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ORIGENS DAS POÉTICAS PICTÓRICAS DE MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA E ARPAD SZENES ORIGINS OF THE PICTORIAL POETICS OF MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA AND ARPAD SZENES Milena Guerson Lamoia / UFT RESUMO Este texto aborda fundamentos básicos sobre vida e obra de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, artistas representantes da moderna Escola de Paris e conhecidos, no contexto da arte brasileira, por terem vivido como refugiados no Rio de Janeiro, no momento da 2ª Guerra Mundial. Parte de suas trajetórias é aqui recontada tendo o espaço do ateliê como recorte para a abordagem. Suas respectivas poéticas pictóricas são recuperadas e colocadas em analogia, buscando-se demonstrar tanto as singularidades quanto as trocas oriundas de um compartilhamento na vida e na arte. PALAVRAS-CHAVE Pintura; Vieira da Silva; Arpad Szenes; Ateliê; Impermanências. ABSTRACT This text approaches basic fundaments about life and work of Maria Helena Vieira da Silva and Arpad Szenes, artists representing the modern School of Paris and known, in the context of brazilian art, for having lived as refugees in Rio de Janeiro during the Second World War. Part of their trajectories is recounted here, having the space of the studio as a cut for the approach. Their respective pictorial poetics are recovered and placed in analogy, seeking to demonstrate both the singularities and the exchanges that came from sharing in life and in art. KEYWORDS Painting; Vieira da Silva; Arpad Szenes; Studio; Impermanences.

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ORIGENS DAS POÉTICAS PICTÓRICAS DE MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA E ARPAD SZENES

ORIGINS OF THE PICTORIAL POETICS OF MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA

AND ARPAD SZENES

Milena Guerson Lamoia / UFT

RESUMO Este texto aborda fundamentos básicos sobre vida e obra de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, artistas representantes da moderna Escola de Paris e conhecidos, no contexto da arte brasileira, por terem vivido como refugiados no Rio de Janeiro, no momento da 2ª Guerra Mundial. Parte de suas trajetórias é aqui recontada tendo o espaço do ateliê como recorte para a abordagem. Suas respectivas poéticas pictóricas são recuperadas e colocadas em analogia, buscando-se demonstrar tanto as singularidades quanto as trocas oriundas de um compartilhamento na vida e na arte. PALAVRAS-CHAVE Pintura; Vieira da Silva; Arpad Szenes; Ateliê; Impermanências. ABSTRACT This text approaches basic fundaments about life and work of Maria Helena Vieira da Silva and Arpad Szenes, artists representing the modern School of Paris and known, in the context of brazilian art, for having lived as refugees in Rio de Janeiro during the Second World War. Part of their trajectories is recounted here, having the space of the studio as a cut for the approach. Their respective pictorial poetics are recovered and placed in analogy, seeking to demonstrate both the singularities and the exchanges that came from sharing in life and in art. KEYWORDS Painting; Vieira da Silva; Arpad Szenes; Studio; Impermanences.

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LAMOIA, Milena Guerson. Origens das poéticas pictóricas de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2764-2781.

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Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), hoje reconhecida pela crítica de arte como

um grande expoente da pintura portuguesa – e internacional –, deixa Lisboa em

1928 para complementar sua formação artística em Paris. É na envolvente vivência

que assinala a capital francesa como centro mundial da Arte Moderna, no convívio

com os estudos na Académie de la Grande Chaumière, que conhece Arpad Szenes

(1897-1985), judeu húngaro com quem se casa em 1930. Esse é o marco de uma

parceria muito bem estabelecida nos terrenos da vida e da arte, o marco do encontro

entre dois artistas em um ateliê em Paris, na Villa des Camélias, desde 1930, e a

partir de 1938, no Boulevard Saint-Jacques, em Montparnasse – que é, à época, “o

bairro dos pintores e o coração da Paris artística”, conforme a definição de Frédéric

Gaussen (2006, p. 120).

Todavia, a escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís (1978, p. 45-49), amiga de

Vieira e Szenes, lembra que em fins da década de 1930 Paris já não parecia mais

“um lugar propício à iniciação e ao trabalho do artista”. Por isso o casal reside

durante uma temporada em Portugal, entre 1935 e 1936, instala-se em

Montparnasse, em 1938, mas logo sofre mais diretamente as consequências do

início da 2ª Guerra Mundial, em 1939.

Ante a recusa do governo português de um visto para permanência, em 1939, optam

pelo exílio no Brasil, a partir de junho de 1940. Nesse âmbito, importa destacar o

espaço de moradia e trabalho que o casal mantinha em Portugal (Figura 1).

Conhecido como casa-ateliê do Alto de São Francisco, o local se tornou um marco

da perda da nacionalidade dos dois, uma vez que o asilo lhes é negado: “por ali, o

casal viveu a angústia de se ter tornado apátrida e despediu-se da Europa a

caminho do Brasil”, afirma Bairrão Ruivo (s/d).

O título da obra Ateliê, Lisbonne (Figura 2), realizada por Vieira em 1935-36, é uma

clara alusão ao ateliê do Alto de São Francisco. Realizando uma abstração de seu

espaço de trabalho, a pintora constrói um quarto perspectivado, no qual paredes,

biombos e outras estruturas se costuram, com o intuito, bastante conceitual, de

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LAMOIA, Milena Guerson. Origens das poéticas pictóricas de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2764-2781.

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elaborar um cálculo matemático. Aguilar (2007, p. 33) interpreta a carreira de

retângulos coloridos que aparece no chão do ambiente como um “simulacro de

trenzinho elétrico” que realiza um “trajeto interrompido”; frisa, entretanto, que apesar

de ser uma sugestão figurativa, o elemento não destoa do pensamento geométrico

proposto.

Podemos considerar que a presença dos retângulos, responsáveis por transmitirem

uma sensação lúdica, significa a medida da cor no cálculo pictórico, afinal, é como

se diante dos biombos de treliça compostos por ranhuras espontâneas, diante das

paredes e passagens invisíveis, além dos arcos, auréolas e cubos imaginários,

Vieira buscasse equacionar – explorando a conotação do ateliê como espaço de

gênese – os limites da tridimensionalidade pictórica frente à abstração.

Figura 1. Ateliê do Alto de São Francisco. 2013. Lisboa. Fonte: Casa-Atelier Arpad Szenes/Vieira da Silva. Fonte: Disponível em: <http://fasvs.pt/exposicoes/outrasimage/497>. Acesso em: 27 dez. 2014.

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Figura 2. Vieira da Silva. Ateliê, Lisboa. 1935-1936. Óleo sobre tela, 114 x 146 cm. FASVS, Lisboa. Fonte: Disponível em: <http://fasvs.pt/coleccao/acercaimage/103>. Acesso em: 27 dez. 2014.

Figura 3. Vieira da Silva. Corcovado. 1943. Óleo sobre tela, 46 x 55 cm. FASVS, Lisboa. Fonte: AGUILAR, Nelson (Org.). Vieira da Silva no Brasil. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo,

2007 [Catálogo].

Em seu texto “Vieira da Silva – Encontros e Desencontros”, Aguilar analisa as obras

que a pintora executa no Brasil, defendendo que existe uma influência temática local

nos trabalhos que desenvolve no decorrer do exílio. O estudioso identifica, de

maneira especial, uma aplicação dos cálculos de perspectiva presentes em Ateliê,

Lisboa na construção da paisagem que constitui a obra Corcovado, de 1943 (Figura

3), chamando a atenção para a ocorrência de uma transposição figurativa.

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Seu núcleo consiste na presença das vistas frontais das edificações, intercaladas

com as diagonais que marcam o uso da perspectiva linear, mesmas orientações

espaciais demarcadas pelos dois biombos que figuram em Ateliê, Lisboa, conforme

sugere o autor: “O espaço se constrói a partir das coberturas dos planos arranjados

em diagonal e do fechamento dos planos que se situam atravessados, cuja gênese

data de Ateliê, Lisboa, mas ocorre uma transposição figurativa que enrijece o élan

formal anterior” (AGUILAR, 2007, p. 37).

A obra Ateliê, Lisboa (1935-1936), analogamente sugerida por Aguilar em relação à

Corcovado (1943), perde seu élan formal, visto que o cálculo abstrato da

perspectiva, ensaiado por Vieira no trabalho, perde o papel de metarreflexão sobre a

pintura, em função da conquista da paisagem carioca. Em outras palavras, se o

ateliê do Alto de São Francisco seria visualmente traduzido em uma síntese formal,

que prenuncia a poética de Vieira em direção ao abstracionismo, a realização da

vista do Corcovado revela uma via diversa, em direção ao naturalismo.

Gisela Rosenthal (1998, p. 41) acrescenta que Vieira realiza trabalhos, em seus

primeiros momentos no exílio, que expressam a tentativa de “acomodação ao novo

ambiente: vistas do Rio, estudos do quarto alugado, alguns autorretratos e retratos

dos amigos” que então conquistaria. A proposição da autora se estende a Szenes,

principalmente no que se refere aos autorretratos e retratos usualmente feitos por

ele. Também é muito acertada essa ideia da autora sobre as obras associadas aos

ambientes em que o casal viveu, devendo-se frisar, entretanto, que esse seria um

recurso empregado não apenas durante a estada no Brasil, mas ao longo de toda a

vida.

Os retratos, as cenas de interiores e as paisagens feitas na França, em Portugal ou

no Brasil são gêneros que – em diferentes gamas, entre a figuração e a abstração –

se revelam como singularidades na conexão existente entre a obra de Vieira da

Silva e Arpad Szenes. Talvez seja justamente a itinerância, marca de suas

trajetórias, um dos principais motivos para a realização de trabalhos vinculados aos

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locais onde vivem e, consequentemente, para o desenvolvimento de um

pensamento plástico que remete à impermanência dos espaços.

A ideia de uma impermanência dos espaços nos leva a pensar sobre a oposição

entre o caráter concreto e estático do espaço e a maneira fluida, efêmera do tempo.

Os espaços arquitetônicos, por exemplo, são construtos supostamente feitos para

permanecer, estando, em certo sentido, ligados à materialidade do mundo. O tempo,

por sua vez, é tudo aquilo que nos retira da concretude do espaço, pois sempre

insere uma interrogação entre as coisas que vieram antes e a continuidade de um

acúmulo ante as possibilidades do porvir, estando, de certa maneira, continuamente

atualizado no presente do ser.

Por isso, a temporalidade relaciona-se ao modo pelo qual as pessoas apreendem o

mundo. Em cada um dos países, cidades, moradas e ateliês por onde passam,

Vieira e Szenes apreendem os espaços e ambientes que os acolhem, captando-os

pictoricamente por meio da temporalidade própria dos seus modos de ser.

São sete os ateliês ocupados por Vieira da Silva e/ou Arpad Szenes ao longo da

vida, sendo que os primeiros ambientes de trabalho, na Villa des Camélias (1930) e

no Boulevard Saint-Jacques (1938), além de vincularem-se à sua residência, são

compartilhados pelos dois artistas, fazendo sobressair a cumplicidade do casal. Por

sua vez, os ateliês de Lisboa (Alto de São Francisco), do Rio de Janeiro (Silvestre,

1943) e de Yèvre-le-Châtel (La Maréchalerie, 1960-1991) – esse último, referente à

casa de campo, próxima a Paris, que adquirem na década de 1960 – são marcados

pelo caráter do trabalho temporário. Lisboa e Yèvre, então, como ambientes

voltados às viagens e ao lazer, enquanto o célebre ateliê Silvestre, no Rio,

compreendido como temporário apenas no sentido emergencial do exílio.

Quando deixam o Brasil, em 1947, os dois artistas voltam a dividir, a princípio, o

antigo estúdio no Boulevard Saint-Jacques, mas, em 1953, Szenes monta um

espaço separado na Av. Denfert-Rochereau. Três anos depois, mudam-se para a

casa que vinha sendo construída na Rue de l’Abbé Carton, onde, além de residirem,

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LAMOIA, Milena Guerson. Origens das poéticas pictóricas de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2764-2781.

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têm espaços de trabalho fixos e independentes. A Rue de l’Abbé Carton se localiza

em Montparnasse, assim como o Boulevard Saint-Jacques, uma informação que

Gaussen (2006) nos oferece ao incluir Vieira da Silva entre os nomes dos pintores

monparnassianos reunidos em sua já referida abordagem sobre os ateliês

parisienses.

De toda forma, os ateliês do casal ora propiciaram a partilha de opiniões, gostos e

propósitos, ora abrigaram momentos de introspecção, no exercício das

individualidades. Marina Bairrão Ruivo (s/d, s/p) propõe que a correspondência entre

os dois artistas “situa-se para lá do ponto de vista formal, residindo mais num

entendimento comum da pintura, na atitude exigente e nas interrogações plásticas

que cada um resolveu à sua maneira”. A proposição da autora nos leva a entender

que, acima dos presumíveis diálogos estilísticos, importa considerar os propósitos

de vida em comum e, nesse sentido, a arte nada mais é que a vivência cotidiana que

o artista empreende entre a criação e a divulgação de suas obras, sendo, por isso,

os caminhos que escolhe trilhar.

O significado da aquisição de um ateliê por um pintor geralmente envolve o

estabelecimento de um ambiente que permita constância em sua produção, um

lugar onde a atividade criadora pode se desenvolver de forma permanente e

progressiva, sem percalços limitadores da arte. Os espaços de criação de Vieira e

Szenes foram, porém, itinerantes, de forma que os estúdios na Rue de l’Abbé Carton

e em Yèvre-le-Châtel, por serem os últimos espaços ocupados pelo casal – os

ateliês definitivos –, parecem ter sido os locais onde a criação pôde ocorrer de forma

mais serena. Bairrão Ruivo (s/d, s/p) comenta sobre as influências do ambiente de

Yèvre na obra do casal:

São inúmeras as obras de Vieira da Silva que remetem para a estrutura de madeira da casa e certos apontamentos de luz sugerem espaços monacais, de silêncio e contemplação, [...]. A obra de Arpad alcança uma dimensão espiritual muito sutil; a exploração da atmosfera, a organização lumínica e rítmica regem as suas paisagens imaginadas, a sua pintura é várias vezes referida como silenciosa, evocativa e evasiva, o que se deve, em parte, ao retiro de Yèvre.

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A autora destaca as influências da estrutura de madeira da casa sobre os trabalhos

de Vieira, sendo esse um local vinculado à década de 1960 em diante. Devemos

retornar, porém, ao próprio ateliê de Lisboa, onde se teria equacionado a gênese

dos exercícios de abstração a partir da arquitetura de interiores.

Podemos considerar que a obra Ateliê, Lisboa, realizada em 1935-36 (Figura 2), se

coloca como uma prévia das concepções artísticas de Vieira, por se tratar de um

trabalho realizado no início da sua carreira (década de 1930) e no qual o motivo do

ateliê (espaço onde as obras são gestadas) nos é sugerido por meio do título,

havendo uma proposta de intensa reflexão sobre a perspectiva (uma questão que

ocupa o cerne da poética da artista).

As marcações referenciais da estrutura arquitetônica do ateliê de Lisboa são

transpostas para a tela de pintura, na construção de um cálculo formal abstrato, o

que se pode verificar ao compararmos a configuração espacial criada por Vieira

(Figura 2) com a fotografia do ateliê (Figura 1). O biombo de formato retangular, à

direita na composição de Vieira, marca o que seria o primeiro plano da tela, feita no

exato ponto onde, na foto, temos o fim da escada (para quem a esteja descendo).

Tal posicionamento tende a ressaltar o caráter de arte bidimensional, próprio da

pintura. Por sua vez, o outro biombo, à esquerda, representado nos conformes da

perspectiva linear, marca a profundidade do espaço pictórico – a ilusão

tridimensional –, em uma diagonal semelhante à da parede esquerda do ateliê.

Entre a construção frontal do cubo (ou pirâmide visual), um exercício básico da

aprendizagem de pintura, e o desvio na parede esquerda do ambiente, revelam-se

as demais marcações transparentes ou invisíveis criadas por Vieira. São marcações

colocadas de forma paralela e/ou superposta, semelhante à marcação das vigas que

dividem o espaço ao meio (na lateral direita e no teto, conforme a foto). As vigas

aparentes do ateliê são apenas linearmente sugeridas pela artista em sua

composição, levando-nos a imaginar que existem espelhos ou vidros dentro da

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pintura devido às impressões de reflexo e/ou transparência que tais delineamentos

quadrangulares nos causam.

Observemos como a mesma impressão cristalina, entre outros aspectos do cálculo

ensaiado em Ateliê, Lisboa, transmutou-se na fase avançada da poética de Vieira,

conforme podemos identificar na obra Deslocamento do Labirinto, de 1982 (Figura

4). Nesse trabalho, os retângulos e quadrados, que subdividem todo o plano da tela

de pintura, fazem contraponto em relação às sucessivas linhas diagonais que

entrecortam o espaço em alguns pontos, construindo um jogo oblíquo entre a

planaridade da tela e a perspectiva (profundidade). Conforme o nome do quadro

sugere, o labirinto – constituído pelas linhas, formas e cores – se desloca,

desconstruindo a pintura ilusionista do passado para construir a pintura planar do

presente e vice-versa.

Na contramão da crítica greenberguiana – que sugere a primazia do plano na pintura

modernista –, a arte de Vieira não recusa a ilusão de profundidade causada pelo

emprego da perspectiva; pelo contrário, faz dela a sua aliada, erguendo às suas

custas uma poética singular. Nelson Aguilar (2007, p. 33) sintetiza que “a

singularidade de Vieira da Silva reside na constante perseguição da terceira

dimensão sem negar a prevalência da segunda. Por ter obtido uma quase

ubiquidade, arvora-se entre os grandes artistas do século”.

Figura 4. Vieira da Silva. Deslocamento do Labirinto. 1982. Óleo sobre tela, 60 x 73 cm. Col. Ilídio

Pinho. Fonte: Vieira da Silva, agora. RJ: MAM, 2012. p. 95 [Catálogo].

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Figura 5. Arpad Szenes. Paisagem. 1967. Óleo sobre papel colado em tela, 51 x 71,2 cm. Col.

Millenium/BCP. Fonte: Disponível em: <http://fasvs.pt/exposicoes/image/534>. Acesso em: 27 dez. 2014.

Para dialogar com o tipo de obra que marca a fase final da trajetória de Vieira,

devemos trazer aqui algumas das “paisagens imaginadas” de Szenes (Figura 5), às

quais Bairrão Ruivo se refere como sendo, em parte, frutos do “retiro de Yèvre”.

Contudo, para caminharmos em direção a uma síntese da poética do pintor, é

apropriado começar pelas advertências de Ruben Navarra (1966, p. 181), que

destaca o caráter de difícil definição do seu trabalho.

Eis uma pintura que desafia os literatos... Ausência total do anedótico... Nenhuma cena visível, nenhuma história a contar... Como que zombando de toda ideia narrativa, o cozinheiro passa e repassa o mesmo tema, séries de variações infindáveis, puramente plásticas, em torno da mesma figura de mulher ou das mesmas maçãs. É uma dura lição para a crítica. O pintor obriga a falar de pintura ou impõe silêncio. A pintura aparece na sua alquimia de ‘métier’, na sua linguagem que resiste a toda equivalência de palavras. Onde cantar a poesia do ‘naif’, a doçura do desenho ‘guache’?... É cruel, bem mais fácil me seria falar de política, folclore, psicanálise através da pintura... Farei o que puder.

E Navarra o faz com desvelo. O crítico brasileiro parece ter o dom de captar as

sutilezas das concepções artísticas mais astuciosas. Na íntegra de seu texto, inicia

mostrando que enxerga que a pintura de Szenes encarna, “antes de tudo, uma lição

moral”, chamando a atenção para a postura que o pintor assume na intercessão

entre o espaço de produção de seu ateliê e a divulgação de suas obras. “Ele

trancou-se anos até aceitar o conselho de uma exposição. Rodeou-se de uma

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solidão invulnerável” (NAVARRA, 1966, p. 180). Essas palavras incorrem sobre a

etapa em que Arpad Szenes esteve no Brasil, mas podem ser aplicadas, em alguma

medida, à sua poética em geral.

Em tese, o trabalho de Szenes ficaria à sombra da obra de Vieira da Silva, conforme

a posição em que a história e a crítica de arte se acostumaram a vê-lo; apenas nas

últimas décadas (desde sua morte, em meados de 1980) houve uma redescoberta

das suas composições artísticas. Os argumentos de Navarra mostram, entretanto,

que a existência de certa reserva ou comedimento era uma questão derivada das

peculiaridades do artista, da maturidade de suas reflexões pictóricas, do modo pelo

qual escolhia viver a pintura.

Conforme citado pelo crítico brasileiro, Szenes era um artista reservado, dono de

uma pintura de difícil decifração – uma pintura “lenta e esquiva” –, fruto de um

encontro entre a “alquimia de métier” e uma linguagem “ascética”, que resiste às

palavras (NAVARRA, 1966, p. 180). O que (e como) dizer de uma obra pictórica que

consegue encarnar a transmutação do silêncio solicitado pela contemplação de uma

paisagem?

Diante das paisagens imaginadas de Szenes ficamos mudos; queremos apenas ser

as dunas de areia que repousam na planície vertical do horizonte. É uma obra que

não pertence à arquitetura mundana – incessantemente construída e descontruída

por Vieira da Silva –, transcendendo, assim, o nível do humano em direção ao

espiritual, quando a duna de areia, então, apesar de ser matéria alquímica da

pintura, se dispersa com o vento.

Uma “forma de poesia no abstrato” é como Navarra (1966, p. 184) define a

sensação ascética provocada pelas paisagens de Szenes, complementando que:

“mas esse espírito poético, é bom insistir, não vem de nenhuma alusão literária – ele

se confunde com a própria sensação plástica”. O efeito conseguido pelo artista em

suas abstrações líricas é o de se fazer calar, em reverência à pintura e à paisagem.

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Figura 6. Arpad Szenes. As Dunas. 1976. Óleo/ papel marouflê/ tela, 92 x 65 cm. Col. Galeria Nasoni, Porto. Fonte: Vieira da Silva, Arpad Szenes nas coleções portuguesas. Lisboa: Casa de Serralves/

Secretaria de Estado da Cultura, fev./abr. 1989. p. 480.

Murilo Mendes, em uma breve saudação enviada em 1954, por ocasião do

aniversário do amigo pintor, se referiu à poética de Szenes como uma “arte cristal

inconsútil”. Tal ideia nos faz lembrar a qualidade da transparência, que

destacávamos nas obras da fase avançada de Vieira da Silva, mas é como se, em

torno dos magnetismos que podem circundar a metáfora do cristal, a pintora

buscasse compor e decompor os padrões tridimensionais da estrutura cristalina,

enquanto Szenes procurasse o centro, o âmago de sua pureza.

Cada um, à sua maneira, capta o reflexo translúcido do cristal. Szenes, através do

refinamento das soluções plásticas, que são “inconsúteis”, ou seja, não possuem

“costuras”; Vieira da Silva, no caminho diametralmente oposto, lançando mão da

própria tessitura, depositada na tela de forma constante e progressiva por um

processo construtivo, conforme retrata a obra Cristal, ilustrada pela Figura 7.

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LAMOIA, Milena Guerson. Origens das poéticas pictóricas de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2764-2781.

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Figura 7. Vieira da Silva. Cristal. 1970. Óleo sobre tela, 81 x 100 cm. Col. Millenniun/BCP. Fonte:

Vieira da Silva, agora. RJ: MAM, 2012. p. 89 [Catálogo].

Em meio às paisagens de Szenes costumam surgir algumas formas, mas, diferente

daquelas que Vieira propositalmente constrói, os vestígios formais por ele

encontrados nos transmitem pureza, parecendo ter sido garimpados em meio ao

próprio trabalho e refinados com a cor – aliás, com a “não-cor”, uma vez que o pintor

privilegia as tonalidades neutras e as harmonias acromáticas, explorando sobretudo

o branco e os cinzas.

No trabalho abaixo, de 1962, o título O Rubi dispensa explicações sobre os aspectos

da pequena forma que emerge no centro da paisagem. É uma boa ocasião para se

destacar a importância que os títulos adquirem tanto nas composições de Szenes

quanto nas de Vieira, visto que geralmente as sugestões neles concentradas

agregam sentido à imagem. Em outras palavras, a linguagem que se exime da obra,

sendo deslocada para o título, confere à pintura um último grau de legibilidade – ou

de poesia, se preferível.

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LAMOIA, Milena Guerson. Origens das poéticas pictóricas de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2764-2781.

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Figura 8. Arpad Szenes. O Rubi. 1962. Óleo sobre tela, 97 x 130 cm. Col. MNAM/CCI, Paris. Fonte: Centenário de nascimento: Arpad Szenes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/FASVS, 1997. p.

98 [Catálogo].

Informações sobre o processo de criação das obras pelos artistas também ajudam

na compreensão dos significados das imagens por eles finalizadas, tanto quanto

ajudam na definição dos sentidos de suas poéticas. José Sommer Ribeiro (1999,

s/p) narra os passos de Szenes para a realização de O Rubi:

Arpad pretendia nessa obra representar um painel de madeira onde ele e Vieira costumavam pregar cartas, reproduções, enfim, tudo quando lhes interessava. Pretendia ser também uma recordação do seu atelier no Boulevard Saint Jacques. Desgostoso com o resultado, cobre toda a tela com tinta branca, retoma-a diversas vezes até que um dia a dá por concluída. Em todo o seu esplendor.

Observando a superfície da pintura, encontramos uma apagada sugestão de dois

recortes retangulares, logo acima da imagem do rubi. São, possivelmente, dois itens

colecionados no painel do ateliê que Szenes busca retratar, com a intenção primeira

de fazer um registro memorialístico. A pintura finalizada nos diz, porém, que o ato da

memória enquanto registro físico de um colecionismo é preterido em função de

reminiscências imaginárias. A memória dos espaços e das coisas se mescla, na

obra de Vieira da Silva e Arpad Szenes, aos processos da imaginação.

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LAMOIA, Milena Guerson. Origens das poéticas pictóricas de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2764-2781.

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Chega-se, assim, a uma importante ressalva: quaisquer que sejam as paisagens de

Szenes ou os construtos de Vieira tomados como exemplos para uma análise, eles

mostram apenas uma amostra ínfima de seus trabalhos, devido à variação inventiva

– ou imaginativa – que marca os espaços captados pelos dois artistas. Cada um de

seus quadros é a fundação de um universo particular, sendo que os títulos dos

trabalhos precisam dar conta das alusões aos múltiplos universos, constantemente

recriados.

Terminadas as tessituras de uma tela, Vieira parte para os alinhavos de outra e

assim sucessivamente, em uma diversidade de cadências do ato criador. Já os

traçados pictóricos das paisagens de Szenes não se costuram, eles deslizam; são

pinturas compostas por linhas soltas, orgânicas, que geralmente encontram

complemento visual na tendência vertical ou horizontal dos suportes (conforme

ilustrado pelas Figuras 9 e 10).

Figura 9. Arpad Szenes. Algarve II. 1970. Óleo sobre tela, 50 x 150 cm. Col. Família Azeredo

Perdigão, Lisboa. Fonte: Centenário de nascimento: Arpad Szenes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/FASVS, 1997. p. 114 [Catálogo].

O título da obra Algarve II (Figura 9) pontua para o espectador o lugar em que

Szenes se inspirou para realizar o respectivo trabalho, enquanto Desenvolvimento

vertical (Figura 10) reforça a ligação entre a implementação da paisagem e o suporte

verticalmente estreito. Na esteira desses títulos, uma variedade de outros nomes é

utilizada pelo pintor para designar seus quadros, parecendo criados à medida que os

aspectos plásticos conseguidos na pintura ganham seu feitio. “Miragem”, “A aparição

do círculo”, “Eclipse”, “Minotauro”, “Calcário”, “O vale”, “O arquipélago”, “As sereis”,

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“Imagem na água” são algumas outras expressões, correspondentes a sugestões

visuais da pintura, que os espectadores podem encontrar compondo as obras de

Szenes.

Figura 10. Arpad Szenes. Desenvolvimento vertical. 1967. Óleo sobre tela, 50 x 150 cm. Col. Manuel de Brito, Lisboa. Fonte: Centenário de nascimento: Arpad Szenes. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian/FASVS, 1997. p. 109 [Catálogo].

Quanto à referência específica ao nome de cidades, trata-se de uma característica

peculiar dos títulos das obras de Vieira. Lisboa, Porto, Paris, Budapeste, Londres,

Málaga, Veneza são algumas das localidades espacialmente repensadas pela artista

em suas telas, em meio às quais certos espaços públicos ou situações particulares,

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tais como “Paris à noite”, “estação inundada”, “o metrô aéreo”, “o aeroporto”, “a

arena” etc também costumam ganhar realce.

Vieira observa desde a organização espacial de uma estante de livros ou de uma

parede de tijolos até a vista de uma grande biblioteca, de uma estação de metrô ou

de uma cidade inteira, compondo trabalhos que variam entre os interiores e os

exteriores, entre o micro e o macro. A obra da artista é edificada a partir dessas

variações de pontos de vista e escala. Se existe, por um lado, a observação da

relação de objetos e pessoas nos interiores arquitetônicos, nos dizendo do instante

íntimo e cotidiano, por outro, há a consideração do conjunto das grandes

edificações, que abriga a multidão citadina e serve de palco aberto para o passeio

do flanêur.

Segundo Baudelaire (2006), o flanêur é alguém que anda pelas ruas da cidade

moderna, vagueando no fluir de um passatempo. Daí, na identificação entre a

singularidade de seu próprio eu e a pluralidade reunida na multidão, compraz-se

diante das impressões sensoriais e subjetivas que coleta, impressões que, na

precisão dos termos, são efêmeras, instantâneas. Vieira da Silva incorpora em sua

obra o espírito transitório da flâneurie: seus trabalhos nos remetem à busca pessoal

por uma memória espacial da cidade, do “mundo”, partindo de uma decomposição

das formas para chegar à cartografia.

A observação conjunta da obra de Vieira e Szenes nos leva a constituir um atlas

imaginário, onde as paisagens revelam qualidades plásticas, lugares, costumes,

hábitos cotidianos, subjetividades. Suas respectivas poéticas se fundamentam na

captura ou eternização, de quadro em quadro, de alguns instantes ou momentos que

incessantemente se sucedem no tempo, sendo, por isso, identificadas aqui como

duas poéticas do espaço e da memória. Entre a poética e o gesto, nota-se, porém,

que Vieira capta os instantes a partir de um processo criativo mais homogêneo,

fundamentado na dialética da construção/desconstrução dos espaços, enquanto

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Szenes edifica uma obra multifacetada, indo do ascetismo da paisagem até a

presença figurativa do retrato.

Referências

AGUILAR, Nelson. Vieira da Silva: encontros e desencontros. In: ______ (Org.). Vieira da Silva no Brasil. São Paulo: MAM, 2007. BAIRRÃO RUIVO, Marina. Ateliers, a arte a partir de um espaço. Disponível em: <http://fasvs.pt/exposicoes/outrasview/185>. Acesso em: 8 dez. 2013. BAIRRÃO RUIVO, Marina. Casa-Atelier Vieira da Silva: histórico. Disponível em: <http://www.fasvs.pt/casa-atelier/historico/>. Acesso em: 27 dez. 2014. BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. In: ______. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. BESSA-LUÍS, Agustina. Longos dias têm cem anos: presença de Vieira da Silva. Lisboa: INCM, 1978. GAUSSEN, Frédéric. Le Peintre et son atelier. Paris: PARIGRAMME, 2010. NAVARRA, Ruben. Jornal de Arte. Campina Grande: Edições da Comissão Cultural do Município, 1966. RIBEIRO, José Sommer. Helena e Arpad. In: Arpad Szenes, Vieira da Silva. Lisboa: FASVS, 1999. ROSENTHAL, Gisela. Vieira da Silva 1980-1992: à procura do espaço desconhecido. Lisboa: Taschen, 1998.

Milena Guerson Lamoia

Graduada em Artes Plásticas e em Psicologia, especialista em Ensino de Artes Visuais, possui Mestrado em Estudos Literários (ênfase em Relações Intersemióticas – Pintura/Literatura) e Mestrado em Artes, Cultura e Linguagens (ênfase em História da Arte – Teoria da Pintura). É Professora assistente na UFT, atuando na interface entre Arte-Educação e Processos de Criação. Doutoranda em Psicologia Social na USP, desenvolvendo estudo na área de Psicologia da Arte. Contato: [email protected]