os deuses da humanidade e o deus que se revela

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LUCIANO JOSÉ DIAS OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS (CCEJ) São Paulo 2011

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Page 1: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

LUCIANO JOSÉ DIAS

OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA

CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS (CCEJ)

São Paulo 2011

Page 2: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

LUCIANO JOSÉ DIAS

OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA

CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

(CCEJ)

São Paulo 2011

Trabalho de conclusão do curso de

Pós-Graduação Lato-Sensu em

Cultura Judaico-Cristã, História e

Teologia. Exigido pelo Centro

Cristão de Estudos Judaicos como

Requisito parcial para conclusão do

curso de Especialização. Orientador:

Professor Ms. Ir. Elio Passeto.

Page 3: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

LUCIANO JOSÉ DIAS

OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA

Aprovado Nota

_____________________________________________________________________________

Orientador: Prof. Ms. Ir. Elio Passeto

Trabalho de conclusão do curso de

Pós-Graduação Lato-Sensu em

Cultura Judaico-Cristã, História e

Teologia. Exigido pelo Centro

Cristão de Estudos Judaicos como

Requisito parcial para conclusão do

curso de Especialização. Orientador:

Professor Ms. Ir. Elio Passeto.

Page 4: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

Dedico este trabalho a todos os apaixonados pela

Palavra de Deus que doam suas vidas na tarefa de

elucidar a compreensão dos textos bíblicos levando

às pessoas o bom entendimento da Palavra

revelada.

Page 5: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

Agradeço ao Prof. Ms. Pe. Manoel Ferreira de

Miranda Neto, diretor do Centro Cristão de

Estudos Judaicos por ter me concedido

participar como bolsista neste brilhante curso;

ao prof. Dr. Jarbas Vargas Nascimento, que

sempre se mostrou em prontidão para me

escutar nos momentos de dúvidas, e agradeço

especialmente ao Prof. Ms. Ir. Elio Passeto, que

me orientou durante todo o tempo, até chegar à

conclusão deste trabalho, mostrando-me o

melhor caminho a seguir.

Page 6: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

Sumário

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 6

CAPÍTULO I ................................................................................................................................ 8

A humanidade em busca de Deus ................................................................................... 8

1. Falar de Deus de diversas maneiras ........................................................................... 9

1.1. Como falar de Deus? ............................................................................................... 13

1.2. História ou teologia? ................................................................................................ 14

1.3. Unicidade de Deus ................................................................................................... 18

CAPÍTULO II ............................................................................................................................. 27

Compreendendo a religião de Israel ................................................................................. 27

1. A religião de Israel ........................................................................................................ 28

1.1. Eu sou aquele que é ................................................................................................ 29

1.2. Relacionamento entre Deus e a criatura .............................................................. 32

1.3. Oseías e a amargura de Deus diante da traição do povo ................................. 34

CAPÍTULO III ............................................................................................................................ 37

O Deus do Antigo e do Novo Testamento é um e único .............................................. 37

1. Jesus o judeu ................................................................................................................ 38

1.1. “Abba, Pai”: O Deus de Jesus ................................................................................ 41

1.2. O Deus dos cristãos ................................................................................................. 47

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 56

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 59

Page 7: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

6

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como conteúdo algumas das percepções acerca da

representação divina realizada pela humanidade ao longo da história. Nele,

também esta inserida a idéia do conceito de Deus para o povo judeu, descrito

nos livros bíblicos, e também para os cristãos. Este estudo tem por objetivo

mostrar que um mesmo tema, em nosso caso “Deus”, pode ser encarado de

diversas formas através de diferentes visões, desta forma, Deus pode ser visto

como um Ser amoroso ou mesmo destruidor.

As várias concepções a respeito do significado e da atuação da divindade na

vida do individuo ou até mesmo dentro de um grupo são questões evidenciadas

desde a Antiguidade, na qual se insere o contexto bíblico, até os tempos

contemporâneos. A depender da visão criada pelas pessoas acerca de um Ser

Supremo, pode-se perceber a influência que Ele é capaz de exercer em cada

individuo. O conceito que a humanidade tem sobre divindades, se dá dentro do

contexto cultural de cada povo e no contato entre as diversas culturas.

Por meio de uma análise bíblica, percebemos que o povo de Israel também foi

aprendendo sobre Deus ao longo de sua história, da mesma forma como

continuamos a aprender até hoje. A experiência do Sagrado sempre levará em

conta o contexto em que o ser humano está inserido, a bagagem cultural que

traz com sigo, tal como os conflitos que lhe cerca, por isso, a compreensão que

fazemos de Deus depende da compreensão que o ser humano tem de si

mesmo. Esta compreensão nunca é absoluta, é sempre relativa.

Por intermédio deste trabalho: “Os deuses da humanidade e o Deus que se

revela”, apresentaremos como o ser humano fala de Deus de diversas

maneiras, nosso ponto de partida será a Suméria, como o povo compreendia

Deus em sua época, passando logo após pelo Egito, pela filosofia, pelo

universo bíblico, percorrendo trechos da Escritura Sagrada, mostrando que, o

mesmo e único Deus apresentado no Antigo Testamento é o mesmo Deus

apresentado por Jesus no Novo testamento. Tentaremos oferecer uma

possibilidade de resposta para a inquietude de vários corações que não

Page 8: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

7

conseguem aceitar a existência do mal com a existência de Deus, e se

perguntam: Se Deus é bom, como pode permitir que o mal aconteça? Ou como

poderia ele mesmo fazer o mal a um povo? Já há tempos a filosofia tentou

responder a esta questão.

Como compreender um Deus que destrói, aniquila matando adultos e crianças,

expulsa moradores de sua Terra para dá-la a outros? (Deut 7,6; 14,2) Quem

nunca se perguntou como pode Deus ser tal mal, matando todos os

primogênitos do Egito? (Ex 12,29-31) Crianças indefesas pagando pela culpa

de seus pais. Ou como ele pode destruir todos os soldados do faraó que

entraram no mar dividido ao meio por Moisés em busca do povo hebreu?(Ex

14,26-31). Não haveria nenhum justo entre os soldados que estavam somente

obedecendo a ordens?

Acredito que a relevância deste trabalho esteja exatamente em esboçar

algumas possíveis respostas a estas e a tantas outras questões que surgiram

no decorrer de nossa pesquisa, e agora se encontram registradas nas linhas

que seguirão. A comunidade acadêmica, portanto, poderá ser enriquecida com

as conclusões que juntos chegaremos, aprofundando-nos no mistério de Deus

milimetricamente, à medida que o próprio Deus permita, tendo visto que Ele é

quem inicia a busca pelo diálogo com o ser humano, revelando-se numa única

face, que cada indivíduo ou grupo enxergará como múltiplas faces dependendo

do momento cultural vivido. Daí elas variarem muito. Numa situação de guerra

contra inimigos poderosos, enxerga-se um Deus guerreiro para animar as

pessoas nos combates. Em momento de lutas internas religiosas, enxerga-se

um Deus exigente no cumprimento de leis para evitar a desordem social.

Em nossa abordagem de Deus no Antigo Testamento nos revelará a maneira

como o povo foi criando uma compreensão de Deus através de uma intima

experiência Dele.

Percorramos juntos este trabalho, e façamos também a experiência de Deus.

Page 9: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

CAPÍTULO I

A humanidade em busca de Deus

Page 10: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

9

1. Falar de Deus de diversas maneiras

Já no inicio da aventura humana sobre a terra, o homem pré-histórico tentava

imaginar quem teria criado as coisas existentes e como seria este Criador que

não podia ser visto1. A grande aventura de falar sobre Divindades perpassa

todos os séculos da existência humana, desde quando se tem relatos. Os

registros mais antigos desta aventura vêm da Suméria2, região onde foi

inventada a escrita, há cerca de quatro mil anos antes de nossa era.

Através de tabletas de barro, hoje guardadas em museus, ficamos sabendo

que os sumérios acreditavam em deuses com formas humanas e imortais.

Também na Suméria, os deuses começaram a se preocupar com o

comportamento do povo.

O “Pai dos códigos”, criado há cerca de três mil anos a.C. foi escrito por um rei,

mas com o auxilio de Shamash3, um deus muito importante. Da Babilônia, no

séc. 18 a.C., veio o “Código de Hamurabi4”, que permitiu ao rei informar a seus

súditos que as leis foram transmitidas pelos deuses. A lei do talião, “olho por

olho, dente por dente”, fazia parte desse código.

1 BASTOS, Fernando, As várias faces de Deus. http://pensarporsi.zip.net/ acessado em 20/12/2010

2 ELIADE, Mircea, História das crenças e das idéias religiosas, volume I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010;

p. 66-70.

3 Era uma deidade mesopotâmica nativa e o deus sol no panteão acádico, assírio e babiloniano.Shamash

foi o deus da justiça na Babilônia e Assíria, correspondendo ao deus Utu sumeriano.

4 O Código de Hamurabi é um dos mais antigos conjuntos de leis escritas já encontrados, e um dos

exemplos mais bem preservados deste tipo de documento da antiga Mesopotâmia. Segundo os cálculos,

estima-se que tenha sido elaborado pelo rei Hamurabi por volta de 1700 a.C.. Foi encontrado por uma

expedição francesa em 1901 na região da antiga Mesopotâmia correspondente a cidade de Susa, atual

Irã. Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Page 11: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

10

No Egito, séc. 14 a.C. apareceu o faraó Akenaton, que acabou com a

proliferação de deuses em sua terra e adotou Aton, como único deus de seu

povo5.

Os homens da antiguidade, quando encontravam um novo deus para guiá-los,

logo descobriam sua personalidade, que por coincidência, se parecia muito

com a personalidade dos próprios profetas. Aton, o deus de Akenaton, era

pacífico, amante das artes e dos animais. Antes dele, o panteão egípcio era

formado por milhares de entidades, com qualidades e defeitos humanos. Havia

deuses protetores dos doentes, da agricultura, do casamento etc. Os deuses

gregos eram chefiados por Zeus, que ora podia ser amável, ora violento com a

gente da Terra.

O conceito sobre Deus é um aprendizado permanente da humanidade ao longo

dos séculos, dentro do contexto cultural de cada povo e no contato entre as

diversas culturas.

Por meio da Bíblia, percebemos que o povo de Israel também foi aprendendo

sobre Deus ao longo da história, no desenrolar dos conflitos, das crises, das

vitórias e alegrias do cotidiano, assim, também nós continuamos e

continuaremos, no decorrer do tempo, fazendo experiências de Deus e estas

experiências sempre levarão em conta o contexto em que o ser humano está

inserido, sua cosmo-visão, a bagagem cultural que traz consigo, tal como os

conflitos que o cercam.

A compreensão que fazemos de Deus depende da compreensão que o ser

humano tem de si mesmo, de como ele se compreende dentro do mundo e de

suas relações com outros seres.

O livro mais conhecido de todos os tempos, a Bíblia, que mostra a íntima

relação de Deus com um povo (neste caso, o povo de Israel), ao ser analisado

por olhares ocidentais e não semitas, coloca-nos de frente com um intrigante

dilema: o mesmo Deus que é compreendido sendo salvador e misericordioso

com Israel é ao mesmo tempo colérico e destruidor junto a outros povos que se

5 ELIADE, Mircea, História; p.110-112.

Page 12: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

11

opuseram a Israel, revelando-se algoz de sua própria criação, visto que tudo foi

criado por Ele.

Como compreender um Deus que destrói, aniquila, matando adultos e crianças,

expulsando moradores de sua Terra para dá-la a outros? (Deut 7,6; 14,2)

Quem nunca se perguntou como pode Deus ser tão mal, matando todos os

primogênitos do Egito? (Ex 12,29-31) Crianças estas, indefesas pagando pela

culpa de seus pais. Ou como ele pode destruir todos os soldados do faraó que

entraram no mar dividido ao meio por Moisés em busca do povo hebreu? (Ex

14,26-31). Não haveria nenhum ser justo entre os soldados que estariam

somente obedecendo a ordens?

Estas questões reavivam no fundo do coração humano a pergunta sobre como

compaginar a existência do mal com a existência de Deus. Se Deus é bom,

como pode permitir que o mal aconteça? Ou como poderia ele mesmo fazer o

mal a um povo? Já há tempos a filosofia tentou responder a esta questão.

O filósofo pré-socrático Epicuro6, em síntese, colocava a questão da seguinte

maneira: "Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou

não quer e nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que

é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo

modo, é contrário a Deus. Se nem quer e nem pode, é invejoso e impotente:

portanto nem sequer é Deus. Se pode e quer que é a única coisa compatível

com Deus, donde provém então existência dos males? Por que razão é que

não os impede?

Sábio Epicuro, que colocou uma pergunta: “desde que o mundo é mundo agita

o coração humano. Se Deus é bom, como pode ser que exista o mal, que o

ser humano faça tantas coisas não boas, que a vida humana seja atravessada

de tantos sofrimentos? Se Deus criou todo o bem, por que a desordem

instaura o mal e o medo na criação divina, que deveria conduzir somente ao

Bem e ao Amor?”

6 Epicuro de Samos foi um filósofo grego do período helenístico. Seu pensamento foi muito difundido e

numerosos centros epicuristas se desenvolveram na Jônia, no Egito e, a partir do século I, em Roma,

onde Lucrécio foi seu maior divulgador.

Page 13: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

12

No século XIX, o filósofo Leibniz7 refletiu novamente sobre esta problemática e

até criou uma nova área do pensar filosófico e teológico: a teodicéia. Teodicéia

vem de Theos (Deus) e dike (justiças). O nome quer dizer que a reflexão

desta área filosófica questiona justamente esta incompatibilidade entre a

existência de um Deus todo bom, todo amoroso e misericordioso e a existência

do mal. A solução de Leibniz foi dizer que o mal não é uma realidade, não tem

consistência em si próprio, é apenas um vácuo, um vazio, uma carência: a

carência do bem, do amor de Deus.

Ainda neste mesmo século XIX, Karl Marx8 concluiu que a religião,

considerando o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, “amortece a

combatividade dos oprimidos e explorados porque lhes promete uma vida

futura feliz. Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo, os

despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as causas de

suas misérias neste mundo”9. Desta forma, Marx tinha a visão de que a figura

divina acendesse dentro de cada individuo a expectativa de uma vida posterior

muito mais gratificante do que esta, criando certo tipo de acomodação dos

mesmos.

Indo de encontro às concepções atuais, encontramos discursos como: “Um

individuo inflexível e inseguro, por exemplo, dificilmente terá uma percepção

que não seja de um Deus guardião, normativo, caprichoso e intolerante; já

alguém que avançou no processo de autoconhecimento e está prestes a

superar as dualidades (bastante presente na visão maniqueísta10 da vida),

7 Gottfried Wilhelm von Leibniz foi um filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão.

8 Karl Heinrich Marx foi um intelectual e revolucionário alemão, fundador da doutrina comunista

moderna, que atuou como economista, filósofo, históriador, teórico político e jornalista. O pensamento

de Marx influencia várias áreas tais como: Filosofia, História, Direito, Sociologia, Literatura, Pedagogia,

Ciência Política, Antropologia, Biologia, Psicologia, Economia, Teologia, Comunicação, Administração,

Design, Arquitetura, Geografia e outras. 9 CHAUI, Marilena. “Convite à filosofia”. São Paulo: Ática, 1997; p. 309.

10 O Maniqueísmo é uma filosofia religiosa sincrética e dualística que divide o mundo entre Bem, ou

Deus, e Mal, ou o Diabo. A matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com a

Page 14: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

13

tende a perceber Deus como a expressão do absoluto, intangível,

permanentemente compassivo no sentido da aceitação do que é”. Esta análise

mostra que a noção do criador muda e se refina de acordo com o

conhecimento que o homem vai adquirindo.

Em meio a tantos conceitos relacionados a um único ser, pode-se verificar

como uma única e só figura é capaz de se revelar em diversas formas,

mostrando sua influência para um grupo, como foi o caso do povo de Israel em

Deuteronômio, Êxodo e em tantos outros livros da Bíblia, ou para as mais

variadas mentes de filósofos de determinadas épocas. Essa visão eclética de

diversos pensadores explicita que o período em que vivem, os contextos em

que estão inseridos, interfere e muito na construção de suas influências,

levando, de acordo com cada conclusão, à formação das múltiplas faces de

Deus.

1.1. Como falar de Deus?

Mas afinal, quem é Deus? Assim tem perguntado a tradição ocidental. E ela

deu respostas que são a tentativa de compreender o Ser mais profundo de

Deus por meio de uma lista inteira de qualidades eternas.

Os homens da Bíblia costumavam falar de outra forma a respeito de Deus.

Quando falavam de Deus, narravam, sobretudo, situações da vida deles nas

quais tinham percebido quem era Deus e como ele os mudava ou queria mudá-

los.

A situação original, em que os homens bíblicos perceberam quem é Deus, era

o caminho11. O caminho de um para o outro e de um com o outro. E, sobretudo,

o caminho para o qual ele os chamou e no qual ele, junto com eles, andou. É

neste caminho que o homem é apreendido por Deus. Experiência de Deus na

Bíblia não significa que nós possamos decidir quando, onde e como estaremos

popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois

princípios opostos do Bem e do Mal.

11 ZENGER, Erich. O Deus da Bíblia. São Paulo: Paulinas 1989.

Page 15: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

14

inclinados ou com vontade de encontrar Deus, não somos nós que nos

encontramos com ele, mas Ele é que se encontra conosco. “Senhor

misericordioso e piedoso, paciente e rico de bondade e fidelidade, age com

bondade sem medida e perdoa as ofensas, as injúrias e o pecado, mas é

tocado pela injustiça e pelo pecado e não os aceita simplesmente, mas os

combate” (cf Ex 34,6-7).

Este é o caminho a seguir para entender quem é Deus. Somente quem é

bondoso sem medida, quem é tocado pela injustiça e pelo pecado e luta contra

eles, quem vive o perdão compreende quem é este Deus. Não é na

contemplação ou no culto de uma imagem de Deus que se experimenta o Deus

bíblico, mas sim, agindo como ele, pondo-se no caminho aberto por ele, no

qual ele vai à frente. (Imitatio Dei).

O Deus bíblico quer mostrar, neste mundo, quem ele é através de pessoas

vivas. Os homens se tornam desta forma imagens de Deus quando tomados e

modificados por ele a fim de seguirem seu caminho.

O que fascina na história do povo de Deus na Sagrada Escritura é o fato de,

mesmo tendo sido tentados a seguir seus próprios caminhos, os homens da

Bíblia nunca desistiram da tentativa e da ousadia de buscar e seguir a palavra

de Deus. As muitas páginas da Bíblia dão testemunho de como eles se

puseram no caminho que Deus quis conduzi-los. Mas esta tentativa não foi

fácil, pois muitas vezes alguns ficaram no meio do caminho ou se desviavam

para rotas que lhes pareciam mais confortáveis. Mas é neste peregrinar que o

homem bíblico foi descobrindo a unicidade de Deus, percebendo que não

existe outro.

1.2. História ou teologia?

Hoje, nosso olhar Ocidental sobre os relatos bíblicos nos faz buscar a

historicidade do texto e este, por sua vez, mostra-se contraditório exatamente

por não ser histórico, muito embora trate de dados concretos da vida de um

povo. Esta busca pela historicidade ludibria muitos autores que analisam o

Page 16: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

15

Antigo e o Novo Testamento acreditando encontrar um Deus totalmente

diferente em um e noutro.

Um exemplo do que dizemos seguirá abaixo, onde analisamos um texto de

SOUZA, Vitor Chaves, estudante da Universidade Metodista de São Paulo

localizada em São Bernardo do Campo/SP, que, em 2007, desenvolveu em

sua monografia o tema: As faces do Senhor, onde ele se propôs a demonstrar

a diversidade e profundidade dos nomes de Deus no Antigo Testamento e suas

ações através destes nomes. SOUZA nos convida a observar que Deus (no

nosso caso o Senhor) é uma profunda reflexão ao invés de definições e

conceitos teológicos. Souza tenta demonstrar que as manifestações de Deus

no Antigo Testamento são as mais diversas e, mesmo diferentes sem anular

uma à outra, se complementam. Segundo ele, esta seria mais uma face do

Senhor, a face pedagógica, que sofre mutações teológicas segundo sua

revelação e transformação dentro da história.

Sendo assim, o Senhor no Êxodo torna-se um Deus guerreiro, a começar pelo

significado do nome Israel: “Deus reto e fiel na luta”, um Deus de milagre na

luta, Deus de sinais grandes e terríveis (Êx 6-22), que se referem à intervenção

salvifica, proporcionada pelo Senhor “com braço estendido e com grande

espanto” (Êx 6,6), pois o Senhor, na luta e na guerra, em que ele “combatia

para proteger os seus”, tem milagrosamente a face do “livramento” (ÊX 13s),

um milagre, não para fazer lutar a guerra santa, mas que livra e salva o povo

de Deus de uma situação desonesta. Situação esta, registrada nas

intervenções do Senhor quando, estando o faraó com seus carros de guerra e

os hebreus quase desarmados, Esse “intervém em prol dos desarmados

hebreus”, equivalendo, pois, ao livramento e defesa dos mais fracos. O

problema do Senhor guerreiro, aquele Deus que luta, é que foi através das

guerras “que se radicalizou a intransigência da fé no Senhor”, ou seja, a face

do Deus libertador pode ser, pelo entusiasmo e emoção de alguns,

transformada em um Deus que combate para massacrar e salvar somente um

povo considerado eleito.

O que SOUZA talvez não tenha levado em consideração em seu trabalho é o

fato de que o Deus da luta ou lutador neste caso é uma conotação não bíblica,

Page 17: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

16

mas sim uma maneira de projetar valores recentes de análise da sociedade e

tentar explicar os textos que estão em outros contextos. Deus é um Deus da

Aliança e podemos dizer que até aí segue um costume dos outros povos,

porém, aqui exige um engajamento de vida e uma correspondência sem igual

em relação a Ele. Um mundo sem Deus é um mundo da morte. As mortes não

são uma ação de Deus, mas uma ação do não Deus. Deus não age para que

venha a morte, é Ele que se apresenta como alguém que gera a vida diante de

povos que vivem uma realidade de morte.

O nome YHWH12 (nome inefável, O Senhor, assim traduzido para o Grego e

para o Latim) é um equivoco desde sua maneira de se definir. Há na tradição

uma maneira mais rica de ver a manifestação de Deus por atributos onde um

representa o atributo de justiça e o outro (Elohim), representa o atributo da

misericórdia. É na harmonia destes dois atributos que o mundo se torna

possível. A linguagem usada para analisar o texto não pode fugir à linguagem

da época, mas ela não deve ser entendida como nós a entendemos com os

critérios de hoje. O texto deve nos informar do passado e não o presente dizer

como era o passado13.

Outro autor, MESQUITA14, em seu livro, destaca que o Deus do Antigo

Testamento é ainda um Deus escondido (Is 45,15). Ele dirige os passos do

12

Carta do cardeal Arinze às conferências episcopais sobre o nome de Deus. CIDADE DO VATICANO,

quinta-feira, 11 de setembro de 2008 (ZENIT.org ). A Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos

Sacramentos enviou uma carta às conferências episcopais do mundo sobre o nome de Deus, na qual

pede que não se use o termo «Javé» nas liturgias, orações e cantos. A carta se refere ao uso do nome

«YHWH», que se refere a Deus no Antigo Testamento e que em português se lê «Javé». O texto explica

que este termo deve ser traduzido de acordo ao equivalente hebraico «Adonai» ou do grego «Kyrios»; e

põe como exemplos traduções aceitáveis em cinco idiomas: Lord (inglês), Signore (italiano), Seigneur

(francês), Herr (alemão) e Señor em espanhol. A carta está assinada pelo cardeal Francis Arinze e pelo

arcebispo Albert Malcom Rajith, respectivamente prefeito e secretário da congregação vaticana,

seguindo uma diretiva de Bento XVI. Após comentar que o nome de Deus exige dos tradutores um

grande respeito, o cardeal explica que a palavra «YHWH» é uma expressão da infinita grandeza e

majestade de Deus, que se manteve «impronunciável e por isso foi substituída na leitura das Sagradas

Escrituras com o uso da palavra alternativa ‘Adonai’, que significa ‘Senhor’.

13 Idéias obtidas em conversação com Ir. Elio Passeto, Professor responsável pelo Centro de Formação

Bíblica Nuestra Señora de Sion, em Jerusalém.

14 MESQUITA, Luiz José de, Por Que Crer? A fé e Revelação. São Paulo: Ave Maria, 1990.

Page 18: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

17

homem sem que este compreenda o caminho (Pr 20,24). Antes mesmo que o

homem se volte para Deus, Ele mesmo toma a iniciativa e lhe fala primeiro.

Analisando estas afirmações destacamos que sempre o principio bíblico é de

que Deus toma a iniciativa, isso se dá mesmo no Novo Testamento. O homem

o busca, mas é sempre Deus que se deixa encontrar.

MESQUITA continua sua narrativa dizendo-nos que no meio oriental (onde se

achava o povo bíblico) usava de artifícios puramente humanos para penetrar

nos segredos do Céu (adivinhações, presságios, lançamentos de sortes,

astrologia, sonhos, etc.), durante muito tempo conservaram-se no Antigo

Testamento essas técnicas arcaicas, purificadas, porém, dos seus

condicionamentos politeístas.

Assim, Deus confia sua revelação aos canais tradicionais, condescendendo

com a mentalidade ainda muito imperfeita do povo bíblico.

Porém, depois com os profetas, Ele vai afastando as magias e as sortes; os

falsos profetas são combatidos e escorraçados, até que a revelação pela

Palavra – “Davar”, (símbolo do “Logos” divino) predomina e vence.

A partir daí, a revelação se faz, também, por meio dos dons divinos da

Inteligência, da Sabedoria e da Ciência, apelando para a reflexão bíblica (os

livros sapienciais).

O que Deus revela é sempre de ordem sobrenatural. A revelação divina não

tem por objetivo as ciências e as artes humanas.

Por sua natureza, o homem não sabe exatamente o que Deus quer dele.

Então, Deus revela seus planos, a começar por lhe traçar normas de conduta,

de orientação religiosa, de instituições políticas e sociais (cf. os livros do

Pentateuco, isto é, os cinco primeiros livros do Antigo Testamento).

Deus revela também o sentido da História e dos acontecimentos pelos quais

seu Povo deve passar. Históriadores, salmistas, profetas, sábios se aplicam a

essa intelecção do sentido da História. Então, os fatos dão crédito à palavra e

conduzem os homens à fé.

Page 19: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

18

Enfim, Deus revela, progressivamente, os segredos dos “últimos tempos”. Sua

palavra se torna uma promessa. Revela-lhe o Salvador que há de vir, o

Emanuel, o Deus conosco, que há de ser um servidor servo sofredor (cf. os

capítulos 52 e 53 de Isaías).

Assim, Deus que já se revelara a si mesmo nos fenômenos da natureza (no

trovão da tempestade, na nuvem do céu, no fogo que abrasa, na brisa da tarde,

etc.) culmina por dar aos homens um anúncio antecipado do Messias, que há

de vir: “...a glória do Senhor se revelará e toda a carne há de vê-la...”(Is 40,5).

MESQUITA faz uma afirmação simplista que não se sustenta. Que houve uma

evolução, isso é lógico e normal, mas de forma alguma Deus é distante. Ao

contrário, Deus intervém diretamente na história. Os relatos não são expressão

da história, eles refletem centenas de anos vividos e depois relatados

resumidamente que Deus estava presente com eles no percurso da história. A

Bíblia mostra muitas vezes a experiência de amor diante de Deus, de

proximidade, de segurança15.

1.3. Unicidade de Deus

Libanio16, em seu artigo, o Deus do Antigo Testamento, elucida nossa

compreensão a este respeito, ele fala-nos que o judeu piedoso repetia

freqüentemente o ato de fé, o célebre “shemá”, que Jesus também rezava:

“Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus, é o Senhor que é UM. Amarás o

Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com todo o teu ser, com todas as

tuas forças” (Dt 6, 4).

Sim, o Deus do Antigo e o do Novo Testamento é um e o mesmo Deus.

Verdade que pertence ao fundamento de nossa fé. Lá nos primórdios do

15

Ir. Elio Passeto.

16 LIBANIO, JB, O Deus do Antigo Testamento.

http://www.jblibanio.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=36 acessado em 16/12/2010.

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19

Cristianismo, surgiu um herege chamado Marcião17, que se escandalizou com

a enorme diferença da imagem de Deus do Antigo Testamento e a apresentada

por Jesus. Lá ele via um Deus demiurgo, criador do mundo visível. Suas

intervenções na história pareciam contraditórias com paixões violentas de

ciúme, despotismo, crueldade, capricho. Tão diferente do Deus revelado por

Jesus: Deus de amor. Concluiu, portanto, que o Deus do Antigo Testamento

não é o mesmo do Novo: diverso e até mesmo oposto. Um nada tinha a ver

com o outro.

À primeira vista, tal posição parece uma dessas esquisitices que surgem, de

tempos em tempos, na história. Tem, porém, a vantagem de levantar um sério

problema. Com efeito, se tomamos a Escritura ao pé da letra, como uma

revelação-ditado de Deus, realmente ficamos perplexos diante da diferença de

muitos traços de Deus do Antigo Testamento comparados com a imagem que

Jesus nos ofereceu de Deus seu Pai.

O fato da afirmação unânime e constante da fé cristã de reconhecer em Deus o

Pai de Jesus não resolve as dificuldades que Marcião percebeu. Ele teve o

mérito de expressá-las de maneira contundente, exigindo uma resposta

esclarecida por parte da fé.

No fundo, subjaz a tal questão uma concepção de revelação de Deus. Sem

esclarecê-la, não temos condição de entender a unicidade de Deus. Uma

comparação muito simples pode talvez ajudar-nos a compreender melhor o

problema. Imaginemos que não conhecemos pessoalmente a determinado

indivíduo. Encontramo-nos diante de uma série de fotografias que tiraram dele.

Elas foram feitas com máquinas fotográficas e recursos técnicos bem diversos,

desde os mais primitivos até os mais sofisticados. O resultado foi que algumas

fotos nos oferecem traços bem confusos da pessoa a ponto de apenas

percebermos sua figura e outras são de enorme nitidez. Os escritos bíblicos

17

Marcião de Sínope, 85 - 160 d.C. foi um dos mais proeminentes heresiarcas durante o Cristianismo

primitivo . Sua teologia (chamada marcionismo), que propunha dois deuses distintos, um no Antigo

Testamento e outro no Novo Testamento, foi denunciada pelos Pais Padres da Igreja especialmente

Irineu e ele foi excomungado. Sua rejeição de muitos livros que seus contemporâneos consideravam

como parte das escrituras mostrou à Igreja antiga a urgência do desenvolvimento de um cânon bíblico.

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20

são fotografias de Deus feitas em momentos culturais muito diferentes por

pessoas e povos vivendo experiências extremamente diversas. Daí elas

apresentarem tal variação. Desta sorte, o povo judeu numa situação de guerra

contra inimigos poderosos, fotografou um Deus guerreiro para animar as

pessoas nos combates. Em momento de lutas internas religiosas, os

hagiógrafos desenharam um Deus exigente no cumprimento de leis para evitar

a desordem social.

Em Oséias, Deus carrega ternamente em seus braços a Efraim como a uma

criancinha de colo. (Os 11,3)

Várias são as perguntas: De onde vem a diferença: de Deus ou das condições

humanas, limitadas, diversas dos escritores sagrados? Como interpretar essas

imagens: como traços independentes ou como um processo histórico de modo

que a figura mais perfeita corrige as imperfeições das anteriores?

Partindo do fato de que a revelação se dá na história que é progressiva e que

chegou a Jesus Cristo a seu ponto mais elevado, devemos interpretar as

imagens de Deus a partir da mais perfeita oferecida por Jesus. Em última

análise, podemos dizer que a figura de Deus encontrará sua expressão mais

perfeita na revelação de Jesus. “Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único de

Deus, que está junto ao Pai, foi quem no-lo deu a conhecer” (Jo 1, 18). Por

isso, é muito perigoso tomar citações isoladas da Escritura e dardejá-las sobre

as pessoas como se esta fosse a idéia definitiva e eterna de Deus e não reflexo

de uma experiência histórica de um povo.

O encontro com o Deus do Antigo Testamento pode-nos ser benéfico

precisamente pela maneira como o Povo de Israel o vivenciou. Por muitas

razões históricas, criamos uma catequese sobre Deus que inverteu o processo

bíblico. Partíamos de uma definição de Deus, elaborada de maneira teórica e

abstrata, e depois procurávamos vivê-la. Como os termos da definição

permaneciam fechados à compreensão das pessoas, eles simplesmente

povoaram a memória dos catequizandos sem nenhuma incidência sobre sua

vida pessoal. Em seu lugar, giravam concepções populares de Deus com

diferentes tonalidades.

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21

Uma primeira abordagem do Deus do Antigo Testamento nos revela a maneira

como o povo foi criando uma compreensão dele. Não veio através de

ensinamentos formulados, mas a partir da experiência.

Deus é um e único. Mas não no sentido filosófico do monoteísmo nem como

critério para excluir como falsas as religiões que cultuassem muitos deuses.

Israel não iniciou por esse caminho sua longa viagem teológica. Antes mesmo

de Moisés, Akenaton, Faraó do Egito, tentou impor uma revolução monoteísta

em seu país. Fracassou pela oposição dos sacerdotes e do povo.

Israel, porém, vive o monoteísmo, não dessa maneira, pela imposição teórica

de um personagem, nem por uma revelação do próprio Deus em forma de

verdade dogmática a ser aceita. Foi processo lento de vida e de história. Os

patriarcas ainda foram adoradores de muitos deuses. As tradições, porém, que

circularam mais tarde no meio das tribos, já viam neles homens que

experimentaram a um Deus de maneira mais expressiva. Abraão se tornou, por

isso, símbolo de homem de fé em Deus. A vocação de Abraão tornou-se

programática para todas as vocações, ao seguir o apelo do Senhor: “Sai de tua

terra, de tua parentela, da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei.

Farei de ti um grande povo e te abençoarei, engrandecendo teu nome, de

modo que se torne uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem e

amaldiçoarei os que te amaldiçoarem. Com teu nome serão abençoadas todas

as famílias da terra”. A esse Deus, que vai fazendo alianças com seus

descendentes, ele ergueu um altar (Gên 12, 1-3.7).

Moisés, a partir da experiência da escravidão e libertação do Egito, vinculou a

fé ao Senhor, ao lado do qual não admitiu outros deuses. Para traduzir essa

ligação profunda com um único Deus, o povo o experimentou como “ciumento”

e qualquer infidelidade era vista como adultério. A imagem matrimonial

expressava bem a originalidade e o alcance da vivência do povo em relação ao

Senhor.

Não era o Senhor que era ciumento, mas o povo que o experimentava como

seu Deus próprio, único e guia através da longa caminhada para Canaã.

Identificaram-no com o deus supremo dos cananeus: El. Lá encontraram

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22

também outros deuses e depois se defrontaram com os deuses fenícios,

assírios, babilônios. Todos eles foram rejeitados por fidelidade ao Senhor. A

confissão de fé do povo no Senhor, como Deus, encontrou expressão

dramática no fato narrado no livro dos Reis. O profeta Elias questionou o povo

pela sua ambigüidade na vivência da fé e formulou-lhe o dilema: “Se o Senhor

é o verdadeiro Deus, segui-o, mas se é Baal, segui a ele!” Depois armou o altar

cheio de vítimas e desafiou os profetas de Baal a que invocassem seus deuses

e ele invocaria ao Senhor. As orações dos profetas de Baal permaneceram

inatendidas enquanto a oração de Elias ao Senhor baixou o fogo do céu e

devorou as vítimas do sacrifício. Diante dessa maravilha, o povo exclamou: “O

Senhor é Deus, o Senhor é que é Deus!” (1 Rs 18, 39). A cena da degola de

todos os profetas por parte de Elias, a qual se segue a esse ato de confissão,

revela o caráter patético do processo de fé do povo.

Desta sorte, por meio de longo caminho e a partir de sua experiência histórica,

Israel professou o monoteísmo, primeiro de maneira prática, para depois

formulá-lo doutrinariamente. Nos tardios livros do Deutero-Isaías, o povo

confessa que o mesmo Senhor, que o salvou e livrou da escravidão do Egito, o

Deus da Aliança, é também o Deus criador de todas as coisas. “Um Deus

eterno é o Senhor, o criador dos confins da terra” (Is 40, 28).Termina-se assim

esse longo processo numa confissão ampla de fé.

Ao lado da unicidade, a relação com a vida define em profundidade o Deus do

Antigo Testamento: é um Deus da vida; é uma característica que atravessa

todo o Antigo Testamento. Nas primeiras páginas do Gênesis, o Senhor

aparece como Senhor da vida. Pela palavra, cria todas as coisas (Gên 1, 1-31)

e mais diretamente em relação ao ser humano, insufla-lhe o sopro da vida (Gên

2, 7).

Na ordem da experiência, os hebreus reconhecem ao Senhor como Deus da

vida por obra e graça da libertação da escravidão e da morte no Egito. Aí há

duas cenas paradigmáticas da experiência de vida: o Senhor livra todos os

primogênitos hebreus da espada do Anjo exterminador, Ele é um Deus de vida

para os hebreus em oposição à realidade de morte dos egípcios; a outra cena

é toda a epopéia do êxodo. Ela é uma contínua luta contra a morte por causa

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do ataque dos egípcios, da fome, da sede, das serpentes e de todas as agruras

de uma longa travessia pelo deserto. Em todos os momentos críticos, o Senhor

aparece como o Deus que lhes defende e conserva a vida. Para Israel, a vida

traduziu-se na experiência da libertação e da conquista da terra. Foi O Senhor

que libertou o povo e que lhe deu a terra em que corre leite e mel.

O povo de Israel sedentarizou-se. No início, as estruturas da sociedade

organizaram-se ainda de uma maneira mais justa, pois a diferença entre ricos e

pobres não era tão grande. As autoridades eram do próprio povo, permaneciam

próximas e o inimigo estava fora. Assim, o Senhor se manifestou como o Deus

da vida, despertando homens dotados para defenderem o povo, que se

tornaram os juízes. Lendária ficou a figura de Sansão.

Com o correr do tempo, mesmo na época dos juízes e mais fortemente depois

na monarquia, a injustiça social começou a crescer. A brecha entre pobres e

ricos aumentou. Israelitas passaram a oprimir e escravizar israelitas. Com a

decadência da monarquia, a prática da injustiça foi crescendo. O Senhor, mais

uma vez, apareceu como o defensor da vida, com a forma do pobre, da viúva,

do órfão. Os profetas se fizeram porta-voz da luta pela vida dos desprotegidos.

Assim, por exemplo, no reinado de Jeroboão II, imperava a injustiça. Os ricos

levavam uma vida de luxo e opulência. Para tanto, carregava-se o povo com

impostos, oprimiam-se os pastores e lavradores. Surgiu então o profeta Amós.

Com expressões fortes, ele descreveu a situação de injustiça. “Vende-se o

justo por prata e o pobre por um par de sandálias. Esmaga-se sobre o pó da

terra a cabeça dos fracos e torna-se torto o caminho dos humildes” (Am 2, 6-7).

Sobre essa situação de injustiça pesou o juízo de Deus. As ameaças foram

terríveis. A visão do profeta foi espantosa: “Vi o Senhor que estava de pé sobre

o altar e ele disse: “Bate no capitel para que tremam os umbrais!” E seguiu-se

uma série de malefícios: cortar a cabeça de todos sem exceção, não retirar

nenhum do xeol, prender os que se esconderam em qualquer altura ou

profundidade que seja, passando-os em seguida ao fio da espada (Am 9 1-4).

Mas no final, abriu-se uma réstia de esperança e de vida: “o Senhor prometeu

levantar a tenda de Davi que está caindo, reparar-lhe as brechas, levantar-lhe

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as ruínas e reconstruí-la como nos dias antigos” (Am 9, 11). Assim é o oráculo,

a Palavra de vida do Senhor.

O Senhor é Deus de vida para o povo conduzido ao exílio da Babilônia.

Quando tudo era treva, tudo era sofrimento, tudo era morte, a Palavra do

Senhor soava como luz e futuro. Temos os cânticos utópicos e esperançosos

mais lindos da Escritura. É o livro da consolação. Iniciou-se com a belíssima

exclamação: “Confortai, confortai meu povo!” Terminou o tempo da provação,

foi saldado o débito da culpa. E então uma voz clama: “Abri no deserto um

caminho para o Senhor, nivelai na estepe uma estrada para nosso Deus! Todo

vale seja entulhado e todo monte e colina sejam abaixados. O monte se torne

planície e as escarpas se transformem em amplo vale! Então a glória do

Senhor se manifestará, e todos os homens juntos a verão” (Is 40, 1-5). É o

mesmo texto que o Novo Testamento aplica a João Batista, precursor do

Senhor.

Numa imagem vigorosa, o profeta Ezequiel descreveu a libertação do povo do

exílio da Babilônia como uma dantesca cena de ressurreição das ossadas.

Assim diz o Senhor Deus às ossadas: “Vou infundir-vos, eu mesmo, um espírito

para que revivais. Dar-vos-ei nervos, farei crescer carne e estenderei por cima

a pele. Incutirei um espírito para que revivais. Então sabereis que eu sou o

Senhor”. (Ez 37, 1-14). As ossadas são todas as casas de Israel. Então se

assistiu à cena do levantar-se dos ossos como um exército numeroso.

E finalmente, O Senhor é Deus da vida eterna, retirando os mortos do xeol,

ressuscitando-os. Este é o ponto alto da revelação veterotestamentária. A fé na

ressurreição dos mortos deriva diretamente da compreensão de que o Senhor

é um Deus dos vivos e não dos mortos. Deus triunfa sobre o último inimigo, a

morte. O profeta Daniel anuncia um tempo de angústia, escatológico, final.

Então “muitos dos que dormem na terra poeirenta, despertarão; uns para a vida

eterna, outros para vergonha, para abominação eterna. Então os sábios

brilharão como o firmamento resplandecente, e os que tiverem conduzido a

muitos para a justiça brilharão como estrelas para sempre”(Dn 12, 2-3).

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25

Único e verdadeiro Deus. Deus da vida. Na experiência de sua unicidade e na

defesa da vida, o Senhor aparece frequentemente como um Deus vigoroso,

punitivo que castiga as infidelidades do povo, que se ira e se impacienta por

causa da dureza de sua cerviz (Êx 32, 9; 33, 3.5) até as raias da cólera, do

desejo de exterminá-lo. Mas não se pode concluir a imagem de Deus no Antigo

Testamento sem falar de sua infinita ternura.

A severidade e o poder implacável são a fotografia de um Deus no momento

inicial da caminhada. Pouco a pouco, Israel foi descobrindo o lado infinitamente

terno de Deus, a imagem de um Deus amor. São traços mais raros, por isso

mesmo, mais expressivo. O gênio religioso de Israel afastou no início qualquer

traço que pudesse mostrar um Deus fraco e manipulável pelas criaturas,

tolhendo-lhe a infinita liberdade e decisão. Certos gestos de ternura, compaixão

e comoção poderiam macular essa imagem. Somente depois de ela estar bem

assentada, sem perigo de cobri-la, outros traços foram emergindo até

expressões de imensa ternura.

No Êxodo, lê-se com surpresa que “o Senhor falava frente a frente com Moisés,

como alguém que fala com seu amigo” (Êx 33, 11). Se compararmos com

cenas anteriores em que Ele aparecia no meio de trovões e relâmpagos, esse

breve toque revela muito de um retrato de Deus que lentamente se vai

construindo. Há uma cena estranha em que o próprio Senhor passou diante de

Moisés e exclamou: “O Senhor, o Senhor Deus misericordioso e benevolente,

lento para a cólera, cheio de fidelidade e lealdade” (Ex 34,6). Nos profetas essa

imagem atinge seu ponto alto. No Segundo Isaías, Deus anima Jerusalém,

revelando em relação a ela seu amor esponsal: “Teu esposo é quem te fez:

Senhor Todo-poderoso é seu nome!” (Is 54, 5). O Senhor se delicia, se alegra

de Israel, como o jovem esposo de sua donzela, o noivo de sua noiva (Is 62,5).

Em Oséias, o Senhor deixa uma carta de amor a Israel. Amou-o desde quando

era um menino, chamou-o de filho, permaneceu amando-o nos seus desvios,

tomou-o nos braços e colou-o a seu rosto de tanto carinho, ligou-se com laços

de amor, sentiu o coração palpitar-lhe e as entranhas comoverem-se. Apesar

de todas as infidelidades de Israel, permanece amando-o. Termina dando a

razão decisiva: Porque eu sou Deus e não homem” (Os 11, 1-9). Já está

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26

pintado o rosto do Senhor, Deus Pai, que chegará ao excesso de amor

enviando o seu Filho Jesus!

Para podermos compreender um pouco melhor esta relação entre Deus e sua

criação, iremos, no próximo capítulo aprofundar alguns elementos da religião

de Israel, assim poderemos utilizar outros olhares para identificarmos a

unicidade de Deus em toda a Escritura Sagrada, Antigo e Novo Testamento.

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CAPÍTULO II

Compreendendo a religião de Israel

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1. A religião de Israel

A religião de Israel é acima de tudo a religião do Livro. Esse corpo de escrituras

é constituído de textos de idade e orientação diversas, que representam

tradições orais bastante antigas, mas reinterpretadas, corrigidas e redigidas

durante vários séculos e em diversos meios. Ao escrever, os hebreus se

interessavam mais pela história santa, isto é, pelas suas relações com Deus,

que pela história que narram acontecimentos míticos e fabulosos do primórdio.

Ora, o gênio religioso de Israel transformou as relações de Deus com o povo

eleito uma história sagrada de gênero até então desconhecido. A partir de certo

momento, essa história sagrada, ao que parece exclusivamente nacional,

revela-se um modelo exemplar para toda a humanidade.

O começo da religião de Israel é relatado nos capítulos 46-50 do Gênesis, no

Êxodo e no livro dos Números. Trata-se de uma série de acontecimentos, que

em sua maioria são provocados diretamente por Deus. Recordemos os mais

importantes: as peripécias de Moisés (salvo miraculosamente da matança e

educado na corte do faraó) depois de haver matado um soldado egípcio que

moía de pancadas um de seus irmãos, especialmente sua fuga no deserto de

Madiã, a aparição da sarça de fogo (seu primeiro encontro com o Senhor), a

missão que lhe foi dada por Deus, de tirar seu povo do Egito e a revelação do

nome divino; as dez pragas provocadas por Deus para forçar o consentimento

do faraó; a partida dos israelitas e sua passagem do mar Vermelho, cujas

águas submergiram os carros e os soldados egípcios que os haviam

perseguido; a teofania sobre o monte Sinai, a aliança estabelecida por Deus

com seu povo, acompanhada de instruções relativas ao conteúdo da revelação

e ao culto; finalmente, os 40 anos de marcha sobre o deserto até a conquista

da Terra de Canaã.

Há mais de um século, a critica tem-se esforçado por separar os elementos

“verossímeis” e por conseguinte históricos, dessas narrativas bíblicas da massa

de excrescências e sedimentações mitológicas e folclóricas.

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29

Quanto à saída do Egito, parece certo que ela reflete um acontecimento

histórico18. Entretanto, não se trata do êxodo do povo inteiro, mas apenas de

um grupo, e exatamente do grupo conduzido por Moisés. Outros grupos já

tinham iniciado a penetração mais ou menos pacífica em Canaã.

Posteriormente o êxodo foi reivindicado pelo conjunto das tribos israelitas como

um episódio de sua história santa. O que interessa ao nosso objetivo é que a

saída do Egito foi relacionada com a celebração da Páscoa. Em outras

palavras, um sacrifício arcaico, específico aos pastores nômades e praticados

havia milênios pelos antepassados dos israelitas, foi revalorizado e integrado

na história santa do javismo. Um ritual solidário da religiosidade cósmica (festa

pastoral da primavera) foi interpretado como a comemoração de um evento

histórico.

1.1. Eu sou aquele que é

Enquanto apascentava os carneiros de Jetro, seu sogro, Moisés chegou ao

monte de Deus, o Horeb. Ali ele viu uma chama de fogo que saia do meio de

uma sarça e ouviu alguém chamá-lo pelo nome. Pouco tempo depois, Deus se

deu a conhecer como o Deus de teus pais, o Deus de Abraão, de Isaac e Jacó.

(Êx 3,6) Moisés, porém, pressentiu que estava diante de um aspecto

desconhecido da divindade, ou até de um novo deus. Ataca a ordem de ir ao

encontro dos filhos de Israel e dize-lhes: “O Deus de vossos pais me enviou até

vós; mas se eles perguntassem qual é o seu nome, que lhes havia de

responder?” (Êx 3,13). Então Deus disse-lhe: “Eu sou me enviou até vós.” (Êx

13,14).

Muitas têm sido as discussões em torno desse nome. A resposta de Deus é

bastante misteriosa: ele alude ao seu modo de ser, mas sem revelar sua

pessoa. Tudo o que se pode dizer é que o nome divino sugere, para usarmos

uma expressão moderna, a totalidade do ser e do existente. Entretanto,

18

ELIADE, Mircea, História; p. 175.

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30

YHWH19 declara que Ele é o Deus de Abraão e dos outros patriarcas, e essa

identidade é aceita ainda hoje por todos aqueles que reivindicam a herança

abraâmica. De fato, pode-se descobrir certa continuidade entre o deus do pai e

o deus que se revela a Moisés. Tal como o deus do pai, o Senhor não esta

ligado a um sítio especifico; de mais a mais, existe uma relação particular com

Moisés na qualidade de chefe de um grupo.

As diferenças, porém, são significativas. Enquanto o deus dos pais era

anônimo, o Senhor era um nome próprio que punha em evidencia seu mistério

e sua transcendência. As relações entre a divindade e seus fiéis são

alternadas: já não se fala do “deus do pai”, mas do “povo do Senhor”. A idéia

da eleição divina, presente nas promessas feitas a Abraão (Gênese, 12,1-3),

tornava-se precisa: O Senhor chama aos descendentes dos patriarcas “meu

povo”; eles são, segundo a expressão de R. de Vaux20, sua propriedade

pessoal. Ao prosseguir o processo de assimilação do deus do pai a El, o

Senhor também foi identificado com ele. Tomou emprestada a El a estrutura

cósmica e adquiriu seu título de rei. “Da religião de El, o javismo tirou também a

idéia da corte divina, formada pelos benê‟ élohim”. Por outro lado, o caráter

guerreiro do Senhor prolonga o papel do deus do pai, antes de qualquer coisa

protetor dos seus fiéis.

O essencial da revelação está concentrado no decálogo (Êx 20,3-17; cf. Êx

34,10-27). Em sua forma atual, o texto não pode datar da época de Moisés,

mas os mais importantes mandamentos refletem com toda certeza o espírito do

javismo primitivo. O primeiro artigo do decálogo, “Não terás outros deuses

diante de mim!”, demonstra que não se trata de monoteísmo no sentido estrito

do termo. A existência de outros deuses não é negada. No canto de vitoria

19

O Tetragrama sagrado «YHWH» é uma expressão da infinita grandeza e majestade de Deus, que se

manteve impronunciável e por isso foi substituída na leitura das Sagradas Escrituras com o uso da

palavra alternativa ‘Adonai’, que significa ‘Senhor’, sendo assim, todas as vezes que aparecer o

tetragrama no nosso texto, será substituído por: “o Senhor”.

20 Roland Guérin de Vaux, Dominicano, que conduziu a equipe que trabalhou inicialmente no Mar

Morto. Ele era o diretor da Escola Bíblica, fez escavações de Qumran. Sua equipe escavou o sítio antigo

de Khirbet Qumran (1951-1956), bem como diversas cavernas perto de Qumran, a noroeste do Mar

Morto.

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31

entoado depois da passagem do mar, Moisés exclama: “Quem é igual a ti, ó

Senhor, entre os deuses?” (15,11). Pede-se, porém, a fidelidade absoluta, pois

o Senhor é um “Deus Zeloso cioso” (20,5). A luta contra os falsos deuses

começa imediatamente depois da saída do deserto, em Baal Peor. Foi ali que

as filhas dos moabitas convidaram os israelitas a participar dos sacrifícios aos

seus deuses. “O povo comeu e prostrou-se diante de seus deuses” (Núm

25,2s), provocando a ira do Senhor. Para Israel, essa luta, iniciada em Baal

Peor, perdura.

O sentido do segundo mandamento, “Não farás para ti imagem”, não é de fácil

compreensão. Não se trata de uma proibição ao culto dos ídolos. Sabia-se que

as imagens, familiares aos cultos dos pagãos, não passavam de um

receptáculo da divindade. Provavelmente, a idéia subjacente neste

mandamento implicava a proibição de representar o Senhor por um objeto

cultual. Assim como não tinha nome, o Senhor não devia ter imagem. Deus

consentia ser visto, diretamente, por alguns privilegiados; pelos outros homens,

por seus atos. Ao contrário das outras divindades do Oriente Próximo, que se

manifestavam ao mesmo tempo sob forma humana e animal ou cósmicas, pois

o mundo inteiro é sua Criação.

O antropomorfismo do Senhor possui um duplo aspecto. Por um lado,

apresenta qualidades e defeitos especificamente humanos: compaixão, ódio,

alegria, pesar, perdão e vingança. (Entretanto, não demonstra as fraquezas e

os defeitos dos deuses homéricos, e não aceita ser ridicularizado, como certos

deuses do Olimpo.) por outro lado, o Senhor não reflete, como a maioria das

divindades, a situação humana: não tem uma família, mas tão somente uma

corte celeste. O Senhor é Um e Único. Devemos ver outro traço antropomórfico

no fato de ele solicitar aos fiéis uma obediência absoluta, como um déspota

oriental? Trata-se mais de um desejo inumano de perfeição e de pureza

absoluta.

Da mesma forma, a violência do Senhor provoca um rompimento nos quadros

antropomórficos. Sua raiva revela-se às vezes de tal maneira irracional que se

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32

pôde falar do “demonismo”21 do Senhor. Sem dúvida alguns desses traços

negativos serão endurecidos mais tarde, após a ocupação de Canaã. Mas os

traços negativos pertencem à estrutura original do Senhor. De fato, trata-se de

uma expressão, e a mais impressionante, da deidade como absolutamente

distinta de sua Criação, como o outro por excelência (o ganz andere22 de

Rudolph Otto). A coexistência dos atributos contraditórios e a irracionalidade de

alguns de seus atos distinguem o Senhor de todo ideal de perfeição na escala

humana.

1.2. Relacionamento entre Deus e a criatura

Os salmos de entronização exaltam o Senhor como rei. Ele é um rei grande

sobre todos os deuses, (95,3) o Senhor é rei, os povos estremecem! O rei que

ama a justiça és tu; tu estabeleceste as normas da probidade, da justiça e do

direito, (99,1-5). Deus é senhor do mundo porque foi seu criador. O Senhor

dispensa o bem e o mal, tira e dá a vida, abate e eleva (I Samuel 2,6s). Sua

cólera é temível, mas ele é também compassivo e por excelência Santo, o que

significa que é ao mesmo tempo inacessível e distinto, e que traz a salvação.

Criador e rei do mundo, o Senhor é também o juiz da sua Criação, “No

momento que eu tiver decidido, eu próprio vou julgar com retidão”. (Salmo

75,3). Ele julga com equidade (Salmo 96,10). Sua justiça, a um só tempo

moral, cósmica e social, constitui a norma fundamental do Universo.

21

ELIADE, Mircea, História; p.178.

22 “Ganz andere” é uma expressão inspirada pelas idéias do teólogo protestante Rudolf Otto (1869-

1937) e que aparece na introdução do clássico “O Sagrado e o profano: a essência das religiões” de

autoria de Mircea Eliade. O sentido da expressão aponta para aquilo que é grandioso e “totalmente

diferente”. Em relação ao “Ganz andere”, o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o

sentimento de não ser nada mais do que uma criatura, segundo os termos com que Abraão teria se

dirigido ao Senhor – de não ser senão cinza e pó (Gen: 18:27). “Ganz andere” se identifica com aquilo

que o homem religioso interpreta como a materialização extrema do sagrado. Uma experiência possível

de ser experimentada ao se observar durante a noite a imaginária esfera celeste com seus infinitos

pontos luminoso.

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33

O Senhor é um Deus vivo; ele se distingue dos ídolos que não falam e que

devem ser carregados, porque não podem caminhar. O homem é também um

ser vivo, uma vez que Deus lhe insuflou o sopro ou espírito; mas a sua

existência é de curta duração. O homem foi tirado do pó e ao pó retornará (Gên

3,19). Uma vida longa é o seu maior bem. A morte é degradante, ela reduz o

homem a uma pós-existência larvar no túmulo ou no sheol. O Senhor não reina

sobre o sheol, já que a morte é a negação de sua obra. Por conseguinte, o

morto está privado de relacionar-se com Deus, o que constitui para o fiel, a

mais terrível das provações. Nesta afirmação, acredito que se encontra a

explicação para tantas passagens bíblicas na qual vemos a ação de Deus

tirando a vida de muitos, como no caso da morte dos primogênitos no Egito ou

mesmo da morte dos soldados do Faraó. Podemos compreender assim, que

aqueles que estão mortos são os que não acreditam em Deus, não tem um

relacionamento com ele e, não que Deus tenha realmente tirado suas vidas. O

Senhor é mais poderoso que a morte, se deseja, pode tirar o homem de sua

sepultura. Alguns salmos aludem a esse prodígio: “Do sheol tiraste a minha

alma; tu me reavivastes dentre os que baixam à cova” (30,4); “Jamais morrerei,

eu vou viver;... O Senhor me castigou e castigou, mas não me entregou a

morte” (118,17). Ao reconhecer O Senhor como Criador e soberano absoluto, o

homem chega a conhecer certos predicados de Deus. Uma vez que a Torah

proclama com precisão a vontade divina, o essencial é seguir os

mandamentos, isto é, comportar-se de acordo com o direito ou a justiça. O

ideal religioso do homem é ser justo, conhecer e respeitar a lei, a ordem divina.

Como lembra o profeta Miquéias (6,8) “Foi-te anunciado, ó homem, o que é

bom, e o que O Senhor exige de ti: nada mais do que praticar o direito, gostar

do amor e caminhar humildemente com o teu Deus.” O pecado leva à perda da

benção. Mas, como o pecado faz parte da condição humana, e porque o

Senhor, apesar de duro, é misericordioso, a punição nunca é definitiva, ela tem

uma função pedagógica.

Page 35: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

34

1.3. Oseías e a amargura de Deus diante da traição do povo

Israel foi a esposa do Senhor, mas ela lhe foi infiel, e se “prostituiu”, em outras

palavras, entregou-se aos deuses cananeus da fertilidade. “Ela disse: Quero

correr atrás de meus amantes, daqueles que me dão o meu pão e a minha

água, a minha lã e o meu linho, o meu óleo e a minha bebida. Mas ela não

reconheceu que era eu quem lhe dava o trigo, o mosto e o óleo, quem lhe

multiplicava a prata e o ouro que eles usavam para Baal” (Os 2,7-10).

Israel esqueceu-se de sua história: “Quando Israel era menino, eu o amei e do

Egito chamei meu filho. Mas quanto mais eu os chamava, tanto mais eles se

afastavam de mim” (Os 11,1-2). A ira provocada pela incorrigível ingratidão

explode. O castigo será terrível: “E eu me tornei para eles como um leão, como

uma pantera no caminho eu estava à espreita. Eu os ataco como uma ursa

despojada de seus filhotes rasgo-lhes o peito e aí os devoro como uma leoa, os

animais do campo os despedaçarão” (Os 13,7-9). A única salvação é um

retorno sincero ao Senhor. “Volta, Israel, ao Senhor, teu Deus, pois tropeçaste

em tua falta. Tomai convosco palavras e voltai ao Senhor; dizei-lhe: Perdoa

toda culpa aceita o que é bom...” (Os 14,2-3). Oséias esta consciente de que a

decadência dos pecadores não lhes permite voltar para o seu Deus, (Os 5,4).

No entanto, o amor do Senhor é mais forte que sua ira. “Não executarei o ardor

de minha ira... porque eu sou um Deus e não um homem, eu sou Santo no

meio de ti, não retornarei com furor” (Os 11,9). Ele quer conduzir Israel ao

deserto e falar ao seu coração... Lá ela responderá como nos dias de

juventude, como na época em que saiu da terra do Egito. E, naquele dia, me

chamará „Meu marido‟... Eu te desposarei a mim para sempre, eu te desposarei

a mim na justiça e no direito, no amor e na ternura. (Os 2,16-21). Será um

retorno aos primeiros tempos do casamento místico do Senhor e Israel. Esse

amor conjugal já anuncia a crença na redenção: a graça de Deus não espera a

conversão do homem, mas a antecede. Convém acrescentar que o simbolismo

conjugal será utilizado por todos os grandes profetas posteriores a Oséias.

O que mais surpreende nos profetas, é a critica que fazem ao culto e a

ferocidade com que atacam o sincretismo, ou seja, as influências cananeias, a

Page 36: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

35

que dão o nome de „prostituição‟. Mas essa prostituição, contra a qual investem

sem descontinuar, representa uma das mais difundidas formas da religiosidade

cósmica. Específica aos agricultores, a religiosidade cósmica prolongava a

mais elementar dialética do sagrado, especialmente a crença em que o divino

se encarna, ou se manifesta, nos objetos e nos ritmos cósmicos. Ora, tal

crença foi denunciada pelos fiéis do Senhor como idolatria por excelência, e

isso desde a penetração na terra de Canaã. Mas nunca a religiosidade cósmica

foi tão selvagemmente atacada. Os profetas acabaram conseguindo esvaziar a

Natureza de toda a presença divina. Setores internos do mundo animal, os

lugares altos, as pedras, as fontes, as arvores, certas colheitas, serão

denunciados como „impuros‟, visto que maculados pelo culto das divindades

cananeias da fertilidade. A religião pura e santa é apenas o deserto, pois foi lá

que Israel permaneceu fiel ao seu Deus.

A dessacralização da Natureza, a desvalorização da atividade cultual, em

síntese, a rejeição violenta e total da religiosidade cósmica, e, sobretudo a

importância decisiva atribuída à regeneração espiritual do individuo pelo

retorno definitivo ao Senhor, eram a resposta dos profetas às crises históricas

que ameaçavam a própria existência dos dois reinos judeus. A alegria de viver

solidária de toda religião cósmica, era ilusória, condenada a desaparecer na

iminente catástrofe nacional. Com efeito, a religião cósmica encorajava a ilusão

de que a vida não se interrompe, e de que a nação e o Estado podem

sobreviver, por muito grave que sejam as crises históricas. Contudo os profetas

anunciavam não só a ruína do país e o desaparecimento do Estado;

proclamavam ainda o risco do aniquilamento total da nação.

A realização das pregações pronunciadas pelos profetas confirmava-lhes a

mensagem,e, de maneira precisa, que os acontecimentos históricos eram obra

do Senhor. Em outras palavras, os acontecimentos históricos adquiriram uma

significação religiosa, transformavam-se em „teofanias‟ negativas, em „ira do

Senhor‟. Dessa maneira, eles revelavam a sua coerência interna,

manifestando-se como a expressão concreta de uma só, única, vontade divina.

Assim, os profetas pré-exílicos, pela primeira vez valorizavam a história. Os

acontecimentos históricos possuem desse momento em diante, um valor em si

Page 37: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

36

mesmo, na medida em que são determinados pela vontade de Deus. Os fatos

históricos tornam-se, assim, situações do homem em face de Deus, e como

tais adquirem um valor religioso que nada podia assegurar-lhes. Por isso, há

verdade em afirmar que os judeus foram os primeiros a descobrir a significação

da história como epifania de Deus; é o povo através do qual Deus se revelou e

que revelou Deus ao mundo. O cristianismo23, com sua base judaica e por ser

essencialmente missionário, visibilizou Deus em dimensão universal.

Observemos, contudo, que a descoberta da história enquanto teofania não será

imediatamente e totalmente aceita pelo povo judeu, e que as antigas

concepções persistirão ainda por muito tempo.

23

ELIADE, Mircea, Mito do eterno retorno. Sobre a salvação do tempo, sua valorização no âmbito da

história santa israelita.

Page 38: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

CAPÍTULO III

O Deus do Antigo e do Novo Testamento é um e único

Page 39: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

38

1. Jesus o judeu

Nascido na Galiléia há mais de dois mil anos, Jesus de Nazaré foi, sem

margem para dúvidas, um judeu. As escrituras cristãs confirmam a cada passo

que Cristo – Yeshua ben Yosef, de seu nome hebraico – seguiu à risca as

tradições e mandamentos do judaísmo ortodoxo. Mesmo assim, durante

séculos, cristãos e judeus recusaram reconhecer as raízes judaicas do

pregador da Galiléia, a quem chamaram rabinas, e que acabaria por tornar-se

uma das mais influentes e emblemáticas figuras da História humana.24

Abandonado, e mesmo combatido, pela Igreja Cristã (tanto católica como

protestante) durante séculos, o judaísmo de Jesus, e o seu enquadramento

contextual, só começou a ser explorado recentemente.

Esta corrente, nascida na reta final do século XIX, assumiu novas proporções

nos finais do século XX, quando a busca do “Jesus Histórico” e das raízes

hebraicas de Cristo começou a fascinar teólogos e históriadores cristãos e

judeus. Separados já do repetitivo anti-semitismo que levara os cristãos

durante séculos a negarem o judaísmo de Jesus, estes redescobriam agora o

Messias cristão no seu contexto histórico, étnico e religioso.

O judaísmo de Jesus foi, até 1900, praticamente posto de parte também pelos

pensadores judeus, em grande medida como reação às perseguições que o

cristianismo principiara contra os hebreus. Recorde-se que até ao Concílio

Vaticano II, em 1965, a própria Igreja Católica acusava os judeus de terem

morto Cristo – uma acusação que não só negava a verdade histórica,

desculpabilizando o papel do governador romano Pôncio Pilatos enquanto

executor máximos da pena (ver Who is Responsible for Jesus‟ Execution),

como também escondia o fato de Jesus ser, ele próprio, um judeu. Esse era

um fato histórico inescapável, mas mesmo assim rodeado de uma polêmica

apenas explicável por um anti-semitismo latente.

24

GUERREIRO, Nuno Josué. http://ruadajudiaria.com/?p=62 acessado em 09-03-2011.

Page 40: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

39

Muitos cristãos continuavam a recusar aceitar o fato de que Jesus era judeu,

afirmando a pés juntos que ele era „cristão‟. Mas um cristão, por definição, é

um seguidor de Cristo. Se assim fosse, Jesus seria um seguidor de si próprio.

Contando com as poucas referências talmúdicas, as fontes históricas judaicas

sobre Jesus restringem-se a breves passagens de fragmentos deixados por

históriadores hebreus, o mais famoso dos quais o Testimonium Flavianum,

escrito por Flavius Josephus, que viveu entre o ano 37 e 100 da era comum.

Agora, passados séculos após a morte de Jesus, aos poucos, rabinos e

pensadores humanistas judeus começaram a reclamar Jesus enquanto figura

histórica intimamente ligada ao judaísmo.

Na verdade, os relatos das escrituras cristãs apontam para o fato de Jesus ter

cumprido a risca todos os preceitos da religião judaica. Contam que Jesus foi

circuncidado oito dias após ter nascido (Lucas, 2:21), segundo regem as leis

judaicas; ainda bebê foi apresentado no Templo em Jerusalém (Lucas, 2:22),

de acordo com o que mandava a tradição, e foi educado na Lei de Moisés

(Lucas 2, 39 a 42). Aos 12 anos no Templo “ouvia e interrogava” os rabinos

(Lucas 2:46). Mais tarde, os evangelistas relatam que Jesus celebrava os

festivais judaicos (Páscoa, Tabernáculos e Hanuká) além de guardar todos os

sábados como dias santos.

Qualquer estudo sobre Jesus, empreendido no quadro geral da especialidade

do Novo Testamento, mais cedo ou mais tarde é obrigado a se confrontar com

as atitudes de Jesus quanto à “Lei”. Jesus observava ou não a Torah de

Moisés?

A Lei de Moisés não se restringe a detalhes ritualísticos, mas abrange toda a

esfera da vida judaica. Determina regras para a agricultura, comércio e posse

de propriedades imóveis e móveis. Ocupa-se do casamento e suas implicações

financeiras; de compensações por danos materiais sofridos por uma pessoa ou

do prejuízo físico infligido por homens ou por animais que a eles pertencem. A

Torah legisla sobre roubo, violação, homicídio e muitas outras matérias civis ou

criminais para as quais juízes e tribunais tinham competência. Resumindo, um

roteiro de uma vida civilizada constitui grande parte das leis mosaicas. Jesus

Page 41: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

40

rejeitava estas Leis? Os Evangelhos Sinóticos, nossa principal testemunha,

não oferecem apoio para esta teoria. Mais ainda, já que não está expresso nem

sugerido nos Evangelhos que Jesus deixou de pagar suas dívidas, feriu seus

oponentes ou cometeu adultério, é razoável concluir que ele aceitava,

respeitava e observava as leis e costumes que regulavam a existência privada

e pública vigentes entre seus compatriotas à sua época.25

A legislação do Shabat pertence basicamente ao mesmo domínio cúltico

embora não esteja diretamente relacionada ao Templo de Jerusalém. Mesmo

assim, representa uma categoria inteiramente diferente já que, de acordo com

a Bíblia e com a lei pós-bíblica, os infratores do Shabat, melhor dizendo, alguns

deles, podiam incorrer em pena de morte.26

Como Jesus distinguia entre o lícito e o ilícito no sétimo dia, podemos observar

que, não existe nenhum registro de que ele tenha sido denunciado às

autoridades encarregadas da lei criminal judaica por mau comportamento

público a este respeito. Ele nem é criticado abertamente por operar curas no

Shabat. O comentário mais próximo relatado a este respeito é uma censura

endereçada pelo dirigente de uma sinagoga da Galiléia aos seus congregados

que pediam para ser curados no Shabat de preferência a qualquer outro dia da

semana (Lc 13,14).

25

Enquanto a autenticidade histórica das polemicas do Evangelho com os fariseus e outros grupos seja

mais que duvidosa é, mesmo assim, altamente significativa para a representação geral de Jesus que,

quando perguntado se os judeus deveriam pagar impostos a Roma, ele é mostrado como defensor das

exigências imperiais (Mc 12,17; Mt 22,21; Lc 20,25).

26 O Decálogo (Ex 20,8-11;Dt 5,12-15) proíbe simplesmente trabalhar no Shabat. Os atos proibidos são

especificados apenas incidentalmente na Bíblia: viajar (Ex 16,29), arar (Ex 34,21), acender fogo (Ex 35,3),

apanhar gravetos (Nm 15,32-36) e comerciar (Ne 10,31). A penalidade por não guardar o Shabat é

idêntica apenas uma vez, no caso particular do homem que recolhia gravetos no deserto (Nm 15,35-36).

Temos de esperar até o Livro dos Jubileus (50,6-9), de meados do segundo século a.C. e os estatutos do

Documento de Damasco (10,14-12.6), meio século após, até encontrar as primeiras tentativas de

sistematização e até a seção relevante da Mishná (Shab. 7,2), antes de obter uma lista detalhada das

trinta e nove classes de ações proscritas. Tanto Jubileus (50.8) quanto a Mishná (Sanh. 7.4) declaram

que a não observância do Shabat é passível de pena de morte, isto é, por apedrejamento ao fim de um

julgamento, de acordo com a Mishná.

Page 42: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

41

Mais positivamente, a representação geral de Jesus que surge dos Evangelhos

Sinóticos é a de um judeu que observa as principais práticas religiosas de sua

nação.

De inicio, Jesus é regularmente associado com sinagogas, centros de culto e

de ensino. Encontramos referencias gerais à sua presença nestes centros da

Galiléia, por vezes especificamente no Shabat. Duas destas sinagogas, uma

em Cafarnaum (Mc 1,21; Lc 4,31) e a outra em Nazaré (Lc 4,15), são

especialmente designadas. Ao que parece, ele era uma figura familiar nesses

círculos, como mestre e pregador de grande originalidade muito solicito, bem

como operador de curas, carismático e exorcista altamente admirado (Mc 1,39;

Mt 4,23; Lc 4,44, ect.).

Jesus aparece em todos os três Evangelhos como um homem que, em

obediência à lei bíblica, vinha a Jerusalém no Pessah, um dos festivais de

peregrinação obrigatória. Visitava o santuário, onde a atmosfera profana que

reinava na área dos mercadores o incitou a uma intervenção violenta que pode

ter contribuído substancialmente para decidir seu destino. Entretanto, quando

se acalmou, é relatado que ensinava todos os dias no pátio do Templo,

aparentemente sem ser molestado, embora provavelmente vigiado pelas

autoridades (Mc 11,15; 14,49; Mt 21,12; 26,55; Lc 19,45; 22,53, etc.).

Além de freqüentar sinagogas e ser um peregrino do Templo, Jesus é retratado

como observante de mandamentos particulares de importância ritual. O

principal entre eles é guardar, ou, falando mais corretamente, comer o Pessah

(Mc 14,12-16; Mt 26,17-19; Lc 22,7-15). O Pessah era uma celebração familiar,

embora à época do Segundo Templo estivesse também ligado ao santuário

onde era sacrificado o cordeiro de Pessah.

1.1. “Abba, Pai”: O Deus de Jesus

A idéia de um soberano celestial era fundamental para os judeus na idade

bíblica, intertestamentária e rabínica.

Page 43: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

42

Este também era o conceito do Deus/Pai. Os dois títulos estão vinculados na

prece litúrgica Avinu, malkenu (Nosso Pai, nosso Rei), cuja origem é atribuída

pela tradição talmúdica (bTaan 25ª) à invocação de Rabi Akiba (135 d.C.)

diante da arca da sinagoga, o que fez terminar uma severa estiagem:

Nosso Pai, nosso Rei, pecamos diante de Ti.

Nosso Pai, nosso Rei, não temos outro Rei além de Ti.

Nosso Pai, nosso Rei, tem misericórdia de nós.

Enquanto em pronunciamentos públicos e em preces, o divino epíteto “Rei”

pareça predominar na antiga literatura judaica, como foi enfatizado, está

surpreendentemente ausente de pronunciamentos atribuídos a Jesus. Em

contraste, os Evangelhos Sinóticos o representam como se dirigindo a Deus,

ou falando dele, como “Pai” em cerca de sessenta ocasiões e, ao menos uma

vez, proferindo o título aramaico Abba. Não é passível de discussão que esta

idéia seja essencial para uma percepção precisa da religião de Jesus e, como

de modo geral, não é necessário dizer que para perceber sua mensagem de

forma dinâmica, a evidencia do Evangelho deverá ser considerada em

perspectiva.

O conceito de Deus como Pai de Jesus, de seus seguidores e de todo o mundo

criado está profundamente implantado nos Evangelhos. Ao considerar a

Deidade como um Pai atento, Jesus tenciona passar a seus discípulos a

atitude apropriada para com Deus, e já que a noção de Pai e de filho são

correlatas, ele propõe um modelo para o comportamento dos “Irmãos e irmãs”.

Comparada a freqüência do tema do Reino divino, a imagem do Pai é

relativamente rara no gênero literário das parábolas, aparecendo apenas nas

parábolas dos Dois filhos e na do Filho pródigo.

Na primeira, MT 21,28-32, comparado ao papel desempenhado pelos filhos, o

pai é o personagem menos importante, limitando-se a dar ordens. Por outro

lado, o principal traço paterno é o perdão não formulado ao filho rebelde

quando este se arrepende. Na segunda, a Parábola do Filho Pródigo, Lc 15,11-

32, o pai reconhece intuitivamente o arrependimento do filho antes que seja

Page 44: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

43

expresso, corre ao seu encontro, abraça-o e proclama publicamente seu

regozijo por aquele que estava perdido e morto, mas que agora foi encontrado

e está vivo.

O imaginário restrito do conceito de Deus que sublinha estas parábolas reflete

amor e paciência para com um filho verdadeiramente arrependido e

corresponde ao profundo anseio espiritual dos publicanos e dos pecadores,

clientes preferidos de Jesus.

Em linha com o ensinamento das parábolas, um dos traços salientes da

pregação de Jesus é o pronto perdão a seus filhos transviados.

Começando com uma rara máxima de Marcos 11,25, uma entre apenas as três

ocorrências neste Evangelho onde Deus é chamado de Pai, a versão mais

breve, que aparece em alguns dos códices mais antigos (Sinaítico e Vaticano),

assim se apresenta:

E quando estiveres rezando, perdoa o que tiveres contra alguém, para que teu pai que

está no céu possa perdoar tuas faltas (11,25).27

O texto mais longo, que se segue a 11,26, inclui também uma formulação

negativa calcada em Mt 6, 14s., ela mesma acrescentada, como uma reflexão

tardia, ao versículo relevante (Mt 6,12) do Pai Nosso.

Se perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai celeste também perdoará as tuas;

mas se não perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai celeste também não

perdoará as tuas.28

De qualquer forma, subsiste pouca dúvida de que a noção do perdão é um dos

ingredientes centrais da imagem do Pai em Jesus.

27

Deve-se notar que estas palavras, embora provavelmente independentes em sua origem, estão

anexadas a um texto de prece que aparece em Marcos 11,24.

28 A máxima negativa é incluída também como sumário doutrinal da Parábola do Servo Cruel (Mt 18,35).

O ensinamento relativo à reconciliação necessária, mesmo fazendo uma oferenda no Templo, é

enfatizada igualmente em Mt 5,23s., sem referencia a um Pai celeste benevolente. A alusão ao

santuário, que na opinião de Bultmann atesta a forma mais original porque “pressupõe a existência do

sistema sacrificial, em Jerusalém, é mais provavelmente derivada de Mateus do que de Jesus, cujo

interesse em assuntos do Templo parece ter sido um tanto periférico.

Page 45: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

44

Outra característica do Pai celestial é sua solicitude paternal, doutrina central

do material “Q” e reforçada por outras instancias peculiares a Mateus. Mais

uma vez, a costumeira falta de apreciação de Lucas quanto aos pontos mais

finos da mentalidade judaica de Jesus revela-se por várias vezes em sua

substituição de “Pai” por “Deus”.

Na maioria dos exemplos, esta benevolente paternidade divina vincula-se ao

ambiente Judaico de Jesus e faz ecoar a perspectiva religiosa particular de sua

época; assim, a preocupação por elementos essenciais tais como alimento,

bebida e roupas é vista como a marca distintiva dos gentios (Mt 6,32).

O ensinamento de Jesus a respeito de Deus, o Pai, reflete as idéias religiosas

do judaísmo bíblico, e particularmente as idéias de sua própria época.

A imagem de Pai divino na Bíblia atestada na escritura é manifeta numa

variedade de nomes teofóricos que contém o elemento Ab (Pai). Empregam

tanto os títulos divinos do hebraico, YH(W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi

YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai), ou YoAB (Yo é o Pai). Do mesmo

modo temos Abbi El e ELIab (Deus é o Pai) em nomes judaicos da era pré-

exilica e do Segundo Templo. Abram e ABIram (Pai excelso e Meu Pai é

exaltado), que podem ser rastreados à idade patriarcal, representam o mesmo

tipo. Enquanto as nuances exatas do termo “Pai” permanecem vagas, não

pode haver dúvida de que mesmo em nível individual o relacionamento entre

Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de família.29

Essa antiga atitude subjacente é explicitamente expressa, principalmente em

termos coletivos que se aplicam a membros da nação judaica. Descrevem

Deus como seu Pai e Deus faz alusão a eles como seus filhos. A mais antiga

atestação é a célebre passagem de Ex 4,22 onde, segundo a tradição “J”,

Moisés se dirige ao Faraó:

Assim disse o Senhor, “Israel é meu filho, meu primogênito”.

Em Dt 32,6, o Cântico de Moisés formula a seguinte pergunta:

29

Cf. VERMES, Geza, A religião de Jesus, o Judeu, Rio de Janeiro: Imago, 1995; p. 158-159.

Page 46: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

45

Não é ele teu Pai que te criou, te fez e te estabeleceu?

Em outros exemplos do Deuteronômio, Moisés ora diz aos judeus, “Vós sois os

filhos do Senhor vosso Deus” (14,1), ora transmite a mesma mensagem por

meio de uma comparação:

Sabei pois, em vosso coração, que assim como o homem disciplina seu filho o Senhor

vosso Deus vos impõe sua disciplina (8,5).

O mesmo tipo de imagem é usado em Sl 103,13, em relação aos devotos:

Assim como o pai tem devoção de seus filhos, do mesmo modo o Senhor tem devoção

daqueles que o temem.

Na literatura profética, Deus é representado proclamando o vínculo Pai-filho

entre ele mesmo e Israel:

Gerei e criei filhos, mas eles se revoltaram contra mim (Is 1,2).

E onde lhes foi dito: “Não sois meu povo” lhes será dito: “Filhos do Deus vivo” (Os 2,1).

Pois sou um pai para Israel e Efraim é meu primogênito (Jr 31,9).

Nos salmos, Deus proclama o rei seu filho no momento de sua entronização,

declaração dotada de significado messiânico depois do desaparecimento da

soberania política:

Tu és meu filho, hoje eu te gerei (Sl 2,7).

Entretanto, enquanto a metáfora parece familiar, a referência comunitária a

Deus, em forma de prece, como “nosso Pai” ocorre relativamente tarde, em

passagens da literatura pós-exílica:

Pois tu és nosso Pai, já que Abraão não nos conhece e Israel não nos reconhece, Tu, ó

Senhor és nosso Pai, Nosso Redentor, este é teu nome desde a antiguidade. (Is

63,16).

O paralelismo entre Deus e Abraão é do maior significado e a associação de

Pai e Redentor também é reveladora.

Ó Senhor, tu és nosso Pai; somos a argila e tu és nosso oleiro, somos o trabalho de

tuas mãos (Is 64,7).

Page 47: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

46

Como mostra o contexto, “Pai” e “Oleiro” são intercambiáveis. Ao mesmo

tempo, não é ao poder supremo do Criador mas ao amor e à compaixão do

“Pai” que o suplicante apela.

Ainda num sentido coletivo, mas reduzido do nível nacional ao sacerdotal, o

profeta Malaquias escreve:

Um filho honra seu pai e um servo seu senhor. Se sou um Pai, onde está minha honra?

E se sou um Senhor, onde está meu temor? – diz o Senhor dos exércitos a vós, ó

sacerdotes (1,6).

Não temos todos um Pai? Não foi um único Deus que nos criou (2,10)?

A compreensão de Deus como Pai celeste, típica da pregação de Jesus, se

enquadra no desenvolvimento do pensamento religioso judaico num esboço

esquemático, que vai desde a Bíblia até os rabis, a idéia do Pai divino se

desloca para o nível coletivo a partir do Criador/Gerador do povo judeu (dentro

da humanidade) em direção ao Protetor amante e afetuoso do membro

individual da família. À época dos sábios tanaíticos, até o século III d.C., o Pai

celeste é o Deus providencial, distinto do Deus Rei-Juiz-Soberano, e a imagem

paternal é nitidamente muito familiar no meio hassídico-carismático.30

A representação de um Pai amante e solícito não se ajusta à experiência

humana de um mundo duro, injusto e cruel. Naquela época como agora, os

filhotes implumes ainda caem do ninho, os pequeninos morrem e, como o

próprio Jesus logo iria experimentar, os inocentes sofrem31. Mas o que se

encontra no interior de sua intuição é a convicção de que o eterno, distante,

dominador e terrível Criador é também primariamente um Deus próximo e que

pode ser alcançado.

Como vimos até agora, Jesus era judeu. Sua religião, o Judaísmo. No meio do

seu povo, dentro de sua cultura religiosa, Jesus de Nazaré anunciou a Boa

Notícia (Boa-Nova = do grego, Evangelho) de que “o Reino de Deus está

30

Cf. VERMES, Geza, A religião de Jesus, o Judeu. p. 164.

31 Cf. Idem, op. Cit., p. 165.

Page 48: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

47

próximo” (Mc 1, 15), tão próximo que se podem constatar os seus sinais

visíveis e palpáveis no meio do povo.

Dentro dessa perspectiva da irrupção do Reino de Deus na história, a imagem

de um Deus próximo (que se pode encontrar no cotidiano da vida e na

intimidade de um lar, no qual se pode confiar como a um pai e ou a uma mãe)

está em perfeita sintonia com toda a pregação da Boa-Nova.

1.2. O Deus dos cristãos

O Deus dos cristãos, fundamentalmente, é o Deus de Jesus de Nazaré, o

Cristo. De fato, a experiência cristã de Deus se dá na dinâmica da vida, na

caminhada do seguimento de Jesus. Na concepção cristã atual, podemos

levantar quatro elementos cujas características são, ao mesmo tempo,

continuação e ruptura do que está contemplado nas etapas pré-cristãs da

descoberta de Deus32.

1. Deus, o Absoluto, é Amor

2. Somos colaboradores do Plano de Deus

3. O Plano de Deus é universal

4. A adesão ao Plano de Deus é fruto da liberdade humana

1. Esse absoluto é percebido, descoberto em nosso mundo histórico.

Por sua encarnação, Deus se uniu a todo ser humano: trabalhou com mãos

humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou

com coração humano (GS “Constituição Pastoral Gaudium et Spes”, nº. 22).

Por isso “o Verbo de Deus, por Quem todas as coisas foram feitas e que se

encarnou e habitou na terra dos humanos, entrou como homem perfeito na

32

JUNIOR, João Luiz Correia, Do Deus distante para o Deus amor, o desenvolvimento da idéia sobre Deus

na Bíblia, Pernambuco: Revista Symposium 2000; p. 19.

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48

história do mundo, assumindo-a em Si mesmo e em Si recapitulando todas as

coisas. Ele nos revela que Deus é amor” (1Jo 4, 8).

2. Nessa colaboração, participamos de um grande desígnio histórico. “A fé

esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a

vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções

plenamente humanas” (GS 11).

3. O Plano é tão universal como o próprio Deus. “A Igreja, „assembléia visível e

comunidade espiritual‟, caminha juntamente com a humanidade inteira.

Experimenta com o mundo a mesma sorte terrena; é como que o fermento e a

alma da sociedade...” (GS 40).

4. A liberdade do ser humano não consiste, pois, em estar à prova diante de

uma lei, mas que se converta verdadeiramente em seres humanos novos e

criadores de uma nova humanidade, com o auxílio necessário da graça divina”

(GS 30).

Permanecerão o amor e sua obra... Depois que propagarmos na terra, no

Espírito do Senhor e por Sua ordem, os valores da dignidade humana da

comunidade fraterna e da liberdade, todos estes bons frutos da natureza e do

nosso trabalho, nós os encontraremos novamente.... quando Cristo entregar ao

Pai o reino eterno e universal (GS 39).

“Deus é amor: quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele”(1

Jo 4,16). Essas palavras, diz Bento XVI na sua encíclica “Deus é Amor”(DEA),

exprimem, com clareza, o centro da fé cristã, isto é a imagem cristã de Deus

e, conseqüentemente, a imagem do homem e do seu caminho. E o papa

continua citando o mesmo versículo joanino, que diz : “Nós conhecemos e

cremos no amor que Deus nos tem”(DEA,1).

De fato, Deus nos amou primeiro. Cremos que Deus nos ama. Antes de

ensinar que devemos amar a Deus, a Bíblia nos revela que Deus nos ama e

nos amou primeiro. João Paulo II, na “Familiaris Consortio”, diz que toda a

Bíblia não é senão a história de como Deus ama seu povo. Por que Deus nos

amou e nos ama assim? Como viver e experimentar este amor em nossa vida?

Page 50: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

49

Como deixar-nos amar e, na missão, como proclamar a cada pessoa e à

humanidade que Deus nos ama? Pois, como diz Bento XVI, esta verdade é o

centro da fé cristã!

O Deus dos cristãos também é o Logos, como anuncia o início do Evangelho

de João. Esse Logos joanino é o princípio de todas as coisas criadas e existe

desde sempre. Por Ele tudo foi feito e nele toda criação recebe inteligibilidade.

Manifesta-se assim também que o Deus dos cristãos é o mesmo Deus de

Israel, que é o Criador de todas as coisas, no qual todas as coisas têm sua

verdade, seu sentido e recebem sua inteligibilidade.

O Deus dos cristãos é realmente o Ser – em - si, fundamento de tudo o que

existe, mas, já na história de Israel, Ele se revela também como totalmente um

Ser - para... Um Ser relação. Pois, Ele se mostra como um Deus para os

homens, um Deus que se aproxima dos seres humanos, entra na história

humana e age nessa história, escolhe para si um povo, o povo hebreu, liberta

este povo da escravidão do Egito, ama e defende esse povo e o conduz à terra

que Ele um dia havia prometido a Abraão, Isaac e Jacó, patriarcas desse povo

eleito. Esse povo, que Ele elegeu para si, Ele o amou com amor esponsal,

como podemos ler no livro do Cântico dos Cânticos e em textos dos profetas,

especialmente Oséias e Ezequiel. É um Deus que tem uma relação de aliança,

zelo e ciúme por seu povo e faz tudo para não perdê-lo.

Esse é também o Deus de Jesus Cristo, o Deus dos cristãos, que é Ser- em- si

e Ser- para..., que se aproxima do ser humano e o ama. Em Jesus Cristo vai

revelar-se que Deus é acima de tudo Amor, primeiramente em si mesmo e

depois também na sua relação com a criação, especialmente com a

humanidade.

Este mesmo amor se manifesta, quando Deus decide criar o mundo, em

especial o ser humano. Deus cria por amor e desde o princípio mantém essa

relação com suas criaturas, especialmente com a humanidade, um amor

indestrutível e fiel. Este amor chega à sua manifestação maior em Jesus Cristo,

o Filho de Deus feito homem e entregue a morte de cruz para a salvação da

humanidade. “Deus tanto amou o mundo, que entregou seu próprio Filho”.

Page 51: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

50

Mas “o que é o amor?” se pergunta Bento XVI na sua encíclica “Deus é Amor”.

Para responder a essa pergunta o papa começa a partir do que já os gregos

entendiam sobre o amor. De fato, os gregos distinguem três tipos de amor: 1o.

o “eros”, que é o amor sobretudo conjugal, instintivo e possessivo; 2o. o

“ágape”, que é o amor de doação, o amor oblativo; e 3o. a “filia”, que é o amor

de amizade. Qual deles se aplica a Deus, quando se diz que Ele é amor?

À primeira vista, parece que deveríamos excluir do amor, que é Deus, o “eros”.

“Eros” é paixão avassaladora e possessiva, força irracional e inebriante, diziam

os gregos. Mas a Deus se aplica certamente o amor entendido como “ágape”,

como doação, como capaz de dar tudo de si para tornar feliz o outro. Essa

relação de amor nós vimos na relação mútua entre o Pai, o Filho e o Espírito

Santo. Também o vimos no amor que leva Deus a libertar o povo hebreu da

escravidão do Egito e ainda mais quando Ele envia seu Filho ao mundo, esse

Filho único, feito homem, Jesus Cristo, que doa sua vida na cruz para nossa

salvação. É sempre o amor de doação.

Contudo, afirma o papa, em Deus o “eros” não está de todo ausente, ainda que

totalmente puro e santo, a ponto de transformar-se totalmente em “ágape”, sem

deixar de ser “eros”. De fato, o “Eros” sente-se atraído pelo amado, sente

paixão que atrai e quer o outro, não quer perder o amado. Ora, isto também

ocorre no amor entre as três Pessoas divinas que, além de se doarem sem

reservas umas às outras, sentem-se atraídas umas pelas outras e não querem

perder umas as outras. O mesmo ocorre na relação de amor de Deus com

suas criaturas, em especial com os seres humanos. Deus sente-se atraído e

feliz com sua criação, sente-se apaixonado por ela e faz tudo para não perdê-

la. João Paulo II, no Rio de Janeiro, no II Encontro Mundial com as Famílias,

disse que Deus ama as famílias com amor apaixonado. Mas este apaixonar-se

por sua criação e sobretudo pelos seres humanos, ao transformar-se em ser

capaz de fazer tudo, até mesmo entregar seu Filho único, para não perder suas

criaturas, manifesta que em Deus o “eros” é transformado em doação total de

Si mesmo e se torna “ágape” em grau supremo.

Na própria Bíblia, como já dissemos, o amor que Deus tem por seu povo é

descrito em termos de amor esponsal, nupcial, que inclui “eros” e “ágape”.

Page 52: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

51

O mesmo ocorre no amor que Jesus Cristo manifesta em relação à

humanidade, a cada ser humano, especialmente em relação à sua Igreja.

Jesus Cristo ama sua Igreja como o esposo ama sua esposa, escreve o

apóstolo Paulo. Jesus Cristo sente-se apaixonado pelo ser humano, quem quer

que ele seja, não quer perder nenhum, vai em busca da ovelha perdida e

sente-se feliz e alegre ao encontrá-la, sente-se feliz em poder dar sua vida por

suas ovelhas no terrível suplício da cruz, quando então se manifesta em grau

supremo que também em Jesus o “eros” se traduz em doação total, em

“ágape”.

Então, Bento XVI, em sua encíclica, resume tudo, dizendo: “Na visão da

Bíblia... Deus é absolutamente a fonte originária de todo o ser; mas este

princípio criador de todas as coisas – o “Logos”, a razão primordial – é, ao

mesmo tempo, um amante com toda a paixão de um verdadeiro amor. Deste

modo o “eros” é enobrecido ao máximo, mas ao mesmo tempo tão purificado

que se funde com o “ágape” (DEA, 10).

Portanto, o amor é a lei fundamental do cristão. Esse amor é um dever

individual de cada cristão para com Deus e com o próximo, e, tudo que isto

implica, seja no culto a Deus e em seu relacionamento constante com Ele, seja

no relacionamento com o próximo que vive em situações concretas e tem

carências e aspirações concretas.

Deus nos ama apaixonadamente, com amor eterno, infinito, incompreensível,

sem limites. Criados à sua imagem devemos ser santos como ele é santo,

misericordiosos como ele é misericordioso, capazes de amar à semelhança do

amor dele, e isto podemos e devemos aprender em Jesus Cristo, o judeu que

foi fiel ao ensinamento religioso de seu tempo. Jesus nos disse: “Dou-vos um

novo mandamento: que vos ameis uns aos outros. Assim como eu vos amei:

amai-vos uns aos outros. Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos,

se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 34-35).

Page 53: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

52

Vimos no inicio de nosso trabalho, como Marcião,33viveu aflito por acreditar

existir uma acentuada diferença entre Deus no Antigo Testamento e no Novo

Testamento, sendo condenado desta forma por heresia.

Acredito que no coração desta aflição se encontra um engano fundamental a

respeito das revelações feitas sobre a natureza de Deus no Antigo e no Novo

Testamento. Outra maneira de expressar este mesmo pensamento básico é

quando as pessoas dizem: “O Deus do Antigo Testamento é um Deus de ira,

enquanto o Deus do Novo Testamento é um Deus de amor.” A Bíblia é a

progressiva revelação de Deus a respeito de Si mesmo a nós através de

eventos históricos e através de Seu relacionamento com as pessoas através da

história. Este fato poderia contribuir para a interpretação errônea sobre como é

Deus no Antigo Testamento, se comparado com o Novo Testamento.

Entretanto, quando se lê tanto o Antigo quanto o Novo Testamento,

rapidamente se torna evidente que Deus não é diferente de um Testamento

para o outro e que tanto a ira de Deus como também Seu amor são revelados

nos dois Testamentos.

Por exemplo, através de todo o Antigo Testamento, declara-se que Deus é

“misericordioso e piedoso, tardio em irar-se e grande em beneficência e

verdade” (Êxodo 34:6; Números 14:18; Deuteronômio 4:31; Neemias 9:17;

Salmos 86:5; Salmos 86:15; Salmos 108:4; Salmos 145:8; Joel 2:13). No Novo

Testamento, a bondade, amor e misericórdia se manifestam de maneira ainda

mais abundante pelo fato de que “Porque Deus amou o mundo de tal maneira

que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça,

mas tenha a vida eterna” (João 3:16). Ao longo do Antigo Testamento, também

observamos que Deus lida com Israel de um jeito bem parecido com o que um

pai amoroso lida com um filho. Quando eles deliberadamente pecaram contra

Ele e começaram a adorar ídolos, Deus os disciplinou, mas mesmo assim os

livrava cada uma das vezes, quando se arrependiam de sua idolatria. É desta

forma que vemos Deus lidando com os cristãos no Novo Testamento. Por

33

Cf. nota 17.

Page 54: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

53

exemplo, Hebreus 12:6 nos diz que “porque o Senhor corrige o que ama, e

açoita a qualquer que recebe por filho.”

De forma parecida, através do Antigo Testamento vemos o julgamento e a ira

de Deus derramados sobre pecadores que não se arrependeram. Sobre a ira

de Deus, vemos também no Novo Testamento: “Porque do céu se manifesta a

ira de Deus sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, que detêm a

verdade em injustiça” (Romanos 1:18). Mesmo em uma leitura rápida do Novo

Testamento, fica logo evidente que Jesus fala mais no inferno do que no céu.

Então, claramente, Deus não é diferente no Antigo e no Novo Testamento.

Deus, por Sua própria natureza, é imutável (Ele não muda). Mesmo que

possamos ver um aspecto de Sua natureza, mais do que outros, revelado em

certas passagens das Escrituras, Ele mesmo não muda.

Quando se começa a ler e estudar a Bíblia, se torna evidente que Deus não é

diferente no Antigo e no Novo Testamento. Apesar de ser a Bíblia um livro

composto de setenta e três livros individuais, escritos em dois (ou

possivelmente três) continentes, em três línguas diferentes, através de um

período de aproximadamente 1500 anos, por mais de 40 autores (vindos de

diferentes atividades e ofícios), continua a Bíblia, mesmo assim, um livro

consistente em sua unidade, do começo ao fim, sem contradições. Nisto vemos

quão amoroso, misericordioso e justo é Deus ao lidar com os homens

pecadores, em todos os tipos de situação. Verdadeiramente, a Bíblia é a carta

de amor de Deus para a humanidade. O amor de Deus por sua criação,

especialmente pela humanidade, é evidente por todas as Escrituras. Por toda a

Bíblia podemos ver Deus chamando a todos, com amor e misericórdia, para

terem com Ele um relacionamento especial, não porque mereçam, mas porque

Ele é um Deus de graça e misericórdia, tardio em irar-se e cheio de amor,

bondade e verdade.

Sendo assim, como ver aquelas pelas passagens do Êxodo que fala de

Libertação, destruição dos egípcios, passagem do Mar Vermelho. Os textos

bíblicos convidam o leitor a acompanhar o caminho feito pelos israelitas.

Porém, sempre nos esquecemos daqueles que ficaram: o que aconteceu ao

Page 55: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

54

povo egípcio com todos aqueles castigos que lhe foram impostos por culpa de

seus governantes? Os textos bíblicos nada falam!

Diante desta constatação ficamos perplexos, pois, nos perguntamos: que Deus

é este que destrói um povo numeroso em prol de um pequeno grupo eleito?

Mas será este o real convite que a teologia judaica, através dos eventos da

libertação do Egito, está fazendo aos seus leitores? Quem são os egípcios? E,

quem são os leitores a quem se destinam tais textos? Quando respondermos a

estas questões terá a chave para entender o porquê do aparente esquecimento

dos egípcios e do convite para caminhar com Moisés e os israelitas34.

O duelo entre Moisés e o Faraó se inicia, convencendo o leitor de que o Deus

dos israelitas é o verdadeiro Deus e que realmente tem poder e quer libertá-los

da escravidão, por intermédio de Moisés (Ex. 1-4). O primeiro encontro entre

Moisés e o Faraó ocorrerá somente no capítulo 5 do livro do Êxodo, onde o

Faraó demonstra não conhecer o Deus de Moisés: "Quem é o Senhor para que

eu escute a sua voz e deixe partir Israel? Não conheço o Senhor e não quero

deixar partir." (Ex 5,2). Contrapondo-se à pretensão do Faraó, Moisés

apresenta o projeto de Deus: que os israelitas saiam para cultuar ao Senhor

(Ex 5,3). Assim, o Faraó passa a medir forças com o Senhor aumentando a

escravidão sobre os israelitas (Ex 5,4-19), que por sua vez, se revoltam contra

Moisés e o Senhor. A posição israelita reforça as pretensões do Faraó, o qual

não ouvirá Moisés (Ex 6,10-12). Afinal, nem os israelitas ouvem o Senhor (Ex

6,9.12).

O fracasso da missão de Moisés em 7,1-7 se apresenta como parte dos planos

de Deus: o Faraó é usado por Deus (Ex 7,3) para a manifestação de sua

autoridade: "Estenderei minha mão contra o Egito e com autoridade farei sair

meus exércitos, meu povo, os filhos de Israel, para fora da terra do Egito. Então

os egípcios conhecerão que eu sou o Senhor, quando estender minha mão

contra o Egito; e farei sair do meio deles os filhos de Israel." (Ex 7, 4-5). Em Ex

34

SIGNORINI, Ivanir ; LIMA, Flavio e SIGNORINI, Vanderlei Roque, Uma luta de Deuses.

http://www.salvatorianos.org.br/textos_umalutadedeuses.htm acessado em 07-03-2011

Page 56: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

55

7,8-13, a cobra que surge do bastão de Moisés, representando a força de

Deus, engole todos os poderes e forças dominadoras do mal, que se

pretendem absolutas. Estas duas passagens prefiguram o fracasso das

pretensões do Faraó, que ocorrerá em Ex 12,29-14,31, e são as primeiras

ações divinas contra o Faraó que continuarão acontecendo no episódio das

dez pragas.

Para compreender este belíssimo texto, temos que levar em conta a época em

que ele foi escrito, final do sexto século, início do quinto, a.C., logo depois do

fim do exílio babilônico. Com a queda da Babilônia ante o Império Persa, os

exilados poderiam retornar para sua Terra e reconstruir seu país. Só que

Muitos judeus, após meio século de estadia na Babilônia, não queriam mais

voltar, preferiam ficar na Babilônia. É neste contexto que os sacerdotes

judaicos começaram a produzir os textos bíblicos para convencê-los a

retornarem. O Êxodo é simbólico e representa a volta dos exilados para suas

terras; bem como o Egito é símbolo da Babilônia.

Moisés, símbolo dos judeus que saíram da Babilônia, traz consigo um novo

projeto de sociedade, apresentado e avalizado pelo Senhor: uma nação santa

reunida ao redor do templo, sob os sacerdotes. Por isso, Deus está lutando

junto com os judeus que saem do "Egito" (Babilônia). Moisés é convite para

que cada judeu opte, radicalmente, pela sua cultura, suas tradições, seu povo,

sua terra e seu DEUS, afogando e matando, completamente o Faraó (cultura

babilônica) que existe dentro de cada um.

Page 57: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

56

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nestes tempos de profunda crise religiosa não basta crer em qualquer Deus;

precisamos discernir qual é o verdadeiro. Parece-me muito importante

reivindicar hoje, na sociedade contemporânea, o autêntico Deus bíblico, o Deus

dos Patriarcas, Deus dos Profetas, Deus de Jesus Cristo, sem confundi-lo com

qualquer outro “deus” elaborado por nós a partir de medos, ou ambições e

fantasmas que pouco, ou nada tem a ver com a experiência de Deus vivida e

comunicada no universo bíblico.

Em nosso trabalho, conseguimos perceber como Deus se preocupa com as

pessoas, é assim que ele olha os que sofrem, é assim que procura os perdidos,

é assim que abençoa os pequenos, é assim que acolhe, é assim que

compreende, é assim que perdoa, é assim que ama. É difícil imaginar outro

caminho para aproximar-se desse mistério que chamamos Deus.

Deus é uma presença boa que abençoa a vida. A solicitude amorosa do

Senhor, quase sempre misteriosa e velada, está presente envolvendo a

existência de toda criatura.

O Senhor é um Deus próximo. Sua bondade já está irrompendo no mundo sob

a forma de compaixão. Este Deus próximo busca as pessoas onde elas estão,

mesmo que se encontrem perdidas, longe de sua Aliança. Este Deus é um

Deus da mudança. Seu reino é uma poderosa força de transformação, um

chamado à mudança.

Deus esta sempre do lado das pessoas contra o mal, o sofrimento, a opressão

e a morte. O sofrimento, a enfermidade ou a desgraça não são expressão de

sua vontade; não são castigos, provas ou purificações que Deus vai enviando a

seus filhos. É inimaginável encontrar em Deus uma destas naturezas, Ele quer

ver seus filhos cheios de vida, não quer que se introduza a morte entre eles,

mas não abençoa os abusos e as discriminações, e sim a igualdade fraterna e

solidária; não separa nem excomunga, mas abraça e acolhe. Não se pode

justificar em nome de Deus que alguém passe fome quando esta pode ser

saciada, ou que um povo seja destruído para a edificação de outro.

Page 58: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

57

Nosso Deus é um Deus revelado, Deus que se comunica que procura o ser

humano para dialogar, que não age por interesse, coloca-se ao lado do ser

humano caminhando com ele, é fiel em sua amizade e vai permitindo a este

Ser conhecê-lo no caminho que percorrem juntos, unidos pela Aliança feita

entre os dois; Deus coloca toda a natureza e toda a criação nas mãos do ser

humano, e, só quer sua amizade, companhia, adotando-o como filho e

iniciando assim laços familiares com ele.

Por meio da Sagrada Escritura, podemos perceber que o povo de Israel foi

aprendendo sobre Deus ao longo da história, no desenrolar dos conflitos, das

crises, das vitórias e alegrias do cotidiano. Tal como Eles, também nós

continuamos fazendo a experiência de caminhar com Deus dentro da história, e

estas experiências sempre levam em conta o contexto em que o ser humano

está inserido. A compreensão que fazemos de Deus depende da compreensão

que o ser humano tem de si mesmo, e de suas relações com outros seres.

Fomos percebendo em nossa pesquisa que os homens da Bíblia costumavam

falar de outra forma a respeito de Deus, fazendo uso de diversas formas de

linguagem. Quando falavam de Deus, narram, sobretudo, situações da vida

deles nas quais tinham percebido quem era Deus e como ele os mudava ou

queria mudá-los. Aprendemos que nosso olhar Ocidental sobre os relatos

bíblicos buscam encontrar uma historicidade dentro do texto que não é possível

encontrar, e isso dificulta a nossa real compreensão, por se apresentarem

contraditórios, exatamente por não seres históricos, a Bíblia não é um livro de

História ou de arqueologia, é um livro que trata da experiência de fé de um

povo, muito embora fale de dados concretos da vida. Chegamos à conclusão

que é exatamente esta busca pela historicidade que ludibria muitos autores ao

analisarem os relatos Bíblicos.

Em nosso caminhar percebemos que o Deus do Antigo e o do Novo

Testamento é um e o mesmo Deus e que esta verdade pertence ao

fundamento de nossa fé. Deus é um e único.

Ele é um Deus de vida para os hebreus em oposição à realidade de morte dos

egípcios, pois os que estão longe do Deus da vida já estão mortos. Não é Deus

Page 59: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

58

que fere mortalmente os egípcios ou qualquer outro povo ou pessoa, são Eles

que se colocam contra o projeto vivificador de Deus, afastam-se do amor

misericordioso que é o fio condutor que perpassam todas as paginas da

Sagrada Escritura. Deus é um Deus da Aliança, e, exige um engajamento de

vida e uma correspondência sem igual em relação a Ele. Concluímos que um

mundo sem Deus é um mundo da morte. As mortes não são uma ação de

Deus, mas uma ação do não Deus. Deus não age para que venha a morte, é

Ele que se apresenta como alguém que gera a vida diante de povos que vivem

uma realidade de morte.

Podemos afirmar que Deus nos ama apaixonadamente, com amor eterno,

infinito, incompreensível, sem limites. Finalmente concluímos que Deus nunca

cessa a sua vontade de falar ao homem, e o homem nunca cansa de procurar

a Deus.

Page 60: Os deuses da humanidade e o deus que se revela

59

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