualmente desconsidere a natureza divina

da linguagem, sua postura discursiva sobre a linguagem, sobre o intelecto e sobre a

alma o compromete. Considerar que a linguagem é um dom concedido, pressupõe a

existência de algo que o conceda, pois a força vital humana foi capaz de desenvolvê-

la de acordo com a capacidade intelectual dos indivíduos presentes em cada grupo

humano. Não foi esta vitalidade que desencadeou a linguagem. A linguagem é um

dom concedido75. Há, portanto, uma referência velada à existência divina provedora

da linguagem na espécie humana. Além de pressupor uma entidade que concederia o

dom, a linguagem seria o resultado do destino inato de um povo, não o produto de seu

trabalho. Aqui, o “destino inato” encerra a existência de algo que trace os destinos dos

povos antes mesmo que eles existam como nações. Ainda, Wilhelm von Humboldt

considera a peculiaridade do intelecto humano como sendo o livre arbítrio, uma ideia-

valor de caráter moral baseada nas ideias cristãs.

Como proposto por Wilhelm von Humboldt (1972, p. 20), a linguagem é

própria da espécie humana, independente do grupo ao qual pertence. A língua

desenvolvida por cada um dos povos é o reflexo do potencial criador dos indivíduos

existentes em cada grupo, como reflexos da evolução humana em seus mais diferentes

estágios. Quanto mais desenvolvido o espírito do povo (volksgeist) mais complexa e

permeada de conceitos abstratos é a língua produzida por eles. Para Wilhelm von

Humboldt (1880, p. 41), aqueles povos cuja capacidade dos seus indivíduos mais

proeminentes estivesse voltada ao caminho solitário do pensamento abstrato criariam

línguas mais complexas com mais conceitos abstratos, em oposição àqueles cujo

mediador do entendimento mútuo fosse principalmente as atividades externas ou

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!75 “It is not a labor of nations, but rather a gift fallen to them as a result of their innate destiny”. Linguistic variability and intellectual development, 1972, p. 2.

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físicas. O desenvolvimento do espírito dos povos no transcorrer do tempo levaria ao

progresso que alçaria o homem, como espécie, ao topo. Para Jose Maria Valverde

(1955, p. 47, tradução minha), tradutor de Wilhelm von Humboldt para o espanhol, o

progresso histórico não seria exatamente um progressismo material, mas de fato

espiritual, elevando a “marcha evolutiva do gênero humano”. Concordo com a

interpretação do tradutor. Entendo que Wilhelm era reformista e sua ideia maior de

libertação, por meio do progresso, era a ruptura das ordens eclesiásticas de acesso a

Deus. Esclarecer as massas, mediante a educação para seu desenvolvimento

intelectual, auxiliaria a humanidade a assentar em si a individualidade do divino. A

meu ver, a perspectiva dos diferentes graus de peculiaridade dos intelectos humanos

associada ao domínio militar e à subjugação política seria uma reelaboração com viés

linguístico da cadeia do ser, em que o mais complexo estaria no topo e o mais

complexo, para Wilhelm von Humboldt, significava o ápice civilizatório alcançado

pelos europeus reformistas, cujo desenvolvimento intelectual individual os capacitava

a construir uma civilização individualizadora, forte, produtora de arte e ciência.

Entendo que, para Wilhelm von Humboldt, a linguagem é inata da espécie

humana como fruto de seu desenvolvimento intelectual, transmitida geneticamente.

No entanto, o caráter dos povos conformaria cada uma das línguas de acordo com a

capacidade criativa de seus indivíduos proeminentes e essas características adquiridas

por meio do acúmulo sucessivo de conhecimento desenvolvido pelo potencial humano

do grupo, também seriam trasmitidas geneticamente. Assim, o potencial criativo de

um grupo humano seria transmitido a outro grupo por meio das migrações e das

subjugações políticas ou militares que permitissem a transmissão do conhecimento

aos povos não tão capazes de desenvolver por si sós uma civilização de alto nível

intelectual76. Então, um povo, uma língua e uma cultura são geneticamente coesos. A

coesão genética pode de muitas maneiras ser questionada, mas me pareceu bastante

interessante a forma como Amós Oz e sua filha Fania Oz-Salzberger (2015, p. 15), em

Os judeus e as palavras, trataram a questão. Para os autores, a coesão existente entre

o povo judeu não é genética, visto que não é possível resgatar o pertencimento ou não

às tribos originárias; não é territorial e não é linguística, pois há que se considerar os

grandes grupos judeus falantes nativos de língua não hebraica, como os judeus

europeus ou aqueles que vivem nos países americanos. A coesão, então, seria

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!76 “This entire course of progressive linguistic culture may only advance within the limits prescribed by its original linguistic predisposition.” Linguistic variability and intellectual development, 1972, p. 12.

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narrativa. É o profundo apreço pela manutenção das narrativas que mantém a coesão

do grupo. As narrativas, não a língua.

No que diz respeito ao tema principal desta tese, a ideia de transferência

civilizatória de povos superiores aos menos capazes intelectualmente é importante,

pois serviu como crítica ao modelo ibérico de colonização. Segundo Mary Louise

Pratt (1999, p. 16), a crítica ácida à forma violenta com que foram implantadas as

colônias na América se propunha a romper a cortina de ferro com a qual Portugal e

Espanha mantinham as colônias afastadas da dinâmica europeia. As incursões

clandestinas ou autorizadas dos naturalistas à América foram a forma encontrada

pelos países excluídos da colonização americana de penetrarem nos domínios ibéricos

e, sob a alegação do desenvolvimento científico, estabelecerem suas formas de

dominação, impondo seu modelo civilizatório. Wilhelm von Humboldt (1972, p. 14)

descreveu a decadência civilizatória de gregos e romanos como a interrupção do

processo criativo original do grupo decorrente da fragmentação linguística causada

pela invasão de línguas estrangeiras, o que os tornou incapazes de redirecionarem-se

em rumo ao desenvolvimento de um novo alento de vida. Já os hindus teriam tido o

cuidado de desenvolver as capacidades dos povos aos quais se aliaram levando o

conhecimento desenvolvido originalmente em suas terras até eles. Este era o modelo

civilizatório almejado por Wilhelm von Humboldt que ainda considerava a

capacidade tecnológica e científica desenvolvida até aquele momento pela

humanidade capaz de configurar mais uniformemente a influência civilizatória, em

oposição ao processo hindu que adquiriu traços característicos de cada ilha ou povo

onde esteve presente. O progresso civilizatório nos índios americanos, considerados

intelectualmente inferiores, tinha como resultado o corte definitivo da sua

peculiaridade original, mesmo naqueles povos em que essa peculiaridade pudesse ter-

se desenvolvido. Aqui, o autor se refere aos povos asteca e inca. Aos povos

sulamericanos, a incapacidade intelectual ocupava as discussões.

Anchieta e Nóbrega, no século XVI, já lamentavam profundamente a

incapacidade dos indígenas americanos de compreenderem as abstrações do espírito e

Wilhelm von Humboldt reverberou a mesma incompreensão a respeito das línguas

ameríndias. Infelizmente, ainda hoje esta crença opera nos métodos analíticos

linguísticos e invariavelmente jóias filosóficas se perdem em meio a aborrecidas

discussões sobre alinhamento sintático. Uma das pérolas que eu gostaria de apresentar

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aqui foi extraída dos exemplos publicados por Ramirez (2015, p. 14) em um artigo

sobre a ergatividade nas línguas yanomamö.

(6) Joahiw-nö ihiru a + naka+ ö nome erg. criança 3sg+chamar+dinâmico (presente) Joaquim chama a criança.

(7) kori+una+p+nö mau u + koa+ ö +he garça+Cl+pl.+erg. água Cl:líquido+ beber+ dinâmico +3pl./erg. As garças bebem água.

Em ambos os exemplos, a partícula ö expressa dinamicidade, no exemplo (6),

o movimento do ‘som saindo da boca no momento da fala’, e no exemplo (7), da

‘água escorrendo para dentro da garganta da garça’. O exemplo (7) nos permite uma

maior clareza a respeito de que tipo de dinâmica está envolvida neste sentido, que é a

do fluir, do contínuo e ininterrupto movimento da água. Associar a fala à dinâmica

fluida do escorrer da água, seja para dentro da garganta das garças, ao despejar um

jarro ou ao transcurso de um rio, implica associar o som da voz, e portanto a

linguagem humana expressa pela fala, ao movimento contínuo do fluir dos líquidos.

Embora a imagem do rio no qual nunca se banha duas vezes, evocada por Heráclito,

seja nossa velha conhecida, esta não é exatamente a imagem evocada pela partícula ö.

A imagem de Heráclito faria sentido dentro da perspectiva imagética da linguagem

elaborada por Wilhelm von Humboldt (1963, p. 418, tradução minha). Para ele, “a

linguagem, considerada em sua verdadeira essência, é algo persistente e, em cada

momento, transitória”77. Banhar-se no rio da mutabilidade de Heráclito é, em certa

medida, como o falar de um indivíduo para Wilhelm von Humboldt. Como se a fala

fosse punhados de água retirados do rio da linguagem ao pronunciar cada frase no

“fluir da fala entrelaçada”78.

No meu entendimento, a partícula ö do yanomamö, não trata da

impermanência do som, como em Wilhelm von Humboldt, ao contrário, explora o

fluxo contínuo da água e da fala, em que palavras e interrupções ocupam o espaço da

continuidade na fala, contrária a nossa concepção ocidental que entende o fluxo da

voz como um entrecortado de palavras e interrupções que constroem a fala. !Como

seria a imagem do discurso xamânico ou da fala de um chefe? Seria algo parecido

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!77 Die Sprache, in ihrem wirklichen Wesen aufgefasst, ist etwas beständig und in jedem Augenblick Vorübergehendes. 78 Ueber die Verschiedenheit des menschlichen Spracbaues u. ihren Einfluss auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechts, 1880, p. 56.

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com um rio cujo movimento contínuo estaria associado à fala imediata, momentânea,

temporária, mas a permanência do rio como rio, como existência de rio, seria a

evocação imagética da linguagem? Há abstração e metalinguagem suficientes na

partícula ö para investigarmos as considerações filosóficas sobre a linguagem entre os

povos de língua yanomamö. Infelizmente, como linguistas fazemos as perguntas

equivocadas e nos limitamos aos debates gramaticais, invariavelmente,

desconsiderando ou ignorando a existência de metalinguagem, filosofia ou qualquer

outra forma de elaboração conceitual e abstrata por meio de nossos interlocutores

indígenas, replicando o tão batido discurso de que o pensamento selvagem se produz

mediante o concreto e em relação ao prático.

6.3 O dom da palavra

Para Wilhelm von Humboldt (1999, p. 263), os objetos, as coisas ou os

fenômenos, quando compreendidos no tempo seriam mais acessíveis, porque

visualmente os contornos se misturariam pela imaginação ou pela visão. Embora a

visão fosse, dos sentidos sensoriais humanos, o privilegiado em detrimento do tato.

Na concepção humboldtiana, ele não considerava o olho capaz de distinguir limites

claros entre os objetos. Segundo o autor, seria necessário ocorrer algum tipo de

deslocamento para que se pudesse ter certeza dos limites dos objetos e tais

deslocamentos somente seriam possíveis no tempo, pois não haveria confusão entre o

presente (ser) e o passado (não ser mais), entre antes e depois. Então, assim que um

objeto fosse reconhecido, haveria que ser pronunciado imediatamente um som para

designá-lo. Embora reconhecesse a necessidade da visão para o estabelecimento das

diferenças entre os objetos a serem designados, Wilhelm von Humboldt (1999, p. 59)

privilegiava a percepção auditiva sobre os demais sentidos humanos em suas

concepções sobre a linguagem. O som articulado pelo falante causaria um

estremecimento nos tímpanos do ouvinte que dispararia uma atividade inteiramente

subjetiva. Essa atividade subjetiva formaria a representação mental, ou seja, o objeto

linguístico formado intelectualmente pelo ouvinte, mantendo uma “inseparável e

constante interação entre poder sensório e poder intelectual”79. Para o autor (1999, p.

61-62), o som estava entre o homem e o objeto. Se para distinguir o objeto, seria

necessário movê-lo no espaço, criando um antes e um depois, o mesmo se aplicava à

análise científica do som e do sentido, seria necessário rompê-los, criando distinções

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!79 Linguistic variability and intellectual development, 1972, p. 192.

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do som constante da fala em palavras e desmembrando as palavras em raízes, e de

raízes em algo que seria o primórdio do nosso atual fonema.

A meu ver, a voz, para Wilhelm von Humboldt, seria a mediadora da criação

do objeto linguístico conceitual no pensamento. Sem a linguagem, sem a fala, sem a

voz, não seria possível estabelecer nenhum conceito. O som estaria entre o homem e o

conceito. Como não haveria simultaneidade do pensamento e da fala, seria

imprescindível colocar a linguagem no tempo, pois sempre haveria um antes e um

depois. A temporalidade suporia a decomposição do pensamento e da fala em

fragmentos cujas variações de composição criariam uma gama de possibilidades para

apreender totalidades como unidades. Assim o som primordial seria monossilábico,

evocando novamente a noção de raiz para a formação das palavras, sendo fragmentos

menores do que as palavras, seriam as raízes morfológicas originais, primevas.

Teríamos então uma dupla materialidade na língua, o som e o conceito.

A ideia de que a linguagem possuía uma parte extra-humana e uma parte

humana não era novidade, nem para Wilhelm von Humboldt, nem para Tomás de

Aquino, nem para os estudiosos do hebraico. Tanto nas concepções tomasiana, quanto

humboldtiana, a linguagem estava dividida em duas. Na concepção tomasiana, o

sentido estava diretamente associado ao divino, já em Wilhelm von Humboldt, o

sentido fazia parte da história da língua como expressão de uma nação. A novidade

incorporada por Wilhelm von Humboldt ao discurso sobre a linguagem foi

exatamente trazer, para o homem, o sentido, visto que a linguagem ainda era

entendida como um dom divino cuja expressão era humana. Após Wilhelm von

Humboldt, a matéria da língua, em suas duas partes, encarnava no homem como o

som, produto da atividade humana da fala, e como o sentido, produto da vida

comunitária do homem. Linguagem e língua passaram então a ocupar dois níveis

diferentes. A linguagem seria universal, a propósito do dom transmitido

geneticamente e próprio do humano. A língua, por sua vez, estaria vinculada à

atividade humana, não ao espírito humano, como previa a proposta cartesiana. Esta é

a base filosófica do pensamento de Wilhelm von Humboldt.

Seu método analítico se ampara na distinção entre a matéria sonora e a matéria

conceitual da língua, portanto, está relacionada somente à atividade humana. Wilhelm

von Humboldt trouxe do divino para o humano o sentido. Partindo a língua em duas

esferas, uma relacionada ao som outra ao pensamento, ele ampliou as bases do nosso

entendimento sobre as implicações do pensamento sobre a linguagem lançadas por

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Tomás de Aquino, dando-nos uma estratégia analítica para identificar o sentido por

meio do som. Separando o som do sentido, como fruto da atividade do homem,

Wilhelm von Humboldt possibilitou o desdobramento de diversas teorias

estruturalistas que têm em sua base conceitual a dicotomia da língua como atividade

humana. Como, por exemplo, em Saussure, langue-parole. Portanto, não há uma linha

evolutiva de desenvolvimento científico, as formulações teóricas e filosóficas sempre

dizem respeito ao lugar que o homem dá a si mesmo.

É sobre esses dois pilares, som e sentido, que Wilhelm von Humboldt irá

desenvolver seu método de análise das línguas do mundo e hipotetizar sobre suas

origens. O som e o significado estariam profundamente associados. Por isso, a

comparação entre as línguas poderia ser feita comparando-se as essências primitivas

de cada língua. Para identificar as semelhanças entre as línguas, seria preciso

encontrar o entroncamento racial dos povos, pois este representaria a primeira

semelhança estrutural entre elas. Porém só seria possível identificá-lo caso houvesse

comprovação histórica do enlace dos povos em questão. Assim, Wilhelm von

Humboldt (1999, p. 288) estabeleceu os critérios científicos do estudo das línguas e

criou um quadro de conexão entre todas as línguas do mundo, a “misteriosa e

maravilhosa conexão interna de todas as línguas”, elaborando a possibilidade de um

grande catálogo no qual as línguas poderiam ser classificadas, identificadas e

contribuiriam para o estabelecimento da origem de todas as línguas. Pois somente o

estudo sistemático e estrutural das palavras seria capaz de comprovar o parentesco das

línguas que deveria estar apoiado no parentesco de suas formas. Dadas as virtudes

universais da linguagem, despertadas pela monogênese, uma língua original única

para toda a humanidade, teria sua descoberta mais do que esperada. Wilhelm von

Humboldt deu profundidade temporal ao que os gramáticos do século XVI apenas

haviam assinalado espacialmente.

6.4 Natureza e linguagem

Assim como o som estava entre o homem e o objeto, a linguagem estava entre

a humanidade e a natureza. A regularidade da natureza, com uma ordem própria de

funcionamento universal, que seriam as leis da natureza, foi muito bem articulada por

Alexander von Humboldt, em Cosmos, fruto de anos de trabalho e pesquisa em

diversos pontos do planeta que estabelecia uma ordem de funcionamento do mundo

natural. Tanto a natureza quanto o homem estariam sujeitos cada qual às leis que os

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governavam, em mundos separados, no entanto, o caráter eterno (ou divino) seriam

um princípio de ambos. A regularidade do funcionamento da natureza estaria

relacionada à regularidade da natureza da linguagem, ambas funcionando sob regras

próprias, universais (ou divinas). A ponte entre homens e natureza seria a linguagem,

por meio do eterno (ou divino), que reside em ambos. As ideias de Wilhelm von

Humboldt não eram exatamente novas, mas, a partir dele, elas ganharam caráter

científico e se transformaram em modelo analítico. As palavras passaram a vigorar

como balaústres da busca pelas origens da linguagem e da humanidade, afinal

palavras semelhantes significariam um contato entre os povos, uma indicação de que

poderiam ter sido um só povo. Assim, a retenção lexical seria a maneira mais acertada

de traçar os elos entre as famílias linguísticas.

Sylvain Auroux (2008, p. 85) em A questão da origem das línguas fez uma

retrospectiva das teorias desenvolvidas para resgatar a origem da humanidade e a

origem das línguas desde o medioevo até os dias atuais. É fácil constatar, diante da

linha cronológica apresentada por ele, que a linguística caminha em círculos quando

trata dessa questão. As teorias vão e voltam sobre as mesmas práticas e suposições,

sem nunca se afastarem dos pilares da cristandade nos quais a ciência ocidental se

apoia. Há um único engano em Sylvain Auroux (2008, p. 19). Ele aceita o fim da

intervenção do divino com a laicização adquirida, após Herder e Humboldt, pelas

teorias linguísticas desenvolvidas a partir do século XVIII, especialmente, com o

método da gramática comparada elaborada por Schleicher. Argumento do qual

discordo.

Maurice Olender, em seu livro As línguas do Paraíso, nos deu válidas

orientações sobre a importância transcedental das palavras, como já havíamos visto

com Elias Lipiner, anteriormente. A concepção hebraica da criação do mundo

concebe um Deus e letras que existem antes da humanidade e do mundo, é a partir das

letras que Deus cria o mundo. A ideia semita nos revela a importância da palavra

original que possui em si o sentido da própria criação. Maurice Olender (2012, p.

113), ao tratar dos estudos dos gramáticos comparatistas, descreveu as dificuldades de

usar as palavras corretas para dar nomes a Deus. Seria exatamente essa dificuldade de

usar a palavra adequada, entre as muitas possibilidades existentes nos textos das

literaturas semíticas e sânscritas para nomear Deus, que provocou a ruptura com a

ideia de que o som inicial era uma palavra original. Maurice Olender (2012, p. 42) nos

esclareceu sobre o funcionamento da grafia talmúdica e da forma de leitura praticada

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pelos rabinos. As letras sagradas semíticas são entendidas como um mecanismo que

permite que o sopro divino seja expresso pelo canto, somente no canto, no ato da

leitura, são incorporadas as vogais a essas letras. Percebo, então, que temos palavras e

vogais como pilares filológicos para a história da humanidade, de Deus e da

linguagem.

Foi Jean Starobinski, em As palavras sob as palavras, quem me deu as chaves

para entender um pouco melhor as relações entre a palavra, as vogais e o verbo

divino. Jean Starobinski (1974, p. 7-113) fez uma revisão dos 36 cadernos nos quais

Saussure se dedicou a estabelecer os anagramas existentes nas epopeias gregas.

Saussure identificou um padrão poético-mnemônico em que as vogais das palavras-

tema de cada verso eram repetidas para criar anagramas e hipotetizou sobre a

possibilidade de esse mecanismo ter residido na ideia religiosa de que uma invocação,

uma prece ou um hino só produziria efeito se as sílabas do nome divino fossem

misturadas ao longo do texto, mas também considerou o oposto, que a estratégia

poderia ser meramente poética como as rimas. Se as repetições de vogais como um

mandamento das construções líricas se restringissem à produção grega, as respostas

seriam mais fáceis. Ao fazer semelhante estudo dos versos em sânscrito, Saussure se

deparou com um mecanismo semelhante, porém, no sânscrito, eram as consoantes dos

nomes divinos replicadas ao longo dos cantos sagrados dos Vedas. Dadas as

impossibilidades de comprovar a versificação grega e védica como a elucidação de

uma consciência criativa, Saussure abandonou o projeto, mas nos deixou a

compreensão de que por trás de um verso existe uma palavra indutora.

Entendo que a palavra, então, era fundadora da lírica grega que fundava a

própria cultura grega em seu modo de vida estimado e perfeito, nada semelhante à

vida cotidiana grega de fato, mas uma aspiração, um ideal de vida grega. Assim era

Homero. A fronteira intelectual europeia, desde o século XII, já estava estabelecida

nos limites gregos, para além da Grécia não havia Europa. A produção literária grega

não era apenas um exemplo motivador ou estético, era a fundação, era o modelo

mítico e literário no qual a ideia de civilização europeia se assentava. Mas a Europa

apenas se tornara coesa com o estabelecimento da cristandade como comunidade

humana, cujas relações davam sentido ao modelo de poder, de lei e de conhecimento

expressos pelo o que hoje chamamos de ciência. A palavra é importante porque é a

matéria com que Deus criou o mundo e a humanidade na mitologia semítica e na

islâmica partilhada com os cristãos no Gênesis, mas também é importante porque é a

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força da expressão lírica grega que funda as bases da ciência desenvolvida pela

cristandade.

Ao contrário do que nos brindou Jean Starobinski em Ação e Reação, não trato

das aventuras de um casal de palavras que muda seus sentidos e navega pelas

ciências, mas trato sim de uma concepção de humanidade, de uma ideia de

humanidade, que muda de roupagem lexical em um grande desfile de palavras, mas

que, por debaixo dos panos, significa sempre a mesma coisa. Entender a humanidade

como um grupo de nações que possuem cada qual sua língua própria, sua cultura e seu

território, é entender a humanidade como a expressão dos caráteres individuais que

determinam cada grupo, que ainda significa a aceitação da individualidade de cada ser

perante Deus como seu filho. Como descrito no Gênesis, X, 31-32: “Tais são os filhos

de Sem, segundo as suas famílias e as suas línguas, em seus países e suas nações e tais

são as famílias dos filhos de Noé, segundo suas gerações, em suas nações.” A palavra

não é apenas uma unidade linguística que possui significados determinados por suas

funções sintáticas e suas relações com o mundo, a palavra é um princípio fundador da

cristandade.

6.5 A origem da humanidade, uma narrativa ainda inacabada

Alexander von Humboldt (1965, p. 157-160), no capítulo XVIII do seu

Quadros da Natureza que trata da origem dos vegetais cultivados, descreveu as

espécies de trigo e cevada selvagens que encontrou ao herborizar durante sua viagem

às planícies russas. Ele comentou que das mesmas planícies vieram os animais

domésticos que acompanharam o homem em suas mais primitivas migrações. Depois

de averiguar sobre os resultados científicos de outras coletas de cevada e trigo

selvagens pela Ásia e Europa, Alexander von Humboldt constatou que as espécies

mais antigas e verdadeiramente selvagens eram as das planícies no Cáucaso,

atravessadas pelo Chirvan. Também constatou que as espécies encontradas nas

Canárias cultivadas pelos guanchos eram originárias da Georgia, às margens do Kur.

Já esboçando o trabalho ao qual se dedicaria a fazer com seu irmão Wilhelm von

Humboldt, citou Jacó Grimm, filólogo alemão que discorria a respeito da afinidade

das línguas originárias tão possíveis de serem observadas pelas espécies de cereais,

considerando que os traços linguísticos deixados pela agricultura eram mais fortes e

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presentes que os deixados pelos grupos de pastores que antecederam os agricultores80.

Jacó Grimm traçou uma consideração a respeito do tempo que separava os grupos

migrantes das planícies russas, considerando que, em relação ao sânscrito, gregos e

romanos estavam localizados na mesma linha que os eslavos e os alemães, de onde se

poderia supor que esses dois grupos migraram ao mesmo tempo, por isso as distinções

tão profundas no léxico dessas línguas. As mudanças morfológicas marcariam o

tempo da ruptura, quanto mais profundas mais remota a separação do grupo original,

porque a palavra primordial seria fundamental para estabelecer a relação entre os

grupos. Jacó Grimm apresentou também uma exceção à sua regra. Se a distância

temporal da separação entre gregos e eslavos justificava as diferenças lexicais

encontradas nessas línguas, ele não conseguia explicar o caso da palavra trigo que, em

índio significa java; em lituânico, jawai; e no fínico jywa.

A meu ver, a ideia de Alexander von Humboldt e de Jacó Grimm era traçar

comparações que possibilitassem a elaboração de uma origem ariana da linguagem e

da humanidade. Posteriormente, a descoberta do sânscrito deu asas à formulação de

várias hipóteses migratórias que juntaram os ancestrais caucasianos dos europeus aos

áryas descritos no Rig Veda. Esta estratégia tentou fazer da humanidade uma

descendência dos arianos, exatamente como imaginara Blumenbach, e das línguas do

mundo filhas do sânscrito, como especulara Wilhelm von Humboldt.

A hipótese da origem ariana nas planícies do Volga, segundo Jane McIntosh

(2008, p. 53), se desdobrou em uma migração cruzando a passagem de Bolan, na base

do Himalaia, alcançando o atual Afeganistão. Embora ainda muito discutida, esta

hipótese explicaria a existência de ramos arianos hoje presentes no atual Irã e no vale

do Ganges. Blusztajn Jerzy e Peter Clift (2005, p. 1001-1003) estipulam que, em

algum momento no período de 2.000 a.C., um forte terremoto deslocou, na nascente,

um dos cursos d’água que alimentava o rio Indo, empurrando-o para a bacia do

Ganges. Este rio se chamava Saraswati e sua extinção provocou a desertificação da

área, onde hoje é o deserto de Thar. Ao longo do rio Saraswati, desenvolveu-se uma

das maiores civilizações da Idade do Bronze. Vestígios arqueológicos sugerem uma

ocupação sedentária contínua, com o cultivo de trigo e cevada, e domesticação de

animais a partir de 7.000 a.C. Para Mark Kenoyer e Richard Meadow (2010, p. 76), a

civilização que teria se estabelecido na planície do deserto de Thar, teve suas maiores

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!80 Estabelecendo uma relação de hierarquia em que grupos pastores seriam menos civilizados que grupos agricultores, suposição ainda hoje válida.

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cidades, Mohenjo-Daro e Harappa, construídas ao longo do rio Saraswati, muito

embora seus núcleos rurais e cidades de médio porte se estendessem para leste do

Indo. Flávia Bianchini (2012, p. 97) supõe que os áryas descritos no Rig Veda seriam

os mesmos que levaram a religião védica e o sistema de castas ao vale do Ganges nos

anos de 1.500 a.C., durante a dispersão populacional causada pela seca do Saraswati.

De todas as lições que podemos tirar desta história do vale do Saraswati, ressalto os

discursos arqueológicos como provedores da verdade original. Por um lado, as

evidências geológicas comprovaram que o desvio do curso da cabeceira do rio

Saraswati, causado por um terremoto, fez surgir o deserto de Thar. Por outro, a

suposição de que os habitantes do vale do Saraswati fossem arianos oriundos do vale

do Volga, embora baseada em uma das únicas crônicas daquele período, o Rig Veda,

nos remete ao branco europeu. Assim, as origens da linguagem, da humanidade e da

urbanização, pois Mohenjo-Daro e Harappa foram os primeiro núcleos urbanos

estabelecidos pela humanidade, se associam aos caucasianos, dando a tão buscada

supremacia ariana aos alemães. Porque se os arianos migraram para o vale do

Saraswati, estabeleceram o primeiro complexo urbano e deixaram um relato escrito

sobre isso, então o sânscrito era a língua originária dos arianos. A linguística e a

arqueologia, neste caso, serviram ambas ao propósito político da supremacia ariana.

No final do século XIX, a origem do homem andou passos largos, depois de

passar pela África do Sul, instalou-se no vale do Rift, na África Oriental. Não foi

exatamente uma novidade, afinal, desde Lineu se alinhavam gorilas e negros em

busca de um elo comum entre eles, e desde a Idade Média, a impossibilidade de unir

animais e humanos se mantém com a inexistência de um espécime entre hominídeos e

primatas. O deslocamento da origem da humanidade para a África Oriental, na

Etiópia, não deixa de despertar a curiosidade sobre a origem do homem e o fim dos

tempos previstos pelas sibilas gregas.

As sibilas eram sacerdotisas gregas possuidoras de poderes adivinhatórios

outorgados por Apolo e que faziam profecias. Foi Santo Agostinho quem trouxe a

sibila da Eritreia, para a homilia da noite de Natal, já que a profecia dessa sibila em

muito se assemelhava ao texto do juízo final. Jordi Savall (1988, p. 20) resgatou os

cantos medievais usados nas homilias natalinas nas catedrais e nos mosteiros da

Cataluña. Esses cantos eram conhecidos como Os Cantos da Sibila e eram a parte

mais longa, dramatizada e importante das celebrações natalinas na Europa

mediterrânea, até o fim do século XVI, quando foram proibidos. Na Espanha, o

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registro mais antigo dos Cantos é um manuscrito visigodo do ano 960 pertencente à

mesquita de Córdoba, e faz parte da liturgia moçárabe. Assim, o Juízo Final, como

previsto pela sibila da Eritreia, tornou-se uma das principais tradições da noite de

véspera da natividade cristã.

A Eritreia faz fronteira com a Etiópia e já esteve sob o domínio político desta,

geograficamente, ambas estão localizadas na região conhecida como o vale do Rift,

onde atualmente se encontram os vestígios dos hominídeos mais antigos, nossos

ancestrais. Antes mesmo de ser o berço da humanidade, essa região já estava

embricada em profundos questionamentos a respeito da humanidade, mas da

humanidade de Jesus. Cristianizados desde o século II, de acordo com Tekle Tsadik

Mekouria (1966, p. 203-217), esta seria uma das regiões de cristianização mais antiga.

Segundo Donadoni (2010, p. 209), o cisma da igreja que separou os ortodoxos dos

católicos teve sua origem na desobediência das igrejas cristãs da Etiópia em seguir as

instruções do Concílio de Calcedônia, no ano de 451, a respeito das duas naturezas de

Jesus Cristo. Foi Teodoro de Mopsuéstia quem propôs a solução para o debate sobre a

encarnação de Jesus, oferencendo o entendimento de que havia nele duas naturezas

(humana e divina) e duas substâncias (essência e pessoa) coexistindo. O Concílio

concordou com as duas naturezas, mas insistiu que cada uma manteria as suas

propriedades, todas unidas numa substância, em uma única pessoa. Aqueles que

recusaram a decisão do Concílio continuaram usando a ideia de Apolinário que

descreveu a união do divino e do humano em Jesus Cristo como sendo de uma única

natureza e tendo uma única substância, um corpo humano com um espírito divino.

Mas esse não foi o único pisão da Eritreia nos calcanhares da cristandade. Marco Polo

já havia andado por lá em busca da mítica passagem de São Tomé, o profeta que

havia convertido o povo de Abastia (Etiópia), antes de morrer em algum lugar da

Índia. Marco Polo nunca encontrou o túmulo do profeta para comprovar a história.

Tomando em consideração as discussões a respeito das duas naturezas de

Jesus Cristo, trazer o divino para o corpo humano, como duas naturezas em um só

corpo, poderia fazer de René Descartes e de Wilhelm von Humboldt um par de

heréticos impiedosos. Afinal, eles pregavam a existência de uma vida de matéria

humana composta em parte pelo humano e em parte pelo divino. Descartes e

Humboldt revalidaram a premissa de Teodoro de Mopsuéstia de que haveria a

possibilidade, na mística da encarnação de Jesus Cristo, de coexistirem duas naturezas

em um só corpo. No entanto, a trouxeram para o corpo do humano mortal, dos filhos

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de Deus. Assim, todos poderíamos viver sob a mística da encarnação. Aparentemente,

nossas inquietações intelectuais não ultrapassam os limites de nossas preocupações

com o divino e com o mortal. Inconvenientemente resta-nos perguntar se o que

motivou a busca das origens da humanidade no vale do Rift não teria sido uma busca

pelo elo perdido com a cristandade. Uma retomada dos valores ancestrais como

resposta à ascenção desenfreada dos reformistas e de sua ciência cada vez mais

afeiçoada ao indivíduo. Como um meio de dar maior profundidade temporal,

histórica, ao conhecimento cristão como ciência. Em um simbolismo mítico, a origem

da humanidade e o local da profecia do Juízo Final se encontraram no tempo e no

espaço.

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7. A VOZ DOS ESQUECIDOS Bacon fala da memória como de um

“rico guarda-roupas” e critica Aristóteles porque, com sua acepção

redutiva de “lógica”, convidou os homens “a trocarem um rico guarda-

roupas por um par de tesouras”. (Paolo Rossi, 2010, p. 89)

A voz sem nome é a voz dos esquecidos. O esquecimento carrega em si uma

carga de história que nos faz ser quem somos e dizer o que dizemos. Embora

esquecida, essa voz é a trama de tudo o que significa, como a urdidura de um tear, sua

existência permanente sustenta e serve de base para tudo o que se diz. O

esquecimento é a memória imemorial de tudo o que já foi dito e feito, o que produz a

existência humana81. É esta memória quase imemorial a respeito das concepções de

língua e de linguagem e dos estudos linguísticos que se organizaram a partir delas que

pretendo resgatar neste capítulo. A memória institucional que compreende os

discursos teóricos e analíticos sobre as línguas e a linguagem, que as descrevem como

tais e que têm sua base discursiva na memória constitutiva da moral cristã que nos

acompanha há mais tempo do que imaginamos e que nos regula e nos faz acreditar ser

quem somos. Uma memória tão distante e profunda que beira os abismos do

esquecimento, já tão incorporada aos sentidos dos nossos discursos que quase se

tornou silêncio. Um silêncio fundador, já é quase uma origem82.

Para Michel Pêcheux, retomado por Eni Orlandi (2015, p. 34), a origem é uma

ilusão, tanto do ponto de vista de originar um sujeito que significa sua fala em seu

próprio discurso quanto da origem do sentido do que este sujeito diz. Dos sentidos é

impossível traçar a origem porque os sentidos não estão predeterminados por

propriedades da língua, não são conteúdos que a língua expressa, eles dependem das

relações que um sentido estabelece com outros sentidos, relacionando-se com o

sujeito que vive o real da história e o expressa de forma material por meio da fala.

Dos sujeitos é impossível rastrear a origem de quando ou como nos tornamos

humanos a ponto de nos considerarmos sujeitos ou ‘gente’. A origem e o sentido são

referenciais irreais, imaginários e narrativos. O sentido do que vem a ser língua e

linguagem, ou a existência de uma distinção entre ambas, no contexto de uma

humanidade que fala, é de tamanha opacidade que eu diria se tratar de algo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!81 Como descrito em Michel Pêcheux e retomado por Eni Orlandi, em Análise do Discurso, de 2015, p. 32 82 Aqui considero o silêncio como elaborado por Eni Orlandi, em As formas do silêncio, de 2007.!

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obscurecido pela profundidade temporal que o saber discursivo sobre as ideias de

língua e linguagem carrega.

A noção atualmente mais utilizada sobre a língua é que ela se trata de um

sistema abstrato. Na perspectiva representada, principalmente pela obra de Ferdinand

de Saussure, a fala não seria objeto de estudo da Linguística. A fala, a materialidade

da língua, não deveria ser estuda pela Linguística, por ser mutável e diretamente

associada àquele que fala (parole), como produto da expressão pessoal,

desconsiderando o interdiscurso e a produtividade dos sentidos. À Linguística

deveriam ser atribuídos os estudos sobre a parte abstrata da língua (langue), seu

sistema estável e sujeito a regras, transmitido de geração em geração dentro da

estrutura social, definindo o escopo do que seriam os estudos da Linguística. A língua

(langue) era entendida por Ferdinand de Saussure como a união do sentido e da

imagem acústica, de modo interdependente. A existência de um comprometeria a

existência do outro, embora não existisse uma relação necessária entre o significado e

a sequência de sons, contrariando a ideia de Wilhelm von Humboldt. Ainda assim, em

Saussure, percebemos a existência de três substratos para a linguagem, a fala, o

sentido e a imagem acústica. O som e o sentido juntos seriam o signo e o signo seria

então uma abstração mental. Se a fala não faz parte dos estudos linguísticos à qual dos

dois outros substratos estaria relacionada a abstração do sistema da língua? Se o

sentido e a imagem acústica são ambos abstratos e possuem entre si uma ligação

arbitrária que determina um ao outro onde se ancoram?

7.1 A linguagem no jogo do dito e do não-dito

Começarei então pelo termo “linguagem” que, pressupõe-se, seja uma das

atividades desenvolvidas pela mente, este órgão do corpo humano imaterial e abstrato.

Mais uma vez nos deparamos com o termo abstrato, desta vez referindo-se à mente

para designar a diferença existente entre cérebro e mente. A mente seria imaterial, o

cérebro materialmente físico, composto de massa branca e massa cinzenta. A mente

desenvolveria atividades abstratas, entre elas a linguagem e o pensamento, o cérebro

desempenharia processos bioquímicos. Grosso modo, a atividade desenvolvida pelo

cérebro é a atividade neural, uma espécie de transmissão elétrica entre neurônios

realizada por meio do envio de produtos químicos, os chamados neurotransmissores,

através das sinapses. As sinapses são conexões especializadas por meio das quais as

células do sistema nervoso mandam sinais formando circuitos biológicos que

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controlam o comportamento motor e mantém as funções vitais do corpo. Os sentidos

(visão, olfato, audição, tato e paladar) recebem as informações do mundo que nos

rodeia e as enviam para a região do córtex cerebral específica de cada sentido. Assim,

o cérebro as reúne, organiza e armazena. A atividade da mente é a abstração das

informações captadas pelos sentidos em um trabalho de representação da realidade.

Cérebro e mente não são a mesma coisa, não desempenham as mesmas atividades,

mas estão imaterialmente conectados. A mente carrega, no interdiscurso83 que a

significa, uma memória discursiva que a aproxima do espírito, da alma.

René Descartes, no século XVII, com profundo catolicismo, separou a alma

(mente) do corpo e estabeleceu a primazia da alma (mente) sobre o corpo, alegando

que o espírito humano era uno, portanto universal, ou seja, uma humanidade, um

espírito. Ao determinar o espírito humano como uno, René Descartes elaborou a

dualidade do ser, sugerindo que o espírito humano, esta alma suprema, era de natureza

divina, daí sua superioridade em relação ao corpo humano. A superioridade da alma

se justificava por sua natureza divina, originada da emanação divina, ou seja, de Deus.

Para ele, os estudos científicos deveriam dedicar-se ao corpo, ficando a alma (mente)

a cargo da Filosofia.

Wilhelm von Humboldt assumiu a perspectiva cartesiana de separação corpo e

mente (alma), seguindo o preceito de que a ciência deveria ocupar-se do corpo, pois

sua matéria permitia a investigação, e estabeleceu como matéria da língua o som e o

significado do som. Para Wilhelm von Humboldt, havia uma distinção entre a

linguagem, dom divino e abstrato e a língua cuja matéria era o som e o significado.

Um jogo de oposições e semelhanças. Wilhelm von Humboldt percebia a linguagem

em três contextos: a linguagem em si mesma, abstrata, dom divino; o som, realizado

pelo corpo; e o significado, elaboração representativa do objeto no pensamento. O

som e o significado juntos seriam a matéria da língua.

Ferdinand de Saussure percebia a linguagem também em três contextos: a fala,

realizada pelo corpo individualmente; a imagem acústica, uma espécie de abstração

do som da língua; e o significado, elaboração representativa do objeto no pensamento.

Um pouco à moda de Tomás de Aquino, que transferiu o movimento de Deus das

esferas superiores para o homem, imbuindo-o de agência motriz, Ferdinand de

Saussure transferiu de Deus para a mente humana, esse órgão invisível, a imanência

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!83 Como elaborado por Eni Orlandi, em Análise do Discurso, de 2015, p. 28.

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da língua, expressa pelo significado e pela imagem acústica, uma espécie de memória

coletiva da língua. Ambas as considerações colocam a língua e a linguagem fora do

corpo humano, des-subjetificada, pois pertenceria à esfera abstrata de um

conhecimento supra-humano, ou divino ou coletivo no sentido de que pertence a um

grupo específico, uma nação.

Olhando o caminho mais de perto, Tomás de Aquino transferiu o poder da

subjetividade de Deus para o homem, René Decartes concedeu à alma humana este

poder, Wilhelm von Humboldt identificou-o como o dom da linguagem e Ferdinand

de Saussure aterrizou-o na mente. A abstração e o divino caminharam juntos ao longo

dos séculos resumidos neste parágrafo, transmigrando de Deus à mente por exercícios

teórico-argumentativos de gerações de pensadores aqui representados por alguns

expoentes de suas épocas. Será que nossa incansável busca por entender os processos

mentais abstratos e misteriosos seriam ainda a busca do divino no humano?

Considerar a língua como aquilo que nos faz humanos, ao mesmo tempo em que esta

língua é um sistema abstrato ancorado na mente, um órgão imaterial do corpo

humano, é considerar que o que nos faz humanos é abstrato e invisível, em outras

palavras, um dom divino. Este problema conceitual não é recente, desde o século

XIII, com a Suma Teológica elaborada por Tomás de Aquino, existem debates a este

respeito. A transferência de poder das esferas superiores iniciou uma incoerência com

o credo católico, afinal, apenas Jesus Cristo tinha, em sua encarnação mística, as duas

naturezas, divina e humana, em um só corpo.

Não foi apenas no nível espiritual que a divindade migrou do céu para o

humano. Os termos usados para definir e designar a língua e a linguagem também

rodaram na ciranda da abstração. Santo Tomás de Aquino considerava que a doutrina

sagrada era uma ciência, portanto, o conhecimento emanava diretamente de Deus e

estava profundamente guardado na alma desde a criação, cabendo ao homem

conhecê-la. Em René Descartes, a ciência deveria se ocupar do corpo, embora o

universal estivesse no espírito; em Wilhelm von Humboldt, a língua produzida pelo

corpo era o objeto de estudos linguísticos, embora sua origem, a linguagem, fosse um

dom universal; em Ferdinand de Saussure, a língua produzida pela/na mente era o

objeto de estudo, embora o som fosse produzido pelo corpo. Em Tomás de Aquino e

René Descartes, as duas naturezas se revelam: corpo e alma. Em Wilhelm von

Humboldt, a linguagem era universal e a língua da nação. Em Ferdinand de Saussure,

a língua está na mente (órgão do corpo humano invisível e abstratamente coletivo) e a

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fala no indivíduo. Unindo o indivíduo e a mente coletiva, a linguagem se

consubstancia no corpo como uma expressão do coletivo.

A ideia de abstrato acompanha as reflexões sobre a linguagem há bastante

tempo, a questão aqui é como trazer à luz essas evidências discursivas. Em termos de

domínio semântico de determinação, como nos explicou Eduardo Guimarães (2010, p.

12), em Tomás de Aquino, temos a sentença “aquilo que é expresso com a voz está

nas potências da alma”84, que poderia ser parafraseada por: “a linguagem está na

alma”. Para Tomás de Aquino, a alma era o depositório do conhecimento divino,

sendo portanto divina. Poderíamos então fazer outra paráfrase considerando o caráter

divino da alma humana, “a linguagem é divina”. Temos, então, a primeira

determinação do termo linguagem:

linguagem

┬ divina

Se a alma é imaterial, posso considerá-la abstrata e, portanto, inferir que “a

linguagem é abstrata”. Então:

linguagem ┬

divina ├ abstrata

No caso de René Descartes, que não possuía um interesse especial na

linguagem, mas escreveu a Carta de Descartes a Mersenne de 20 de novembro de

1629, fazendo considerações sobre a possibilidade de criar uma língua universal para

ser aprendida em 5 ou 6 horas, estamos diante de um novo predicado que determina

linguagem, “universal”. O fato de considerar a possibilidade de uma língua universal

está respaldada em sua compreensão sobre um método universal elaborado em

Discurso sobre o método. Temos então as seguintes relações de determinação, a partir

de Descartes, para quem, podemos parafrasear em síntese, “a linguagem é universal”:

linguagem

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!84 “Quod ea quae sunt in voce, sunt signa earum quae sunt in anima passionum.” De differentia verbi divini et humani. Quaestio I, art. 1.

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┬ divina ├ abstrata ├ universal

Para René Descartes, a oposição corpo e espírito criava um problema de

distribuição de tarefas, pois a ciência deveria se ocupar do corpo, mas o universal do

qual se poderia fazer as generalizações próprias da ciência estava no espírito. Havia

uma intenção em Descartes que deve ser considerada, a emancipação da ciência por

meio de uma maior importância dada aos processos de observação metódica e

racional. Não que as crenças no divino e as explicações fundamentadas no notório

saber de pessoas autorizadas tivessem desaparecido ou que a observação metódica e

racional da natureza não existisse antes. O que houve foi uma troca de perspectiva.

Ambas conviviam e ainda convivem, porém a importância dada à racionalização se

sobrepôs à outra. Então, temos que “racionalização” determina “abstrato”. A

paráfrase, neste caso, seria, “o abstrato é racional”.

linguagem ┴

divina ├ abstrata ├ universal ┬ racional

Wilhelm von Humboldt já iniciou seu trabalho sob a influência da

“racionalização” e da divisão entre corpo e espírito. Seguindo os pressupostos de

Descartes, Wilhelm von Humboldt delimitou como escopo da área de estudo

científico das línguas aquilo que o corpo produz: o som, articulado pelo aparelho

fonador; e o sentido, produzido pelo pensamento. Então teríamos a linguagem

determinada pela atividade intelectual. Para a sentença, “não há distinção arbitrária

entre linguagem e intelectualidade” 85 , a paráfrase seria: “a linguagem é

intelectualidade”, que pode também ser expressa por “a linguagem é intelectual”.

Wilhelm von Humboldt propôs também: “a linguagem é a manifestação externa da

mente”, da qual se depreende que “linguagem é a mente”; e, ao falar dos povos, “sua

língua é sua alma”, aqui, apresenta-se uma distinção que não ocorre em alemão entre

língua e linguagem, no entanto, para Wilhelm von Humboldt o termo usado é o

mesmo Sprache. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!85 Linguistic variability and intellectual development, 1972, p. 24-25.

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intelectual├ mente ├ alma ┬ linguagem

┴ divina ├ abstrata ├ universal

┬ racional Para Ferdinand de Saussure, é na imaterialidade do pensamento que se faz a

língua. Não no pensamento do indivíduo como propunha Wilhelm von Humboldt,

mas no pensamento como memória coletiva. Para a sentença, “a linguagem tem um

lado individual e um lado social”86, podemos fazer a seguinte paráfrase: “a linguagem

é individual e social”.

intelectual├ mente ├ alma ┬ individual ┤ linguagem ├ social

┴ divina ├ abstrata ├ universal

┬ racional

Ainda para Ferdinand de Saussure, a “linguagem repousa numa

faculdade que nos é dada pela Natureza” em contraposição à língua que se

“constitui algo adquirido e convencional”. Sendo a Natureza a portadora do

poder de conceder um dom, o que faz equivaler ao “dom concedido” de

Wilhelm von Humboldt à “faculdade dada”, podemos estabelecer que

Natureza e divino se alinham como poderes supra-humanos, portanto a

paráfrase “a Natureza é divina” é válida. Ao considerarmos que “a língua é

adquirida e convencional” teremos que “adquirida” se refere ao indivíduo e

“convencional” ao social, portanto, a paráfrase “a língua é individual e social”

é válida. Logo, temos que língua e linguagem se unem no centro do domínio

semântico de determinação:

intelectual├ mente ├ alma ┬ individual ┤ linguagem ├ social

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!86 Curso de lingüística geral, 1995, p. 16-17.!

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língua ┴

divina ├ abstrata ├ universal ┬ ┬ natural racional

Ao colocar a língua junto à linguagem no centro do DSD, estabeleço

uma relação igual entre as predicações que determinam “linguagem” e as que

determinam “língua”, diluindo a suposta diferença existente entre elas.

Retomo, então, o que disse Eni Orlandi (2015, p. 50-53), em Análise de

Discurso. Princípios e Procedimentos, sobre a abertura do processo de

significação que o sujeita à intitucionalização, à estabilização e à cristalização,

provocando um bloqueio no fluir do sentido, impedindo o movimento que

historiciza o sujeito e o dizer. A saturação dos sentidos e dos sujeitos

corresponde a processos esvaziados de historicidade, permanecendo somente

as imagens evocadas, sem relação com o real.

A meu ver, o discurso científico sobre a linguagem/língua estabelecido

ao longo de um percurso de mais de 1.000 anos de elaboração, vem se

repetindo de um modo em que sempre diz o mesmo de outra maneira. A

mobilização do sentido sugere um não deslocamento do sujeito também. O

não deslocamento do sujeito e do sentido, no caso de elaborações científicas

sobre a linguagem/língua, apontam em direção à saturação dos sentidos, des-

historizando-os, desconectando-os do real.

7.2 Fósseis linguísticos

No encontro entre duas concepções distintas do mundo, aqui exemplificados

como europeus e povos ameríndios, dos quais estudamos as línguas em suas mais

variadas perspectivas, o que podemos entender é que na confrontação dos discursos

existe uma faixa de incompreensão. A faixa gerada pela incompreensão deveria nos

levar a transcender os limites de nossos paradigmas científicos e a procurar entender o

“outro” em suas próprias categorias ou noções. Em geral, projetamos nosso

entendimento do mundo sobre o entendimento indígena do mundo indígena e

“traduzimos” as palavras de suas línguas para o português, negligenciando a história

existente em cada sentido expresso pelas línguas indígenas. Se não há equivalência

entre coisa e palavra em nossa própria língua, também não deveria haver equivalência

entre “coisa de branco” e “coisa de índio”, “palavra de branco” e “palavra de índio”.

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Assim, operaríamos sempre com uma aproximação entre duas realidades distintas,

uma comparação no melhor dos resultados. Se ao dizer significamos o mundo, não

podemos transportar o nosso mundo para significarmos o dizer indígena, há que se

escutar o significar do mundo indígena no dizer indígena, no dizer em sua própria

língua. Há que se perscrutar a história dos sentidos em línguas indígenas. Ouvir é o

melhor caminho. Pois não é exatamente isso o que o discurso xamâmico evoca? O

que os mitos retêm? O que os rituais consubstancializam? O que o discurso cotidiano

materializa? A questão que se coloca para nós, linguistas interessados em estudar as

produtividades de sentidos nas línguas indígenas, é como alcançar a robustez da

memória discursiva que dá sentido e profundidade histórica aos sentidos nas línguas

indígenas.

Uma das maneiras que encontrei de mergulhar na história dos sentidos nas

línguas indígenas foi começar a identificar as projeções ocidentais sobre essas línguas

e tentar entender de onde elas vêm para poder argumentar que essas projeções são

meras projeções e não são fatos linguísticos universais. São apenas projeções que se

tornaram verdades linguísticas e se dispersaram por meio do papel desempenhado

pelos europeus no mundo. O vasto mundo subterrâneo da nossa memória discursiva

me deu a apavorante noção de que tamanha empreitada seria impossível. A proposta

de revolver camada após camada de sentidos é árdua, mas traz resultados satisfatórios.

É uma atividade que se desdobra em duas frentes de trabalho. Em primeiro lugar,

investigar as profundezas de nossa memória discursiva. Em segundo, ao reconhecer

os limites do sentido produzido por nossas elaborações, buscar ouvir os sentidos

emudecidos das línguas indígenas.

Se não existe discurso sem sujeito, então seria preciso saber como se produz o

sujeito indígena. Não o “sujeito” indígena em relação ao Estado, mas o sujeito

indígena enquanto sujeito para seus pares. Ser “gente” implica atitudes, tempo de

vida, rituais, dependendo de que grupo estamos falando teremos um “sujeito”

diferente e ele não será necessariamente igual ao sujeito ocidental, nem em sua forma

de fazer o sujeito nem no sentido de sujeito, nem no corpo de um sujeito. Sendo a

construção do sentido de pessoa ou de sujeito fruto da relação histórica com o meio e

com os outros não haverá “pessoas” nem sujeitos, no sentido coletivo que há na

experiência humana, que signifiquem a mesma coisa, porque não significam a mesma

construção, nem a mesma relação. A “pessoa” é um sentido construído a partir de uma

relação com determinado ambiente o que gera diferentes “pessoas” expressas por

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diferentes discursos. O contato entre estas diferentes “pessoas” e seus diferentes

discursos provoca choques de compreensão.

Se entendermos que o corpo é uma construção social feita pelo humano em

sua relação com o meio e com os outros, também teremos que admitir que considerar-

se “pessoa” ou sujeito carrega em si a construção deste corpo reconhecido como

pessoa perante seu mundo e perante outras pessoas. Então, existe uma relação entre

ser “pessoa” e dizer “eu sou”. Entendo que estabelecer esta relação pressupõe discutir

a existência do universal linguístico “sujeito gramatical”, para o qual “eu” é sujeito a

priori. A individualidade e a autonomia do ser são valores europeus, estabelecidos a

partir das formulações teóricas que fundamentam a ciência moderna, bem como o é a

ideia de que o corpo é separado do coletivo ou de sua alma, ou mais modernamente,

de sua mente, composto por órgãos distribuídos em sistemas, unitário e indissociável.

Tais compreensões a respeito do humano e de seu corpo não se aplicam às sociedades

ameríndias. O choque entre concepções profundamente distintas da “pessoa” e de seu

corpo provoca uma incompreensão que opera como limite do que supostamente é e do

que não deveria ser a “pessoa” índia.

Aqui começa o maior problema com o qual me deparei durante o estudo dos

sentidos em línguas indígenas, eu não possuo a autoridade empírica de “ter estado lá”.

O material de estudo de que disponho, em geral, é fruto do trabalho de outros

linguistas e etnólogos que se dedicaram a descrever esse povo e sua língua. Em alguns

casos, descrições sensíveis e profundamente cuidadosas, em outros, perspectivas

bastante comprometidas com teorias em voga na época em que foram elaboradas as

descrições. Este é o caso de Roberto da Matta. Seu trabalho possui uma profunda

relação com a teoria de centro-periferia, muito em moda nos estudos sociológicos dos

anos de 1970. A meu ver, esta relação não se aplica às metades cerimoniais como

relação hierárquica entre as metades. Então peneirei as descrições bastante detalhadas

de parentesco e preferi adotar a relação elaborada por Odair Giraldin. Para Odair

Giraldin (2000, p. 60), as metades se organizam em função do movimento do planeta

Vênus87 no céu. Vênus também é conhecido como a estrela d’alva ou como a estrela

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!87 O Quadrivium medieval, reorganizado por John Martineau (2014, p. 322), tratava das quatro artes liberais, entre elas a que diz respeito à matéria em sua expressão que engloba o número no tempo e no espaço, a astronomia. O planeta Vênus realiza uma trajetória de vai-e-vem em relação à Terra, como se rodopiasse em torno do sol. A cada 584 dias, Vênus e Terra se alinham, formando, ao longo de oito anos, um círculo quase completo (99,99% de precisão). Apenas Júpiter e Vênus desempenham seus movimentos celestiais em relação à Terra com tamanha precisão. A intenção de calcular e medir órbitas planetárias era alcançar os valores simultâneos de Verdade, da Beleza e da Bondade que levam ao valor essencial, o da Totalidade. Essa matemática mística é a base das proporções conhecidas como “proporção áurea” usada na pintura renascentista e presente na filotaxia que a

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vespertina, embora não seja uma estrela, por sua visibilidade e brilho intenso foi

popularizada como uma estrela. Em sua trajetória, seu brilho é mais intenso ao

amanhecer (kanheti), quando o planeta “nasce” a oeste, do que ao anoitecer (kanhere).

O planeta Vênus, na descrição de Odair Giraldin, significa kanhe. Em Nimuendajú

(1956, p. 21), ambos os planetas Vênus e Júpiter significam Tamgaága, que é o

mesmo nome que recebe o “chefe” da metade Kolti, transmitido hereditariamente de

tio a sobrinho. Não encontrei em Nimuendajú nenhuma aproximação ou tentativa de

entender como se estabelece a relação do movimento pendular de Tamgaága nas

concepções dos Apinajé, se as órbitas possuem alguma influência nos rituais ou não.

Apenas em Castelneau, citado por Nimuendajú (1956, p. 21), houve uma menção à

posição da lua (no zênite) durante o momento da transmissão dos nomes em um ritual

de nomeação, mesmo assim não é possível estabelecer uma relação entre as duas

coisas. Roberto da Matta também não me deu pistas, nem Julio Cezar Melatti, nem

David Maybury-Lewis. Mesmo Odair Giraldin não foi muito além do movimento!diário de!Vênus. É interessante perceber como existe muito ainda a aprender mesmo

de grupos profundamente etnografados e descritos.

Tradicionalmente, nos estudos linguísticos, os sufixos _ti e _re são

considerados como sufixo aumentativo e sufixo diminutivo. Quando relacionados à

intensidade do brilho do planeta em sua trajetória celeste, a relação parece

conveniente, mas se observarmos o que ocorre com as palmeiras buriti (gwra) e

buritirana (gwrare) podemos perceber que não é a relação maior e menor que está em

jogo ou, pelo menos, podemos dizer que não é só isso que está em jogo. A diferença

de porte funciona como uma maneira de colocar o mundo dentro das metades, de

significá-las como parte do mundo Apinajé. Assim, tanto as palmeiras como o

movimento do planeta Vênus estão relacionados a um ciclo que envolve as duas

metades, o momento de brilho mais intenso e as coisas de maior porte estão

associadas à metade Kolti, por isso recebem o sufixo _ti, e o momento de brilho

menos intenso e as coisas de menor porte estão associadas à metade Kolre, por isso

recebem o sufixo _re.

Como os demais grupos Jê, a organização social dos Apinajé se faz mediante a

divisão em metades cerimoniais. As metades cosmológicas conhecidas pelos nomes

Kolti – Kolre que, segundo Nimuendajú (1956, p. 18), significam Kol-ti ou Kolo-ti,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!sequência de Fibonacci nos apresentou como a espiral da vida. Essas são as relações que nós, ocidentais, fazemos do movimento celeste de astros visíveis a olho nu e da magia e da ciência que surgiram a partir daí. !

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sapucaia e Kol-re ou Kolo-re, castanha-do-pará, também recebem os nomes

cerimoniais, Ipôgnotxóine e Krénotxóine, que servem para dividir as tarefas da

organização de festas e rituais, e na formação de times nos jogos e nas corridas de

tora. A dinâmica das metades, que inclui humanos e o restante do mundo em um

ciclo, também se aplica à inserção dos neonatos na vida social. Para Roberto da Matta

(1976, p. 82-119), o corpo apinayé é fisicamente formado por fluidos de corpos de

outras pessoas e de outras entidades, como a água (kó), o leite materno (kó-kagô), o

sangue menstrual da mãe (kãbrô) e o esperma do pai (hôko). Percebemos então que o

neonato não significa um corpo em sua completude, falta-lhe o leite materno para

completar sua composição. Não significando corpo, tampouco significa pessoa ou ser,

pois o corpo é apenas potencialmente uma pessoa para o entendimento apinajé. Há no

neonato o risco iminente do não-ser (karô ré ‘alma fraca’), para evitá-lo há o

resguardo do pai88 e da mãe e as restrições alimentares que, ao serem cumpridos,

significam que um corpo novo surgiu entre eles.

Para que este corpo signifique pessoa, precisa receber um nome, pois a

concepção de um novo ser implica ações sociais também. A nomeação apinajé não é

corriqueira, como um nome individualizador que apenas a pessoa que o recebeu

possui, não identifica propriamente seu recebedor, mas serve para inserir o neonato na

vida social e ritual da aldeia. Os nomes são em torno de dez e são específicos de cada

metade, no entanto, o nomeador da criança pode compor nomes em grupos de não

menos que quatro nomes. É claro, como nomeação individualizadora existem os

nomes de “dentro de casa”, apelidos usados pela parentela mais próxima, tais como

kapran gri (jaboti) e inclusive nomes ocidentais como Júlia e Paulo são inseridos na

longa lista de nomes que uma pessoa possui.

Então o corpo formado na esfera doméstica precisa ser incorporado ao grupo

social para poder significar “pessoa”. Isto não se dá de forma imediata mediante uma

aparição pública. O ritual significa, embora não seja inteiramente falado nem cantado.

Suas várias etapas precisam ser cumpridas para que se constitua e seu significado

signifique. Para uma sociedade extremamente ritualizada como a Apinajé, as relações

cotidianas também são rituais e significam. Por isso, relações aparentemente

domésticas são as bases rituais da inserção do neonato na vida social. Um casal

escolhido entre tios e tias da criança será, por meio de um ritual, transformado em

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!88 Uso “pai” como expressão genérica de pater e genitor que podem ser pessoas distintas, mas este é um tema do qual não tratarei nesta tese.

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pais adotivos da criança. Ao serem escolhidos como pai ou mãe adotivos, a tia entra

na casa de seu filho adotivo e diz em voz alta: “vou criar esta criança.” Isto significa

que diariamente a mãe adotiva banhará a criança pela manhã até que ela comece a

caminhar e receberá comida como pagamento pela prestação deste serviço cerimonial.

Os pais adotivos da criança então procuram entre seus amigos formais, não

necessariamente parentes, alguém que transmita seus nomes à criança, inserindo-a

assim na vida social e ritual da aldeia. O nomeador precisa confeccionar os adornos

cerimoniais apropriados que junto com os nomes determinam o lugar social da criança

e as responsabilidades rituais que ela terá. Após transmitidos os nomes para a criança,

a forma de tratamento entre nomeado e nomeador passa a ser de krã geti (como o

nomeado chama o seu nomeador) e pakrã (como o nomeador chama seu nomeado).

Sendo um tratamento relativo à transmissão do nome, outros adultos que possuam os

mesmos nomes transmitidos à criança podem escolher entre tratá-la de pakrã ou tratá-

la simplesmente como outra criança da aldeia chamando-a de pri ré. Assim, o nome

não é exatamente uma forma individualizadora de reconhecimento da pessoa, embora

a infinidade de composição dos nomes permita um reconhecimento individualizador,

mas insere um corpo a uma dinâmica social e ritual e lhe dá um significado, pois

haverá sempre a versão adulta e a versão jovem de um mesmo nome, garantindo a

reprodução social e ritual. Os nomes sempre estão associados às metades e às

atividades cerimoniais desempenhadas por cada grupo. Roberto da Matta (1976, p.

109) elaborou um pequeno quadro com alguns dos nomes e suas atribuições

cerimoniais que reproduzo aqui.

Kolti Kolre Papel cerimonial

Tegatóro Rãraké Líderes das iniciações

Amdyí Koko Moças associadas aos peb

Konduká Konduprin Tem direito de exigir comida

para suas festas.

Pánti Ngrére Obriga o pai a organizar uma

festa para a qual se faz uma

roça de milho. Quando

estiver maduro, convidam-se

os moradores de todas as

aldeias e nesta festa é lícito o

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intercurso extramarital.

Temos então um corpo feito no âmbito doméstico pela materialidade

partilhada com seus genitores e nomeado mediante ritual específico na dinâmica

social do grupo, assim se forma a pessoa apinajé. Ainda assim, não é uma pessoa

completa, para alcançar a completude do “ser” apinajé, é preciso tornar-se adulto e ter

filhos. Ter filhos é a única forma de um kupe ingressar na vida ritual da aldeia e

deixar de ser kupe. Kupe são brancos, índios de outros grupos étnicos e todas as

pessoas que chegaram à aldeia por meio do casamento, mesmo os Apinajé da aldeia

vizinha são tratados como kupe, pois não pertencem ao grupo ritual estabelecido

naquela aldeia. Portanto, ser apinajé é fazer parte do grupo por meio de relações

cerimoniais, ser apinajé significa “ser parte é ser”.

As relações descritas poderiam ser linguisticamente demonstradas pelos

termos que significam as relações da criança com seus genitores, pais adotivos e

nomeador. Como visto anteriormente, ao nomeado chama-se pakrã 89 e ao filho

chama-se ikrá, temos então dois termos para a mesma criança, um deles faz referência

à vida doméstica, relativa à sua materialidade corporal; e o outro termo faz referência

à vida social, relativa ao papel ritual a ser desempenhado na fase adulta de sua vida.

ikrá pakrã

1. corpo 1. nome

2. materialidade física 2. adorno cerimonial

3. esfera doméstica 3. esfera social

Em uma análise linguística superficial poderíamos dizer que i e pa são

pronomes possessivos exprimindo a relação de posse inalienável, no caso do

relacionamento parental, em i; e de posse alienável, no caso do relacionamento social,

em pa. No entanto, deixaríamos de fora a complexidade dos relacionamentos

existentes na sociedade apinajé e sua intrincada rede de pertencimentos e atribuições.

Uma análise mais delicada e sutil nos levaria a interpelar sobre o estabelecimento da

pessoa gramatical e de seus sistemas pronominais como entidades sintáticas

universais.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!89 Maiores esclarecimentos sobre as implicações de krã e krá, e suas relações com os termos ‘cabeça’ e ‘criança’ em TOSSIN, Laísa. Uma questão de essência: classificadores para o corpo humano em Apinajé. Belém, Revista Moara, n. 43, 2015.

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As análises linguísticas do Apinajé, consideram pa e ka pronomes pessoais

livres que marcam respectivamente a primeira e a segunda pessoa singular; i e a

seriam prefixos pronominais de primeira e de segunda pessoa singular com valor de

objeto ou de pronomes possessivos, alternadamente. De acordo com Alexandra

Aikhenvald (2012, p. 176) este fenômeno é chamado de coincidência entre prefixo

possessivo e prefixo verbal. Vemos o funcionamento desta descrição pronominal nos

exemplos90 a seguir.

(1) Na pa prigakti ∂n nipec. S [ O ] S V na pa prigak.ti ∂n n.ipec realis 1S nome.aumentativo nome prefixo pronominal 1S apagado+relacional.verbo bacuri mingau fazer “Eu faço mingau de bacuri.”

(2) Na pa icki ne. S S V na pa ic.ki ne realis 1S prefixo pronominal 1S +relacional. adjetivo interjeição feliz “Eu sou feliz.”

(3) Na pa icprõt. S S V

na pa ic.prõt realis 1S prefixo pronominal 1S + relacional. verbo correr “Eu corro.”

Em primeiro lugar, é necessário fazer uma consideração a respeito do

aumentativo _ti, no exemplo (1), que é a marca lexical que determina que esta fruta

está associada à metade Kolti, portanto não significa “bacuri grande”. Os exemplos

foram escolhidos de forma a apresentarem o funcionamento dos pronomes em um

verbo transitivo (1), um verbo descritivo (2) e um verbo intransitivo (3). Em todos os

três exemplos, temos o pronome livre pa e o prefixo pessoal i acoplado ao verbo.

Entretanto existe a possibilidade de omitir o pronome livre como no exemplo:

(4) ∂, ic pe Kenkutã. S V Predicativo do sujeito ∂ ic pe Kenkutã interjeição prefixo pronominal 1S+relacional verbo de cópula nome sim ser “Eu sou Kengutã.”

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!90 Todos os dados apresentados foram retirados da tese de Christiane Oliveira, 2005.!

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Considerando as ocorrências de pronome livre e prefixo pronominal nos

exemplos apresentados, podemos concluir que o prefixo é tão importante quanto o

pronome livre no estabelecimento do sujeito gramatical, pois pode ocorrer sem a

presença do pronome livre. No entanto, a frase do exemplo (4) parece ser a resposta

imediata a uma pergunta específica, como por exemplo, “qual é seu nome?”, por isso,

no exemplo (5) podemos verificar a ocorrência de ambas as formas pessoais, em uma

frase estruturalmente parecida, visto que no sentido do significado, ser estrangeiro em

uma aldeia Apinajé, significa não fazer parte do sistema ritual, o que poderia implicar

o uso de pa e i simultaneamente em oposição ao uso exclusivo de i para aqueles que

fazem parte do sistema ritual.

(5) Pa na ic pe kupe. S S V Predicativo do sujeito pa na ic pe kupe 1S realis prefixo pronominal 1S+relacional verbo de cópula nome eu ser estrangeiro “Eu sou estrangeiro.”

Considerando que a omissão do pronome livre no exemplo (4) se deve ao fato

de ser uma resposta imediata a uma pergunta específica. Então nos restaria considerar

o prefixo pronominal i como uma marca indicativa do sujeito no verbo, para indicar a

pessoa do discurso a qual se refere o verbo, com valor de objeto. O valor de objeto

atribuído a este prefixo vem da estrutura linguística tida como universal que

estabelece para os pronomes livres o papel de sujeitos gramaticais e para os prefixos

pronominais o de objetos, decorrente do caso absolutivo. Ser objeto numa relação

absolutivo-nominativa atribui ao objeto um valor de oposição ao do sujeito do verbo

transitivo. Em relação ao sujeito do verbo transitivo, que possui valor de agência, o

objeto possui valor de não agente ou de parcialmente agente, porque semanticamente

sofre uma ação, não a realiza.

Porém, sugiro outra análise para os prefixos pronominais do apinajé.

Considerando a complexa constituição da pessoa apinajé que envolve uma dicotomia

complementar expressa no corpo e no nome, na materialidade e no cerimonial,

entendo que pa e i, para a primeira pessoa do singular, são a expressão do sujeito

gramatical como reflexo da pessoa apinajé em sua completude. Teríamos então um

sujeito expresso de maneira dual, em metades que necessitam estar juntas para

existirem como pessoa apinajé. Portanto, pa e i são a expressão de uma pessoa apinajé

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quando fala a respeito de si mesma, de sua experiência, de seu ser, exatamente por

isso, traz implicada a noção de coletivo, de pertencimento, sendo sempre subjetiva,

em qualquer uma de suas expressões, e nunca objetiva. É interessante observar que o

sujeito gramatical marcado exclusivamente pelo prefixo pronominal pode ocorrer, no

entanto, não existe ocorrência de uso do pronome livre sem o prefixo pronominal.

Esta observação me leva a considerar que o prefixo pronominal se refere à

materialidade, à substância partilhada dos corpos de seus genitores, de seus avós e

assim sucessivamente até os ancestrais, e o pronome livre se refere ao espaço social

que recebe um nome com atribuições rituais específicas, que o localizam em uma das

metades cerimoniais; como espaço que revela uma pessoa que só existe em sua

relação com os outros e com o seu mundo, como o espaço no qual a matéria orgânica

se constitui em matéria social que dá vida aos Apinajé.

Existe a coincidência entre o prefixo pronominal e o prefixo possessivo como

pode ser visto nos exemplos a seguir:

(6) inõkre in õkre 1S posse+relacional garganta ‘minha garganta’

(7) ijakrem ij akrem 1S posse+relacional marido ‘meu marido’

Podemos concordar que se trata de posse inalienável, pois refere-se a partes do

corpo e termos de parentesco. O ponto a ser discutido então se refere à chamada posse

inalienável e a coincidência deste pronome possessivo com o prefixo pronominal. É

extremamente difícil compreendermos a matéria compartilhada da qual se forma o

corpo apinajé, por isso não conseguimos nos libertar da noção de posse quando

tratamos de partes do corpo e de parentesco. Mas são todos esses elementos juntos

que conformam uma pessoa apinajé. Este i associado à materialidade do corpo se

estende às relações, entendendo-se assim que o corpo não termina no limite de sua

pele, mas se expande por meio da procriação e da ação sobre o meio. A relação

expressa por esta partícula sintática não é a noção de posse que nós temos, deveria ser

compreendida como uma relação de constituição mútua, ao fazer a roça produz-se o

alimento que serve de troca para os serviços cerimoniais prestados por outros

integrantes do grupo. A roça e seus frutos são parte da pessoa, assim como os corpos

gerados pelo corpo que se alimenta desta roça. Desta forma, não haveria coincidência

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entre duas partículas sintáticas, pois elas significam a mesma relação. As concepções

enraizadas nos modelos analíticos de descrição é que geram esta coincidência. Neste

caso, foram as marcas de profundas concepções cristãs, de categorias ocidentais e a

generalização de uma particularidade, fato tão corriqueiro e almejado pela ciência,

que definiram esta diferença. No exemplo (8), em vez de posse inalienável temos um

elemento externo à cultura Apinajé.

(8) pa na ic-wapo pa na ic wapo

1S realis prefixo pronominal1S+relacional nome faca ‘minha faca’

São prefixos morfologicamente coincidentes com ocorrências sintáticas

diferentes visto que o prefixo pronominal antecede um verbo e o prefixo possessivo

antecede um nome. No entanto, se observarmos (9) e (10) veremos que os limites

entre verbo e nome no Apinajé são bastante sutis, se não obscuros. Nesta tese, não

tratarei do universal gramatical verbo, que também merece uma delicada análise.

(9) ijakri ij akri prefixo pronominal 1S+relacional verbo frio ‘sinto frio’ (10) go jakri go jakri nome relacional+nome modificador água frio ‘água fria’

Nestes dois últimos exemplos determinar que, em (9), temos um verbo

descritivo cujo experienciador está marcado pelo prefixo pronominal i e, em (10),

temos um nome modificado por outro nome, implica dizer que akri é verbo se estiver

acompanhado de um prefixo pronominal e adjetivo se estiver acompanhado de outro

nome. Isso só faz sentido se levarmos em consideração que somente humanos podem

ser sujeitos e seres inanimados não, porque às coisas está destinado o papel gramatical

de objeto. Concordo com Matthew Dryer (1997, p. 115-143) quando questiona a ideia

de que as relações gramaticais não são categorias universais e aponta que alguns

critérios são úteis para ajudar a identificar as relações gramaticais em determinada

língua, pois as línguas podem apresentar certas similaridades desde que os processos

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cognitivos refletidos em suas relações gramaticais sejam similares, o que não significa

que coincidirão com as noções gramaticais existentes em outras línguas que não

compartilham processos cognitivos iguais. Para ele, processos cognitivos são

atividades mentais desenvolvidas a partir das informações recebidas pelo cérebro por

meio dos cinco sentidos. Matthew Dryer não considera as implicações teóricas

desenvolvidas pelos estudiosos do discurso, portanto se limita às considerações

biológicas sobre as atividades mentais e não inclui em seus argumentos as memórias

discursivas que constituem os sentidos em cada língua. Em vez de processos

cognitivos, eu diria, línguas que partilham memórias discursivas terão noções

gramaticais similares.

Considerando então que as possibilidades de i, sozinho, manifestar o sujeito

gramatical em Apinajé se reduzem a ocorrências em dados elicitados e que

verificamos a estabilidade da presença do pronome livre e do prefixo pronominal em

verbos transitivos, intransitivos e descritivos, podemos então entender que esta

integridade possui um pa provido pelo grupo, e um i único em sua materialidade, cuja

manifestação de totalidade se dá pela junção das duas formas. Bem ao estilo apinajé:

metades que se integram. No entanto, entendo que pa, a parte social e cerimonial,

possui uma dimensão de integridade, de coletivo, que vem de ka, porque ka significa

o outro (tu) e a centralidade. A praça central da aldeia, onde ocorre toda a vida ritual,

também é ka. A partir de ka, saem os elos que ligam ka a todos aqueles que o

circunscrevem, exatamente como os caminhos radiais que ligam as casas à praça da

aldeia. Pa, portanto, não existiria sozinho, como indivíduo, mas como um espaço

preenchido por um nome91 que se relaciona com as extensões de seu próprio corpo: os

outros. Por isso, arrisco dizer que pa só existe enquanto um lugar no espaço, nomeado

e substantivo, quando reconhecido por ka, não necessariamente pelo coletivo Apinajé,

mas por este ka que é único e depositário da substância física e ritual Apinajé.

Retomando o princípio dialógico de Martin Buber (2001, p. 62), que propôs a

relação entre “eu” e “tu”, em que “tu” é condição de existência para “eu”, pois a

realidade do homem seria a diferença entre “eu” e “tu”, o “eu” individualmente não

existiria, seria somente uma abertura para o outro. Entendo que pa não existiria

individualmente nos Apinajé, não que pa exista em contraste com ka, não seria uma

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!91 Para uma discussão aprofundada sobre os nomes, ver: GONÇALVES, Marco Antonio. O significado do nome. Cosmologia e nominação entre os Pirahã. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1993; LÉVY-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 6 ed. São Paulo: Papirus, [1962] 2006.

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existência pautada na diferenciação entre pa e ka, mas sim uma existência a partir da

partilha da substância coletiva (material e ritual) que consubstancia os Apinajé, que

tem origem em seus ancestrais e mitos. É da substância coletiva de onde emerge ka

que se estabeleceria a possibilidade de pa. Estabelecer uma diferenciação entre o que

nós entendemos por “eu” e o que os Apinajé poderiam entender por pa nos

proporciona uma comparação entre sentidos provenientes de duas memórias

discursivas diferentes. Para nós, “eu” é indivíduo, autônomo em um grupo que se

constitui como sociedade. Para os Apinajé, pa poderia ser a parte social e cerimonial

da pessoa como uma expressão do coletivo. Nesse sentido, pa definitivamente não

significa a mesma coisa que “eu”. Como lidar com a hierarquia entre sujeito e objeto?

Será que existe em Apinajé uma hierarquia sintática que coloca o sujeito gramatical

pa em uma posição superior a i?

Mergulhar na memória discursiva das línguas indígenas foi a maneira que eu

encontrei para identificar as projeções ocidentais sobre essa língua. Aqui, neste

capítulo, me dediquei a fazer um pequeno exercício, um experimento de análise do

que pode vir a ser o trabalho de compreender os sentidos, as relações entre os sentidos

e a memória discursiva indígena que os significa.

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8. EPÍLOGO

E disse: Aba, Pai, todas as coisas te são possíveis, afasta de mim este cálice, não seja, porém, o que eu

quero, mas o que tu queres. (Marcos, 14:36)!

Não ouso apresentar estas conclusões como algo certo. Os elementos que me

levaram a elas, no entanto, me parecem suficientemente significativos para serem

propostos ao leitor. O fim tem uma perspectiva um tanto cristã. A morte como fim do

ciclo humano seguido de uma espera interminável até o dia do Juízo Final é a

principal delas. A outra é a morte como libertação. Jesus Cristo morreu crucificado

pela salvação da cristandade. O fim dos tempos previsto pelo cataclisma apocalíptico

pode, nos dias de hoje, receber uma interpretação de catástrofe ambiental.

Tomás de Aquino, em seu leito de morte, tendo deixado a Suma Teológica

inacabada, dedicou-se a falar sobre o Cântico dos Cânticos. O Cânticos dos Cânticos

é um compêndio de cantos de amor, usados em festas matrimoniais. Sua autoria é

atribuída ao rei Salomão, filho do rei Davi. Apesar dos vários debates sobre a

pertinência ou não desses cânticos serem incluídos na Bíblia, Tomás de Aquino estava

mais preocupado com a simbologia da união mística da alma com Deus, como

analisou Carl Jung (1971, p. 475-480), a partir dos testemunhos de sua morte deixados

por seus discípulos. A interpretação mística não foi dele. Orígenes de Alexandria

elaborou a interpretação das núpcias de Jesus Cristo com a Igreja ocorrida na

crucificação e a tomou como a união da alma divina existente no corpo de Jesus

Cristo com Deus, seu pai. Santo Agostinho retomou essa interpretação de Orígenes de

Alexandria, que viveu e escreveu importantes obras no início do século II, foi ele o

autor primordial da concepção da natureza divina de Jesus Cristo, debatida e

condenada no Primeiro Concílio de Niceia, quase duzentos anos depois. Orígenes

admitia certa subordinação de Jesus Cristo a Deus, do Filho ao Pai, e defendia que o

Pai e o Filho possuíam a mesma essência. Foi na exegese de Santo Agostinho que

Tomás de Aquino encontrou a motivação para elaborar a própria morte. Tomás de

Aquino havia tido uma visão poucas semanas antes de morrer em que vislumbrava a

imagem de Deus. Em sua visão, ele perguntava ao pai, já falecido, como era possível

ver Deus sem nenhuma mediação celestial. Seu pai lhe respondeu que Deus era uno e

que estava em comunhão com tudo. Tomás de Aquino já estava imbuído do

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movimento das esferas superiores e podia ver Deus sem mediação celestial. Não havia

mais necessidade de concluir a Suma Teológica.

A simbologia da crucificação como um matrimônio é uma perspectiva

interessante. Fico muito curiosa de saber qual seria a interpretação da crucificação

como um matrimônio do ponto de vista de um índio que usa tembetás. Para os Jê do

Brasil Central, furar a boca dos rapazes representa a maturidade sexual e antecipa a

atividade sexual se contrapondo à penetração do corpo feminino e ao parto. Como

será que eles interpretariam os cravos perfurando as mãos e os pés de Jesus Cristo

nesse matrimônio místico? Eu gostaria de saber.

Tomás de Aquino foi um dos autores fundadores do pensamento cristão

europeu. Embora tenha sido acusado de heresia por adotar um Aristóteles demasiado

árabe em seus trabalhos, ele conseguiu moldar um Aristóteles suficientemente cristão

para contornar as acusações. Sua habilidade retórica lhe garantiu a permanência como

substrato intelectual produtivo do pensamento ocidental. Assim como as concepções

filosóficas de Orígenes ainda fazem eco nas mais modernas teorias sobre a mente

humana. Ficou simples agora entendermos porque a discussão a respeito da existência

de alma nos corpos indígenas americanos era tão importante no século XVI. Não era

apenas a humanidade dos indígenas que estava em jogo nesses debates. A

legitimidade da existência de uma alma em um corpo humano é que estava em jogo.

A legitimidade da base conceitual religiosa da vertente católica do cristianismo é que

estava sendo questionada. De volta ao século II, de volta ao Concílio de Niceia,

novamente andando em círculos sobre os passos já dados da história da cristandade.

Bem a propósito do que Louis Dumont (2000, p. 119) nos apresentou ao tentar

estabelecer as origens do individualismo como marca do pensamento ocidental. Não

há como determinar que havia um animismo primitivo a partir do qual, em algum

momento, desenvolveu-se o individualismo. Aparentemente ambos coexistiram e

coexistem em conflito. A racionalidade da ciência moderna é uma “ideia-valor”

calcada nos mais profundos valores cristãos que subjazem nas relações de sentido que

se atribuíram ao mundo e às relações humanas.

O debate sobre a existência da alma nos corpos indígenas americanos

impulsionou os estudos linguísticos promovidos pelos missionários que dedicaram

suas vidas em prol dessa missão tão nobre e elevada. Os documentos deixados por

eles alimentaram as pesquisas e a formulação de teorias a respeito do surgimento e do

desenvolvimento das línguas do mundo, traçando entre elas relações de pertencimento

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e hierarquia. Diante da perspectiva da existência de uma língua originária comum a

todas as demais, como reagir frente à existência de um termo como aba?

Esse termo existe em Tupi antigo significando “homem” e em aramaico

significando “pai”, no sentido de genitor. Aba Pai, como na expressão bíblica do

versículo inicialmente citado, assumiu um sentido de “meu pai”. Poderíamos

considerar esta ocorrência como mais uma das tantas coincidências existentes entre o

Tupi antigo e outras línguas não americanas e ignorá-la por distância física ou

temporal. Mas não deveriam ser exatamente estas “coincidências” o foco dos nossos

estudos? Afinal, é por meio delas que poderíamos recriar um cenário aproximado da

realidade vivida no dia a dia da colônia dos primeiros anos no Brasil. Não podemos

ignorar o fato de que a Europa possui longo contato com a costa norte da África,

chegando a constituir um sistema regional junto com os países do mediterrâneo

europeu, um sistema mediterrâneo, digamos assim, durante um período bem longo,

talvez anterior ao Império Romano. Até o século IX, aproximadamente, era possível

converter-se ao judaísmo92. Negros, europeus e árabes politeístas tornaram-se judeus,

muçulmanos e cristãos, e circulavam da península arábica à península ibérica.

Aba é uma “ideia-valor” de origem semita, absorvida pela liturgia cristã,

transposta para a costa brasileira onde foi incorporada num pidgin com um sentido

semelhante. Um trajeto assim tão labiríntico e acidentado poderia nos dar a direção da

origem das línguas ou pelo menos da origem do Tupi antigo? Acho que não. Talvez, o

caminho apontado por estas reflexões seja de que a origem comum das línguas, este

pressuposto que alicerça as teorias linguísticas atuais, só exista porque podemos

perceber as pegadas dos sentidos partilhados ao longo de nossa história de

partilhamento de sentidos. Os sentidos que se dispersam são aceitos e aparecem nos

sentidos que adotamos como nossos, como uma marca congregadora ou

diferenciadora do que somos em relação aos outros. Ainda estamos imersos nas

nossas concepções de humanidade, por mais que tenhamos nos ocupado em

desvencilharmo-nos delas. E temos como uma das práticas da ciência moderna, a

generalização. Por isso, todo cuidado é pouco na hora de fazê-las.

Meu desejo, caro leitor, após ter vislumbrado as margens do outro lado do rio,

é ouvir as vozes que habitam a outra margem. E aqui nos coloco um problema

importante. Como faremos para dar, aos indígenas, voz científica se nosso modelo de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!92 Simon Schama. A história dos judeus, 2015, p. 59.

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cientificidade e de discurso científico está construído sobre valores e concepções que

remontam a tempos imemoriais? Compreender que elaboramos um sistema de

conhecimento é o primeiro passo para poder estabelecer o diálogo e compreender o

que um outro sistema pode dizer. Só assim poderemos perceber os sentidos e

participar de uma atividade que descreva uma língua que significa um mundo.

No que diz respeito às reflexões apresentadas nesta tese, tenho muito a

agradecer ao jovem Tukano que me emprestou suas lentes de jaguar. Sem seu ríspido

comentário, não teria sido possível cruzar o limite que me fazia permanecer na

margem conhecida e vastamente pesquisada. Inverter a perspectiva da análise e

investigar os sentidos que permeiam as teorias linguísticas que usamos para descrever

as línguas indígenas foi imprescindível para compreender os limites que elas

representam. Meu profundo agradecimento a Francisco Sarmento.

As lentes do jaguar são instrumentos poderosos e facilmente se pode perder o

rumo ou ficar preso em uma maloca encantada. Sem muita habilidade no manejo

adequado das lentes, recorri à experiência de meu marido e seu vasto acervo de

conhecimento e leituras sobre xamanismo e parentesco, me ajudando sempre a

encontrar a pedra mais firme no terreno pantanoso das teorias desconhecidas. Com

grande amor, agradeço a Luis Cayón por ter me ensinado a usar as lentes do jaguar.

A jornada xamânica oferece longos e extenuantes caminhos que transcendem

os limites de uma única trilha. Sentado em seu banco, conduzindo esta viagem com o

poder de suas recitações, estava Eduardo Roberto Junqueira Guimarães, orientador

desta tese-jornada, a quem agradeço a liberdade de poder escrever sobre o que me

inquietava e, acima de tudo, por ter me ajudado a vestir a pele do jaguar.

Agradeço aos professores José Horta e Lauro Baldini pelas experientes

advertências partilhadas durante a banca de qualificação desta tese. À querida amiga

Alcida Rita Ramos, que escutou pacientemente minhas indagações e indicou

caminhos para que a jornada fosse mais segura e firme. Aos professores Gersem

Luciano, Isadora Machado e Eduardo Vasconcelos pelas firmes e pertinentes

colocações de suas avaliações durante a banca de defesa desta tese, comentários que

muito contribuíram para a qualidade da versão final.

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CATÁLOGOS

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ANEXO I