os arquivos secretos do vaticano
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Srgio Pereira Couto
Os Arquivos Secretos do
VATICANO
GUTENBERG
2013
Sumrio
Introduo
Captulo 1 - A criao dos Arquivos Secretos
Indexao das informaes
A abertura dos ArquivosLendas e especulaes
Captulo 2 - A Santa Inquisio
As heresias
As acusaes
Condenaes e punies
As heresias em outras religiesA Inquisio medieval
Outra viso da Inquisio
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Poder e f
Captulo 3 - Os ctaros e segredo do Santo Graal
Quem eram os ctaros
Organizao da Igreja ctara
As lendas do Santo GraalA Cruzada Albigense
Os tesouros e os neoctaros
Captulo 4 - Os evangelhos proibidos
Cannicos x apcrifos
O Conclio de Niceia
A escolha dos evangelhos cannicos
Os critrios de escolha
Verses diferentes
Os manuscritos de Nag-Hammadi
Captulo 5 - O Evangelho de Judas
Contedo polmico
Quem foi Judas Iscariotes?
Trazendo um manuscrito de volta vidaA redeno de Judas?
Variaes sobre o mesmo tema
O que a gnose
Judas e os essnios
Evangelhos essnios
Os essniosSemelhanas com o cristianismo
O estudo do Evangelho de Judas
Captulo 6 - O Evangelho de Maria Madalena
O contedo
A identidade de Madalena
Venerao
Madalena e Pedro: a controvrsia
Sophia no judasmo e no cristianismo
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Competio
O milagre de Madalena
O outro lado da moeda
Pedro segundo o gnosticismo
Captulo 7 - As alteraes feitas na BbliaInterveno humana
As alteraes nos textos sagrados
Em busca da verdade
As revises dos evangelhos
Correes e mudanas
Captulo 8 - A Tor: a Bblia original
As divises e origens
A Tor oral
Captulo 9 - O cdigo da Bblia
Seqncia alfabtica equidistante
As pesquisas
A pesquisa automtica
O mentor do cdigoO resultado de probabilidades
Captulo 10 - Gematria: o cdigo oculto da Bblia
A gematria
Os clculos
A gematria revelada e mstica
TalismsIdentificando o mal em textos
Captulo 11 - Teomtica: O cdigo da Bblia original
O que teomtica?
O nascimento de Jesus
A polmica da teomtica
O cdigo de Bullinger
Os padres numricos na teomtica
Captulo 12 - Os Arquivos Secretos e o Apocalipse
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Gog e Magog
Gog e Magog para o Isl
Captulo 13 - Bibliolatria
A autoridade das escrituras
De onde vem a bibliolatria?Captulo 14 - CinciaversusReligio
Suposies
A briga pelo sudrio de Turim
O criacionismo e o evolucionismo
Captulo 15 - As informaes polmicas e proibidas
O Vaticano e os Beatles
Missas pagas
Falncia contnua
Os locais cristos
O holocausto e a omisso do papa
A reconciliao das Igrejas catlica e anglicana
A condenao e a reabilitao de Galileu Galilei
A ligao com o BrasilCaptulo 16 - Os maiores segredos dos Arquivos Secretos
Os maiores segredos
Milhes de livros
Informaes bombsticas
O espiritismo
A paranormalidadeOVNIs e ufologia
Captulo 17 - Os escndalos e a renncia do papa
Vatileaks
O mordomo e o escndalo financeiro
Bento XVI, o nazismo e os Arquivos Secretos
Pedofilia
A renncia do papa
A abdicao aceita
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Introduo
Tudo o que oculto, secreto, proibido parece chamar mais nossa ateno. E, de
fato, uma aura de mistrio envolve os Arquivos Secretos do Vaticano.
Localizados na Cidade de Vaticano, compreendem um local que renedocumentos relativos a todos os atos promulgados pela Santa S. So, na
verdade, um imenso repositrio central de informaes, que abrange livros,
documentos, correspondncias, dirios de papas, processos da Inquisio, papis
confidenciais, imagens, fac-smiles e milhares de outros registros que a Igreja
Catlica vem acumulando ao longo dos sculos.
Seu tamanho e extenso impressionam. Estima-se que contenham 85 quilmetros
de prateleiras e que existam 35 mil volumes apenas no catlogo seletivo. No total
so cerca de 2 milhes de documentos que relatam cerca de 800 anos de histria
guardados hermeticamente.
Os arquivos foram criados para ser consultados principalmente pelo papa e pela
cria romana. Com o passar do tempo, os Arquivos Secretos do Vaticano se
tornaram um verdadeiro depsito de documentos ligados aos mais variados
processos que envolviam a participao da Igreja Catlica na defesa da f crist.Ali h seis grupos de documentos: cria, delegaes papais singulares ou
familiares, conclios, ordens religiosas, mosteiros e confrarias, e outros. O
complexo est dividido em dois recintos, que possuem a capacidade de receber a
visita de at 1.500 pessoas. H tambm um aposento com os arquivos de ndices,
uma biblioteca, uma sala de restaurao, um laboratrio de fotografias digitais e
outro de informtica, alm do espao administrativo.Mas o que h de "secreto" em tudo isso? Em latim, Arquivos Secretos do
Vaticano so Archivum Secretum Vaticanum. Nesse idioma, secretum tem o
significado de segredo, mas tambm desecretrio,ou seja, a pessoa de confiana
de algum. Assim, os Arquivos Secretos poderiam ser traduzidos como
"arquivos de confiana". Isso porque, quando alguma dvida surge em assuntos
relacionados Igreja, a eles que os padres recorrem para esclarecimentos.Entretanto, h sim um cunho de segredo por trs deles. Na verdade, nada do que
possa sair de suas paredes blindadas passvel de ser tomado apenas como um
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simples documento. Os "conspirlogos" (ou seja, os adeptos das teorias de
conspirao) gostam de insinuar que o local no um simples depsito de dados
dos governos papais, mas uma espcie de rea proibida, que guarda detalhes que
mudariam a histria no apenas do cristianismo mas tambm da humanidade
como a conhecemos.E o que de fato acontece que apenas uma parte do que h ali hoje de acesso
pblico, e por alguns motivos. Primeiro porque os papis que ali existem so
muito antigos e, a exemplo de museus, que no permitem flashesdas mquinas
fotogrficas para no danificar as obras, tambm os Arquivos Secretos protegem
seu acervo, de valor incalculvel, j que o simples ato de respirar prximo a um
pergaminho antigo poderia levar sua irreparvel perda. E isso acontece mesmo
hoje em dia, com a tecnologia de que dispomos.
Em segundo lugar, nem tudo est autorizado a ser divulgado. A publicao dos
ndices dos documentos, por exemplo, em parte ou como um todo, proibida, de
acordo com os regulamentos atuais estabelecidos em 2005. E, em geral, somente
depois de pelo menos 75 anos de sua publicao que uma parte do acervo se
torna acessvel.
Essa abertura comeou no papado de Leo XIII (1810-1903). Desde 1881, opapa que est na direo da Igreja Catlica tem tomado a iniciativa de abrir o
acesso a papis de seus antecessores. A partir de 1924, uma quantidade maior de
textos foi aberta ao pblico, incluindo aqueles do perodo que vai at o fim do
apostolado do papa Gregrio XVI (1765-1846).
O fato de existir esse lapso de tempo para que determinados documentos dessa
vasta coleo possam ser consultados deixa as pessoas desconfiadas. Os arquivosganharam a alcunha de "secretos" no apenas por seu acesso restrito para a
maioria das pessoas mas tambm por seu contedo proibido. Isso porque muitos
livros, documentos, epstolas, entre outros, traziam idias de vrias das correntes
consideradas herticas.
Nos Arquivos do Vaticano possvel encontrar, alm dos citados documentos,
livros confiscados e classificados como "perigosos". Entre eles, h at mesmo
antigas edies da Bblia e cpias dos chamados Evangelhos Apcrifos, alm de
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dados sobre o cdigo da Bblia e suas verses mais antigas, denominadas
gematria e teomtica.
Segundo dizem alguns especialistas, a parte sobre o terceiro segredo de Ftima,
que era somente de conhecimento dos papas (e que teria feito um deles desmaiar
ao saber de seu teor), s foi revelada por iniciativa de Joo Paulo II. E, mesmoassim, os conspirlogos afirmam que as verdades divulgadas so falsas e que as
legtimas ainda estariam guardadas sob as sete chaves atribudas a Pedro.
Os arquivos foram institudos em uma poca em que a Igreja Catlica era
praticamente soberana no mundo e se tornou depositria do conhecimento
humano desde a poca da Inquisio, em torno de 1184. Os livros considerados
perigosos por ameaarem os dogmas estabelecidos pela Igreja eram recolhidos e
destrudos, mas no antes de terem um exemplar l colocado para consultas
futuras, por parte daqueles que se lanavam na defesa da "pureza eclesistica".
At a, eles poderiam compor uma simples biblioteca, que guarda obras que, por
serem consideradas herticas, no mereceriam tanto destaque, j que a prpria
heresia discutvel do ponto de vista tanto religioso quanto do fdosfico. Mas,
em uma poca de pensamento e regncia absolutistas, tudo era imposto.
Na verdade, dos evangelhos apcrifos aos textos escritos por aquelesconsiderados herticos e perigosos, o fato que, at hoje, no se teve uma
explicao satisfatria por parte dos clrigos do motivo pelo qual esses livros
foram guardados nessa biblioteca. E do porqu, ainda hoje, de alguns desses
escritos ainda no serem de consulta pblica.
O que se sabe que tais escritos eram guardados para um suposto estudo por
parte dos doutores da Igreja para entender melhor a mentalidade hertica e osmotivos que os levavam a combater idias diferentes das deles. Com certeza,
houve casos de clrigos que, aps lerem tais textos, resolveram trocar de lado,
mas seus nomes ou so pouco conhecidos, ou simplesmente se perderam na
histria.
Por tudo isso, reunimos neste livro um apanhado de estudos, pesquisas,
informaes e fatos sobre esse fascinante assunto. Discorreremos sobre a histria
do lugar, os detalhes de sua criao e formao, informaes sobre a Inquisio e
as heresias, cujos processos lotaram as enormes prateleiras de registros e dados
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sobre alguns grupos que, na Idade Mdia e em outras eras, se atreveram a
levantar a voz contra o domnio da Igreja Catlica, alm dos evangelhos
proibidos, mistrios, polmicas e segredos, inclusive relacionados renncia do
agora papa emrito Bento XVI.
Tudo o que foi aqui colocado foi feito sob um ponto de vista analtico, pois nopretendemos dar a resposta definitiva a indagaes, mistrios e dvidas, mas sim
fazer com que o leitor tenha subsdios para tirar concluses por si.
Na busca da verdade, uma ressalva necessria: para que as informaes obtidas
dos Arquivos Secretos no exprimam apenas o ponto de vista da Igreja Catlica
e de seus inquisidores sobre os diversos assuntos l tratados, preciso cruzar
dados entre os documentos do Vaticano e o que mais possa ser encontrado em
outras bibliotecas e centros documentais do mundo, o que buscamos, pelo menos
em parte, fazer.
De qualquer maneira, se h algo que fascina as pessoas poder ter acesso a
dados tirados de circulao e a outros assuntos considerados "proibidos" e que
desafiam a realidade como conhecemos e provocam nosso imaginrio a
conjecturar qual , afinal, a verdade.
Vamos, ento, a eles.
Captulo 1
A Criao dos Arquivos Secretos
Os Arquivos Secretos do Vaticano surgiram oficialmente em 1610 e foram
sancionados pelo papa Paulo V (1552-1621) com a inteno oficial de"resguardar o legado de Jesus Cristo, herdado por seus seguidores".
Assim, todo documento classificado como de interesse eclesistico est guardado
no acervo, que inclui decretos, cartas, processos inquisitrios e, claro, os livros
proibidos que tanto atraem a ateno do pblico. L tambm esto catalogados
vrios documentos que revelam a histria de vrios pases, alm de documentos
administrativos relativos ao prprio Vaticano e livros de papas, entre outrasraridades.
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Os clrigos que zelam por seu acervo afirmam que cuidam para que os
ensinamentos de Jesus sejam passados de maneira correta entre as geraes sem
que sofram alteraes. Ao longo do tempo, vrios textos evanglicos,
correspondncias apostlicas e outros tipos de documentos estiveram bem longe
da curiosidade pblica.Segundo o site oficial do Vaticano, as razes para o estabelecimento desse
depositrio incrvel remontam prpria origem, natureza, atividades e
desenvolvimento da Igreja Catlica. Diz a pgina:
Desde os tempos apostlicos, os papas preservaram cuidadosamente os
manuscritos relativos aos exerccios de suas atividades. Essa coleo de
manuscritos foi mantida no Scriniutn Sanctae Romanae Ecclesiae, que
geralmente segue os papas em suas vrias residncias, mas a fragilidade dos
papiros, normalmente usados pela chancelaria papal at o sculo XI, as
transferncias e as mudanas polticas quase causaram a perda total do
material arquivado anterior a Inocncio III.
A partir do sculo XI, quando o papa e seus seguidores ganharam os papis dedestaque que mantm at hoje, o nmero de escritrios da cria cresceu. No
sculo XV, os documentos considerados os mais preciosos foram levados para o
Castelo de Sant'ngelo.
Aps vrios projetos para a criao de um arquivo principal, Paulo V finalmente
deu a ordem para a transferncia dos registros das bulas papais, comunicados,
livros da cmara e as colees de documentos anteriores poca de Pio V (1504-1572) para cerca de trs sales prximos Sala Paoline, que j era uma espcie
de biblioteca secreta de uso exclusivo. Foram cerca de 300 documentos
classificados da seguinte maneira: "Para uso privado dos pontfices romanos".
Durante o sculo XVII, os arquivos cresceram de maneira considervel,
especialmente sob o pontificado de Urbano VIII (1568-1644), quando foram
acrescentados documentos, como as bulas de Sisto IV e Pio V, e os documentos
dos secretrios de Alexandre VI a Pio V. Os livros foram ento transferidos para
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a cmara apostlica de Avignon, juntando-se aos do perodo do Cisma e aos
documentos sobre o Conclio de Trento.
Os arquivos sofreram nova ampliao de contedo sob o pontificado de
Alexandre VII (1599-1667), que escolheu concentrar a correspondncia
diplomtica da secretaria de estado em um andar especfico dos palciosvaticanos. Na primeira metade do sculo XIII, durante as administraes de
Pietro Donnino de Pretis e Filippo Ronconi, os documentos mantidos nos
arquivos foram postos em ordem pela primeira vez, e muitos achados mantm a
ordem original at hoje.
Indexao das informaes
Entre 1781 e 1782, a histria dos Arquivos foi dominada por Giuseppe Garampi,
o principal criador, entre outras coisas, do famoso sistema de ndice que leva seu
nome. Ele manteve muitas aquisies, depsitos e conseguiu muitas
transferncias de material, inclusive cerca de 1.300 livros da cmara.
Em 1783, tudo o que ainda restava em Avignon foi levado para o Vaticano,
incluindo uma srie de registros chamados deRegistra Avenionensia.Em 1798,os registros que estavam no Castelo Sant'Angelo tambm foram transferidos para
l, e Garampi j havia assumido como arquivista do Vaticano e do castelo.
Assim, o acervo foi acrescido de 81 documentos com selos de ouro, entre os
quais constava um diploma de Friedrich Barbarossa ou Frederico I, sacro
imperador romano-germnico (1122-1190), que datava de 1164. Em 1810, por
ordem de Napoleo Bonaparte, quando de sua invaso Itlia, os arquivos foram levados para Paris e apenas voltaram para seu local
original entre 1815 e 1817, o que causou a perda de vrios documentos.
Quando as tropas italianas conquistaram Roma, em 1870, os arquivos
encontrados fora dos muros vaticanos foram confiscados pelo ento recm-
nascido estado italiano, que assim formou o ncleo dos arquivos de estados de
Roma.
No sculo XVII os arquivos foram retirados da biblioteca do Vaticano, at ento
seu local sede, e permaneceram fechados para pessoas no autorizadas at o fim
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do sculo XIX, quando passaram a ser abertos parcialmente pelo papa Leo XIII.
Desde ento, o acervo se tornou um dos mais importantes do mundo.
Em 1892, uma parte enorme da Dataria Apostolica, um dos cinco Ufficii di
Curia, rgo da cria romana anexo chancelaria apostlica, foi criada no
sculo XII e extinta no sculo XX durante o pontificado de Pio X. Durante osculo passado, bem como em partes modernas dos arquivos da secretaria do
estado, apareceram tambm arquivos da secretaria de comunicados da rota
romana, tribunal com lei prpria, tambm chamado de tribunal da rota romana
ou tribunal rotae romanae, que funciona como instncia superior no grau de
apelo junto s apostlica para tutelar os direitos na Igreja de vrias
congregaes, do palcio apostlico, do primeiro Conclio do Vaticano e at de
famlias ligadas histria da cria, incluindo Borghese, Boncompagni,
Rospigliosi, Ruspoli, Marescotti, Montoro, entre outras.
No ano 2000, o arquivo completo sobre o segundo Concilio do Vaticano foi
transferido pelo papa Paulo VI (1897-1978), que liberou o acesso de
pesquisadores em um limite alm do normalmente imposto para consultas.
Hoje em dia, a documentao mantida nos Arquivos Secretos est em constante
crescimento e cobre cerca de 800 anos de histria, de 1198 em diante, comalguns documentos isolados pertencentes aos sculos X e XI. O item mais antigo
conservado por l o Liber Diurnus Romanorum Pontificum, um antigo livro
com as declaraes da chancelaria papal que remontam ao sculo VIII.
A abertura dos Arquivos
Talvez no haja um anncio de maior expectativa, principalmente para o mundo
dos pesquisadores, que a abertura total ou parcial dos Arquivos Secretos do
Vaticano ao pblico. Imagine-se ter acesso a milhares de documentos histricos,
em um acervo que comparvel ao de grandes museus do mundo, como o
Museu Britnico ou o Louvre, mas composto apenas e to-somente por papis
inditos, que no veem a luz do dia h sculos.
No toa que, a cada anncio de abertura de uma parte dos Arquivos Secretos
do Vaticano, o mundo noticia esse fato com destaque. O Vaticano conhece o
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fascnio que seus arquivos exercem nas pessoas. Os ltimos perodos de abertura
foram:
Em 1966: textos do perodo do pontificado de Pio XI, de 1846 a 1878.
Em 1978: textos do perodo do pontificado de Leo XIII, de 1878 a 1903. Em 1985: textos do perodo dos pontificados de Pio X, de 1903 a 1914, e de
Bento XV, de 1914 a 1922.
Em 2003, o papa Joo Paulo II abriu a documentao referente ao arquivo
histrico da secretaria de estado (segunda seo), que possui textos que narram
as perigosas interaes do Vaticano com a Alemanha durante o nazismo. O meio
acadmico sempre se interessou, motivo pelo qual Pio XI se manteve de certa
maneira inerte perseguio realizada contra os judeus, o que levou
especulao de que o papa teria alguma espcie de acordo secreto com Hitler.
A abertura total dos Arquivos Secretos do Vaticano seria um acontecimento
mpar. Primeiro, por ter um dos acervos mais antigos e em excelente estado de
conservao, graas aos esforos dos especialistas que l trabalham, em geral
ligados Igreja ou ao prprio clero. Depois pela prpria importncia histricados documentos l guardados. Afinal, onde mais h ainda conservada uma cpia
da carta de Henrique VIII ao papa Clemente VII, de 1530, pedindo a anulao de
seu casamento com Catarina de Arago? Ou uma cpia do famoso Pergaminho
de Chinon, documento que prova que o papa Clemente V absolveu secretamente
o ltimo gro-mestre, Jacques de Molay, e os demais lderes dos Templrios, em
1308, das acusaes feitas pela Santa Inquisio de heresia e que levou ao fim daOrdem dos Templrios?
claro que, justamente por seu alto valor histrico, o Vaticano aproveita para
levantar recursos custa dos interessados em manter esses documentos em
colees particulares ou mesmo em acervos de bibliotecas e museus espalhados
por vrios pases.
Por exemplo, a carta de Henrique VIII teve 200 cpias produzidas e vendidas
pela "mdica" quantia de 50 mil euros, o que significou uma soma considervel
para os cofres do Vaticano. O anncio da venda das cpias da carta ganhou a
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mdia internacional. Abaixo a reproduo da notcia publicada em 2009 pela
BBC Brasil:
O Arquivo Secreto do Vaticano anunciou que ir publicar cpias da carta de
1530 em que nobres e religiosos ingleses pedem ao papa para anular o casamentodo rei ingls Henrique VIII com Catarina de Arago para que ele pudesse se
casar com Ana Bolena. O documento original, arquivado no Vaticano com o
nome de "Causa Anglica - O atribulado caso matrimonial de Henrique VIII",
contribuiu para desencadear o cisma entre a Igreja Anglicana e a Igreja Catlica.
O original e um fac-smile, a partir do qual sero feitas outras cpias, foram
apresentados para a imprensa na ltima tera-feira, na sede do Arquivo Secreto
do Vaticano. O lanamento oficial das cpias do documento est marcado para o
dia 24 de junho, durante as comemoraes dos 500 anos da ascenso de
Henrique VIII ao trono da Inglaterra. O texto considerado uma das pginas
fundamentais da histria inglesa. Nele, 85 nobres e religiosos ingleses se dirigem
ao papa Clemente VII pedindo a anulao do casamento do rei com Catarina de
Arago, a primeira das seis esposas de Henrique 8o. Para se casar com Catarina,
o rei da Inglaterra, que subiu ao trono em 1509, j tinha pedido uma autorizaoespecial do pontfice, porque ela era viva de seu irmo. A primeira cpia da
carta vai ser dada ao papa Bento 16, que deve visitar a Inglaterra at o final do
ano. As demais publicaes sero vendidas a museus, institutos de cultura e
colecionadores privados. Os interessados devero desembolsar cerca de 130 mil
reais para comprar uma das cpias e, provavelmente, comprometer-se a exp-la a
um pblico mais amplo. At agora, o documento podia ser visto apenas porchefes de Estado, ou outras autoridades, em visita oficial ao Vaticano. Segundo o
diretor do Arquivo Secreto do Vaticano, monsenhor Srgio Pagano, o dinheiro
arrecadado com as vendas vai ser usado para restaurar parte do acervo da
instituio, um dos mais ricos do mundo.
O imaginrio popular pensa que se documentos histricos to importantes
encontraram um lar em meio sede mundial da Igreja Catlica, o que mais
poder haver l para precisar ser to bem guardado?
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Claro que os "conspirlogos" fazem a festa e deliram em cima do que possa
haver por l, que iria desde algum texto assinado pelo prprio Jesus Cristo, at
relquias de santos medievais preservadas por motivos escusos. O fato que a
conservao que os especialistas dos arquivos realizam parece dar o efeito
necessrio.A editora que cuidou da reproduo da carta de Henrique VIII afirmou, na poca
do lanamento das cpias, que "no pergaminho (do Vaticano) esto pendurados
lacres magnificamente conservados, enquanto o documento que ficou na
Inglaterra est em estado de conservao precrio. Em algumas partes chega a
ser ilegvel e no h nenhum lacre". Se a Inglaterra, que deveria ter sua cpia
bem-conservada, a tem em estado precrio, imagine s como estaria a do
Vaticano, com seus 85 lacres, emoldurados em metal e unidos por uma fita de
algodo e seda de 40 metros de comprimento. Somente esse documento pesa por
volta de 2,5 quilos.
Existem atualmente pelo menos dois cargos de destaque na hierarquia ligada aos
Arquivos Secretos: o de prefeito dos arquivos, que cuida da administrao desse
rgo, e o de arquivista, que cuida do acervo em si.
Lendas e especulaes
Por vezes, claro, as pessoas se deparam com algumas informaes inusitadas
nos Arquivos. Por exemplo, vejamos a notcia abaixo, divulgada pela agncia
Acclesia,a agncia de notcias da Igreja Catlica em Portugal, em setembro de
2006:
A Santa S procede, a partir de hoje, abertura da totalidade dos arquivos do
pontificado do papa Pio XI (1922-1939). At agora, apenas uma parte destes
arquivos est disponvel para consulta aos investigadores. A abertura destas
fontes histricas refere-se, nomeadamente, a toda a atividade diplomtica da
Santa S, no perodo que antecedeu a II Guerra Mundial, e foi decidida por
Bento XVI, seguindo um desejo j antes manifestado pelo seu antecessor Joo
Paulo II. Assim, passaro a estar disponveis investigao histrica, nos limites
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dos regulamentos, todos os fundos documentais at a fevereiro de 1939 [...]
nomeadamente os Arquivos Secretos do Vaticano e os arquivos da segunda
seco da Secretaria de Estado responsvel pelos negcios diplomticos,
concretiza o comunicado. O trabalho de cerca de 20 pessoas, nos ltimos quatro
anos, torna possvel a abertura dos Arquivos Vaticanos relativos ao Pontificadode Pio XI (1922-1939) e, com isso, o acesso a um enorme campo de pesquisa
histrica.
O perodo abarca as trgicas conseqncias da I Guerra Mundial, o percurso que
levou II Guerra Mundial; a chegada ao poder de Mussolini, Hitler ou Estaline;
a crise de 1929, as guerras coloniais e civis, e as leis raciais alems e italianas,
entre outros acontecimentos. Pio XI foi uma presena notvel, nesta altura:
resolveu a questo romana com os Pactos Lateranenses (1929), protegeu e
aumentou a Ao Catlica, celebrou o Jubileu de 1925 e o extraordinrio em
1933-1934, planeou um enorme projeto missionrio que chegou China,
desenvolveu sua ao para o Oriente, olhou com olhos novos a cincia,
estabeleceu relaes diplomticas entre a Santa S e vrios pases do mundo. O
prefeito do Arquivo Secreto Vaticano, o padre Srgio Pagano, anunciou
oficialmente j em 2002 que, aps a abertura do Pontificado de Pio XI, tudo sefar para disponibilizar as fontes documentais vaticano-alems relativas ao
pontificado de Pio XII (1939-1958), em parte j publicadas por vontade de Paulo
VI nos 12 volumes (1965-1981) dosActes et documents du Saint-Sige relatifs a
la seconda guerra mondiale.H algum tempo est tambm disponvel o fundo
do "departamento de informaes vaticano para os prisioneiros de guerra", que
compreende documentos de 1939 a 1947. Alm disso, foram tambm abertos osarquivos das nunciaturas de Munique e de Berlim at 1939.
Em julho de 2010, a editora belga VdH Books anunciou o lanamento do livro
The Vatican secret Archives, com nada menos que 252 pginas cheias de
fotografias do complexo e reprodues de documentos restritos. Auxiliada pelo
cardeal Raeffaele Farina, o atual arquivista do local, a equipe do livro teve
autorizao para apresentar algumas reprodues dos arquivos, com comentrios
histricos detalhados do religioso.
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O volume traz textos sobre nomes histricos que esto presentes no acervo, com
um ou outro documento, como o do pintor e escultor Michelangelo, o do escritor
Voltaire, da Rainha Elizabeth I, do Dalai Lama e at o presidente norte-
americano Abraham Lincoln. Tambm traz detalhes sobre figuras polmicas,
como os Cavaleiros Templrios e o fsico e astrnomo Galileu Galilei.Aborda ainda a tentativa de Henrique VIII de se divorciar de Catarina de Arago
para casar com Ana Bolena e uma carta revoltada do papa Pio XI para Hitler,
datada de 1934. Somente por esses exemplos podemos ver o quanto a instituio
e seu acervo so polmicos.
No para menos que suscitam tantas lendas e teorias de conspirao. E o fato
de que, para visitar os quase 85 quilmetros de prateleiras, necessrio passar
por um longo processo de aplicao, a fim de ser um dos 1.500 estudiosos
selecionados para ter acesso ao local, no ajuda muito a acabar com os boatos.
De fato, a melhor chance que uma pessoa comum tem de conhecer o interior dos
arquivos e de ler alguns documentos mesmo pelo livro, uma vez que nem o site
oficial (http://asv.vatican.va) traz informaes to precisas sobre os documentos
l contidos. Os interessados brasileiros, para terem acesso a alguns destaques de
l, devem procurar o site em ingls, j que a pgina em portugus no possuitantas informaes assim.
Quanto ao livro belga, quem quiser obter uma cpia precisa se apressar e correr
at a livraria mais prxima que trabalhe com importaes e reservar o seu, pois
cada edio limitada a 50 cpias apenas.
Captulo 2A Santa Inquisio
Passamos agora a tratar da conturbada histria daquela que seria uma das
principais fontes de documentos dos Arquivos Secretos do Vaticano: a Santa
Inquisio, o terror que condenou milhares de pessoas morte em nome da
preservao do catolicismo.A imagem que ficou popularizada a dos inquisidores com longas vestes escuras
que apontavam o dedo para o acusado de algum delito, em geral bruxaria ou
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heresia, considerada mais grave, e que agia muitas vezes ao mesmo tempo como
juiz, jri e executor.
A primeira coisa que vem mente das pessoas saber como uma instituio de
carter religioso acumulou tanto poder a ponto de desafiar at mesmo os reis, em
uma poca em que aqueles governantes se achavam com direito divino eabsoluto de governar.
Para tanto, necessrio entender o papel da Inquisio desde sua concepo.
Segundo o historiador Gilberto Coltrim, a Santa Inquisio foi criada para
combater o sincretismo, definido como "fuso de diferentes cultos ou doutrinas
religiosas, com reinterpretao de seus elementos", entre certos grupos religiosos
que se valiam da adorao de plantas e animais e praticavam mancias,
adivinhaes por meio de algo designado pelo precedente. Essa era sua funo
original, j que a Inquisio, como a conhecemos, derivada da verso
medieval, mas, na verdade, existiram instituies anteriores dedicadas a tais
combates.
Um fator importante entender que, embora o termo heresia seja utilizado at
hoje, ele ficou ligado Idade Mdia e s aes da atual "Congregao para a
doutrina da f", o novo nome sob o qual a Santa Inquisio sobrevive at hoje. Acada dia que passa, os doutores da igreja reveem os atos de seus antepassados e
admitem que "a prtica inquisitorial estava errada ao punir com violncia e morte
de indivduos hereges", como foi declarado pelo papa Joo Paulo II no artigo
"Perdoai as nossas ofensas", na revistaVeja Especial,de 6 de abril de 2005.
O que no se pode deixar de admitir o fato de que a Inquisio foi e
considerada ainda como uma das instituies humanas que mais feriu os direitoshumanos, principalmente o da livre escolha religiosa.
As heresias
A palavra heresia vem do latimhaeresis,que, por sua vez, deriva de um termo
grego que significa basicamente escolha ou opo. Trata-se, portanto, de uma
linha de pensamento diferente ou contrria a um credo j estabelecido por meios
ortodoxos.
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O termo tambm usado para definir qualquer tipo de deturpao de sistemas
filosficos institudos, bem como alteraes observadas em ideologias polticas
ou at mesmo em movimentos artsticos. O fundador de uma heresia, mesmo que
no a considere como tal, passa a ser conhecido como heresiarca.
O historiador Jos D'Assuno Barros, que tambm musiclogo, coloca otermo herege como "algum, investido de poder eclesistico e institucional que
classificou sua prtica ou suas idias como destoantes e contrrias a uma
ortodoxia oficial que se autopostula como o caminho correto". claro que, para
quem no conhece, a associao entre heresia e religio, principalmente com a
catlica, quase imediata. A prpria ortodoxia religiosa define a heresia como
"desvio da verdade universal, de modo que mesmo se todos os seres humanos
acreditarem em um erro, ele no passar, por isso, a ser verdade", segundo
Barros.
Mas como surgiu esse termo? Pelos registros histricos, foi com os cristos, que
o usavam para nomear idias que vinham de encontro s suas crenas, que eram
catalogadas como "falsas doutrinas". Assim, terminou por ser adotado tanto pela
Igreja Catlica quanto pelas denominaes protestantes, j que ambas afirmam
que heresia uma doutrina contrria verdade que teria sido revelada por JesusCristo, ou seja, seria uma m interpretao da Bblia, dos profetas e at do
prprio Cristo, sem falar de uma deturpao dos conceitos aplicados quando uma
pessoa se torna sacerdote, o que representaria risco para o prprio magistrio.
Isso tudo calcado na prpria Bblia, que alerta em Glatas 5:20 sobre os perigos
da existncia de "idolatria, feitiaria, inimizades, porfias, emulaes, iras,
pelejas, dissenses, heresias".
A inquisio em O nome da rosa
No livroO nome da rosa, de Umberto Eco, o personagem principal, o monge
franciscano Guilherme (ou William) de Baskerville um ex-inquisidor que,
cansado de pactuar com as atrocidades da Inquisio, deixa o cargo. A ao sepassa durante uma srie de assassinatos que acontecem na abadia onde ocorrer
um debate sobre uma questo teolgica ligada filosofia da Igreja, um inquisidor
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real chamado Bernardo Gui (1261/1262-1331) chega para analisar a srie de
assassinatos.
O inquisidor descobre um despenseiro que se envolve com bruxaria para atrair
uma jovem camponesa para que faa sexo em troca de comida. Interessado em
impor o poder da Inquisio sobre os componentes da abadia, Bernardo Guiacusa outros personagens menores e os condena a serem queimados na fogueira.
Para corroborar seu veredito, ele pede para que Guilherme o confirme. E o
monge franciscano sabe o que acontece com quem contesta a opinio de um
inquisidor: ele prprio poderia ser acusado de compactuar com os supostos
herticos e, assim, se tornar um deles por associao.
As acusaes
O acusado na Inquisio era responsabilizado por uma "crise de f", pela qual
poderia, ou no, ter relao com fenmenos naturais como pestes, terremotos,
doenas e misria social. Ele era ento preso e entregue s autoridades estatais
para ser punido. As penas variavam de confisco de bens pena de morte na
fogueira. O uso do fogo foi o modo de punio mais famoso, embora outrosmeios fossem utilizados. Essas punies tinham um significado religioso, j que
o fogo era o smbolo da purificao e materializao da desobedincia a Deus,
ou seja, do pecado e ilustrao da imagem do inferno.
As punies com fogo tambm envolviam autores de livros polmicos. Em 1756,
em Londres, por exemplo, h o registro do que teria sido levado execuo um
Cavaleiro de Oliveira, na verdade o escritor portugus Francisco Xavier deOliveira (1702-1783): a publicao da obra Discours pathetque ou suget des
calamites, publicado naquela cidade. H duas verses para essa execuo: em
uma delas, o cavaleiro foi queimado com o livro suspenso ao pescoo como
herege convicto. Na segunda, o livro foi colocado em uma esttua do escritor e
ento queimada.
importante lembrar, entretanto, que os tribunais da Inquisio no eram
permanentes, e sim entravam em funcionamento em casos de heresia
comprovada e depois eram desativados. Quando houve a Reforma Protestante,
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no sculo XVI, foram institudos outros mtodos judicirios de combate
heresia. Neles o delator que apontava um herege garantia sua prpria f em
pblico e sua condio perante a sociedade. Basta lembrar que a caa s bruxas
teve origem em pases protestantes e no foi liderada pela Inquisio.
Outro ponto que deve ficar claro que a Inquisio apenas fazia as investigaese inquritos, deixando a aplicao da pena final para o poder secular. Aos
poucos, a partir do sculo XIX, os tribunais inquisitrios foram suprimidos pelos
estados europeus, embora fossem mantidos pelo Estado Pontifcio, hoje a cidade-
estado do Vaticano.
A partir de 1908, no pontificado de Pio X (1835-1914), a Inquisio ganhou a
nova denominao de Sacra Congregao do Santo Ofcio e, em 1965, quando
aconteceu o Concilio Vaticano II, assumiu o nome que tem hoje: Congregao
para a Doutrina da F.
Condenaes e punies
A condenao mxima imposta pela Igreja para aqueles que eram acusados de
heresia era a excomunho e, depois, a morte por tortura ou mesmo na fogueira.Mesmo assim, o condenado no era executado sem mais nem menos; era
necessrio passar pelo menos mais de um ano excomungado e ser formalmente
processado pela Igreja como tal. Pesquisadores afirmam que o processo
culminava, em geral, com a sentena da entrega do herege ao brao secular da
Igreja.
Mas como surge uma heresia? Desde Jesus, passando pelos apstolos, houve umesforo aparente e visvel para que o cristianismo se tornasse a religio unitria,
ou seja, que fosse a predominante. Historicamente falando, a primeira
manifestao nesse sentido foi a manuteno da unidade em torno da figura do
apstolo Pedro. O argumento se baseia, claro, no texto bblico, que afirma que
se h um s Deus, revelado em Jesus Cristo, que por sua vez fundou "Sua nica
Igreja" (como visto em Marcos 16:18) e que Jesus teria dito "Eu sou o Caminho,
a Verdade e a Vida", tudo isso leva a crer que no podem existir outros tipos de
verdades.
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Com o passar do tempo essas afirmaes comearam a ser contestadas e geraram
vrios desdobramentos, cises, rejeies da autoridade nica e terminaram por
proliferar nas mais diversas formas de religiosidade relacionadas com o
Cristianismo. As heresias seriam ento formas de religiosidade crist que
destoam das estabelecidas pelos apstolos, mrtires e primeiros cristos emgeral. No primeiro sculo da Era Crist os movimentos herticos iam contra as
idias propagadas por nomes consagrados da Igreja, que iam do prprio apstolo
Joo, j em idade avanada, at Clemente Romano ou So Clemente, quarto papa
da Igreja entre 88 e 97, Orgenes de Cesareia (telogo, 185-253), Incio de
Antiquia (bispo da Sria, 67-110), Policarpo de Esmirna (bispo daquela cidade,
70-160) e Irineu de Lyon (telogo e escritor, 130-202), entre outros.
O uso da palavra heresia no contexto cristo comeou com Irineu de Lyon em
sua obraContra Haereses(contra heresias) para descrever e, ao mesmo tempo,
desacreditar seus oponentes no comeo das atividades crists. Ele descreveu sua
prpria posio como sendo ortodoxa, que mais tarde, segundo algumas fontes,
seria o padro adotado pelos defensores catlicos. Mas como funciona o ponto
de vista hertico? Segundo os telogos, os herticos no percebem suas prprias
crenas como algo grave ou ofensivo para a tica em voga. Por exemplo,algumas correntes catlicas consideram o protestantismo como heresia, enquanto
outros no catlicos chamam o catolicismo de "a grande apostasia".
Para haver uma heresia, deve haver um sistema autoritrio de dogmas,
designados como ortodoxos, ou seja, que concorde com as leis que a Igreja
considera verdadeiras. O primeiro uso conhecido do termo em um contexto legal
foi em 380 d.C., no chamado Edito de Tessalnia, imposto pelo imperadorromano Teodsio, em 27 de fevereiro de 380. Veja-se abaixo trecho do
documento:
dito dos imperadores Graciano, Valentiniano (II) e Teodsio Augusto, ao povo
da cidade de Constantinopla. Queremos que todos os povos governados pela
administrao da nossa clemncia professem a religio que o divino apstolo
Pedro deu aos romanos, que at hoje foi pregada como a pregou ele prprio, e
que evidente que professam o pontfice Dmaso e o bispo de Alexandria,
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Pedro, homem de santidade apostlica. Isto , segundo a doutrina apostlica e a
doutrina evanglica cremos na divindade nica do Pai, do Filho e do Esprito
Santo sob o conceito de igual majestade e da piedosa Trindade. Ordenamos que
tenham o nome de cristos catlicos quem siga esta norma, enquanto os demais
os julgamos dementes e loucos sobre os quais pesar a infmia da heresia. Osseus locais de reunio no recebero o nome de igrejas e sero objeto, primeiro
da vingana divina, e depois sero castigados pela nossa prpria iniciativa que
adotaremos seguindo a vontade celestial. Dado o terceiro dia das Kalendas de
maro em Tessalnica, no quinto consulado de Graciano Augusto e primeiro de
Teodsio Augusto.
Antes da emisso desse dito, a Igreja no era apoiada por nenhum mecanismo
em particular que justificasse a viso de algo que ameaasse sua soberania. Com
esse documento, a diviso entre a Igreja crist e o estado romano se tornou tnue,
e uma das conseqncias foi o compartilhamento dos poderes de estado das
foras mantenedoras da ordem pertencentes s autoridades ligadas s duas
instituies.
Essa nova autoridade eclesistica deu Igreja o poder de pronunciar sentenasde morte sobre aqueles que julgava serem herticos. Por cerca de cinco anos
aps a oficializao do lado "criminoso" da heresia pelo imperador, foi
executado o primeiro hertico cristo, um bispo hispnico chamado Prisciliano
(340-385), fundador do priscilianismo e executado por oficiais romanos.
Em termos gerais, tratava-se de uma doutrina que incentivava a Igreja a
abandonar a opulncia e a riqueza para se reunir com os pobres. Condenava aescravido, atribua ampla liberdade e importncia para as mulheres e abria as
portas dos templos para elas assumirem seus papis como participantes ativos.
O primeiro texto de tal doutrina conhecido foi escrito por Egeria, uma monja
galega que viveu por volta do ano 381. Por anos, aps a Reforma Protestante, no
sculo XVI, as Igrejas daquele movimento tambm se dedicaram a executar
supostos hereges como podem atestar os julgamentos de bruxas na cidade norte-
americana de Salem, em Massachusetts.
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O ltimo hertico executado por uma sentena catlica foi Cayetano Ripoll
(1778-1826), um professor espanhol enforcado e acusado de no acreditar nos
dogmas catlicos. Foi a ltima vtima da inquisio espanhola.
Apesar da verdadeira devassa que os historiadores j fizeram em vrias fontes
conhecidas, ainda no possvel apontar com certeza o nmero de vtimasexecutadas pelos mandos e desmandos de vrias autoridades eclesisticas, mas
estima-se que chegue a alguns vrios milhares.
Para alguns, por causa da forte conotao negativa associada ao termo, a palavra
heresia passou a ser usada com menos freqncia nos dias modernos. H,
entretanto, algumas excees, como no caso de Rudolf Bultmann (1884-1976),
um telogo alemo que praticamente definiu a separao entre histria e f,
chamada dedemitologizao,definida como tentativa hermenutica de analisar o
significado real da linguagem mitolgica usada na Bblia, em especial no Novo
Testamento, ou nos ainda persistentes debates que envolvem as ordenaes de
mulheres e homossexuais.
As heresias em outras religies
claro que, para a maioria das pessoas esclarecidas, o que passa pela cabea
descobrir se a questo da heresia uma exclusividade catlica, ou melhor, crist,
ou se possvel encontrar tal conceito nas demais grandes religies. Para tanto,
vamos dar uma olhada em como tal conceito encarado pelos judeus e
muulmanos. No judasmo, o ortodoxismo possui alguns pontos de vista que
diferem dos princpios tradicionais de f. Os grupos mais ligados aotradicionalismo afirmam que todos os judeus que rejeitam o significado simples
das 13 Maimnides, corrente fundada por Moiss Maimnides, 1135/1137/1138-
1204, que contm muitos dos preceitos da f judaica, so considerados como
hereges. Esses princpios esto descritos conforme Roque Frangiotti:
Creio plenamente que D'us o Criador e guia de todos os seres, ou seja, que
s Ele fez, faz e far tudo.
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Creio plenamente que o Criador um e nico; que no existe unidade de
qualquer forma igual d'Ele; e que somente Ele nosso D'us, foi e ser.
Creio plenamente que o Criador incorpreo e que est isento de qualquer
propriedade antropomrfica.
Creio plenamente que o Criador foi o primeiro (nada existiu antes d'Ele) eque ser o ltimo (nada existir depois d'Ele).
Creio plenamente que o Criador o nico a quem apropriado rezar, e que
proibido dirigir preces a qualquer outra entidade.
Creio plenamente que todas as palavras dos profetas so verdadeiras.
Creio plenamente que a profecia de Moshe Rabeinu (Moiss) verdica, e
que ele foi o pai dos profetas, tanto dos que o precederam como dos que o
sucederam.
Creio plenamente que toda a Tor que agora possumos foi dada pelo
Criador a Moshe Rabeinu.
Creio plenamente que esta Tor no ser modificada e nem haver outra
outorgada pelo Criador.
Creio plenamente que o Criador conhece todos os atos e pensamentos dos
seres humanos, eis que est escrito; "Ele forma os coraes de todos e percebetodas as suas aes" (Tehilim 33:15).
Creio plenamente que o Criador recompensa aqueles que cumprem os Seus
mandamentos, e pune os que transgridem Suas leis.
Creio plenamente na vinda do Mashiach (Messias) e, embora ele possa
demorar, aguardo todos os dias a sua chegada.
Creio plenamente que haver a ressurreio dos mortos quando for avontade do Criador.
J no islamismo, os dois principais grupos religiosos, os sunis, considerados
como o maior ramo do Isl, j que em 2006 correspondiam a 84% do total de
fiis, e os shias ou xiitas, cerca de 15% do total, consideram-se mutuamente
como herticos.
Grupos como os ismaelenses, os hurufistas, os alauitas e mesmo os sufis tambm
j foram considerados por algumas correntes dentro de sua prpria religio como
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herticos. Embora o sufismo seja freqentemente aceito como vlido pelos xiitas
e por muitos sunitas, o recente movimento dos wahhabistas, seguidores do
wahhabismo, movimento religioso que foi criado na Arbia central em meados
do sculo XVIII por Muhammad bin Abd al Wahhab, os considera herticos.
As principais correntes hereges
Anabatistas - Nome que significa "rebatizadores". Cristos da chamada "ala
radical" dos protestantes, batizados em idade adulta, desconsiderando at ento o
batismo obrigatrio da Igreja Romana. Mesmo os que j tinham sido batizados
em criana recebiam o sacramento novamente, pois "o verdadeiro batismo s
tem valor quando as pessoas se convertem conscientemente a Cristo".
Paulicianos - Seguidores de Paulo da Samsata, bispo de Antioquia.
Acreditavam serem originrios dos Apstolos e que tinham seu incio a partir das
pregaes deles no primeiro sculo depois de Cristo. Pela falta de recursos que
comprovassem tal incio, foram detestados pelos Imperadores bizantinos que
defendiam o catolicismo.
Montanismo - Fundado por Montano, profeta asitico que viveu entre os sculos
II e III. Seu movimento via as revelaes profticas sem fundamentao bblica,
exegese ou interpretao slida. Suas interpretaes deixavam as pessoas
apreensivas e oprimidas, preocupando-se com a vinda do Esprito Santo e a
chegada do fim do mundo.
Ofismo - Doutrina surgida por volta do ano 100 e resultante de vrias seitas
surgidas entre o Egito e a Sria. Atribua grande importncia serpente citada no
Gnesis e a considerava como a portadora do conhecimento do Bem e do Mal e,
por isso, um importante smbolo da Gnose ou conhecimento.
Bogomilismo - O termo significa "Amado/Querido de Deus" no velho idioma
blgaro. Surgiu a partir do avano dos paulicianos (grupo com uma viso
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teolgica do cristianismo primitivo) para o Ocidente a partir do sculo VII.
Surgiu no antigo imprio blgaro que, na poca, se estendia da Ucrnia ao
Adritico.
Foi considerado como uma seita dualista datada do sculo X. Dizia-se a
"verdadeira e oculta Igreja Crist". Teria precipitado o surgimento do catarismoe era tradicionalmente reconhecido pelos inquisidores como "a tradio oculta
por trs do catarismo", conforme o j citado Joo Ribeiro Jnior.
Puritanismo - Concepo da f crist desenvolvida na Inglaterra por uma
comunidade de protestantes radicais depois da Reforma. Pretendia purificar a
Igreja Anglicana, ao retirar os resduos do Catolicismo, de modo a tornar sua
liturgia mais prxima do Calvinismo.
Monarquianismo - Srie de crenas que enfatizam a Unidade Absoluta de Deus.
A crena confiita com a doutrina da Trindade, que v em Deus uma unidade
composta pelo Pai, Filho e Esprito Santo. O adicionismo, uma de suas correntes,
diz que Deus um nico ser, superior a tudo e completamente indivisvel.
Assim, o Filho no foi coeterno com o Pai, mas sim revestido (ou adotado) deDeus para pr em prtica seus desgnios.
Maniquesmo - Fundada pelo profeta persa Mani ou Manes no sculo III, na
Prsia ou na Babilnia. Divide o mundo entre Bem, ou o Deus bom, e o Mal, ou
o Deus mal. A matria intrinsecamente m, por isso o esprito
intrinsecamente bom e, ao tomar um corpo fsico, deixa-se corromper.
Arianismo - Viso sustentada pelos seguidores de Arius, bispo de Alexandria nos
primeiros tempos da Igreja primitiva. Esse movimento negava a existncia da
consubstancialidade (ou seja, que possui a mesma substncia) entre Jesus e Deus.
O Cristo seria preexistente, uma criatura mais excelsa, que encarnara em Jesus
de Nazar. Este seria, por sua vez, um subordinado de Deus, e no o prprio.
rio afirmava que s existe um Deus e que Jesus seria apenas seu filho, e no o
prprio.
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Nestorianismo - Doutrina do sculo V que afirma que h em Jesus Cristo duas
pessoas distintas: uma humana e outra divina, completas de tal forma que
constituem dois entes independentes. Essa doutrina surgiu em Antiquia e
manteve forte influncia na Sria. sustentada ainda hoje por correntes ligadas
ao movimento Rosacruz e Gnose.
A Inquisio medieval
A verso medieval da Inquisio comeou suas atividades em 1184, na famosa
regio do Languedoc, no sul da Frana, lugar polmico por ser acusado de ser o
bero de movimentos herticos, como o dos ctaros ou albigenses. Os ctaros
acreditavam em dois deuses: um bom e espiritual e outro mau e fsico. Segundo
sua crena, Cristo teria sido enviado para salvar as almas boas, que iriam para o
cu, enquanto as ms voltariam por meio da reencarnao.
Isso fez com que os clrigos criassem uma Inquisio para avaliar a propagao
de tais idias em 1183, quando delegados papais descobriram essa vertente e a
consideraram heresia no Conclio de Verona, em 1184, com o nome de Tribunal
da Inquisio.Tal criao se deu por meio de duas bulas papais, assinadas por Gregrio IX em
abril de 1233. A partir de ento, a instituio julgou e condenou vrios
propagadores de heresias, mas tambm absolveu muitos, o que pouqussimo
divulgado. O texto seguinte parte da bula Licet ad capiendos, de 1233, que
marca o incio da Inquisio e dirigida aos dominicanos inquisidores. Vejamos
o que diz:
Onde quer que os ocorra pregar, estais facultados, se os pecadores persistem em
defender a heresia apesar das advertncias, a priv-los para sempre de seus
benefcios espirituais e proceder contra eles e todos os outros, sem apelao,
solicitando em caso necessrio a ajuda das autoridades seculares e vencendo sua
oposio, se isto for necessrio, por meio de censuras eclesisticas inapelveis.
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Vale lembrar que os dominicanos eram chamados originalmente de Ordem dos
Pregadores. Tm como objetivo pregar a mensagem de Jesus e a converso ao
cristianismo. Essa ordem foi fundada em Toulouse, na Frana, em 1216, por So
Domingos de Gusmo, um sacerdote espanhol originrio da Caleruega.
Os religiosos dessa ordem viviam em conventos prximos a grandes cidades erealizavam votos de pobreza, obedincia e castidade, o que os tornava religiosos
no monges. No toa que Humberto Eco escolheu Bernardo Gui, justamente
um dominicano, para caracterizar seu inquisidor impiedoso. Essa figura histrica
foi o bispo de Lodve, na regio do Languedoc, e considerado como um dos
escritores mais produtivos da poca.
A exemplo de muitos outros inquisidores, inclusive do polmico Savonarola, foi
poderoso, temido e respeitado dentro e fora do ambiente eclesistico por
defender seus ideais com ferocidade. Foi um dos que mais atacou os ctaros,
presidindo julgamentos entre 1307 e 1323.
Outra viso da Inquisio
Analisando os fatos, difcil pensar que algum se atreveria a defender aInquisio. Mesmo assim, o professor de filosofia Roman Konik, ligado
Faculdade de Filosofia da Universidade de Wroclaw, na Polnia, e autor do livro
Em Defesa da Santa Inquisioarrisca essa posio. Seu livro despertou muito
interesse, mas sofreu boicotes de livrarias, por causa da m fama que a
Inquisio tem at hoje.
Em entrevista concedida revista eletrnicaCatolicismo ele comentou sobre aobra de Umberto Eco:
Na mente do homem de hoje, h uma idia comum que considera o inquisidor
como um velho monge encapuzado com inclinaes sdicas, inflamado do
desejo de autoridade. O melhor exemplo disso a figura de Bernard Gui,
inquisidor de Toledo, descrito pelo conhecido medievalista italiano Umberto Eco
em seu livro O Nome da Rosa. Pior ainda a imagem apresentada no filme
realizado com base em tal obra.
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Bernard Gui, como figura histrica real, foi inquisidor de Toledo e durante 16
anos exerceu esse cargo. Julgou 913 pessoas, das quais apenas 42 ele entregou ao
tribunal civil como perigosos rebeldes (reincidentes, pedfilos, criminosos), o
que no significava absolutamente pena de morte para eles. Em muitos casos,
Gui indicava tratar-se de doena psquica, suspeio de heresia, desistindo deinterrogatrios.
Segundo a viso preconceituosa dos protestantes, certo que essas pessoas iriam
para a fogueira, ao contrrio da verdade histrica. E importante registrar que
escritores protestantes, pouco simpticos Inquisio, comearam a escrever a
histria dela de maneira desfavorvel, apresentando-a deformada. Tambm nas
expresses artsticas das pocas posteriores medieval verificou-se um reflexo
dessa viso caricatural. Mas basta analisar o mundo artstico medieval para
observar quadros que apresentam So Domingos convertendo os hereges, So
Bernardo de Claraval discutindo com eles, ou ento pinturas de inquisidores-
mrtires morrendo nas mos de hereges, por exemplo, o martrio de So Pedro de
Verona, ou de So Pedro de Arbus, assassinado na catedral de Zaragoza.
Exemplo de dio radical contra a Igreja e da manipulao a que me referi um
quadro no Museu Nacional de Budapeste, apresentando uma sala de torturas,intitulado no catlogo "Inquisio". S depois de muitos protestos de
historiadores, mostrando que o quadro apresentava cena de tortura em um
tribunal civil, que o ttulo foi mudado para "Sala de torturas". Lembremo-nos
de que foram as descries caricaturais de Diderot, Voltaire e at de Dostoivski
que formaram na mente do homem de hoje a viso da Inquisio como um
espectro. Os historiadores poloneses tambm no ficaram atrs dos historiadores"progressistas". Deparando diariamente com essa viso distorcida da Inquisio,
o homem comum inclinado a aceit-la como verdadeira.
Talvez a opinio do pesquisador seja a verdade. Afinal, h um grande nmero de
pesquisadores que insistem em afirmar que os inquisidores eram homens
esclarecidos e que tratavam os hereges como portadores de doenas mentais. O
suspeito de heresia, segundo os registros histricos, era tratado assim: o suspeito
no recebia os sacramentos necessrios e estabelecidos pelo catolicismo. Caso
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ele no se arrependesse de sua conduta, seria chamada a autoridade no religiosa,
principalmente em casos de agresso verbal ou fsica.
Se nem mesmo assim a pessoa se mostrasse arrependida, era considerada como
"antema", ou seja, reconhecida como passvel de excomunho. Alguns autores
vo mais longe e afirmam que o uso da tortura em processos inquisidores era umfato bastante restrito, embora no se saiba mais detalhes do quanto poderia ser
restrito. Ainda de acordo com essas pesquisas, a tortura era autorizada em casos
em que no houvesse provas confiveis, testemunhas fidedignas ou quando o
acusado j tivesse antecedentes como m fama, maus costumes ou tentativas de
fuga. Assim, o Concilio de Viena indicou que os inquisidores recorressem
tortura apenas em caso de aprovao pelo bispo diocesano e por uma comisso
julgadora que deveria analisar cada caso.
H tambm quem afirme que a tortura da Inquisio era mais branda que a
aplicada pelos poderes civis e que violncia como amputao de membros no
era permitida sob nenhuma circunstncia. Vale lembrar que a aplicao da
tortura no era, de modo algum, uniforme em todos os tribunais inquisitrios e
variava entre as cidades, e mesmo entre os pases onde atuavam.
Alguns acessrios mais comumente usados pelos inquisidores para
obter a confisso dos acusados
Cadeira inquisitria: Com at 1.600 pontas afiadas de ferro ou madeira, sobre as
quais as vtimas, completamente nuas, se sentavam para serem interrogadas. Por
vezes, a fim de aumentar o sofrimento, o assento de ferro era aquecido.
Esmagador de joelhos, polegares e mos: Cada um desses trs instrumentos tinha
funes especficas, conforme os nomes indicam. Eram, no geral, prensas que
esmagavam as ditas partes do corpo.
Esmaga seios: O instrumento preferido no sculo XV para torturar as mulheresacusadas de bruxaria. O seio era envolto por um ferro retangular aquecido ao
mximo. Eram esmagados com movimentos bruscos e circulares.
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Despertador: Uma espcie de cavalete de madeira ou de ferro, com um vrtice
pontiagudo. Os acusados eram puxados por cordas ligadas a roldanas e
suspensos at certa altura. Depois eram rapidamente lanados sobre o
despertador de forma que o nus e as partes sexuais tocassem a ponta da
pirmide. Dependendo da maneira como o instrumento estivesse afiado, as partesntimas arrebentavam, entre elas, os testculos, a vagina e o cccix.
Roda de despedaamento: O acusado era colocado de costas sobre uma roda de
ferro, sob a qual havia brasas. Ento a roda era girada lentamente, o que causava
uma morte lenta depois de longas horas de dor e gerava queimaduras de alto
grau. H uma segunda verso onde a roda usada para dilacerar o corpo dos
condenados. Em vez de brasas, eram usados instrumentos pontiagudos.
Mesa de eviscerao: Considerado um dos mais cruis instrumentos. Era usado
para extrair de maneira lenta e mecnica as vsceras dos condenados. Depois de
abrir a regio abdominal, as vsceras eram puxadas uma a uma por ganchos
pequenos que eram presos a uma roldana que, por sua vez, era girada pelo
carrasco.
Pndulo: Usado para deslocar os ombros e preparar para outros tipos de tortura.
A vtima era levantada por cordas presas aos pulsos e depois, bruscamente, solta
para depois ser levantada novamente, antes do corpo chegar ao solo.
Cavalete: Instrumento usado na inquisio portuguesa. A vtima era deitada decostas numa mesa que continha material cortante. Por meio de um funil colocado
na boca, o carrasco enchia seu estmago com gua. Depois ele pulava em cima
da barriga do ru, forando a sada do lquido. Isso era repetido at que o culpado
morresse.
Donzela de ferro: Tambm chamado de Virgem de Nuremberg, famoso
instrumento imortalizado pelo nome da banda deheavy metal,Iron Maiden. Era
uma espcie de caixo com o tamanho e a forma de uma mulher. A vtima era
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colocada no interior, onde havia lminas dispostas de tal maneira que, uma vez
que a porta era fechada, a presso fazia com que perfurassem o corpo,
provocando sangramento e morte lenta.
Manjedoura: Uma caixa longa em que a vtima era posta de costas e tinha asmos e os ps amarrados. O corpo era esticado at que os ossos estalassem ou as
juntas fossem desmembradas.
Poder e f
Como a Inquisio, que foi uma das principais fornecedoras de documentos que
compem os Arquivos Secretos, conseguiu reunir tantas informaes?
O poder temporal foi responsvel por esse resultado, uma vez que por meio dos
processos inquisitrios muitas informaes chegaram aos Arquivos Secretos. No
sculo XV, reinos como os de Castela e Arago solicitaram a permisso para
instalar suas prprias verses da Inquisio, visando obter uma uniformidade de
viso entre seus reinos em unificao.
No caso dos famosos reis catlicos, Fernando e Isabel, foi com seu casamentoque o reino conquistou as terras dos muulmanos na Pennsula Ibrica e no dos
judeus sefaraditas, designao dos descendentes de judeus originrios de
Portugal e Espanha, foi obtida a unidade nacional que antes no existia.
O chamado Tribunal do Santo Ofcio, o outro nome da Inquisio, cuidou dos
casos de converso de judeus e muulmanos que passaram a ser parte importante
dos reinos que buscavam sua unificao. De fato, alguns se viram obrigados arenegar sua religio original e aderir ao cristianismo para no abandonar os
pases em que j estavam instalados. Essa a origem do termo "cristo-novo".
Os pesquisadores j descobriram que, em muitos casos, apesar da declarao de
converso, muitos judeus ainda praticavam seus ritos normais em segredo dentro
do lar, chamados de cripto-judeus, o que fatalmente gerou uma onda de
acusaes de pessoas que buscavam as boas graas dos inquisidores.
Entretanto, nem todos passaram a exercer sua religio original clandestinamente.
Alguns, de fato, se convertiam. E como ocorreu a ligao entre uma instituio
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religiosa e o poder temporal? Desde cedo, o poder dos reis se apossou da
Inquisio como forma de obter seus objetivos econmicos, afastando-se aos
poucos de seu objetivo religioso. No caso espanhol, por exemplo, a Inquisio
espanhola, que j chegou a ser ridicularizada em filmes e programas de TV por
comediantes como o judeu Mel Brooks e os britnicos do Monty Phyton,empreendeu uma gigantesca campanha contra os inimigos dos reis catlicos.
Ao colocar o poder da f junto ao da lei, ela se tornou de fato um dos piores
pesadelos da humanidade. O assunto gerou tanta polmica e curiosidade que at
hoje so produzidos documentrios sobre o assunto. Em novembro de 1994, a
BBC de Londres apresentou o documentrioThe Myth of the Spanish Inquisition
(O mito da inquisio espanhola), que se baseava em informaes retiradas de
"arquivos fechados", ou seja, dos Arquivos Secretos.
Segundo o programa, "a inquisio espanhola, tida como a mais cruel e violenta,
teve, na verdade, sua imagem distorcida por protestantes que queriam minar o
poder da maior potncia mundial na poca: a Espanha". O programa ainda fala
que cada processo inquisitorial foi registrado durante os 350 anos em que a
Inquisio espanhola esteve em atividade e, segundo o professor especialista
Henry Kamen, os registros so bastante detalhados e trazem uma viso "muitodiferente da que estava cristalizada na mente dos historiadores".
O importante para nossa explanao saber que a Inquisio no floresceu
apenas na Espanha. Em pases como Itlia e Portugal tambm foram instalados
tribunais com as mesmas funes. Em Portugal, porm, o papa teria visto os
abusos cometidos pelo ramo espanhol e recusado uma permisso, o que teria
feito com que os regentes portugueses ameaassem com a criao de umainquisio rgia, pois, segundo eles, era algo urgente para o reino. Isso tudo
porque os portugueses no queriam perder terreno e influncia para seus rivais
espanhis.
Assim, em 1249, implantou-se no ento reino de Arago a primeira Inquisio
estatal. Tempos depois, j na Idade Moderna, com a unio dos reinos de Arago
e Castela, assumiria a designao de Inquisio Espanhola, instituio sob
controle direto da monarquia hispnica, que estendeu depois sua atuao para a
Amrica. A Inquisio portuguesa comeou suas atividades em 1536 e esteve em
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funcionamento at 1821. Em Roma, na Itlia, a Congregao da Sacra, Romana
e Universal Inquisio do Santo Ofcio esteve em plena atividade at 1965.
Captulo 3
Os Ctaros e o Segredo do Santo Graal
Os principais acusados de levar a Igreja Catlica criao da Inquisio foram
os ctaros. Embora at hoje pesquisadores e historiadores discutam as
verdadeiras intenes da existncia dessa seita, difcil no prestar ateno aos
seus verdadeiros intentos.
A fascinante seita dos ctaros foi a principal causa da primeira e nica cruzada
de cristos contra cristos. Na poca da Cruzada Albigense, entre 1209 e 1244, o
ponto de vista maniquesta desse grupo levou os catlicos mais ortodoxos a
afirmar a unicidade de Deus. Portanto, o fato de acreditar em dois deuses, como
os ctaros faziam, seria uma heresia. A diferena entre o comportamento de
Deus no Antigo Testamento e no Novo Testamento no primeiro era uma
entidade brava e rancorosa e no outro se torna uma entidade benvola e
condescendente dava bases para que a crena crescesse firme e forte.Os dirigentes da Igreja comearam uma perseguio implacvel aos adeptos
daquele movimento, a ponto de invadir cidades do sul da Frana e matar sua
populao na totalidade.
Quem eram os ctaros
A palavra ctaro vem do gregokatars,que significa "puro". Esse grupo tambm
ficou conhecido comoalbigense,pois se concentrou mais na cidade de Albi, tida
como um dos grandes centros de influncia hertica no sul da Frana.
Os ctaros floresceram no sculo XII, um perodo em que o contato entre Oriente
e Ocidente era grande, por causa das cruzadas e do constante fluxo de pessoas
entre a Europa e a Terra Santa. Isso propiciou que muitas idias e filosofiasfossem trazidas de terras distantes junto com suas mercadorias e ganhassem
adeptos europeus.
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No sculo XII, as pessoas viam a decadncia do clero. A Igreja era uma potncia,
com seus padres e bispos vivendo no luxo e perdoando pecados em troca de
dinheiro. Esse era o clima ideal para o surgimento de uma seita que se enraizou
primeiramente no norte da Itlia, graas aos intercmbios culturais entre Veneza
e o mundo bizantino. De l se espalhou para regies como Milo, Lombardia eFlorena, e depois para outros pases como Alemanha (onde apareceu pela
primeira vez a palavra ctaro, em 1163), Inglaterra (onde so chamados de
lolardos) Flandres e sul da Frana.
O medo das represlias da Igreja fez com que os ctaros mantivessem seu credo
em silncio. Porm, a popularizao do movimento atraiu tanta gente que seus
seguidores passaram a agir abertamente, j que dispunham da proteo de
senhores feudais.
No demorou muito para o catarismo e para outro movimento ligeiramente
semelhante, chamado de valdensianismo, criado em Lion por Pedro Valdo, em
1176, se tornassem as religies predominantes do Languedoc.
Mas o que os tornava to perigosos para a Igreja? O principal motivo foi o
conflito de suas crenas, que iam de encontro s de Roma. Por exemplo,
enquanto os catlicos viam a salvao obtida por meio do sofrimento fsico deJesus, para os ctaros a redeno no vinha de Sua morte, mas sim de Sua vida.
Para os ctaros, o mundo fsico imperfeito, portanto no poderia ser criao de
um Deus perfeito. Rejeitavam toda a viso bblica da criao, por isso chegavam,
por extenso, a rejeitar todo o Antigo Testamento.
De acordo com Joo Ribeiro Jnior, em Pequena histria das heresias, eles
chegaram a reescrever o Novo Testamento e elaborar uma mitologia inteira, afim de substituir o Antigo Testamento. Para os ctaros, a humanidade tinha sido
moldada pelo demnio. Para um ctaro, para alcanar a salvao, era necessrio
conhecer o verdadeiro destino e origem da humanidade e s poderia atingir esse
verdadeiro conhecimento por meio da renncia do mundo satnico da carne,
levando uma vida de abstinncia e pobreza.
Tomemos algumas definies encontradas no livro de Stephen O'shea,A heresia
perfeita. Para os ctaros, o homem, que foi criado por Deus, o lado bom,
prisioneiro da matria. Esta, que foi criada por Sat, identificado como Jav, est
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presa ao mundo. O dualismo, herdado do maniquesmo, a luta da carne contra o
esprito. Assim, para nos salvar, Jesus, que seria um anjo, teria se revestido de
um "corpo aparente", algo ilusrio, para que pudesse nos transmitir a maneira de
obter essa libertao.
A salvao, nesse caso, seria "a libertao das parcelas de luz perdidas nas trevasdo corpo". Acreditavam na reencarnao: se algum falhasse nesta vida teria
uma prxima chance de conseguir seu intento. A cruz de Cristo, para eles, era
um smbolo falso, pois no teria havido uma morte real (fsica), j que Jesus era
um ser espiritual.
Seu servio eclesistico era composto de uma leitura do evangelho, um breve
sermo, uma bno e a Orao do Senhor. Esse servio podia ser feito em
qualquer lugar. Essa abordagem simples da liturgia teria, segundo alguns
estudiosos, antecipado a simplicidade de seitas protestantes de pocas
posteriores.
Maniquesmo: a origem do catarismo
Uma das doutrinas que deu origem ao catarismo foi o maniquesmo. Omaniquesmo uma religio de origem persa, que deve seu nome ao lendrio
Mans, ou Manion Manique (215-276), da Babilnia, que teria vivido nos
primeiros sculos da nossa era, talvez no sculo III.
Mans, que se dizia "filho da luz", seguia os ensinamentos de Zoroastro e
defendia uma reforma religiosa que procurasse a transcendncia e a libertao
das iluses da vida terrena e corprea. Tinha um pensamento dualista, ou seja,para ele o mundo material era ruim, enquanto o espiritual era o bom. So dois
reinos: o da luz, dominado por Deus, identificado como Ormuzde ou Ahura
Mazda, e o das trevas, de domnio de Sat, Ahrim ou Anr Mainiu.
O ser humano, preso por Sat, deveria lutar sem descanso para se libertar das
trevas e readquirir a luz. Sua libertao s poderia acontecer mediante uma vida
austera, passando por trs selos ou modificaes: o selo da boca (jejum), o damo (absteno do trabalho) e o do ventre (castidade).
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O maniquesmo conquistou a ateno de homens como Santo Agostinho. Um de
seus mais famosos discpulos foi Madek, do sculo VI, que afirmava que todo o
mal do mundo era causado pelo desejo de posse de fortuna e mulheres. Por isso,
pregava que esses mesmos itens deviam ser de posse comum, ou seja, de
usufruto de todos. Essa doutrina se estendeu da frica do Norte at a China e,embora fosse combatida tanto pela Igreja quanto pelos governos dos pases onde
entrava, se prolongou at a Idade Mdia, quando ressurgiu com os ctaros.
Organizao da Igreja ctara
Sabe-se pouco sobre o modo como os ctaros se organizavam. O que chegou at
ns d uma idia vaga, mas consistente. Tinham duas classes ou graus. A
primeira, que englobava os leigos, era conhecida com o nome de crentes ou
auditores. A segunda era composta pelos perfeitos ou eleitos, que enfrentavam
um perodo de prova de dois anos.
Os crentes tinham regras para fazer seu jejum e no podiam comer carne, ovos
ou leite. A principal obrigao dessa casta era adorar e alimentar os perfeitos. Os
crentes jamais poderiam aspirar ascender casta dos perfeitos, considerados dealto nvel.
No leito de morte, podiam receber oconsolamentumou batismo espiritual, que
combinava caractersticas de batismo, confirmao e ordenao. Caso no
morressem, eram colocados em regime de fome.
Os perfeitos tornavam-se membros dessa casta depois do perodo mencionado,
no qual renunciavam a todos os bens terrenos e viviam comunalmente comoutros da mesma classe. Evitavam as tentaes da carne isolando-se
completamente do convvio com o sexo oposto, alm de fazer voto para nunca
dormirem nus.
Eram completamente contra a unio sexual, pois perpetuava a vida e aprisionava
mais um esprito no mundo esprio material. Praticavam o jejum absoluto trs
vezes por ano, condenavam o servio militar e tinham o suicdio como ideal de
santidade, sendo sua forma mais perfeita a endura, onde passavam fome at
morrer.
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Uma pessoa podia ingressar na igreja catara por meio de dois ritos de iniciao.
O primeiro era aconveneza,palavra de origem ocitnia, a lngua dos ctaros, que
significa acordo ou pacto, um acordo por meio do qual o crente era consolado na
hora da morte mesmo que no estivesse consciente e em condies de recitar o
Pai-Nosso em voz alta.O segundo era oconsolamentum,j citado, feito de forma espiritual, nunca com
gua que, como qualquer coisa material, maldita. Era necessrio passar por este
para se tornar um perfeito. Acontecia em duas partes: o servitium era uma
confisso geral feita pela assembleia; opater nosterera uma cerimnia em que o
candidato se prostrava diante do bispo-chefe e rogava para que este o abenoasse
e por ele intercedesse junto a Deus enquanto renunciava Igreja romana e cruz
traada na cabea na hora do batismo.
Essa cerimnia terminava com a troca de beijos entre os presentes, chamada de
paz. Havia ainda dois outros sacramentos conhecidos: apenitnciae aquebra do
po, uma espcie de comunho, j que no acreditavam na material
transubstanciao.
Cada igreja ctara tinha um bispo-chefe, que era auxiliado por dois perfeitos,
identificados como filius maior e filius minor, que tambm recebiam adenominao de bispos. Quando o chefe morria, o cargo era automaticamente
passado para ofiluis maior.
Aslendas doSanto Graal
Os ctaros colecionaram, ao longo dos anos, muitas lendas que, segundoalgumas fontes, esto registradas em documentos dos Arquivos Secretos do
Vaticano. Pela mitologia dos caadores de tesouros, o Santo
Graal estar ligado a dois grupos religiosos que tm sua existncia comprovada
historicamente: os cavaleiros templrios e os ctaros ou albigenses.
Em muitas das histrias contadas, os ctaros figuram como o grupo que possui o
segredo da localizao do Santo Graal e de outro Santo Sudrio, que no o
famoso de Turim. Isso despertou a imaginao de caadores de tesouros com o
passar dos anos.
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Os templrios so conhecidos por terem supostamente passado muitos anos
acampados no Monte do Templo, em Jerusalm, e terem usado os estbulos de
Salomo para fazer escavaes. Eles teriam encontrado algo valioso sob as
runas. Alguns escritores acreditam que eles teriam achado o Santo Graal, e
outros creem que foi a Arca da Aliana. H tambm outras suposies.De tudo o que se especulou sobre a posse de tesouros pelos templrios, o fato
que jamais foram encontrados, e nunca se soube de qualquer registro histrico
que comprovasse sua existncia.
Os ctaros tambm eram tidos como guardies e protetores de tesouros, mas isso
varia de acordo com a verso da lenda que se propaga. Na verdade, o Santo
Graal foi um dos supostos tesouros em seu poder.
Fontes histricas francesas sugerem, sem nenhuma prova, que o clice de Cristo
passou das mos dos templrios para as dos ctaros e que foi levado para um
local desconhecido quando houve o cerco fortaleza de Montsgur, em 1224.
No preciso ser historiador para ver que a data desse acontecimento e a da
queda de Acre no batem, pois o primeiro, acontecido por volta de 1291, seria
posterior ao segundo.
Mas o que sabemos, hoje em dia, sobre os ctaros? Os arquivos da prpria seitaforam queimados durante o processo da Igreja Catlica contra eles. As
informaes que temos vm dos processos catlicos contra os ctaros,
registrados pela Inquisio que, por seu posicionamento ante os condenados, so
claramente inclinados a distorcer as informaes l contidas.
Foram esses processos que erradicaram os ctaros da regio do sul da Frana
conhecida como Languedoc por meio de uma cruzada, criada e orientada pelopapa Inocncio III. O fascnio de suas doutrinas, entretanto, chegou at os dias
de hoje e gerou movimentos que esto em plena atividade na mesma regio da
Frana.
Nos Arquivos Secretos h alguns documentos fascinantes a esse respeito, como o
Pergaminho de Chinon, que absolve os Cavaleiros Templrios da acusao de
heresia. Porm, at onde se sabe, no foi encontrado, ou melhor, divulgado, nada
que tenha absolvido os ctaros.
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O Santo Graal nos romances
Dan Brown se aproveitou das vrias lendas e da fascinao dos leitores sobre os
histricos e trgicos personagens ctaros e templrios para se valer dos contos
em que os ltimos teriam retirado o tesouro, seja ele Graal, a Arca da Aliana,seja outro qualquer, quando da queda da cidade de So Joo de Acre, na
Palestina, capital dos cruzados por um sculo, aps a perda de Jerusalm nas
mos dos muulmanos, em 1291.
ACruzada Albigense
A Igreja Catlica tentou conter a expanso ctara. Comeou enviando misses de
catequizao formadas por monges cistercianos, a mesma Ordem de Bernardo de
Clairvaux, um dos maiores entusiastas dos templrios e autor das regras que
ditavam o comportamento dos monges cavaleiros.
As converses foram poucas, e os monges, apesar do esforo, foram recebidos
com vaias nas ruas de Toulouse. A coisa comeou a piorar quando um escudeiro
do conde Raymond VI de Toulouse, seguidor ctaro, matou um enviado do papaInocncio III cidade.
Diz-se que o acontecimento enraiveceu tanto o pontfice que ele no falou
durante dois dias. Depois, declarou que os ctaros eram "piores que os
sarracenos" e convocou uma cruzada para varrer a heresia de uma vez por todas.
Muitos cavaleiros franceses, movidos pelos mais diversos motivos, responderam
ao apelo do papa, formando, assim, a primeira cruzada contra um inimigo queestava na prpria Europa.
Alm da salvao prometida a quem entrasse no empreendimento por no mnimo
40 dias, era permitido que os participantes contassem com os despojos do
territrio conquistado.
O j citado autor O'Shea relata que 20 mil cavaleiros que lideravam um enorme
exrcito iniciaram a cruzada albigense em 1209. A primeira cidade tomada foiBeziers, e quase todos os habitantes, incluindo catlicos, foram massacrados. Ao
perguntar ao abade de Citeaux, representante papal, como distinguir os catlicos
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dos ctaros, este teria respondido: "Matem-nos a todos. Deus se encarregar dos
seus". O mesmo cenrio se repetiu em Carcassone, prximo a Rennes-le-
Chateau. Em Herauld 150 ctaros se atiraram voluntariamente a uma fogueira
para no se renderem.
Apesar das aparncias favorveis aos exrcitos papais, a batalha contra osctaros durou quase 40 anos at o cerco final. Havia clulas de fiis que
conseguiram sobreviver por mais meio sculo. Milhares de perfeitos, levados
escolha entre a converso ao catolicismo e a morte, logo se prontificavam a se
sacrificar, mostrando tendncias para o martrio.
Muitos morreram de fome e acorrentados s paredes de calabouos, outros
queimados publicamente em grandes fogueiras. Houve os que apelaram para a j
descritaendura,se suicidando pelo jejum.
Apenas em 1224, depois de um cerco que durou dez meses, caiu a fortaleza de
Montsgur, nos Pirineus, ltimo reduto de ctaros. Suas runas podem ser vistas
at hoje em Arieg, ao sul da cidade de Lovelanet. Localizada no alto de um
penhasco escarpado de 1.207 metros de altura, mais de duzentos ctaros, entre
homens e mulheres, dos quais faziam parte 50 perfeitos, desceram a montanha
"cantando calmamente at grandes piras, onde morreram queimados. O local conhecido hoje em dia como Campo dos Queimados.
Os ctaros que conseguiram fugir da Frana foram para a Itlia. Porm, foram
descobertos pela Inquisio, j instalada na maioria dos pases europeus de
ento. Pouco depois, em 1299, Pedro Autier, um perfeito, regressou ao sul da
Frana e, com o apoio do povo, comeou a reconstituir vrias comunidades
ctaras. Novamente a Inquisio entrou em ao, capturando e executando PedroAutier em 1311.
Como a igreja ctara no estava completamente reconstituda, terminou por se
extinguir, pois no contava mais nem com o apoio da aristocracia, agora
decadente na regio. Na Itlia, nos montes Apeninos e no Alpes da Lombardia,
os ctaros resistiram at por volta de 1400, quando desapareceram.
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Os tesouros e os neoctaros
Fontes acadmicas dizem que, pouco antes do cerco final, foi erguida uma trgua
para que os ctaros pudessem se preparar para seu destino. Assim, um grupo de
ctaros (algumas verses dizem que seriam apenas quatro) teria descido asenormes muralhas de Montsgur para transportar seu fabuloso tesouro.
Esses quatro, segundo relatos da Inquisio, fugiram para as montanhas levando
consigo "certos objetos". A lenda complementa: quando o Graal estava
escondido em lugar seguro, os ctaros fizeram seu sacrifcio final.
Para o historiador brasileiro Joo Ribeiro Jnior, o Santo Graal poderia estar
entre o tesouro ctaro. H quem diga, como o historiador Andrew Sinclair, que o
Graal pode ter sado da fortaleza ctara para ir parar nos subterrneos da Capela
Rosslyn, na Esccia. H outros autores que afirmam que o Graal pode estar em
qualquer lugar do Languedoc, inclusive em Rennes-le-Chateau.
Seja como for, ningum jamais encontrou nada que fosse nem remotamente
similar ao Graal, apesar de localidades to distantes entre si como o Pas de
Gales, a Inglaterra, a Itlia e certas cidades da Frana moderna apresentarem
hoje candidatos ao ttulo de "verdadeiro Graal".Enquanto isso, nos dias de hoje cresce e floresce de maneira discreta o chamado
movimento neoctaro no mesmo Languedoc que viu o martrio dos ctaros
originais. O escritor portugus Bernardo Sanchez da Motta conta sobre o
reaparecimento ctaro:
verdade que a tradio ctara permanece viva no Languedoc, pelo menos deforma indireta, porque renasceu um interesse pelo tema durante o sculo XIX
com Jules Doinel. Penso que o ideal ctaro ainda est muito ativo no Languedoc,
tambm porque alguma documentao chegou aos nossos dias. A biblioteca de
Orleans est repleta de documentos ctaros.
Bernardo Motta conta em seu livro Do enigma de Rennes-le-Chateau ao
Priorado de Sioum pouco sobre Jules Doinel. Nascido em 1842, em Moulins,
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no Allier, esse o principal nome ligado a um movimento neoctaro surgido no
final do sculo XIX na Frana.
Sua carreira de arquivista e palegrafo se iniciou nos Archives du Cantal, e
posteriormente naBiblioteca de Loiret.Foi nesta ltima que encontrou algo que
mudou sua vida: uma carta com a assinatura de um chanceler episcopal, de nomeEtienne, queimado em 1022, em Orlans, por heresia. Essa carta apresentou a
Doinel o grupo sectrio do qual o chanceler fazia parte: uma seita de
"popelicanos", composta por homens e mulheres de forma indistinta,
estabelecida na diocese de Orleans no sculo XI.
Doinel descobriu que as reunies da seita aconteciam em Orlans e l encontrou
uma mulher eslava vinda da pennsula itlica para participar nos encontros,
possivelmente uma "bogomil", nome pelo qual so conhecidos os ctaros
eslavos. Motta ainda relata que Doinel obteve vrias informaes sobre o que
acontecia nessas reunies, que, segundo os documentos histricos, se iniciavam
"com todos os participantes entoando cantos com uma vela acesa na mo.
Depois, um animal, que deveria representar uma divindade, entrava na sala e
colocava-se no meio da assembleia. Era o sinal para que cada um escolhesse um
parceiro do sexo oposto e se unisse com ele".Das crianas nascidas desses encontros, uma era escolhida para ser "purificada
pelo fogo" palavra bem comportada para queimada em cerimnia. De suas cinzas
era feita uma mistura usada para administrar extrema-uno. Um dos membros
da seita, horrorizado com os procedimentos, denunciou-a a um cavaleiro, de
nome Arefast, que comunicou a situao ao rei.
Em 25 de dezembro de 1022, os hereges foram presos e chamados perante oSnodo, na catedral de Orlans. Trs dias depois, treze dos hereges foram
queimados. Apesar desses fatos, Doinel se interessou pela histria dos
popelicanos e mergulhou nas pesquisas para levantar as crenas ctaras, embora
estes no fossem, em si, ctaros e acreditassem em um tipo de dualidade.
Em 1189, Doinel criou uma igreja neognstica, da qual foi, durante muitos anos,
o patriarca, com o nome adotado de Valentino II e os ttulos de Bispo de
Montsgur. Em 1890, ele reorganizou a igreja, declarou aquele ano como o "ano