ordem medica e norma familiar - o movimento higienista

10
1 PSICOLOGIA APLICADA AO DIREITO COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 2004. 1. A MEDICINA DAS CIDADES Até meados do século XVIII, as cidades tinham sido praticamente abandonadas por Portugal e a ocupação dos territórios se deu por iniciativa dos próprios colonos. Enquanto que os interesses dos colonos coincidiam com do reino, as cidades se comportaram conforme a expectativa do Estado. A partir daí, a administração desenvolveu interesse pelas cidades brasileiras em decorrência da descoberta do ouro - estas expandiam-se ou criavam-se novas cidades. Como surgia uma elite diferenciada dos interesses políticos e econômicos do reino, composta por negociantes, homens de letra, militares, funcionários públicos, religiosos e outros, Portugal se viu diante de uma população descontente e contestadora do poder real - precisava-se dominá-la. Outro problema que Portugal teve que enfrentar foi a invasão estrangeira, particularmente da Espanha. Transferiu-se o vice-reinado da Bahia para o Rio, na tentativa de controlar as cidades e a população em função do Estado. As tentativas de controle orientavam-se pela percepção colonial do que era ordem, lei, justiça, transgressão e punição. Os governantes procuraram dominar a cidade através da legalidade inscrita nas Ordenações. As infrações eram punidas pela justiça e polícia com truculência característica da época: enforcamento, exílio, açoite, etc..., características do aparelho jurídico-policial. Entretanto, este modelo falhou e o século XIX recebeu a desordem urbana praticamente intocada. Vários foram os fatores do insucesso do controle colonial, sendo um deles a incoerência entre justiça prática e teórica. O Rio de Janeiro foi cenário de disputas pelo poder entre Governadores, Igreja e Senado da Câmara (composta por representantes dos potentados rurais e dos grandes negociantes). Cada qual procurava manipular a justiça a seu favor. Ouvidores e Juízes não dispunham de autonomia e se viam na condição de defender o grupo com o qual se identificavam. Muitos criminosos eram abertamente protegidos por famílias importantes ou pelo clero. A polícia era obrigada a se curvar aos interesses privados, além de contar com uma constituição fragmentar de sua organização. Até meados de 1788, o policiamento das cidades era feito por quadrilheiros que subordinavam-se à autoridade pessoal dos Governadores e Senado da Câmara. a criação das guardas municipais, em 1788, apenas deu novo nome à antiga situação. A criação da Intendência, em 1808, pelo Príncipe Regente D. João, centralizou as decisões repressivas e fortaleceu a polícia. Entretanto, com a divisão social do trabalho vigente, competia à polícia, a construção de pontes, drenagem de pântanos,

Upload: daniel-teixeira

Post on 18-Dec-2015

57 views

Category:

Documents


12 download

DESCRIPTION

Psicologia Jurídica. Movimento Higienista

TRANSCRIPT

  • 1

    PSICOLOGIA APLICADA AO DIREITO

    COSTA, Jurandir Freire. Ordem Mdica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal, 2004.

    1. A MEDICINA DAS CIDADES

    At meados do sculo XVIII, as cidades tinham sido praticamente abandonadas por Portugal e a ocupao dos

    territrios se deu por iniciativa dos prprios colonos. Enquanto que os interesses dos colonos coincidiam com

    do reino, as cidades se comportaram conforme a expectativa do Estado.

    A partir da, a administrao desenvolveu interesse pelas cidades brasileiras em decorrncia da descoberta do

    ouro - estas expandiam-se ou criavam-se novas cidades. Como surgia uma elite diferenciada dos interesses

    polticos e econmicos do reino, composta por negociantes, homens de letra, militares, funcionrios pblicos,

    religiosos e outros, Portugal se viu diante de uma populao descontente e contestadora do poder real -

    precisava-se domin-la.

    Outro problema que Portugal teve que enfrentar foi a invaso estrangeira, particularmente da Espanha.

    Transferiu-se o vice-reinado da Bahia para o Rio, na tentativa de controlar as cidades e a populao em funo

    do Estado.

    As tentativas de controle orientavam-se pela percepo colonial do que era ordem, lei, justia, transgresso e

    punio. Os governantes procuraram dominar a cidade atravs da legalidade inscrita nas Ordenaes. As

    infraes eram punidas pela justia e polcia com truculncia caracterstica da poca: enforcamento, exlio,

    aoite, etc..., caractersticas do aparelho jurdico-policial. Entretanto, este modelo falhou e o sculo XIX

    recebeu a desordem urbana praticamente intocada.

    Vrios foram os fatores do insucesso do controle colonial, sendo um deles a incoerncia entre justia prtica e

    terica. O Rio de Janeiro foi cenrio de disputas pelo poder entre Governadores, Igreja e Senado da Cmara

    (composta por representantes dos potentados rurais e dos grandes negociantes). Cada qual procurava

    manipular a justia a seu favor. Ouvidores e Juzes no dispunham de autonomia e se viam na condio de

    defender o grupo com o qual se identificavam. Muitos criminosos eram abertamente protegidos por famlias

    importantes ou pelo clero. A polcia era obrigada a se curvar aos interesses privados, alm de contar com uma

    constituio fragmentar de sua organizao. At meados de 1788, o policiamento das cidades era feito por

    quadrilheiros que subordinavam-se autoridade pessoal dos Governadores e Senado da Cmara. a criao das

    guardas municipais, em 1788, apenas deu novo nome antiga situao. A criao da Intendncia, em 1808,

    pelo Prncipe Regente D. Joo, centralizou as decises repressivas e fortaleceu a polcia. Entretanto, com a

    diviso social do trabalho vigente, competia polcia, a construo de pontes, drenagem de pntanos,

  • 2

    calamento de ruas, promoo da imigrao, organizao de festas populares, o que provocou a politizao da

    polcia, levando-a a tomar partido em ocasies de luta de poder.

    Um segundo motivo do insucesso do aparelho jurdico-policial se deveu ao seu carter estritamente punitivo.

    A ideia de preveno e reintegrao do criminoso ainda no existia. a reincidncia era comum e o Governo

    percebia que isto se dava pela ociosidade e vagabundagem, mas no sabia como ocupar os indivduos devido

    ao atraso econmico e cultural do Brasil, deliberadamente mantido por Portugal, o que impedia a disciplina do

    trabalho, da escola ou da famlia no controle da marginalidade.

    Sem poder dispor de instrumentos de controle que implicassem no desenvolvimento econmico e social do

    pas, o Estado teve de buscar nas instituies existentes a soluo, sendo que apenas duas tinham construdo

    tcnicas de controle eficientes dos indivduos: a Igreja e o exrcito. Entretanto, a utilizao da Igreja pelo

    Estado estava praticamente excluda porque durante todo o perodo colonial o clero ou defendeu seus

    prprios interesses ou se uniu a famlias contra a metrpole, alm do fato de que a educao jesutica

    pressupunha o desenvolvimento da instruo e da escolarizao, fato que contrariava as estratgias do

    Governo. Desta forma, o Estado procurou na militarizao o auxlio ao controle das cidades, o que grande

    parte coube ao Marqus de Lavradio o emprego sistemtico desta disciplina militar.

    Ao assumir o Vice-Reinado, o marqus ativou a formao dos teros-auxiliares, compostos por pessoas

    comuns, que no eram pagos e ainda tinham que pagar por seu fardamento, acreditando que era preciso

    habituar os indivduos a respeitarem em pequenos grupos, em pequenos momentos, as pequenas

    autoridades, a fim de que, progressiva e continuamente, a obedincia ao Rei emergisse como natural. A

    populao preferia servir aos teros por motivo de prestgio e poder, ao contrrio dos alistamentos

    obrigatrios no exrcito, que os ocupavam por perodo extensivo. Este modelo propunha a represso

    preventiva e integradora. A populao engajada nos teros, extraa benefcios econmicos (proteo nos

    negcios, preservao do tempo em funo dos interesses privados) e de poder (participao na represso).

    Defendendo o Estado, defendiam-se a si prprios, pois os crimes de sabotagem e a subverso poltica eram

    considerados crimes de lesa-populao.

    Entretanto, como a militarizao incidia apenas sobre os homens jovens da camada social mais pobre, uma

    grande parcela da populao, de mulheres, crianas, velhos, escravos, religiosos e toda a elite econmica e

    social subtraam-se obrigao militar. Ademais, o servio militar retinha os homens por perodo curto e logo

    retornavam par conviver com a desordem urbana.

  • 3

    Na colnia, o poder poltica era dividido entre o Estado, as famlias e o clero. os antagonismos entre estes

    alcanou pontos delicados que foram em parte solucionados com a expulso dos jesutas e com a abdicao

    de Pedro I e implantao da hegemonia poltica dos potentados rurais.

    Por tudo isto, as instncias eficazes no se identificavam com o Estado e a velha engrenagem jurdico-policial

    no conseguia ordenar o meio urbano. Este foi o momento de insero da medicina higinica no governo

    poltico dos indivduos e o Estado aceitou medicalizar suas aes polticas, reconhecendo o valor poltico das

    aes mdicas. A noo deste acordo foi a salubridade.

    Com a vinda da Corte e o aumento populacional representado pelo squito de aristocratas e a instalao de

    diplomatas, comerciantes estrangeiros e famlias rurais que transferiram-se para a metrpole, a presso

    populacional e as exigncias higinicas da nova camada urbana aceleraram as solicitaes pela medicina.

    A medicina, servindo-se de tcnicas anlogas s da militarizao, contornou a situao da conduta anti-

    higinica das populaes, suscitando o interesse do indivduo por sua prpria sade. Cada habitante tornou-se

    seu prprio almotac e, em seguida, almotac de sua casa e da vizinhana. Por meio de aes e noes, a

    medicina apossou-se do espao urbano e imprimiu-lhe as marcas de seu poder. Dentre as suas aes polticas,

    uma tomou como alvo a famlia. A higienizao das cidades, estratgia do Estado moderno, esbarrava

    frequentemente nos hbitos e condutas que repetiam a tradio familiar e levavam os indivduos a no se

    subordinarem aos objetivos do Governo.

    A medicina foi capaz de verificar que a famlia no podia ser tratada como opositor, pois dispunha de poder

    bem mais ousados e que no se dobravam punio. Os componentes do poder familiar so ento

    submetidos nova avaliao e classificao. Em seguida, so criadas tcnicas de persuaso e manobras de

    ataque. Este conjunto de dispositivos a medicina chamou de higiene familiar.

    Entretanto, no processo de definio da famlia, a higiene dirige-se exclusivamente s famlias de estrato

    elitista, pois no interessava ao Estado modificar o padro familiar dos escravos que deveriam continuar

    obedecendo ao cdigo punitivo de sempre. Estes, juntamente com os desclassificados de todo tipo (escravos,

    mendigos, loucos, vagabundos, "ciganos", capoeiras, etc), sero trazidos cena mdica como aliados na luta

    contra a rebeldia familiar, servindo de anti-norma, de casos-limite de infrao higinica. A estes vo ser

    dedicadas outras polticas mdicas. Foi sobre as elites que a medicina fez incidir sua poltica familiar,

    criticando a famlia nos seus crimes contra a sade.

  • 4

    Durante o Segundo Imprio, a medicina social vai se dirigir famlia burguesa citadina, procurando modificar a

    conduta fsica, intelectual, moral, sexual e social dos seus membros com vistas sua adaptao ao sistema

    econmico e poltico.

    2. A CIDADE FAMILIAR

    No Brasil, a higienizao da famlia progrediu em relao direta com o desenvolvimento urbano. Os encargos

    populacionais, econmicos, polticos, militares e sociais da sede do Governo, o Rio, lhe exigiram uma

    modernizao mais acelerada, exigindo dos habitantes mudanas como consequncia da modernizao:

    secularizao dos costumes, racionalizao das condutas, funcionalidade nas relaes pessoais, maior

    esfriamento das relaes afetivas interpessoais, etc. Tais modificaes no se fizeram, entretanto sem

    resistncia.

    A tarefa dos higienistas era a de converter os sujeitos nova ordem urbana. Esta ordem precisava ser aceita,

    pois dela dependia a prosperidade das elites e do prprio progresso do Estado. No Brasil Colnia, famlia

    passou a ser sinnimo de organizao familiar latifundiria. A famlia escrava foi destruda pela violncia fsica

    e a dos homens livres pobres, pela corrupo, pelo favor e pelo clientelismo.

    2.1. Anatomia familiar do espao urbano colonial

    Na infrao s normas de limpeza, percebe-se o mesmo desprezo pelos locais coletivos. Em registros da

    Cmara de Salvador, as queixas contra os proprietrios que lanavam dejetos nas ruas, repetem-se ao longo

    de todos os sculos XVII e XVIII.

    Os senhores rurais modelavam a cidade seguindo o exemplo do engenho ou da fazenda o crescimento e

    vitalidade das cidades obedeciam aos ciclos de produo rural. A expanso imobiliria alternava-se conforme

    as oscilaes nos preos dos produtos agrcolas. Como as residncias dos grandes proprietrios possuam

    pomares, hortas e criao de animais, o que era seguido por outras classes, pouco se necessitava do mercado

    urbano. A cidade funcionava como extenso da propriedade e das famlias rurais, no apenas em sua

    ordenao econmica, arquitetnica e demogrfica, mas tambm na regulao jurdica, poltica e

    administrativa.

    2.2. O governo familiar da cidade

    A elite econmica organizou seu poder jurdico-poltico sobre a cidade, fundamentada na legislao municipal

    portuguesa. Os dois grandes instrumentos de dominao poltica dos municpios, as Cmaras e as Juntas

    Gerais, eram monoplio das famlias proprietrias. A Juntas eram instncias descontnuas, que agiam nos

  • 5

    casos graves e urgentes, sendo compostas pelos homens bons (nobreza, milcia e clero), outras autoridades

    como governadores, capites-mores, oficiais de justia e fazenda.

    Os eleitos para as Cmaras era bem delimitados, sendo os nobres, naturais da terra e descendente dos

    conquistadores, no podendo ser eleitos pessoas mecnicas, mercadores, filhos do reino, gente de nao

    (judeus), soldados nem degredados. Os oficiais da Cmara gozavam de privilgios tais como de no poderem

    ser presos, processados ou suspensos por ordem rgia ou do tribunal que as confirmava; as Cmaras no

    podiam ser citadas sem proviso do Desembargo do pao. O Estado tentou, atravs das Ordenaes, restringir

    o poder senhorial rea meramente econmica e administrativa, temendo as consequncias da autonomia

    poltica dos municpios.

    A ampliao da rede familiar dos membros consanguneos, legtimos ou no, atravs do parentesco espiritual

    e moral, criou uma massa de crias, protegidos e favorecidos, uma tica de defesa do interesse dos senhores.

    Os afilhados, compadres e agregados tinham a iluso de que, defendendo o latifndio, defendiam a prpria

    famlia. Polcia, justia e administrao passaram a se tornar uma questo de vingana, suborno, corrupo,

    assassinato e toda sorte de violncias perpetradas contra os opositores do patriarca rural.

    2.3. A teologia do poder familiar

    O catolicismo no Brasil nunca foi homogneo em suas manifestaes doutrinrias e institucionais. O

    comportamento do clero regular muita das vezes divergiu do seu congnere secular. Essas instituies

    modificaram suas convices doutrinrias segundo as circunstncias e a prpria evoluo histrica, por

    exemplo, um jesuta e um capelo de engenho dispunham de condutas diferentes entre membros de uma

    mesma Igreja diante do senhor rural.

    Para os monarcas portugueses, evangelizar e aportuguesar eram sinnimos. Os senhores portugueses e seus

    sucessores brasileiros desenvolveram o mito original da tarefa evangelizadora para explorar ndios, escravos e

    brancos pobres. Possuidores de uma legitimidade cannica, tentaram atravs de uma srie de imagens e

    representaes, modificar a natureza do poder que detinham.

    3. A HIGIENE DA FAMLIA - O movimento Higienista

    3.1. A lei e a norma

    Segundo Foucault1, o sculo XIX assistiu invaso do espao da lei pela tecnologia da norma.

    1 FOUCAULT, Michel. La Volont de Savoir. Paris: Gallimard, 1976.

  • 6

    Lei: fundada na concepo jurdico-discursiva do poder e histrico-politicamente criada pelo Estado

    medieval e clssico.

    Norma: tem seus fundamentos histricos-polticos nos Estados modernos dos sculos XVIII e XIX,

    explicitados pela noo de dispositivos que combinaram discursos tericos que reforam as tcnicas

    de dominao e aes prticas de controle.

    O Estado procurou implantar seus interesses servindo-se dos equipamentos de normalizao inventados para

    solucionar urgncias polticas. Castel2 , por exemplo, nos mostra que a ao normalizadora se deu sobre os

    loucos para preservar a integridade do contrato social democrtico-burgus. O louco, por sua conduta insana,

    rompia este contrato, mas como o comportamento transgressor no podia permanecer impune, o dispositivo

    mdico foi posto em marcha e, por meio da tutela psiquitrica, a loucura penalizada sem que o humanismo

    fosse ferido.

    Donzeloti3 mostra que a famlia, no Estado moderno, voltado para o industrialismo, teve necessidade de

    controle demogrfico e poltico. Esse controle buscava disciplinar a prtica anrquica da concepo e cuidados

    fsicos dos filhos, alm de, no caso dos pobres, prevenir as perigosas consequncias polticas da misria e do

    pauperismo. Para no ferir as liberdades individuais, sustentculo da ideologia liberal, criam-se dois tipos de

    interveno normativa:

    A primeira foi a medicina domstica: no interior da burguesia estimulava-se a poltica populacionista,

    reorganizando as famlias em torno da conservao e educao das crianas.

    A segunda dirigiu-se s famlias pobres sob a forma de campanhas de moralizao e higiene da

    coletividade - a ao era demogrfico-policial com a finalidade de manobrar os laos de solidariedade

    familiar e us-los na represlia aos indivduos insubordinados e insatisfeitos.

    Estas duas aes permitiam a proliferao e a liberao de uma mo-de-obra politicamente dcil para o livre

    jogo do mercado de trabalho.

    No caso dos loucos, como no da famlia, a norma desenvolveu-se para compensar as falhas da lei. No primeiro

    caso, o agente da infrao no podia ser punido porque era irresponsvel; no segundo, o contrato social no

    previa e no podia incluir a conduta infratora como crime. Por estas razes, a normalizao tornou-se

    indispensvel ao funcionamento do Estado e tendeu a crescer e estabilizar-se num campo prprio do poder e

    do saber, o do "desvio" e o da "anormalidade".

    2 CASTEL, Robert. A Ordem Psiquitrica, a idade de ouro do alienismo. Rio: Graal, 1978.

    3 DONZELOTI, Jacques. La police des familes. Paris: Minuit, 1977.

  • 7

    Este esquema nos permite interpretar as relaes entre famlia, medicina e Estado no Brasil no sculo XIX. A

    higiene da elite familiar seguiu de perto este rumo integrando a srie de medidas normalizadoras que

    buscavam organizar a sociedade.

    A normalizao mdica da famlia brasileira operou-se em estreita correspondncia com o desenvolvimento

    urbano e a criao do Estado nacional. Os problemas demogrficos criados pela chegada da Corte4 e o ritmo

    econmico imprimido ao Brasil pelo capitalismo europeu acentuaram as deficincias urbanas principalmente

    no Rio de Janeiro. Os aristocratas tinham hbito de consumo, lazer, higiene, moradia, etc. que no

    encontravam satisfao no inexperiente e estranho funcionamento da cidade. A indstria e o comrcio

    internacionais precisavam modernizar a rede de servios urbanos e a rotina de subsistncia da populao a fim

    de escoarem seus produtos. No seu apego tradio, a famlia colaborava na manuteno da inrcia que

    tomava o mundo colonial.

    At fins do perodo colonial, a administrao no encontrara meios de dominar a interferncia do grupo

    familiar sobre o meio externo. O Governo, paralisado pela poltica da metrpole, transigia diante dos

    interesses privados, demonstrando fragilidade do poder. A aristocracia portuguesa e a burguesia europeia,

    unidas, detinham um poder incomparavelmente superior ao das famlias nativas. A cidade no podia continuar

    a obedecer aos seus antigos donos.

    A reeuropeizao da sociedade corresponde a esse deslocamento de poder: houve forte identidade entre os

    mecanismos de coero empregados pelo Estado portugus sediado no Brasil e os instrumentos coercitivos da

    administrao colonial - ambos utilizaram a lei, a punio e o aparelho jurdico-policial como instncia de

    correo.

    O Estado abateu-se sobre a famlia: o poder atacou-a frontalmente destruindo tudo aquilo que refletia seu

    poderio. A ruptura com a tradio se deu sem nenhum respeito pelo costume social ou pela conveno

    jurdica. A transformao do espao urbano procurava atender exclusivamente ao bem-estar e ao

    enriquecimento da aristocracia portuguesa e do capitalismo europeu. A famlia se viu, ento, obrigada a servir

    a dois senhores sem nenhuma garantia de benefcios.

    Entretanto, a famlia deixou-se modelar pela cidade, mas no se converteu ao Estado. Pelo contrrio,

    aprendeu a servir-se da mudana e a us-la como arma contra o adversrio. Quanto mais as famlias

    secularizavam seus costumes, racionalizavam suas condutas e administravam melhor suas riquezas, mais

    4 Em novembro de 1807, sob proteo da fora naval inglesa, D. Joo, sua linhagem e a nobreza que o rodeava mudaram-se para o

    Brasil. Aportaram em territrio brasileiro cerca de quatorze navios com 15 mil pessoas. Aps sair de Salvador, o rei foi para o Rio de Janeiro, l chegando em 08 de maro de 1808, transformando a cidade em residncia fixa da corte portuguesa.

  • 8

    reforavam seus vnculos de solidariedade interna. O aburguesamento citadino equipou-se com instrumentos

    de combate aos portugueses: a Independncia, em 1822, e a Abdicao de D. Pedro I5 refletem a incapacidade

    do Governo portugus em conquistar o apoio das elites.

    Aps a Abdicao, o poder central entendeu que no bastava urbanizar a famlia, era preciso estatizar os

    indivduos. A fora da lei no produzia indivduos urbanos e submissos ao Estado. A justia soberana podia ser

    eficaz na violao da arquitetura das casas ou do direito de propriedade, mas detinha-se nas fronteiras da vida

    privada. Nesse momento, as tcnicas disciplinares saem do ostracismo colonial e comeam a ocupar o

    primeiro plano da cena poltico-urbana. O sucesso da higiene indica a reviso estratgica no trabalho de fisso

    e reestruturao do ncleo familiar.

    Em 1829, fundada a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro: essa entidade representava o grupo

    mdico que lutava por se impor junto ao poder central como elemento essencial proteo da sade pblica

    e ordenao da cidade. Em 1832, as sugestes do Conselho da Salubridade so incorporadas ao Cdigo de

    Posturas Municipais do Rio. Em 1851, o Estado cria a Junta Central de Higiene Pblica, que confirma e estende

    a participao de higiene nos cuidados da populao.

    O Estado buscava por todos os meios exterminar as contradies no seio dos privilegiados que se aliavam aos

    latifundirios contra o poder central, s vezes insuflados por ideias revolucionrias europeias e norte-

    americanas, assumindo a defesa da plebe e contestando o governo regencial. Era preciso criar mecanismos de

    concrdia que poupassem o Estado dos desgastes da guerra ou da paz armada: o reforo e a ampliao do

    nacionalismo foi um deles.

    A ausncia do nacionalismo era um reflexo do sistema colonial: os primeiros colonos se consideravam

    portugueses, nada os unia terra e aos nativos; a pulverizao econmica, poltica e territorial construiu nas

    populaes modelos de identidade poltica sem o trao comum de nacionalidade; nem a lngua portuguesa e a

    religio catlica, embora tenham criado certa homogeneidade cultural, no foram veculos de formao do

    sentimento nacional. A desobedincia civil concentrada nas redes de relaes vai ser atacada pela propaganda

    nacionalista em todo o sculo XIX, concentrado pelos polticos e auxiliado por literatos e mdicos.

    A famlia projetada pelos higienistas deixar-se-ia manipular acreditando-se respeitada; abandonaria antigos

    privilgios em troca de novos benefcios; auto-regular-se-ia, tornando cada um dos seus membros num agente

    da sade individual e estatal.

    5 No dia 7 de abril de 1831, D. Pedro abdica do cargo de imperador, retorna Europa e deixa o trono para seu filho Pedro, de 5 anos.

  • 9

    Desenvolvendo uma nova moral da vida e do corpo, a medicina contornou as vicissitudes da lei, classificando

    as condutas lesa-Estado como antinaturais e anormais. O trabalho baseou-se na ideia de que a sade e a

    prosperidade da famlia dependiam da sujeio ao Estado. Outra meta dos higienistas era a converso do

    universo familiar ordem urbana: a maioria das prescries higinicas visavam a reeuropeizao dos

    costumes.

    Certos temas abordados pelos higienistas revelam a mecnica do procedimento de tomada dos sentimentos e

    conduta antes administrado pela famlia, que passou a ser encampado pela medicina e, aps, devolvido ao

    controle estatal: o amor e alma foram alguns destes.

    O amor, antes percebido pela famlia atravs do filtro religioso ou das formas abstratas da literatura,

    transformou-se pela ao higinica num evento de manipulao mdico-estatal pela medicina moral. O amor,

    ao mesmo tempo sinnimo do instinto de propagao, era tambm definido como paixo impetuosa da alma

    de um sexo para outro (paixo era o limite entre o biolgico e o sentimental). O instinto de propagao, por

    sua natureza biolgica, no poderia ser educado. O amor-paixo, pelo contrrio, continha em sua composio

    ambgua, a possibilidade de ser domesticado e reorientado para fins sociais.

    Tratamento semelhante foi dado ao termo alma. O recurso alma possibilitou aos higienistas infiltrarem-se na

    moral da famlia sem fraturar antigas crenas e valores. Fingindo respeitar o sagrado, a medicina facilitava sua

    difuso na atmosfera familiar. Alma era definida ora como "sede da paixo", ora como alvo sensvel e

    vulnervel aos "efeitos mrbidos" destas mesmas paixes.

    A alma religiosa era separada da matria; a alma mdica, pelo contrrio, plantava suas razes no corpo. O que

    ameaava a alma higinica no eram os vcios e fraqueza da carne, e sim os vcios e fraquezas do corpo. A alma

    pecadora rompia o pacto com Deus e perdia o dom da Graa; a alma apaixonada desobedecia regra mdica e

    perdia a sade. A perfeio da primeira dependia dos exerccios espirituais; a da segunda, dos exerccios

    higinicos.

    Atravs da alma procurava-se fazer crer que o amor nao no era uma obrigao poltica, mas um impulso

    espontneo do corpo e do esprito. Desta forma, o amor ptria no era uma enfermidade, assim os

    higienistas no tardaram em proclam-lo sinal de sanidade. E ausncia de patriotismo foi redefinida como

    deficincia fsico-moral. Tentavam, pela ida e vinda terica demonstrar que a incapacidade de amar o Estado

    era uma doena e, por extenso, que a submisso do indivduo ao governo estatal no era sintoma de

    anulao poltica, mas prova de boa sade.

  • 10

    Restava, agora, determinar a etiologia e a teraputica preventiva e curativa. Enquanto equipamento

    normalizador, a higiene interessava-se em detectar os agentes etiolgicos e estabelecer as regras do

    diagnstico precoce e da preveno primria: nesta perspectiva que a famlia vai sofrer as medidas

    saneadoras que visavam a exterminar os focos de resistncia ao controle estatal.

    Os higienistas observavam que certos indivduos mostravam-se incapazes de servir de exrcito porque tinham

    tido educao fsica e moral insuficientes, incluindo-se os homens das cidades que, acostumados s delcias da

    vida, seriam incompetentes para o servio militar; j os homens do campo que, familiarizados com o trabalho

    e as intempries apresentavam melhores condies fsicas e morais para cumprirem esta tarefa, quando

    recrutados, eram vtimas de "paixes deprimentes" com saudades da famlia e do lar paterno.

    Entretanto, o discurso mdico no se voltava s famlias pobres, pelo contrrio, dirigia-se famlia de elite,

    letrada, que podia educar os filhos e aliar-se ao Estado. Estavam convencidos e convenciam a estas famlias

    das vantagens que podiam extrair desta relao com o Estado, como as novas perspectivas poltico-

    econmicas abertas pela elite agrria.

    O amor ptria, pelos higienistas, surgia em pocas precisas da evoluo biolgica e s se desenvolvia sob

    certas condies. O patriotismo encontrava na puberdade um dos seus momentos promissores. O adolescente

    merecia cuidados especiais.

    Assim, a me, tradicionalmente presa ao servio do marido, da casa e da propriedade familiar, ver-se-

    elevada categoria de mediadora entre os filhos e o Estado. A higiene passou a solicitar mulher que, de

    reprodutora dos bens do marido, passasse a criadora de riquezas nacionais. Polindo a embaada figura do

    adolescente, a higiene desfocava a importncia de velhos e adultos e fazia brilhar a infncia. A famlia colonial

    era caleidoscopicamente mudada e a cada nova combinao servia de trampolim para outras investidas

    mdicas.