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LINHA MESTRA, N.27, AGO.DEZ.2015 337 OS CONTORNOS DA PESQUISA: ENTRE DIÁRIOS E IMAGENS Bruna Pontes 1 Leidiane Macambira 2 Resumo Este trabalho é uma composição de duas pesquisadoras – Bruna Pontes e Leidiane Macambira -. Uma tessitura feita e desfeita por muitas mãos. São diferentes fios que aqui pretendem, de certa maneira, entrelaçar-se e contar minimamente o que nos atravessa no campo da pesquisa acadêmica. As escritas, ainda em andamento, buscam “dar a ver” a experiência (LARROSA, 2002) no processo tenso e intenso de tecer e destecer devires- mulheres pesquisadoras em educação Nossos fios são compostos por diários de pesquisa (LOURAU, 1993) (BARBOSA; HESS, 2010) e por imagens. Como dispositivos, para dar a ver ao processo de pesquisa que resite adaptar-se aos moldes da escrita formal e linear. Assim, os diários, o “fora de texto”, trazem todo o acontecimento que nos atravessa entre a pesquisa, mas que naturalizadamente, numa perspectiva escriturística contemporânea são desprezadas do texto pronto e acabado, limpo e higienizado. Palavras chave: Diário de pesquisa; imagens; experiência. “A gente se inventava de caminhos com as novas palavras” (BARROS, 2013. p. 430) “Invento para me conhecer” (Idem, p. 425) Contornando corpos: biografemando a experiência do encontro com o Grupo de dança sobre rodas Corpo em Movimento A pesquisa, ainda em andamento, intitulada provisoriamente como “Biografemando a experiência do grupo de dança sobre rodas Corpo em Movimento: entre pistas de produção de normalidade e as astúcias criadas pelos corpos” busca biografemar (COSTA, 2011) a experiência do encontro com os bailarinos que compõem um grupo de dança composto por dançarinos andantes e cadeirantes, pensando as pistas que se dão entre a produção da normalidade com Michel de Foucault e a criação de astúcias como forma de resistência ao instituído, a partir da perspectiva de Michel de Certeau. Diário – ensaio – biografemas - cartografia – pesquisa - conversam entre si em uma grande tessitura de fios. Não há a possibilidade de separá-las ou dicotomizá-las. São apenas dobras provisórias de um pesquisar “com”, que se propõe a partir de um encontro. Riscam continuamente o contorno de um corpo em movimento. 1 Pedagoga. Bolsista pela CAPES. Mestranda em Educação, Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] 2 Pedagoga. Bolsista CAPES. Mestranda em Educação Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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LINHA MESTRA, N.27, AGO.DEZ.2015 337

OS CONTORNOS DA PESQUISA: ENTRE DIÁRIOS E IMAGENS

Bruna Pontes1 Leidiane Macambira2

Resumo

Este trabalho é uma composição de duas pesquisadoras – Bruna Pontes e Leidiane

Macambira -. Uma tessitura feita e desfeita por muitas mãos. São diferentes fios que aqui pretendem, de certa maneira, entrelaçar-se e contar minimamente o que nos atravessa no campo da pesquisa acadêmica. As escritas, ainda em andamento, buscam “dar a ver” a experiência (LARROSA, 2002) no processo tenso e intenso de tecer e destecer devires-mulheres pesquisadoras em educação Nossos fios são compostos por diários de pesquisa (LOURAU, 1993) (BARBOSA; HESS, 2010) e por imagens. Como dispositivos, para dar a ver ao processo de pesquisa que resite adaptar-se aos moldes da escrita formal e linear. Assim, os diários, o “fora de texto”, trazem todo o acontecimento que nos atravessa entre a pesquisa, mas que naturalizadamente, numa perspectiva escriturística contemporânea são desprezadas do texto pronto e acabado, limpo e higienizado. Palavras chave: Diário de pesquisa; imagens; experiência.

“A gente se inventava de caminhos com as novas palavras”

(BARROS, 2013. p. 430) “Invento para me conhecer”

(Idem, p. 425)

Contornando corpos: biografemando a experiência do encontro com o Grupo de dança sobre rodas Corpo em Movimento

A pesquisa, ainda em andamento, intitulada provisoriamente como “Biografemando a

experiência do grupo de dança sobre rodas Corpo em Movimento: entre pistas de produção de normalidade e as astúcias criadas pelos corpos” busca biografemar (COSTA, 2011) a experiência do encontro com os bailarinos que compõem um grupo de dança composto por dançarinos andantes e cadeirantes, pensando as pistas que se dão entre a produção da normalidade com Michel de Foucault e a criação de astúcias como forma de resistência ao instituído, a partir da perspectiva de Michel de Certeau.

Diário – ensaio – biografemas - cartografia – pesquisa - conversam entre si em uma grande tessitura de fios. Não há a possibilidade de separá-las ou dicotomizá-las. São apenas dobras provisórias de um pesquisar “com”, que se propõe a partir de um encontro. Riscam continuamente o contorno de um corpo em movimento.

1 Pedagoga. Bolsista pela CAPES. Mestranda em Educação, Processos Formativos e Desigualdades Sociais da

Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail:

[email protected] 2 Pedagoga. Bolsista CAPES. Mestranda em Educação Processos Formativos e Desigualdades Sociais da

Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail:

[email protected]

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OS CONTORNOS DA PESQUISA: ENTRE DIÁRIOS E IMAGENS

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O diário de pesquisa, na perspectiva de René Lourau, constitui-se nesse trabalho como um dispositivo, uma estratégia de admitir as angústias necessárias para pensar as questões que atravessam o pesquisador na escritura da pesquisa. Uma forma outra de tecer caminhos múltiplos nas diferentes formas de contar ao outro o que nos ocorre, o que nos provoca e nos mobiliza. Temos convicção que a escrita do diário, trazê-lo para dentro, não significa necessariamente romper com os padrões da representação, mas pensamos que usá-lo pode ampliar as possibilidades dos sentidos que emergem.

O diário de pesquisa se apresenta como o “fora de texto”, aquilo que naturalizadamente deixamos de fora do nosso texto pronto e acabado, limpo e higienizado. Nessa proposta ética, estética e política nossos escritos do diário ganham potência e passam a integrar a escrita oficial. “A essa escrita quase obscena, violadora da ‘neutralidade’, chamei de ‘Fora do texto’ no sentido literal e etimológico do termo: aquilo que está fora da cena; fora da cena oficial da escritura” (LOURAU, 1993, p. 71).

Hoje resolvi colocar linhas em todo o diário! Isso me faz lembrar que essa escrita é construída por fios. Por diferentes fios. Uma grande tessitura. Não tem meio, início ou fim. Tem linhas, fios, caminhos ...” (Fragmento do diário, 15 de Março de 2014).

É a partir desses fios que a dissertação vai sendo tecida. Uma forma de restituir, na linguagem escrita, inclusive na impossibilidade de constituir palavra, os caminhos percorridos, os encontros, os confrontos... Meu diário é composto não apenas por letras, mas por fotos, por sensações e pela vida, que não se captura na linearidade porque não se rende a ela.

Outro fio importante nessa tessitura são os biografemas. O biografema é parte de um componente biográfico, não se coloca como oposto da biografia, mas a ela dá sentido, uma vez que “eclode na relação que estabelecemos com aquele sobre o qual escrevemos” (COSTA, 2011, p. 12). Nesse sentido, o que nos atravessa está diretamente ligado ao que escrevemos. Mais do que estar preocupados com uma suposta verdade, uma cronologia dos fatos ou uma possível linearidade dos atos, o biografema se apresenta como possibilidade de falar do encontro. Falar do outro em mim e falar do que me passa no encontro com o outro e ainda contar sua biografia.

Biografemar é me colocar também em movimento. Posto, que naturalizamos a pesquisa construída a partir do pesquisado que fala e do pesquisador que escreve. Nesta escrita biografemática compomos uma tessitura com o que foi vivido e o que se vive no presente – efeitos, vozes, palavras, sentidos.

Ensaiemos, então, biografemando as experiências.

É 28 de julho de 2014 faz frio e nossa conversa acontece na sala da administração. Não sei se posso chamar de entrevista ou de conversa. Fato que fiz quatro perguntas e Camila falou por uma hora e quarenta e três minutos. Não sei também se muito ou pouco. Não sei também se minhas intervenções ajudaram ou atrapalharam. Isso pouco nos importa. Fomos enfim conversando, entre algumas risadas e algumas expressões de surpresa. Acima de Camila uma foto belíssima do último grande espetáculo do grupo de nome “Cinema Autoral” nos dá ânimo para conversar. Eufórica ela me chama atenção para a ausência de linearidade de sua fala. “Eu vou falando, falando, depois você vê como coloca. (Fragmento da entrevista realizada em 28 de julho de 2014). Penso: Seria a vida possível de ser contada de forma

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linear? Mesmo que quiséssemos não estaríamos nós inventando essa vida cronológica? Vida que segue. A conversa continua descontinuadamente.

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Hoje nos encontramos. Conversamos. Skliar já salientou que “quase não se conversa de outras coisas; no melhor dos casos apenas se conversa sempre entre os mesmos”. Hoje não foi assim. Saí de casa cedo, estava ansiosa pela conversa, ou entrevista, ainda não sei bem. Sei que quero conhece-las, ouvir suas histórias, suas lutas, suas angústias. Não tenho perguntas prontas, acho que só pensei na primeira: quem é a Bianka? Quem é a Vanessa? Acho que é pergunta demais para o primeiro encontro a sós. Muitas vezes no primeiro encontro pouco falamos de nós. Vamos experimentar esse momento juntas” (Fragmento do diário, 25 de novembro de 2014).

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É final de 2008 e Bianka chega a ANDEF para assistir uma aula de dança. A expectativa por encontrar um espaço mais amplo e generoso a acompanha pelos dias que seguem. Quando chega Bianka não vê nenhum cadeirante dançando. Apenas algumas pessoas com deficiências leves se desafiam nos passos bailados. Alguns meses depois Bianka finalmente se vê frente a frente com o corpo roda. São bailarinos em cadeiras de rodas. Sensações e paixões a invadem. É lindo! É empolgante! Dançar a vida que se apresenta! Dé pé ou sentado. Não importa qual corpo habitamos. Quando falo sobre a experiência de dançar com bailarinos cadeirantes a resposta surge firme e descontraída: “No início é difícil [...]porque você fica com medo de machucar. Porque você sabe que a maioria tem lesões na coluna [...]O primeiro momento é esse, medo de machucar. Por que chega aqui e pede para pular por cima do cadeirante. Para pular uma carniça. E ele está lá abaixado. E você pensa: onde vou colocar a mão? Será que eu vou machucar? [...]a gente sempre sai com alguns hematomas. Mas depois você vai se acostumando, é isso, você vai se acostumando. Vai vendo que cada um vai ter a sua limitação. E o cadeirante mesmo fala: pode,

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vem, ou não pode isso ... porque eles estão bem habilitados para poder passar essa informação para gente. Já sabem de tudo. Te falam tudo o que você pode fazer e o que você não pode. Então acaba sendo prático. Você chega ali e ele te fala: tá com muita força aqui, falta de força ali. Aí fica fácil. O primeiro momento é esse; medo de machucar, depois fica fácil. (Fragmento da entrevista de 25 de novembro de 2014).

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Vanessa Andressa ainda é criança e os médicos buscam soluções e saídas para fazer o

corpo voltar a andar com as próprias pernas. Já se passaram 4 anos desde a última vez que ela caminhou pela casa. Novamente no hospital, o corpo já frágil pela doença precisa aguentar um novo tratamento. Dessa vez um tal de puxar e engessar, puxar e engessar... puxar o máximo para engessar... envolver de gesso o corpo rígido para que ele se mantenha ereto e firme na posição que se deseja. O corpo desobediente deverá a qualquer custo se tornar outro para que Vanessa possa andar novamente. Os sentimentos estão acuados, o corpo também está,

Dobrado,

Pressionado,

Curvado ... é preciso esticá-lo.

A cada mês uma nova puxadinha, um processo longo e doloroso para o corpo que já sofre. Passam primavera, verão, outono e inverno e ainda se puxa e engessa o corpo. Foi preciso persistência para moldar o corpo e deixá-lo firme. Vanessa andou. Ainda meio sem jeito, ainda meio desengonçada, mas convenhamos: qual criança não anda assim? Qual adulto não anda assim? O corpo desistiu, obedeceu e esticou.

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Corpo esticado. É momento de adentrar a escola. Já se passaram 8 anos desde o nascimento. Ao olhar para os lados não se vê ninguém deficiente. Mesmo de pé, andando com pernas feitas de carne e osso Vanessa ainda se percebe deficiente. A escola, espaço de socialização mais parece espaço de exclusão. É assim que sucessivamente as aulas de educação física são ministradas. Diga-me: há corpo mais educado que o de Vanessa? Educado na marra, no gesso. Ali com certeza não havia de haver nenhum outro tão obediente. A tristeza que invade é resultado da marca de incapacidade carimbada no corpo. Para a professora, Vanessa não pode exercitar-se fisicamente como os outros. Dão-lhe então trabalhinhos para exercitar a mente.

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É manhã de 08 de junho de 2003 e Luiz tem 26 anos. O tempo está bom. É domingo, dia convidativo para sair e se divertir. Sentir o vento. Moto e amigos é a combinação perfeita para hoje. O inesperado que surge, aquele que não estava programado se impõe.

Vento. Luzes. Velocidade. BR101.

Luiz está no chão.

As lembranças são apenas as contadas. Ele conversa, mas já não se sente. Ainda que vivo. Ainda que pulsante. O corpo já não é o mesmo. Luiz ainda que vivo. Ainda que pulsante. Não é o mesmo. E de verdade, quem é o mesmo que a segundos atrás? O corpo é indiscutivelmente movimento, ainda que contra a nossa vontade se torne imóvel.

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O entre de um capítulo outro... O (in)visível de uma pesquisa entre professores videntes e alunos que não veem com os olhos

Aqui, desejo contar meu processo de produção de um dos fragmentos produzido na

pesquisa que se desdobrou no trabalho monográfico intitulado por “Ver, enxergar, olhar, ensinar... O processo de criação de uma pesquisa e uma escrita outra sobre as experiências de professores de alunos que “não vêem com os olhos”3. Uma escrita textual e imagética, a modo de ensaio, que se constitui em fragmentos que não exigem do leitor uma leitura literal e progressiva. Todavia, é possível adentrar a sua leitura pelo caminho que escolhermos... por qualquer lado.

Nesta pesquisa intentava conhecer através de conversas (SKLIAR, 2011; LARROSA, 2003) com professores videntes de uma escola da Rede Pública Ensino em São Gonçalo – O CIEP 237 - Jornalista Wladimir Hezorg – as experiências vividas no cotidiano escolar com alunos que não veem com os olhos.  

O desejo para essa expedição não foi abordar as características fisiológicas da visão, ou, talvez, as implicações pela “falta da visão”, etc... Mas, dar a ver as tensões provocadas pela presença do “outro”. Neste caso, o outro-aluno que não vê com os olhos, o outro-professor vidente, o outro-pesquisador... A análise aqui se faz sem distanciamento, já que está mergulhada na experiência coletiva em que tudo e todos estão implicados (KASTRUP, 2010, p. 19). Todos postos num mesmo plano, o plano da experiência (Idem, 2010)... Os quais trazem múltiplas experiências, múltiplas certezas e incertezas, múltiplas formas de ver e estar no mundo.

Estruturalmente, o texto foi composto por fragmentos. Sendo eles: “Ver como se fosse a primeira vez”, no qual fiz uma análise de implicação (LOURAU, 1993) da minha entrada no campo da Educação Especial e de aproximação ao tema. Em “Ver, enxergar, olhar (experimentar)” ensaiei os conceitos que atravessavam a pesquisa, tais como: ver, olhar, alunos que não veem com os olhos, experiência e conversar. Outro fragmento – “Ver, enxergar, olhar (narrar) a experiência pedagógica” – apresento três jogos de cenas que revelam as experiências de conversas entre pesquisadora e professores sobre as experiências de encontros entre estes professores (videntes) com alunos que não veem com os olhos. Em “Rever (transver)” revelou-se as costuras da pesquisa, a pesquisa às avessas... O fora de texto (LOURAU, 1993) que deveria ser invisibilizado, mas que uma posição ética-estética-política, o trouxemos com força para dentro do texto. São os diários de pesquisas (BARBOSA; HESS, 2010) – na íntegra – escritos no decorrer da pesquisa. Alguns diários encontram-se espalhados no decorrer do texto, em formato de caixas de texto, para compor com a escrita que segue.

Finalmente, o fragmento que escolhi trazer para esta mesa de trabalho. “Entre o visível e o (in)visível no Ciep 237: O campo problemático da pesquisa”, no qual tratei de dar a ver, através de uma composição imagética, o contexto da pesquisa.

Um exercício tenso e intenso de desnaturalizar o olhar na pesquisa. Para além de descrever um CIEP saturado de ver, com imagens ilustrativas que só cumprem o papel de reafirmar o já dito, aventuro-me ao modo do ver obliquo. Um convite a não mais ver o rio que à sua margem tem uma garça, mas olhar a garça que à sua margem tem um rio. (BARROS, 2003).

3 Disponível em:

<http://www.ffp.uerj.br/arquivos/dedu/monografias/2014/LEIDIANE%20DOS%20SANTOS%20AGUIAR%20MA

CAMBIRA.pdf>, acessado dia 10/05/2015.

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Então o que me proponho, na primeira composição de imagens, é dar a ver um CIEP

oficial, esgotado de ser ver. Imagens que, ao olharmos, rapidamente identificamos ser um CIEP. E nas composições a seguir, proposições, para nos colocar a pensar os outros CIEPs 237 possíveis. Agenciamentos ocorridos no próprio processo de pesquisar naquele espaçotempo outro. O (in)visível encontrado nas ranhuras daquela escola. Fotografias que só foram possíveis pela experiência de habitar aquele espaço cotidianamente.

Dar a ver um CIEP 237 outro...

As imagens pensam! Diário de 11 de junho de 2013.

As imagens pensam. E com essa leitura fui para o Ciep 237 hoje.

Caminhei por todo o percurso que faço semanalmente, mas me

prontifiquei a fazer de maneira diferente. Procurei, por este caminho –

desde a FFP até a escola – andar mais devagar, parar para olhar,

olhar mais devagar... (LARROSA, 2011) permitir-me desviar do percurso

para ir atrás de algo que chame atenção. Continuando o percurso,

tentei fotografar as cenas que eu via naquele caminho. Fui aberta a

perceber as coisas mínimas e talvez tentar fotografá-las. As imagens

que se dão a ver... contar o campo problemático através de um outro

dispositivo textual: a imagem... uma outra forma de dar a ler.

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Dar o que não tenho! O “não ter” como um deslocamento dos olhares automáticos, para

uma lógica e experiência visual outra. Alguma coisa a partir do “não”, do não ter algo a dar “para que a leitura vá mais além dessa compreensão problemática, demasiado tranquila” (LARROSA, 2004, p. 16) do que já sabemos, pois “para dar a [ver] é preciso esse gesto às vezes violento de problematizar o evidente, de converter em desconhecido o demasiado conhecido, de devolver certa obscuridade ao que parece claro, de abrir uma certa ilegibilidade no que é demasiado legível” (idem) Dar a ver o CIEP 237, dar as imagens sem dar seu significado. Sair de cena e permitir que as fotografias mostrem por si próprias, o pensar no mundo de gente que está por trás delas.

Diário de 13 de setembro de 2013Que se possa passar sua vida compondo imagens sem sentir a necessidade de falar delas? (MARESCA, 2012, p. 38)

Compondo as imagens para por na monografia tive o imenso cuidado de não explicá-las. Havia uma forte vontade de escrever a história de cada fotografia! Onde estava, o porquê da angulação, o porquê o foco... Tive a sensação de que tudo o que vivi durante a produção daquelas imagens ficasse apenas para mim, morreria comigo, visto que não estaria impressa abaixo da fotografia.

Será que eu passaria a minha vida compondo imagens sem falar delas? Ou melhor, sem dar seu significado?

Como assim? Sou professora! Afinal, um bom professor quita as dúvidas, esclarece as questões, resolve os problemas!

Por que sempre essa necessidade e apelação por uma vida em caixinhas. Meu cérebro será mesmo um grande arquivo como dizem alguns teóricos da psicologia do desenvolvimento? Em que os pensamentos vivem sempre organizados em suas respectivas gavetas?

Não querendo ser humanista, mas se o centro do mundo fosse o lugar dos nossos pensamentos, onde a gravidade fosse zero, e que todos estes pensamentos que por ordem cognitiva deveriam ficar alinhados, despencassem para o alto. Flutuassem desordenadamente. Onde tudo acontece simultaneamente? Como ficaríamos nós professores diante de toda essa “desorganização”?

“Não nos satisfazemos de olhar as imagens. Procura-se entendê-las, como se faria diante de um enigma ou de um texto criptografado” (MARESCA, 2012, p. 38) Decifra-me o e te devoro! Esta é a sensação ante determinadas imagens. Uma questão de antropofagia, de devorar o outro

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Composições: As imagens pensam... E o que nos provoca a pensar?

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Referências LARROSA, Jorge. Dar a ler... Talvez. IN: LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: A infância. São Paulo: Planeta, 2003. BARBOSA, Joaquim Gonçalves; HESS, Remi. O diário de pesquisa: o estudante universitário e seu processo formativo. Brasília: Liberlivro, 2010. COSTA, L. B. Estratégias Biográficas: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche, Henry Miler. Porto Alegre: Ed Sulina, 2011 KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo; ESCÓSSIA, Liliana da.(Org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010. LARROSA, Jorge. Dar a ler... Talvez. IN: LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência, IN: Revista Brasileira de Educação, n 19, p. 20-28, 2002. LOURAU, René. Análise Institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ, 1993.