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  • JOÃOFERREIRADIAS 2

    NOSTRILHOSDOPENSAMENTORELIGIOSOYORÙBÁ

    João Ferreira Dias

  • JOÃOFERREIRADIAS 3

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    FichaTécnica:

    © 2017, João Ferreira Dias

    Direitos para esta edição cedidos à Edições Universitárias Lusófonas

    Sistema de Bibliotecas

    Nos trilhos do pensamento religioso Yorùbá / João Ferreira Dias, Lisboa: Edições

    Universitárias Lusófonas, 2016, 115 páginas.

    Original: Fórmulas Religiosas entre os Yorùbás: Olódùmarè, Òrìṣà, Àṣẹ, Orí e Ìpin,

    dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras das Universidade de Lisboa, 2011,

    176 pgs.

    ISBN – 978-989-757-041-4

    Edições Universitárias Lusófonas

    João Ferreira Dias

    www.joaoferreiradias.net | [email protected]

  • JOÃOFERREIRADIAS 4

    Nota:

    Em se tratando da religião autóctone Yorùbá, considera-se oportuno utilizar a

    grafianativa.

  • JOÃOFERREIRADIAS 5

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    Índice

    Índice____________________________________________________/5

    Introdução___________________________________________________/6

    Capítulo1|Olódùmarè:dasemânticaàteologiadoser-supremo__________/19

    1.1.Questõespreliminares_____________________________________/19

    1.2.«Ser-Supremo»,umproblemadeinterpretação____________________/20

    1.2.1.TeoriaMediúnica________________________________________/28

    1.2.2.Oproblemadosconceitos__________________________________/29

    1.2.3.NànáBurukueocasoFon_________________________________/31

    1.3.AFórmulaPragmáticadeOlódùmarè__________________________/34

    1.4.Olódùmarè,oDeus-Supremonascorrentesexternas_______________/36

    1.4.1.Ofatorislâmico____________________________________/39

    1.4.2.Ofatorcristão _________________________________________/48

    1.4.2.1.OcasoÒgbóni___________________________________/50

    1.5.AtributoseEpítetosdoSer-SupremoYorùbá_____________________/52

    1.6.Diferentesmetáforasquedãoumpanteão_______________________/56

    1.7.Olódùmarè–umvelhoculto,umanovasemântica?________________/61

    1.8.Ọn lọ́ọ̀rún,Olódùmarè,BaudineosBàbáláàwó_____________________/63

    1.9.Aquestãode“Deus”eosencontrosreligiososemJ.D.Y.Peel__________/71

    1.10.UmanotaconclusivacomumolharnoNovoMundo_______________/74

    Capítulo2|Òrìṣà,Àṣẹ,OríeÌpin_________________________________/76

    2.1.Òrìṣà____________________________________________/77

    2.1.1.OsÒrìṣàeOlódùmarè__________________________/86

    2.1.2.Panteão,umproblemadeoperatividade_______________________/87

    2.2.Àṣẹ__________________________________________________/90

    2.2.1.Ocaráterrenovávelea-éticodoàṣẹ__________________________/92

    2.3.OríeÌpin_______________________________________________/94

    Capítulo3|Retrospectiva&NotaConclusiva_______________________/103

    Glossário________________________________________________/112

    Fontes__________________________________________________/117

    Bibliografia______________________________________________/119

  • JOÃOFERREIRADIAS 6

    Introdução

    ESSELIVROÉPRODUTOdeumtrajetoondeopessoaleoacadêmicosefundem,

    se misturam, se sincretizam numa lógica não distante da própria fundação da

    culturaafro-brasileira.Eleparte,emrigor,deminhadissertaçãodeMestradoem

    História e Cultura das Religiões, na Faculdade de Letras da Universidade de

    Lisboa,ondeentreiem2009,eparaoqualvinhacomointentodeescreveruma

    dissertação(outese,poisnofundosetornoucomotal,aolevantarumconjunto

    deproblemasepropornovasleituras)naqualpretendiafazerumlevantamento

    de alguns dos conceitos centrais da religião dos Yorùbá (também grafados

    iorubás, em português, e nàgó, ànàgó e ànàgónupelos Fons do Dahomé), por

    formaacompreenderdemodointegrativooethosreligiosodospovosdaantiga

    CostadosEscravos,nomeadamenteaquelesligadosàexpansãocultural,políticae

    religiosa de Ilé-Ifẹ̀ e Ọn yọ́, tidas no imaginário popular e no discurso atual

    histórico-politizadoda região comopontos departidapara a formaçãodeuma

    identidade proto-Yorùbá. A maturação do exercício científico me permitiu

    adquirirumasériede ferramentasconceptuaise chegaraproblemasqueantes

    nãohaviaenxergadonopróprio trajeto,muitograçasàexcelenteorientaçãodo

    Prof.DoutorJosédaSilvaHorta,historiadorafricanista.

    Para além desse levantamento de feição teológica que a obra propõe, se

    revisitamascategoriasoperatóriascorrentementeutilizadasnasciênciassociais

    para observação e delimitação teórica das religiões de matriz africana.

    Problematizandotaiscategorias,foipossívelfomentarodebatesobreoproblema

    datraduçãocultural.Ou,poroutraspalavras,entenderoslimitesmetodológicos

    que se impõem diante de imaginários religiosos nos quais tais categorias, cujo

    backgroundéocidental,carecemdeverdadeiraoperatividade.Oresultadoqueé,

    emtraçoslargos,estelivroagoraadaptadoaopúblicobrasileiro,seconstituiua

    primeiradissertaçãoemreligiõesafricanasnoprogramademestradoemcausa,e

    foi, também, a primeira a receber a classificação máxima, arguida pelo Prof.

    DoutorRamonSarró,hojedaUniversidadedeOxford.Valeaindamencionarque

  • JOÃOFERREIRADIAS 7

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    aprocuraqueamesmatemrecebidojuntodorepositóriouniversitárioporparte

    de estudantes e investigadores brasileiros interessados nas questões religiosas

    africanas,justificamaopçãolinguística.Tendotomadopordecisãoinviabilizaro

    acesso àmesma, sedisponibiliza agoraos seus conteúdos em formatode livro,

    comachanceladasEdiçõesUniversitáriasLusófonas.

    En passant, em referência ao objeto de estudo, importa mencionar que

    geograficamente os Yorùbá ocupam grande parte da Nigéria e em menor

    proporção o Togo e a República do Benim, o ex-Dahomé, e estão divididos em

    subgruposétnicoscomoẸgbá,Ẹgbádo,Ọn yọ́,Ijéṣà,Ìjẹ̀bú,Ifẹ̀,Ondo,Ilọrìn,Ibadan,

    Kétu, entre outros.

    1

    O termo Yorùbá encontra-se envolto numa série de

    problemáticas e discussões históricas. Entre 1656 e 1730 os registos dos

    primeirosviajantesapelidamde«Ulkumy»aregiãoquecorresponderia,maisou

    menos,àáreadeinfluênciaỌn yọ́equesetornariao“país”Yorùbá.Seriaem1734,

    comaelaboraçãodomapadaregiãoporpartedeSnelgravequeotermoUlkumy

    daria lugar a Ayo ou Eyo, pretendendo designar a cidade de Ọn yọ́. Devido à

    importânciaquea cidadede Ọn yọ́ desempenhounoprocessode constituiçãode

    umaidentidadeproto-Yorùbá,valeapenareferirqueàépocadeSnelgrave,Ọn yọ́

    se encontrava em processo de consolidação imperial, depois de ter tido o seu

    primeiroapogeuatéaoséc.XIV,alturaemqueovizinhoNupê(aquemosYorùbá

    chamavamdeTakpáouTapá,equepertenceaogrupolinguísticoKwasudanês)

    iniciava o seumovimento expansionista em torno da figura heroica deTsoede,

    oriundo da região Igala, descendente de uma das primeiras ondasmigratórias

    saídasdeIfẹ̀.

    Apesar de não serem dadas grandes explicações para a origem do termo

    “Yorùbá”, é possível assumir que o mesmo, de acordo com o informante

    Adekanmi,derivadapalavraaouba ouuaba, queemárabe significaria “pagão”.

    1

    O povo vulgarmente conhecido por Yorùbá é um compósito de identidades étnicas

    originalmentedispersas equegradualmente foramconvergindoaté formaremuma identidade

    partilhada sob a designaçãoYorùbá; sem contudodeixaremde seperceber a simesmas como

    ‘identidade primárias’, i.e., como filiação primeira face à identidade generalizada Yorùbá.

    Conscientedasquestõesquehojese levantamsobreaetnicidade,particularmentenoreferente

    aostrabalhosdeElikiaM'BokoloeJean-LoupAmselle(1985)edeJean-PierreChrétieneGérard

    Prunier(1989),seconsideraviávelrespeitarasidentidadesétnicasemqueospovosyorùbásse

    reconhecem.

  • JOÃOFERREIRADIAS 8

    Estahipóteseéparticularmenteimportantetendoemcontaquegrandepartedos

    africanos vendidos como escravos para as Américas tinha por origem os

    movimentos de invasão e expansão religiosa islâmica, a jihad. Nesse sentido,

    YorùbásãoaquelesdaregiãodoGolfodoBenim ligadosa Ọn yọ́e Ifẹ̀quenãose

    converteramao islamismo,mantendoas suas tradiçõesàbòrìṣà, isto é, de culto

    aosÒrìṣà.

    TendopresentequeosYorùbásempreseidentificarampelosseusmatizes

    religiosos, pelas suas narrativas específicas e pelas suas noções particulares

    acerca do extra-humano, o desafio surge marcado pela duplicidade dos

    conteúdos:auniversalidadedeumaortodoxiaconstruídaaolongododecursoda

    história dos fluxos migratórios, de expansão e independências, e as

    especificidades locais identificadoras de ummodusvivendi pré-unificação.2Ora,

    talexercícioimplicatomaroobjetodeestudodentrodeumabalizatemporal,ao

    mesmotempoqueesseenquadramentohistóricopressupõeaconsciênciadeum

    conhecimento cumulativo, i.e., que a teologia religiosa que hoje atribuímos aos

    YorùbádaÁfricaOcidentaléoresultadodeencontrosediálogosinter-religiosos,

    oumelhor,éo resultado finaldeumtrabalhode laboratóriodas sensibilidades

    éticas,estéticas,filosóficas,cosmogônicas,etc.,dediferentespovoshabitantesdo

    espaçotomadocomoYorùbáland,processoessequepodeserdescritocomoum

    «sincretismo intra-africano», se tomarmoso conceitode sincretismo comoum

    processodetecelagemoubricolagem(parafazerusodeumtermobastidiano)de

    identidades com padrões culturais permeáveis ao casamento, ou seja, traços

    identitáriosqueporsuasemelhançafomentamduasoumaisunidadesculturais

    ao duplo processo de aculturação e acumulação. Nesse sentido, as fórmulas

    religiosas tomadasnessa obra estão sendo analisadasnumespaço temporal do

    agora,sendoqueesseagorasignificaaanálisedasressonânciasdoreligiosonum

    períododepassagemdotradicionalparaoneo-tradicional,oquecorrespondeao

    cicloquevaidoséculoXIXaopresente.Aescolhadestabalizatemporalobedece,

    primeiroque tudo, à consciênciadequeo séculoXIXemdiante se tratadeum

    período onde as transformações religiosas (imprimidas particularmente pelas

    2

    Considera-sequeaexpansãoimperialdeỌn yọ́apartirdoséculoXVIImarcaaexportaçãodoseu

    modelo cultural e dá um impulso decisivo na formulação de uma identidade proto-yorùbá,

    operando,nessesentido,nadireçãodeumaidentidadeunificadaqueatingiriaoseuapogeucom

    ainstituiçãodaNigériacomopaís.

  • JOÃOFERREIRADIAS 9

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    missõescristãs,peloretornodosescravos,pelaexpansãodoislãepelaquedado

    Império de Ọn yọ́, em 1830) acompanham as transformações sociais e políticas,

    mudançasqueacontecendoagrandevelocidadetornamopresenteperíodoum

    objeto de estudo de extrema importância. Em segundo lugar, este é também o

    período que marca a já citada passagem do modelo tradicional para o neo-

    tradicional,i.e.,períodoondeoscultoslocaisperdemimportânciaparaoscultos

    de âmbito supralocal, onde a ideia de «ser-supremo» se impõe, onde valores

    tradicionais africanos dialogam com os princípios das religiões universais,

    operandotransformaçõesnoseuinterior.ValenotarqueoconceitodeModerna

    ReligiãoTradicionalYorùbásurgeemHallgren(1995).Peel(2000),emboranão

    utilizeesteconceitonemcomelaelaboreaideiadeumafeiçãomodernadeuma

    ideiareligiosatradicional,irámencionarafaláciacontidanoconceitode“religião

    tradicional” para o caso Yorùbá, ao referenciar não apenas amultiplicidade de

    manifestações religiosas Yorùbá, como ainda a penetração do islã. Destarte, na

    consciênciadequeoque sedesignapor “religião tradicional” éumprodutode

    umaconstruçãonoseiodos‘encontrosreligiosos’,quenaturalmenteimprimiram

    transformação conceptuais, se considera que melhor será chamar a religião

    Yorùbá, ao período observado, de «neo-tradicional» ou «moderna religião

    tradicional», porquanto significa a assunção da presença de valores ditos

    “tradicionais”emmesclacomelementosexógenos.

    Emjeitoexplicativo,apresenteobradáconta,deumaformamaissimples

    possível, do significadode algumasdasmetáforasmais importantesda religião

    dosYorùbá.Porconseguinte,estaráemanáliseafiguradeOlódùmarè,tidocomo

    o«ser-supremo»,procurandocompreenderoalcancedasuametáfora,atravésda

    pergunta: existe de fato um «ser-supremo» entre os Yorùbá no seu discurso

    tradicional,ouantesestamosperanteumarecodificaçãodeum“estrangeirismo”

    religioso?i.e.,seráOlódùmarèumaideiaintrínsecaàexpressãoreligiosaYorùbá

    ou estaremos antes perante a importação de um discurso de hierarquização

    trazido pelo islamismo e o cristianismo, num exercício de assimilação doDeus

    bíblico?

    EmboraOlódùmarè façapartedaculturareligiosadosYorùbá,pelomenos

    no período que nos dispomos a analisar, importa compreender, ou procurar

    compreender,oalcancedasdinâmicasdealteraçõesaocampusteológicoYorùbá-

  • JOÃOFERREIRADIAS 10

    nàgó.NolongodiscursohistóricodareligiãoYorùbá,tomaremossempreaviado

    tradicionalcomoreferencialnãosomenteparaaferirasmudanças,comotambém

    como referencial de ‘autenticidade’, com as devidas cautelas que o conceito

    impõe.Naprocuradasrespostasparaaquestãode ‘Deus’entreosYorùbá,não

    poderemos deixar de observar relatos como o de A.B. Ellis na obra Yoruba-

    SpeakingPeoplesoftheSlaveCoastofWestAfricaouPierreBaudinemFétichisme

    etFéticheurs,obrasdefinaisdoséculoXIX,colocando-asemdiálogocomautores

    mais recentes como Ilésanmí, Peel ou Matory. Ao mesmo tempo, jamais seria

    viávelabordaraquestãodo«ser-supremo»Yorùbásemobservardepertoamais

    importante e clássica obra sobre o assunto,Olódùmarè:GodinYorubaBelief de

    Idowu.

    Nãoobstantea importânciadeOlódùmarè, e o espaçoqueomesmo toma

    nesse livro, outras são, também, as metáforas em consideração. Vale então

    abordar a semântica teológica contida no termo Òrìṣà, procurando evitar

    definições baseadas em impressões mal recolhidas e cujos contornos parecem

    correspondermaisaumabricolagemcomoimagináriodo«catolicismopopular»

    do que a uma definição de profundidade ortodoxa e nativa. Deste modo,

    procurar-se-á ir além das fórmulas contidas em exercício de religiões

    comparadas, através das quais os Òrìṣà (deuses Yorùbá) são descritos como

    mediadores entre o humano eOlódùmarè – discurso intrincado no sincretismo

    afro-cristão–oucomoespíritosqueencantamlugareseobjetos–discursoesse

    demasiado marcado, entende-se, por um eurocentrismo metodológico.

    3

    Ora,

    abandonando quaisquer ferramentas comparativas do tipo hierarquizador, i.e.,

    produtor de superioridades religiosas, a definiçãodo termoÒrìṣà e da teologia

    que lhe é intrínseca, permanece particularmente difícil de consubstanciar,

    porquanto o termo contém (ou parece conter) um conjunto de outros

    significados: ancestral divinizado, herói cultural, divindade personalística e

    tutelardeespaçosnaturaisevaloreséticosesociais.

    3

    Por eurocentrismo metodológico se alude a um tipo de discurso que tem por base o

    «darwinismosocial»aplicadoàreligião,considerando,destaforma,queoprocessonaturalseria

    aevoluçãodeumanimismoprimárioparaumareligiãopropriamentedita, i.e.,oabandonodos

    cultos tradicionais – à época chamados de primitivos – e a aceitação do cristianismo como

    religião civilizada e civilizadora. Dentro desse tipo de discurso as divindades dos povos

    tradicionaisseriamconsideradas«espíritos»,porquantootermo«divindade»ou«deus»estaria

    restritoaocristianismo.

  • JOÃOFERREIRADIAS 11

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    A terceira fórmula a abordar é a fórmula àṣẹ, termo recorrente e

    caracterizadordareligiãoYorùbáedescendente.Seobjetadefiniràṣẹdentrode

    uma lógica de universalismo religioso contida na definição «energia

    vital»/«energiaprimordial»,procurandodepoisasespecificidadesYorùbádessa

    fórmulauniversal.

    Por fim, estará em focoo complexo conceitodeorí – inserindo-onamais

    ampla noção de pessoa – e as suas implicações teológicas, i.e., procurando

    entenderoalcancefilosóficoepoéticoqueoorí (cabeça)temnaformulaçãodo

    destino e da atuação religiosa do sujeito, ou seja, emquemoldes oorí atua na

    construçãodapredestinaçãodossujeitos,aomesmotempoquesetentaentender

    dequeformaseconstróiodiscursoYorùbáacercadapredestinação,auscultando

    aproblemáticacontidadentrodaconcepçãodedestinoselado,porquantoparece

    claro que a predestinação entre os Yorùbá ressoa como um caminho em

    construção, i.e., como uma inevitabilidade contornável, com tudo o que de

    contraditóriopossaconter,reconhecendoqueapredestinação(ìpin)éumtema

    particularmente complexo, que requererá um exercício de reflexão teológica

    tremenda.

    Assim,essetrabalhopartedaproduçãoanteriorsobreamatériadequese

    pretende fazerumarevisãocrítica.Emboraa literaturasobreareligiãoYorùbá,

    ou dos povos falantes da língua Yorùbá, seja bastante vasta, esta encontra-se

    particularmenteemlínguainglesa,carecendoouniversoacadêmicolusófonode

    investigação e publicação de trabalhos acerca da religião dos Yorùbá,

    permanecendodemasiadocentradonasexpressõesreligiosasafrodescendentes,

    emparticularoCandomblé(apesardoXangôeoBatuqueconstituírem-secomo

    campos de análise das ciências sociais brasileiras), compósitos religiosos

    derivados da importação de escravos africanos do Golfo do Benim e que se

    constituem como resultados específicos de fatores socioculturais externos aos

    africanos, que nesse sentido se viram forçados a readaptar as suas tradições,

    criandoumneo-tradicionalismoYorùbá,sobabandeira«jeje-nagô»e«Ketu».

    Aomesmotempo,énecessáriotomarareligiãodosYorùbáporsimesma,

    analisá-la,aprofundá-laecompreendê-ladentrodassuaspróprias fronteirasde

    reprodução de valor, de símbolo e de conteúdo. A religião Yorùbá quer no seu

    contexto nativo quer diaspórico, permanece órfã de exercícios teológicos,

  • JOÃOFERREIRADIAS 12

    herdeira de um processo histórico que contempla perseguição, repressão e

    descrédito, ao sabor de teses que inscrevem as religiões africanas num vasto

    pacotede«religiõesprimitivas»,«expressõesprimáriasdefé»e«fetichismo».

    Éinegável,queareligiãoYorùbáéhojeoresultadodeinúmerasalterações

    ocorridas no interior das suas fronteiras, imprimidas pelo estabelecimento de

    Ọn yọ́ em1400epelasuaexpansãodesdeos finaisdoséculoXVI (Stridee Ifeka,

    1971)atéaocolapsodoseuimpérioem1836,sobajihadFulanidoCalifadode

    Sokoto(Alpern,1998).

    Os primeiros trabalhos sobre a religião dos yorùbás foram, naturalmente,

    produzidosporeuropeusviajantes.DuartePachecoPereiraterásidooprimeiro

    autorasereferiràreligiãodoshabitantesdeLagos,em1506-1508.Aeleoutros

    seseguiram.DuranteoséculoXVII,oscomerciantesdeescravosfizeramrelatos

    profundamentedesdenhososdasreligiõesdosnativosproto-Yorùbá,posturaque

    D’Avezac procurou contrariar, partindo dos relatos de um Ousifekuede, antigo

    escravodeorigemOmaku.Contudo,odiscursoderidicularizaçãosemantémem

    relaçãoaosnegrosYorùbáesuascrenças,particularmenteduranteoséculoXIX,

    altura de intensa campanha de cristianização, através dos registos do R. Padre

    Borghero (1872), R. Padre Baudin (1884), P. Pierre Bouche (1885) ou R.

    Townsend.

    4

    O século XX trouxe, contudo, algumas alterações, graças ao crescendo de

    YorùbácomacessoaeducaçãoemInglaterraeescolas inglesasnascolônias,ao

    mesmotempoquenovosestudiososchegavamaÁfricaàprocuradeprocedera

    levantamentos mais adequados da religião dos Yorùbá. Perante a vastíssima

    literatura que foi produzida durante o século passado, que iria alterar

    definitivamente o modo como os Yorùbá passariam a serem vistos, merecem

    relevo os trabalhos de Pierre Verger, entre as duas costas do Atlântico, que se

    tornaramobrigatóriospeloméritode recolher comparticulardetalhea grande

    maioria da tradição ligada aos cultos dosÒrìṣà no antigo Dahomé e na antiga

    Yorùbálândia,ostrabalhosdeWándéÁbímbọ́lá,omaisimportanteautorsobrea

    tradição religiosa e oral Yorùbá, deWilliamBascom, do casalDrewal, deBọlaji

    Idowu, deBabatunde Lawal, de JacobOlúpọ̀nà, de J. LorandMatory e de Juana

    4

    Henry Townsend (1815-1886), membro da Church Missionary Society, fundador da missão

    yorùbáestacionadaemAbẹ́òkúta,compiladordehinoscristãosemlínguaYorùbá.

  • JOÃOFERREIRADIAS 13

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    Elbein dos Santos; todos pela visão transnacional da religião Yorùbá e pelas

    metodologiasutilizadas.

    Operando de uma perspectiva teológica – que compreendendo as

    necessidades e mais-valias da interdisciplinaridade assume o diálogo com a

    análise histórica – a presente obra pretende oferecer uma nova abordagem às

    questõesdepartida,i.e.,procurandoentenderaideiade«ser-supremo»entreos

    Yorùbápropondoumavisãocríticadoconceito,negandoasuaexistênciasinequa

    nonnopensamentoreligiosodospovosfalantesdalínguaYorùbá,inscrevendoo

    problemadentrododebatesobreaexistênciaeo lugardomesmonasreligiões

    africanas, procurando refutar amplamente alguns dos autores de referência. A

    ideiade ‘Deus’éumconceitocujasressonânciasocidentaisforaminculcadasno

    pensamento africano, essa é a tese que pretendemos provar, colocando em

    evidênciaaconstruçãohistóricadodiscursosobreo«ser-supremo»nocontexto

    dosreligiousencounters.Nasdemaisquestões,pretende-seaferirosignificadodo

    divino nos conceitos de Òrìṣà e Àṣẹ e a vivência do religioso na ideia de

    predestinação.NocasodoconceitodeÒrìṣà, tentar-se-ádesconstruira imagem

    de ‘intermediários’defendidana literaturaclássicaenosistemade Ifá,optando

    por entender o conceito como abarcando uma diversidade de significados

    religiosos que vai do herói cultural às velhas divindades dos cultos locais,

    expressando melhor a ideia de ‘antropoformização do extra-humano’ que se

    propõe.

    Há, contudo, um conceito a ser tomado antesmesmo de adentrarmos no

    desenvolvimentodas problemáticas, que é o da definiçãode «teologia» e a sua

    aplicabilidade aouniverso religiosoYorùbá.Latosensu, teologiadiz respeito ao

    pensamento acerca do divino e, sabendo que os modelos conceptuais cristãos

    permanecem como indicadores – dadas as transformações históricas que a

    religiãoYorùbáterásofrido,quedeixaram,porexemplo,umafortemarcacristã

    na conceptualização da relação com os seres extra-humanos, esses modelos

    acabam por ser de algummodo operatórios no caso em análise –, teologia diz

    respeito ao pensamento acerca de ‘Deus’. Dessa forma, dizendo respeito ao

    pensamento sobre o divino (usando a definição generalista) a teologia não se

    exclui ao universo cristão, porquanto as narrativas míticas africanas, p. ex.,

    revelam pensamento acerca do sobrenatural (ou de outra forma, o extra-

  • JOÃOFERREIRADIAS 14

    humano);reconhecendoqueoprocessopoéticoeliteráriodaconstruçãodeuma

    narrativamíticarequeraexistênciadeumaformulaçãodecarizteológicoacerca

    das divindades, pelomenos assim tem sido possível entender pela experiência

    diante da identidade religiosa Yorùbá. Ao mesmo tempo, a teologia tende a

    refletir não apenas sobre o transcendental mas sobre as relações entre

    transcendental e o mundo cotidiano, além de refletir sobre as relações

    interpessoais (Browning, 2004). Isto é particularmente importante quando nos

    referimos às religiões africanas. Robin Horton (1993) enfatiza a dimensão da

    religião como manipulação de um relacionamento (conceito que reformulou e

    ampliouparaasnoçõesdeexplicação,previsãoecontrolo)paraamanutençãodo

    status quo e para a coesão social (ou, de outra forma, para interferir nela),

    particularmente nas culturas ditas tradicionais. Todavia, apesar do caráter

    eminentemente prático das religiões africanas, tal não deverá significar que o

    dogma

    5

    não está lá (pelo menos no caso Yorùbá), ou pelo menos que a

    experiênciaderelaçãocomoextra-humanocomportaumadimensãodecrença

    queomesmoHortonnãodescartacomoalgoemsimesmo,nãonecessariamente

    dependentedeumafunçãosocial.Apreponderâncianapraxiscomoatoreligioso

    nãoexcluiumpensamentosobreodivinoouosobrenatural.Observandoocaso

    Yorùbá, um sacrifício de um animal para um determinado Òrìṣà – ato que

    comportatodoosentidodefinidoporHorton–nãoexcluiumadefiniçãoteológica

    sobre a divindade, nem a existência de um dogma; i.e., para se sacrificar um

    animal para Ògún tem de estar claro qual o propósito do referido e isto está

    intrinsecamente ligado à concepção teológica (enquanto pensamento sobre o

    extra-humano) de Ògún, ao mesmo tempo que o dogma se expressa na

    observação de diferentes etapas rituais no sacrifício e na evocação de cânticos

    específicosparaadivindade.Ora,seháumadefiniçãodaidentidadedadivindade,

    comumanarrativamíticamaisoumenosdensa,umconjuntoderitosecânticos

    canonizados,nãoserápossívelfalardeteologia?Parecequesim.

    5

    Apesar deHorton considerar que o dogma é algo demenor importância face ao rito para as

    religiõesafricanas,averdadeéque,definindodogmacomocrençaouvalorestabelecidoeaceite

    no seio deuma comunidade religiosa, temosde aceitar que entre osYorùbá a ideia dedogma

    religiosoépassíveldeserusada,porquantorepresentaaassunçãodedeterminadosprincípios

    religiososamplamenteveiculadosentreaspopulações.AideiadequeIlé-Ifẹ̀éopalcodacriação

    domundoéumdogmadaidentidadereligiosaYorùbá.

  • JOÃOFERREIRADIAS 15

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    A respostapositivaàquestão levantaoutrosproblemas,nomeadamenteo

    estabelecimento de uma assunção de que teologia se refere exclusivamente às

    “religiões do livro”, fato que, todavia, especialistas como Horton já refutaram,

    falandoantesem“abordagem”teológicacomoaquelaquesecentranopapelde

    Deus na vida religiosa e na dimensão de comunhão entre o Homem e as

    divindades,sendoqueoautorconsideraestaéumaabordageminsuficientepara

    compreenderasreligiõesafricanas.Seobservarmosteologiatalcomosedefiniu

    acima, i.e. como “corpus mais ou menos coerente composto de cosmovisão,

    filosofia, ética e prática ritual”, não sobram dúvidas em afirmar que há uma

    teologiaYorùbá,pelomenosà faltadeoutroconceitoqueresumaa ideiaqueo

    termo subentende, não o pensamento sobre ‘Deus’ mas num sentido lato, o

    pensamento sobre o extra-humano. Ora, se há teologia, necessariamente há

    teólogos, pelomenos assimo é no caso Yorùbá.Mais uma vez tal não significa

    buscarnoobjetodeestudopadrõesocidentais.Nessesentido,valeproporouso

    dotermo‘padrõesdepensamentoreligioso’emalternativaateologia,porforma

    afugir-seapossíveisligaçõesoucolagenscomoospadrõesconceptuaiscristãos.

    Ilésanmí,noseuartigosobreos teólogosYorùbá (1991),apresentadois

    grandes vetores da teologia Yorùbá: osbàbáláàwó (sacerdotes de Ifá, deus da

    adivinhação)eosmissionárioscristãospioneirosnaadaptaçãodocristianismoà

    religiãonativa.O factode Ilésanmí falardosbàbáláàwó como teólogosedeos

    apelidarde“profetas”revelamuitodopapeldeterminantedestesnaafirmação

    deumpensamentoreligioso, filosóficoeéticoacercadasdivindadesedo«ser-

    supremo»Olódùmarè,dequemelesforamesãograndespromotores.Avalidação

    desta afirmação encontra-se no papel central dos versos sagrados do corpus

    literáriodeIfáenaopçãorecorrenteporestescomoinformantesemtrabalhos

    de campo

    6

    . É possível então assumir que por um lado há teologia Yorùbá,

    6

    Háumaclaraopçãometodológicapelosbàbáláàwócomoinformantesprivilegiados.Aassunçãodequeseconstituemcomodetentoresda“tradição”edeumaformulaçãoteológicamaisdensa,

    estáalicerçadanobackgroundculturaldosobservadoresdareligiãoYorùbá,i.e.,adensidadedosversosdeIfá,sistemaherdeirodageomanciaislâmicaeahierarquizaçãoverticaldasdivindades

    comum«ser-supremo»no topo, conduzemao reconhecimentodomodelo conceptual judaico-

    descendente do investigador no “outro”, construindo uma espécie de zona de conforto

    metodológico.InvestigadorescomoDrewaleVerger,embrenhadosnaexperiênciadeobservação

    erecolhadatradiçãoYorùbá,tornaram-se,tambémeles,bàbáláàwó,oqueconduzàafirmaçãodeumavalorizaçãoteológicadosistemadeIfá.Essaopçãopelosbàbáláàwócomoinformantesestáexpressa,atítulodeexemplo,naobraclássicadeJuanaE.dosSantos,OsNàgôeaMorte.

  • JOÃOFERREIRADIAS 16

    tomando teologia pela definição aqui proposta e, ao mesmo tempo, havendo

    teologiahánecessariamenteteólogos,sendoqueossacerdotesdeIfá,apelidados

    de bàbáláàwó, literalmente “pai-do-segredo (religioso)”, serão os teólogos

    Yorùbá por excelência. Todavia, embora não sejam opção recorrente como

    informantes, os sacerdotes dos diferentes Òrìṣà, poderão ser considerados

    teólogos, levando em conta que a sua praxis ritual tem necessariamente um

    dogma que lhe dá sustentabilidade – a sacerdotisa de Ọn ṣun para prestar

    homenagemàsuadivindade,temnecessariamentedeconhecertodaamitologia,

    rezaseetapasrituaisestabelecidascanonicamente,oquepermitepensarquea

    religiãoYorùbácomportauma«teologiaprática»,i.e.,umateologiaquesefazem

    diálogocomapráticaritual,sendoumaafaceinversadaoutra,ouparausaruma

    imagemricadoimagináriopopularYorùbá:cadaumaéametadedacabaçatotal

    que é a religião Yorùbá, teoria sustentando a prática, a prática dando vida à

    teoria.

    Apesar de ter ficado claro que não se adentrará pelas questões de fundo

    levantadas por Sarró e Berliner de transmissão e aprendizado da religião, há

    questões que se devem colocar, mesmo que para elas não hajam respostas

    definitivas ou satisfatórias, nomeadamente saber quem transmite e quem tem

    acessoàteologia,quemsãoosagentesdateologia,comoestaévividaecomoé

    apreendidanointeriordasociedadeYorùbá.Reconhecendoopapelteológicodos

    bàbáláàwó napropagaçãodeuma teologiaYorùbá,questãobemexplanadapor

    Ilésanmí,estáresolvida,emboaparte,aquestãodequemtransmiteateologia,i.e.

    quemsãoosagentesdateologiaYorùbá,nocontextoquesepretendeanalisar.Os

    veículos de transmissão serão, sempre, os ẹsẹ Ifá, i.e., os versos sagrados do

    corpus literário de Ifá, transmitidos oralmente. Paralelamente, os trabalhos

    missionários e os registos dos viajantes terão concorrido também para a

    construção de uma teologia Yorùbá, não apenas na introdução de categorias

    exógenasao imaginárioautóctone,masnoprópriodiálogoentre cristianismoe

    “religião tradicional”, que teria levado à introdução de novas problemáticas e

    ideiasreligiosas.Exemploparadigmáticodistoencontra-senoartigomencionado

    deIlésanmí,ondeoautorrevelaumdadonovonarealidadereligiosaYorùbá,a

    da ÌjoỌ] rúnmìlàAdúláwòIfẹ́kówapò, uma igrejamodernado cultoa Ifá, ondeos

  • JOÃOFERREIRADIAS 17

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    versos de Ifá foram reorganizados no Ìwé Odù Mímó, um livro redigido,

    estruturado e utilizado como a Bíblia. No referente à apreensão e vivência no

    interiordasociedadeYorùbá,oproblemacoloca-seemdiferentesníveiseexigiria

    umtrabalhodecampovasto,capazdeobservarateologiaYorùbávivenciadanos

    diferentes círculos da experiência religiosa local. Um dado é, contudo, possível

    avançar. A consulta do oráculo de Ifá faz parte da vivência religiosa na

    Yorùbáland e isso significa que a teologia e filosofia contidas neste sistema

    religiososãopassadaspelosseussacerdotes/teólogosaosconsulentes.

    Ademais,outrosproblemasserelacionamcomaexperiênciaeformulação

    teológica.Assumindoquehá teologia (quese relacionacomapraxis)e comela

    teólogos, que se dá uma transmissão damesma através dos sacerdotes de Ifá,

    principais teólogos Yorùbá, e que essa transmissão tem nos versos sagrados

    transmitidos oralmente em consultas oraculares o seu principal e tradicional

    veículodetransmissão,restaaindacolocaroproblemadateologiaemrelaçãoao

    período que observamos na presente obra. Como vimos, com referência a

    Hallgren, observar-se-á o que se designa como «Religião Neo-Tradicional

    Yorùbá» ou «Moderna Religião Tradicional Yorùbá», o que compreende a

    aceitaçãodequesendoumareligiãohistóricaeporissodinâmica,areligiãoneo-

    tradicionalYorùbáserádiferentedeperíodoshistóricosanteriores.Istosignifica

    que mudanças foram operadas. Os religious encounters dos Yorùbá com os

    cristianismosecomoislãafricanocontribuíramparaareformulaçãodareligião

    Yorùbá,imprimindoasmudançasquelevariamaconstituiçãodareligiãoYorùbá

    neo-tradicional. Ora, os encontros religiosos, o regresso dos ex-escravos e a

    tradiçãodeIfáqueoperaramparaaconstruçãodaidentidadeYorùbá,serviram

    tambémparaoestabelecimentodaideiade«religiãotradicional»quemaisnãoé

    queoquesedesignaaquiporneo-tradicional,umavezqueasmudançasestavam

    já em curso. As fórmulas conceptuais observadas no presente trabalho

    constituem-se como valores centrais da religião neo-tradicional Yorùbá sendo

    amplamentevividasepartilhasnointeriordasociedadeabordada,porquantose

    constituemcomopedrasbasilaresnaafirmaçãodaidentidadenativa,nãoapenas

    porseremconstantesnaliteraturasobreoassunto,mastambémporaquiloque

    tem sido possível observar na experiência direta com membros da cultura

    abordada.Aolongodaobrairemosobservarasespecificidadesdecadafórmula

  • JOÃOFERREIRADIAS 18

    tratada,procurandoentenderaconstruçãodoseudiscursoteológicoeosentido

    práticodasmesmas.

  • JOÃOFERREIRADIAS 19

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    1 Olódùmarè

    ____________DASEMÂNTICAÀTEOLOGIADOSER-SUPREMO___________

    1.1. Questões preliminares

    Nenhuma religião tradicional sobrevive sem operar mudanças mais ou menos

    profundas,que tendemaempurrara tradição rumoaosnovos contextos sócio-

    econômico-culturais, quer se tratem dos lugares nativos quer se tratem de

    lugaresdiaspóricos,nocasodetaisreligiõesteremsidotransnacionalizadas.Isso

    significaqueéimprescindívelterpresente,qualquerquesejaocampoaabordar,

    asdinâmicasdetransformaçãodascosmologiasdestetipodeespaçosreligiosos,

    baseados na tradição oral, sabendo que na ausência de textos religiosos, as

    fórmulasdoutrinárias sedilueme confluemcomdiferentes fórmulasoperantes

    no mesmo espaço geográfico, dificultando em grau elevado a tarefa de

    compreensãodas“coisasprimeiras”

    7

    daquelaespecíficaexpressãoreligiosa.

    Ademais, contribuindo para o agudizar da árdua tarefa estão os textos

    primitivoselaboradosacercadessas«culturasdeantigoconhecimento»

    8

    .Pierre

    Verger, que passou de fotógrafo a eminente etnólogo Yorùbá, no seu clássico

    artigosobreoserSupremo(1995)levantaapontadeumlongomantoqueainda

    estáporresolver,queéentenderondeacabaateologiatradicional(cujoprocesso

    7

    A ideia de “coisas primeiras” que aqui se pretende expressar comporta duas ideias

    complementares:opõe-se,nosentido teológico, àescatologia,que tratadas “coisasúltimas”da

    humanidade;e refere-seà reflexãoouprocuradas ideiasreligiosasprimeiras,quenosestudos

    clássicoseramdescritasporprimitivas.

    8

    Aescolhadotermo“antigoconhecimento”emdetrimentode“primitivo”e“tradicional”deve-se

    à consciência de que o conceito “primitivo” comporta todo um passado de antropologia

    evolucionistaquecolocavanasculturasmaisantigasedeformassimplesousimplificadasaideia

    deestádioselvagem;bemcomoàconsciênciadequeoconceito“tradicional”remeteparauma

    ideiadelongevidadeehermetismoquepodenãosernecessariamenteverdade.Nessesentido,o

    termo “antigo conhecimento” aponta para as culturas baseadas na oralidade comométodo de

    transmissãodeconhecimentosedecontinuaçãoeconstruçãodememóriacoletiva.

  • JOÃOFERREIRADIAS 20

    de transformações é constatável) e onde começam as formas híbridas e

    sincréticas da nova identidade religiosa, ela própria também amplamente

    dinâmica.

    Ora,opropósitodestecapítuloé,dentrodos limitesdopossível,entender

    precisamenteondeestáodiscursoteológicosobreOlódùmarè,asuasemânticae

    a sua origem discursiva universalizada (i.e. em que medida Olódùmarè é o

    resultadodeumaconstruçãoreligiosahistórica feitadeconceitoseparadigmas

    de matriz judaico-cristã-islâmica, religiões de intenção universalista), tomando

    em análise as fórmulas generalizadas sobre o «ser-supremo» africano, os

    trabalhos de diversos autores e informações recolhidas junto de diferentes

    informantes.

    1.2. «Ser-Supremo», um problema de interpretação

    Aolongodoúltimoséculo,comodesenvolvimentodasciênciassociais,eo

    debruçar sobre as religiões inicialmente chamadas de «primitivas», o método

    comparativo não apenas entre si, mas particularmente face ao cristianismo,

    serviu de ferramenta metodológica num processo levado à exaustão em que

    comparação e colagemnão se distanciavam claramente. Tampouco era tomado

    em consideração as influências externas sobre as religiões autóctones. Nesse

    sentido,osestudossobreo«ser-supremo»nasreligiõesafricanascentravamna

    afirmação inequívocanão apenasda sua existênciadentrodosdogmasnativos,

    como se compunham de contornos universalistas, i.e., da afirmação de um

    «universalismodeDeus».Comefeito,talconcepçãouniversaldeDeusseinscreve

    dentrodeumalógicacristocêntrica,emqueseassumequeDeuséentendidode

    ummodoigualpelasdiferentesculturasou,ditodeoutraforma,oDeusCristãoé

    modeloparadigmáticodeanálise.

    Ora, tomadaque foiessa lógicacomoprevalecente,aplicadacomomodelo

    deanálise,o«ser-supremo»dasculturasde«antigoconhecimento»encaixarame

    em boa medida continuam encaixando dentro de um quadro conceptual

    apelidadode“teoriadoDeusOtiosusouRemotus”.RaphaelePettazzonifoiquem,

    em1922,propôsestateoriaquerarasvezestemsidovistacomoprodutodeum

    períodoondeochoqueculturaleoeurocentrismoeraaindamaisdemarcado–

  • JOÃOFERREIRADIAS 21

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    recorde-se que a descolonização africana ainda não tinha tido lugar, as

    campanhas de evangelização levadas a cabo desde o século XIX haviam dado

    frutos na constituição de igrejas africanas mas a colonização mantinha as

    fronteirasculturaisdemarcadasentreoafricanoeocolonizador,edopontode

    vista metodológico figuravam amplamente os comparativismos diretos, i.e., a

    observaçãodofenómenoreligiosoafricanoapartirdoscânoneseuropeus.Como

    crítica a esta teoria, Justin Ukpong (1983) irá remeter precisamente para o

    pensamentoteológicoefilosóficoocidental,atravésdaformulaçãobíblicacontida

    no Livro dos Génesis, onde o retirar de Deus procede o fiat lux da criação.

    Todavia, se a criação parece uma realidade totalizadora e incontornável nas

    fórmulascristãsocidentais,centradasnafiguradeumdeuscriador,conservador

    eprovedor,criaçãoegovernaçãoparecem,comobemrefereUkpong(1983:188-

    189) coisasdistintasparaosafricanos: “EnquantoDeusenvolveosdeuseseos

    ancestraisem todososaspetosdagovernaçãodomundo, contudonãoo fazna

    criação(emboradeacordocomalgunspovosafricanoscomoosYorùbá,elepossa

    daruma função criativa específica aumdeus emparticular)” (traduçãonossa).

    Temos, pois, dois planos de atividade divina distintos. Segundo esta lógica que

    compreende a chamada “teoriamediúnica” – que se tomarámais adiante –, as

    diferentes divindades e os ancestrais funcionam como administradores da

    criação,tutelaresdeespaçosnaturaisedeelementosdotodosocial,aopassoque

    a‘Deus’caberiaaatividadecriadoraemtodaasuaplenitude,istoé,nãoapenasa

    criaçãooriginal,mastodaanovacriação,sendoportantoumprincípiodinâmico

    fertilizador.Omesmoautorafirmaqueparaosafricanos‘Deus’éumarealidade

    queexisteemtudooquecompõeaexistência,emtudooqueexiste,desdeseres

    vivosàspedras.Contudo,élícitocrerqueatéaqui,detudooqueUkpongafirma,

    nadaresolveoproblemacentralqueéodacompreensãodo«ser-supremo»entre

    as sociedades africanas,mesmo assumindoquena contemporaneidade se trata

    deumconceitoadquiridoeassumido.

    A consciência de que o «ser-supremo» é uma categoria do religioso que

    podenão se refletirplenamente entre asdiferentes sociedades africanas– e se

    entendequedemodoalgumsereflete,‘originalmente’,naformacomooconceito

    é revestido entre os Yorùbá, i.e., a ideia de um «ser-supremo»posicionado no

    topodeumahierarquia(vertical)dedivindades(Òrìṣà),dasquaissedistinguena

  • JOÃOFERREIRADIAS 22

    essência–temalimentadopositivamentehistoriadores,teólogosesociólogosdas

    religiões.NãoéporissodeestranharqueacercadosaŋlodoGana,Gaba(1969:

    64)tenhaescrito:“QueMawuseoriginedeumusoparaSerSupremooudouso

    genéricoparadivindadeemgeral,nãoéfácildedizer”(traduçãonossa).Oratal

    afirmação aponta para o caráter mutável das religiões africanas, que vão

    absorvendo tradições externas e construindo novas teias dogmáticas com o

    adquirido do contato com outros povos vizinhos e com os missionários e

    invasores. Tal fato comporta outra ideia central: a da não uniformidade do

    pensamento sobre o “sagrado”, i.e., o «ser-supremo» mesmo quando é

    tendencialmente universalizado, como acontece com Mawu e Olódùmarè, por

    exemplo, ele não tem uma ressonância total e inequívoca entre os sujeitos,

    porquantoeleétalhadocomas ferramentasconceptuaisdisponíveis.Épor isso

    queGabaregista:“EnfatizandoapersonalidadedoSerSupremo,osAnlotendem

    à antropomorfização. Mawu tem sexo, é masculino. Enquanto criador e

    mantenedor do universo, ele é pai” (1969: 65) (tradução nossa), e poucomais

    adiantediráque“oSerSupremoécomoovento,eleestáemtodoo ladoenão

    podeser localizadode formaalguma”(1969:67)(traduçãonossa).Obviamente

    que a referência ao «ser-supremo» pela metáfora do vento tem muito de

    universal,porquantoasculturasdomundobíblicosereferiamao“Deusdabrisa

    datarde”.

    Umanotaé,contudo,devidaemrelaçãoaMawu,alimentandoaindamaisa

    presentediscussãoemtornodosempréstimos teológicos.Gaba, recorrendoaos

    trabalhosdeParrinder,encontraparalelismosentreosAŋlo,osFonsdoDahomé

    eosYorùbádaNigéria,oquenãodevesertomadocomoestranhoporquantoo

    impérioYorùbá,noseuapogeu,expandia-sedaNigériaaoTogo,BenimeGana.

    Sobre a expressão “Mawu Segbo Lisa”, Gaba felizmente notou a não natividade

    teológicaelinguísticacontidanaimagemdo«ser-supremo»dosAŋlo,ligandoaos

    FonsdoDahoméaorigemdostermoshojeusadospelosanteriores.Ora,seSegbo

    tenderá a vir de Sogbo por corruptela linguística, Sogbo advém, sem a menor

    dúvida,deṢọ̀ngó(ouṢàngó),oancestraldivinizadoYorùbáassociadoaotrovãoe

    àrealezadeỌn yọ́,cujopapeldelegitimadordoImpérioỌn yọ́-Yorùbáproporcionou

    queoseucultofossesendoprogressivamenteexportadoparadiferentespontos

    do território àmedida que o império ia vendo as suas fronteiras alargadas. Ao

  • JOÃOFERREIRADIAS 23

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    mesmotempo,Mawu,divindadefemininadosFons,aparececomopaicriadordos

    Aŋlo, o que mais uma vez revela o caráter transformador da religiosidade

    africana naÁfricaOcidental.Mawu, que aliás, parece advir doYorùbáYemowo,

    divindadefemininadaterraqueformacasalcomÒrìṣànlánaconcepçãoteológica

    de Ilé-Ifẹ̀. No que concerne aLisa, dois apontamentos são devidos: primeiro, a

    traduçãoporcamaleão,quesurgenoartigodeGaba,éparticularmenterelevante

    do papel dos Yorùbá na formação cultural que compreende grande parte da

    África Ocidental. O camaleão é, por tradição mitológica, um animal que

    representa Òrìṣànlá. Segundo o itàn ìgbà-ndá àiyé, a narrativa da criação do

    mundo, o camaleão foi o animal escolhido para confirmar a firmeza da terra

    criada. Segundo, o termo contém outro percurso histórico dentro de simesmo

    que,talcomoacontececomapalavraSogbo,atravessatrêsidentidadesculturais,

    desdeosYorùbá aosAŋlo, passandopelosFons. Parecenãohaverdúvida, pelo

    menosassiméafirmadoconsensualmente,queotermoLisaadvémdeOlisaque

    advirádeÒrìṣà,porquantoapassagemdoYorùbáparaoFonor se transforma

    em l, comobemnotaGaba.Ademais, sabemosqueo termoÒrìṣàdesignava,em

    suaorigem,apenasadivindadedos Ìgbónativosde Ilé-Ifẹ̀ –Ọba-Ìgbó ouÒrìṣà-

    Ìgbó, ou seja, Òrìṣànlá-Ọbatálá. Portanto, seguindo o raciocínio, emMawu dos

    Aŋlo temos reunida a formulação teológica não apenas de uma, mas de três

    divindades oriundas do território Yorùbá: Ṣọ̀ngó-Sogbo, Yemowo-Mawu e

    Òrìṣànlá-Lisa.

    Olabiyi, ao qual tivemos acesso, numa fase já avançada da redação deste

    trabalho,confirmaanossateoria,avançandodadosimportantesparaadiscussão

    sobreo«ser-supremo»Mawu,refutandoastesesquecontinuamentesustentama

    ideia de ‘Deus’ (único e supremo) entre os povos africanos. Como o autor

    constata,asmutaçõeshistóricasoperaramdeterminantementenaconstruçãode

    novos paradigmas religiosos, nomeadamente na introduçãode umpensamento

    greco-latino, com as suas categorias (não necessariamente exportáveis para os

    modelos africanos) sem que com isso seja requerida uma conversão: “Com os

    novos conceitos de verticalidade e hierarquia é igualmente introduzida uma

    constelaçãodenoçõesderivadascomodeussupremo,céu,inferno,messias,etc.”

    (Olaibiyi, 1993: 245-246) (tradução nossa). O papel determinante deste

    pensamentoherdeirodeS.Paulo,estáclaramenteexpressonasdiretivascristãs

  • JOÃOFERREIRADIAS 24

    para as relações com as religiões autóctones, consubstanciadas na Doctrina

    Christiana(1658).Oautorconstataaquiloqueanteriormenteseafirmouequede

    certaformasetornapordemaisevidente:oconceitodeÒrìṣàviajouaoritmoda

    construçãoda identidadereligiosaproto-Yorùbáesuasadjacentes,aopontode

    se ter tornado terreno fértilparaa implementaçãodepadrões islâmicosemais

    tardecristãos.NaturalmentequeaapropriaçãodeLisaparacoincidircomJesus

    Cristocomportajáumatransformaçãodaessênciadadivindade,i.e.,desupreme-

    being para deity, abrindo caminho para o estabelecimento de ‘Deus’ entre os

    africanos,principalobjetivodasmissõescristãs.Masaquestãomantém-se:Mawu

    é o «ser-supremo» em que dimensões e com que grau de estabelecimento?

    Melhor,queméMawu,nofimdecontas?Olabiyiénovamenteclaroapontandoo

    termovodunnastraduçõesiniciaisparaaideiade‘Deus’,porquantoaformulação

    cristãcontidanotermoeramelhorapreendidanoreferidoconceitoafricano.

    Tudo istoépordemais importantequandosepretendeaferir adimensão

    religiosa do «ser-supremo» entre os povos africanos. Tomar consciência das

    dinâmicasdealteraçãodosagradoaosabordosritmoscivilizacionaisehistóricos

    confereaoestudoumaposturade«dúvidametódica».MaisumavezOlabiyi irá

    notar que o campo religioso acompanha notavelmente asmutações políticas e

    culturais da região, salientando o papel do rei Tegbesu (1732-1774) na

    introduçãodeumnovomodeloreligiosonaregiãoFon:“Mawufoiintroduzidono

    reino Fon pelamãe do Rei Tegbesu, que era Aja.Mawu foi então adoptado no

    paláciocomonovomembrodo‘panteão’Fon.Eraumadivindadeigualàsdemais

    e não era o equivalente ao Deus-Pai que é hoje, até porque se tratava de uma

    divindade feminina” (Olabiyi, 1993: 254) (tradução nossa). Importa dizer que

    Tegbesu foieducadonocoraçãoda identidadeYorùbá,em Ọn yọ́, oqueexplicaa

    implementaçãodeummodelodetradiçãoYorùbánoDahomé,comosejaoculto

    dosNesuxwe,i.e.,ocultodadivindadedafamíliareal,àimagemdocultodeṢàngó

    emỌn yọ́,noqualosancestraisda famíliarealsãocanonizadosVoduns, eoculto

    imperial se torna o mais importante sobre todos os cultos horizontais dos

    diferentes deuses. Nessa perspectiva, o velho modelo de Voduns, cujos cultos

    eramparalelosentresi(numalógicahorizontal),dá lugaraummodelovertical

    onde o rei figura como Roman Pontifex Maximus. O casal Yemowo-Òrìṣà,

    transposto paraMawu-Lisa, vai dar lugar aMawu, o ser-criador da vida. Mas

  • JOÃOFERREIRADIAS 25

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    como fica expresso nas referências de Olabiyi, o culto deMawu não ocupa um

    lugardedestaquecomoacontececomocultoNesuxwe, i.e.,oculto imperialdos

    ancestrais divinizados. No que concerne aMawu como patergenitor, Olabiyi é

    claro: “trata-se apenas de uma entre as várias cosmogonias prevalecentes no

    reino” (1993: 257) (tradução nossa). Olabiyi traça importante roteiro da

    transformação do culto de Mawu de vodun entre outros até supreme-being à

    imagemdoDeusOtiosusquetãobemcabiaaosmissionáriosequemaravilhouos

    primeiros observadores das religiões africanas, ávidos de encontrar ‘Deus’ em

    terrasexóticas,nofundo,saindobuscandoumDeusqueseleva.Mawusetornou

    símbolodastransformaçõesoperadasnoseiodoDahomé,queraonívelreligioso

    (ondeasmarcassãoóbvias,primáriasediretas)queraonívelpolítico.Todavia,

    traçarfronteirasentretransformaçõesreligiosasepolíticaséperigosoeinfértil,

    porquanto religião e política se misturam convenientemente no território

    africanovisado, dequeo reinadodeTegbesu é exemploparadigmático. Parece

    claroqueentreainstitucionalizaçãodocultoimperialNesuxwe,docultodocasal

    Mawu-Lisa e do sistema vertical de observação das divindades (com clara

    influência do modelo Ọn yọ́-Yorùbá) se abriu espaço para a evangelização. Um

    modeloverticalfavoreceaintroduçãodeum‘Deus’,peloqueosmissionáriosse

    limitaram a proceder a um jogo linguístico para no discurso religioso fazer

    sobressair a desejada semântica sobre o divino, fazendo coincidir velhos

    conceitosàimagemquepretendiamimplementar.

    Compreende-se da experiência prática e das leituras possíveis que o

    pensamento sobre o divino émenos filosófico do que prático, no entanto esse

    grausuperior,nãosignificaausênciadeformulaçõesteóricasoudoutrinais. Isto

    confereaodivinooureligiosoumcaráterde«utilidade»,i.e.,esteseencontraem

    estreita ligação com o humano, havendo entre ambos uma troca de favores,

    porquantoosprimeirosoferecemdádivasvendendo-aseoshumanossuplicam-

    nas comprando-as. Nesta economia em que as dádivas são um produto, as

    oferendas são a moeda de troca. Ora, tomando o raciocínio do «ser-supremo»

    comoumametáforadeprofundidadeteológica–porquantoasdemaisdivindades

    seexpressamfísicaematerialmente–pareceforçosodiscordardeUkpong,nojá

    citadoartigo,quandoesteafirmaque“oSerSupremoé,emculto,substituídopor

  • JOÃOFERREIRADIAS 26

    outras formas religiosas – as divindades e os ancestrais os quais são mais

    dinâmicos,ativosefacilmenteacedidos”(1983:190)(traduçãonossa).

    É curioso notar que Ukpong enfatiza o distanciamento progressivo do «ser-

    supremo»emdireçãoàsdivindadestidascomomenoreseaosancestrais,queo

    autor refere como entidades portadoras de maior dinamismo, intensidade

    dramáticaeriquezamitológica.Importaterpresentetaisatributos.Odinamismo

    das divindades e dos ancestrais significa, claro, não apenas uma proximidade

    teológica entre o sujeito/crente e a divindade/alvo do culto, mas também a

    própria prática do culto, o rito. Os ritos e as liturgias africanas

    9

    – cite-se os

    Yorùbácomo«estudodecaso»,queaquisãoosqueinteressamdiretamente–são

    profundamentedinâmicas,comportandoossacrifíciosqueseverificamcomuma

    regularidade assinalável, as oferendas de caráter mais simples, i.e., não

    envolvendo sangue animal, como sejam os alimentos, as moedas, objetos

    manufaturadosousimplesmentebebidaseágua(oritualdamudançadiáriadas

    águas consagradas a Òrìṣànlá no seu templo em Ilé-Ifẹ̀ é revestido de enorme

    seriedade,ocorrendosobreamadrugada,norionãomuitodistante,capturando

    asprimeiraságuasdamanhã,ouseja,asqueestãoemrepouso,asqueaindanão

    foramcontaminadas).Todoocerimonialtrajadodesimbolismo,receioeatração

    do rito, quer seja das oferendas, dos sacrifícios ou da incorporação, comporta

    umaintensidadedramáticaporquantooreligiosoéumfenômenoquesevive,se

    expressa, coletivamente, na e para a sociedade. O caráter dramático confere

    significado ao rito, velando-o de simbolismos. Naturalmente que há um lado

    prático nas religiões africanas (como já mencionado anteriormente) afinal, os

    rituais,têmopropósitodealterarodecursodosacontecimentosindividuaise/ou

    coletivos.No que concerne à riquezamitológica interessa ter presente que nas

    culturas de «antigo conhecimento» osmitos conferem significado ao real e por

    consequência ao todo social, pois que a realidade religiosa adquire um caráter

    9 Apesar de Robin Horton (1993: 19-49) evitar usar os termos ‘liturgia’ e ‘mitologia’ para as religiões africanas, optando pelo uso de “religious mythology” e “religious ritual”, uma vez que o caráter sociológico da religião se expressa sobremaneira em África, onde ritual e coesão social se entrecruzam, se assume que a ideia de teologia lacto sensu pode ser aplicada à religião Yorùbá atual, na medida em que o corpus mitológico e as formulações acerca do divino, contêm uma dimensão bem definida. Ao mesmo tempo, o termo liturgia, que pressupõe etimologicamente um serviço (de natureza religiosa, no caso) pode também ele ser aplicado aos Yorùbá, na medida em que as práticas rituais de louvor às divindades contêm fórmulas definidas, processos e procedimentos padronizados, em suma, contêm um guião cujo conteúdo e propósito não difere das liturgias das religiões de herança judaica.

  • JOÃOFERREIRADIAS 27

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    humanoe asnarrativas apontamparaumpassado referencial (Bernardi, 1988:

    388-389).Naturalmenteque à tradição se colocaumproblemade fundo: a sua

    longevidade. Eric Hobsbawm (1983:1) é claro ao afirmar que as tradições que

    reclamam continuidade com um passado referencial são, não raras vezes,

    inventadas.Nesse aspeto, tanto osmitos quanto os ritos comportama ideia de

    “tradição inventada” cujo propósito é, efetivamente, estabelecer continuidade

    comessepassadoreferencial.

    Por conseguinte, os mitos são uma linguagem de forte criação literária,

    compostos de narrativas poéticas que exprimem a “realidade” religiosa. Nesse

    sentido, os mitos revelam os tempos primordiais, a criação da existência e

    fornecemmodelosde comportamento. São tambémnarrativas construídas com

    as ferramentas conceptuais disponíveis para uma dada cultura representando

    assimasuarelaçãocomooikosexprimindooseuethos.Ora,senasculturasde

    tipo antigo/tradicional o conhecimento é veiculado através da oralidade, e a

    tradiçãooralsecompõederecursosnarrativoscomtantaintensidadedramática

    eriquezapoética,enchendooimagináriocoletivodeimagensdeglória,valentia,

    capacidades mágicas, seres poderosos, etc., torna-se forçoso indagar sobre a

    ausência de narrativas mitológicas em torno do «ser-supremo». A teologia do

    isolamento ou inalcançabilidade de ‘Deus’ não serve de justificativa para a

    ausênciademitos sobreo«ser-supremo».Mesmonosmitosde criação,o«ser-

    supremo»aparecenãorarasvezescomoumafiguradifusa.NocasodosYorùbáa

    narrativadacriaçãodomundoenfocaÒrìṣàńláeOdùduwàemIlé-Ifẹ̀eÒrìṣàńláe

    Ọ] rànmíyàn em Ọn yọ́, cabendo ao «ser-supremo» Olódùmarè apenas o ato de

    entregarosacodacriação,oÀpò-Iwá.Destemodo,compreendendoqueosmitos

    correspondem à percepção dos sujeitos sobre o divino e ao mesmo tempo

    enchemoimagináriopopulardelugaresdeconforto,deimagenssobreosagrado

    edemodelosdecomportamento,dandorespostase configurandoospadrõese

    arquétiposdossujeitos,esabendodaimensidadedemitossobreosdeusestidos

    como menores, torna-se difícil conciliar a riqueza mitológica das divindades

    presentes no cotidiano das culturas com um vazio de mitos sobre o «ser-

    supremo».

    Retomando o ponto da vitória das divindades menores sobre o «ser-

    supremo»afirmadaporUkpong,seconsideraahipóteseaocontráriocomomais

  • JOÃOFERREIRADIAS 28

    adequada:devidoàsinfluênciasexternasdoislãedocristianismoeàsandanças

    históricas da formaçãodas identidadesnacionais pós-independência, a imagem

    do «ser-supremo» se viu como plataforma aglutinadora das diferentes

    identidades étnicas e religiosas, um ‘guarda-chuva’ teológico que endereçou as

    divindadeslocais/regionaisparafunçõesperiféricasoudepartamentais,i.e.,para

    funçõestutelareseministeriaisdedeterminadosaspetossociaisenaturais.

    1.2.1. Teoria Mediúnica

    Adentramos, então, namediumistictheory que compreende uma lógica de

    pensamento que coloca o enfoque no «ser-supremo» através dos seus

    mediadores, configurando todas as oferendas e sacrifícios destinados aos

    ancestraiseàsdivindades[comosendoossacrifíciosanimais(galinha-de-angola

    paraÒrìṣàńlá),asoferendasgastronómicas(àkàràjẹparaYàsán),as joias,etc.;à

    semelhançadoqueocorrenoscultosYorùbá-descendentes,comooCandomblé]

    comosendoendereçadas,emúltimaanálise,ao«ser-supremo»,querestassurjam

    como fragmentos metafóricos deste quer como entidades mediadoras entre o

    sujeitoe‘Deus’.Deacordocomestateoria–queserviudemodelodeanálisepara

    todas as culturas africanas e foi explorada aomáximoporBọlaji Idowuna sua

    obraOlódùmarè:GodinYorubaBelief–asdivindadeseosancestraisgravitamem

    tornodo«ser-supremo»,servindodeponteentreoshomenseosagradomáximo,

    encaminhandopara aquele aspreces e asoferendasdosdevotos.Osdeusesdo

    cultopopular sãoosmensageirosdoshomensa ‘Deus’ ede ‘Deus’ aoshomens.

    Todavia,aperguntaqueseimpõeé:seráexatamenteassimouestamosperante

    uma teoriaque faz cabero sagradonumadinâmicadepoder?Pordinâmicade

    poder se entende um discurso de legitimação de poderes locais, regionais e

    nacional (no caso imediato da constituição da nacionalidade nigeriana) que

    consigam congregar as diferentes identidades étnicas e religiosas, ao mesmo

    tempoquepromovemumaunidadenadiversidadesobosignode«nação».Éo

    caso dosỌba(monarcas locais), doAláàfin de Ọn yọ́ e do próprio presidente da

    república nigeriana. A fim de concertar vontades é necessário que a religião,

    expressão maior das identidades no território nigeriano, funcione mais como

  • JOÃOFERREIRADIAS 29

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    concórdiadoquesemeadoradediscórdias.Nessesentido,areligiãotradicional,

    Ẹ] sìnÌbílẹ̀, jáexperimentadanodramáticoe traumáticoprocessodeconversãoe

    adaptaçãoseviuacomodadadentrodeumdiscursoemqueo«ser-supremo»é

    um ‘guarda-chuva’ para a nacionalidade nigeriana sob um lema de muitas

    religiões,ummesmoDeus,eumaplataformadediálogointer-religioso.

    1.2.2. O problema dos conceitos

    Aquestãoquesecolocacomopanodefundoecujasoluçãorequereriauma

    revisitaçãodopanoramadosestudosantropológicosehistóricos,ésaberemque

    medidaosconceitosreligiososusadosnasmetodologiasdeanáliseforamounão

    adequados para compreender o universo religioso das cosmogonias africanas,

    sobreosquaisseveioadiscorrernoutrassedes(FerreiraDias,2013ce2013d).

    PartedoproblemaélevantandoporEmefieIkenga-Metuh(1982).Comorefereo

    autoramaioriadosautoresafricanos,emreaçãoàdescrençaeàtransmissãode

    umavisãocristocêntricadasreligiõesafricanas,vestiramasdivindadesafricanas

    com roupagens helénicas de forma a mostrar que os africanos possuíam um

    senso de civilização comparável ao dos europeus, num exercício levado a cabo

    porestudantesdereligiõesafricanas,mesmoquandosesabequeopensamento

    religiosoafricanonãodiscorrede formaestruturalista:monoteísmo/politeísmo,

    sagrado/profano, Deus/deuses/ancestrais, etc. No entanto, como observa JDY

    Peel (1968: 29), o sistema cultural e religioso Yorùbá parece diferente de

    diferentespontosdereferênciasocial.Ora,estaafirmaçãoseenquadradentrode

    umalógicadepensamentoemqueosagradoémaisoumenosselvagemou,por

    outras palavras, é um sagrado à solta, apenas apreendido nas suas parcelas

    humanizanteseoperativas,muitomenosdadoaprisãoteológicaehierárquicado

    quenoOcidenteeuropeu.Osagradoéimanente,havendoa(s)divindade(s)eos

    ancestrais que operam tanto no plano do inteligível quanto no plano terreno,

    punindo e auxiliando os humanos, tanto quando estes os negligenciam ou

    prestamculto.Oafricanooperaemtermosconcretosmesmoemsetratandodo

    sagrado.Nessesentido,aabstraçãonãoécontempladanopensamentoafricano–

    pelomenosaquelaconstruídaemtornododeusotiosus–porquantorequeruma

    estruturadepensamentomarcadapelareflexãofilosóficadotipo judaico-cristã,

  • JOÃOFERREIRADIAS 30

    necessáriaparaa compreensãodeumDeusdesemântica10.Pelomenosdeuma

    forma independentedosentidopráticodas coisas.Destemodo, conceitos como

    «ser-supremo», omnipresença, omnipotência, etc., parecem pouco aceitáveis

    como autóctones. Porque o conceito de «ser-supremo» é de facto de intensa

    composição.RegressandoaIkenga-Metuh,oautor,nocitadoartigo,recordaqueo

    Deus cristão é o ser supremo porque nesse universo religioso nenhuma outra

    entidade está acima dele, perguntando ainda se o mesmo pode ser dito em

    relaçãoaouniversoreligiosoYorùbáouDogon,econjeturandoaindaquetalvez

    essespovosjamaistenhamcolocadoparasimesmostaisquestões.

    Como já vem sendo salientado a tese aqui proposta se cruza com as

    afirmaçõesdeIkenga-Metuh:aideiade«ser-supremo»nãoéintrínsecaaospovos

    da África Ocidental, entre eles os Yorùbá, mas resulta de um longo processo

    histórico que começa comos encontros dos diferentes povos proto-Yorùbá e o

    diálogoentreosseusdeuseseculminacomumateologiadepartilhacomoIslãe

    osdiferentesCristianismosaoperaremnaregião.Umaspetocuriosodaproposta

    deIkenga-Metuhéareferênciaao«ser-supremo»dosYorùbácomoỌ] lọ́ọ̀rúnenão

    como Olódùmarè. Isto não é de somenos importância para entendermos o

    pensamentoreligiosoYorùbá.OlódùmarèeỌ] lọ́ọ̀rúnsãosemânticasdistintashoje

    atribuídas àmesmaessência, chamadade «ser-supremo».EnquantoOlódùmarè

    serefereaoarco-íris,Ọ] lọ́ọ̀rúnremeteparaoespaçointeligívelqueéamoradadas

    divindades,dosancestraisedosaindapornascer.Seasualocalizaçãoénocéuou

    no interior da terra não é lícito afirmar com certeza porquanto o ọ̀rún parece

    localizar-se emambosos espaços consoanteosmitos enarrativas.

    11

    Aomesmo

    tempo,otermoỌ] lọ́ọ̀rúnserviuparaastraduçõesbíblicasparadesignar‘Deus’,na

    marchada cristianizaçãodosYorùbá,umaescolhaquevai apontandoo caráter

    10

    Por‘deusdesemântica’sealudeaum«ser-supremo»constituídoemmetáfora, i.e.,poesiade

    inteligível e inalcançável, patente no ‘deus’ abraâmico. O ‘deus de semântica’ será umdeus de

    discurso,deideia,antagónicoaosdeuseseancestraisdosmodelosditostradicionais,ondeestessãoexpressospormeiosmateriaisefísicos(atravésdapossessão).

    11

    JuanaElbeindosSantos(2002)falado ọ̀rúncomoum“além”que,deacordocomosmitosdeIfá,foiseparadodaterra(àiyé)comopunição.Essaseparaçãofoifeitapelaatmosfera,peloqueoọ̀rúnsesituariaparaalémdocéu,maisaltoainda.MasoutrosmitosháemquesedizqueosÒrìṣàdesapareceramnointeriordaterra(Hallgren,1995:67-71).Istotornaclaroquenãoháconsenso

    quantoàlocalizaçãodoespaço-suprasensível,sendoqueasvariantessãonotóriosfrutosdodevir

    histórico.A tradiçãode Ifáparecedarênfaseà localizaçãocelestial, aopassoqueoscultosdosancestraisedosÒrìṣàapontammelhorparaointeriordaterra(Verger,2002:22).

  • JOÃOFERREIRADIAS 31

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    primordial do termo face ao seu sinónimo Olódùmarè. Ọ] lọ́ọ̀rún aparece

    majoritariamente nos relatosmais antigos sobre os Yorùbá como a designação

    autóctone para «ser-supremo», oumelhor para ‘Deus’, porquanto ométodo de

    comparação ao Deus cristão se fazia sentir nesses textos. Isto não resolve

    qualquer problema, sabendo que entre os Yorùbá as divindades possuem uma

    série de epítetos relacionados com as suas funções e que muitas vezes esses

    epítetossãonomesreaisemdeterminadoslugares.Ouseja,Ọ] lọ́ọ̀rúnéumepíteto

    deỌbàtálá-Òòṣàálá,talcomoẸlẹ́ẹ̀mí,“portadordoprincípiodaexistência”.Oque

    é no mínimo interessante sabendo que os mitos recitados pelos bàbáláàwó

    (sacerdotes de Ifá) referemquena criaçãoda vidaOlódùmarè influi como seu

    hálito a vida nos indivíduos e criaturas. Isto aponta claramente para um papel

    centraldeỌbàtálá-ÒòṣàálánatradiçãoYorùbá,umpapelqueterásidorecriado

    emfavordeumanovasemânticasobadesignaçãoOlódùmarè.

    1.2.3. Nàná Buruku e o caso Fon

    A cosmologia Fon do Dahomé é um bom exemplo – para se fugir, ainda que

    apenasumpouco,aosYorùbá–dequeareligiosidadeafricanaseexpressamais

    namutaçãodoquenamanutenção, oumelhor, que a religiosidade africana, da

    ÁfricaOcidentalmaisespecificamente,seexpressanadialéticaentremanutenção

    emutação. A tradição Fonmoderna comporta a imagemdo «ser-supremo» em

    Mawu-Lisa,quecomoseviuanteriormentederivadocasalYemowo-Òòṣàálá,cujo

    culto foi assimilado à época do reinado de Tegbesu (1732-1774). Contudo, de

    acordocomatradiçãooral

    12

    ,Mawu-Lisa terásubstituídonãoNana-Buluku,cujo

    culto será anterior, masDan, a cobra-sagrado que dá nome ao Dahomé. Estas

    andanças míticas e teológicas originaram um vacatio teologicus em relação a

    Mawu-Lisa. Se por um lado surge como um casal ligando-se assim ao casal

    primordialYemowo-Òòṣàálá,outrasvezessurgecomoumadivindadeindividual,

    12

    Segundoatradiçãooral,DahomédeveoseunomeaDan,a“cobrasagrada”;peloqueépossívelpresumirqueoseuculto(quesecruzacomocultodeÒṣùmàrè)seligaàfundaçãodaregião(videLagrandeencyclopédie:inventaireraisonnédessciences,deslettresetdesarts.Tome13/par

    une sociétéde savants etdegensde lettres;Vol. 31,deDreyfus,Camille (1851-1905).Éditeur

    scientifique,BibliothèquenationaledeFrance,p.760:“Dahomey:“LenomdeDahomeysignifie

    «ventredeDah»”.

  • JOÃOFERREIRADIAS 32

    ora masculina ora feminina, e não raras vezesMawu é descrito como o «ser-

    supremo»eLisa comoumadivindadecoadjuvante.Comoafirma Ikenga-Metuh:

    “…EstaanomaliaseexplicapelofatodapresentecosmologiaFonsetratardeuma

    combinaçãodecosmologiasdosdiferentespovosquetomarampartenoimpério

    daomeano” (1982: 18) (tradução nossa). Essa é a grande questão, quer para o

    território dahomeano quer para o território Yorùbá: por onde traçar as

    identidadesanterioresoupréviasnumuniversosimbólicoemmutaçãoefeitode

    empréstimos permanentes? A dimensão do problema se traduz na

    impossibilidade de dar uma resposta plausível sem uma forte

    interdisciplinaridade, primeiro porque a história destes povos só é

    verdadeiramentecontadaapartirdecertosrelatosdeviajantes,algumasnotasde

    missionáriosemaisdensamentecomapresençacolonial,oquecolocaasfontes

    escritascomoúteis,apesardeculturalmentefiltradas.Ahistóriaé(ainda)então

    insuficienteparaanalisarasandançasreligiosasdospovosdaÁfricaOcidental.É

    precisoentãoirbuscarapoiosàreflexãoteológicaeaoestudoantropológicodo

    patrimóniooral,vendonosmitos,lendas,recitações,cânticoselouvaçõesaquilo

    queosdiálogosinter-religiososconstruírameoquenãoconseguiramapagarde

    originalidade.Seobservaisso,muitoclaramente,noscasosdosọrínÒrìṣà,i.e.,dos

    cânticoslouvativosàsdivindades.

    NocuriosocasoFon,seconstatouqueumadivindadeestánopapelde«ser-

    supremo»antesdeDanedocasalMawu-Lisa:NanaBuluku.UmavezqueIkenga-

    Metuhnãodáumcorpoteológicoaestadivindadevamosbuscar,umavezqueela

    faz parte do imaginário Yorùbá-diaspórico, referências a Pierre Verger que

    remetemparaumvis-à-viscomumcultodetamanhacomplexidadequepermite

    compreender que debaixo do termo Nàná cabe um sem fim de designações,

    constatando,dessemodo,queNànáseriaumtermocomumparadivindadecujas

    ressonânciasseestendemalémdoNígeratéàregiãodosTapá,aoestealémdo

    Volta,regiãoGuangeaonordesteAshantí,aomesmotempoquetendeaapontar

    sempreparaaideiademãeidosa(Verger,2002:236).Comofoireferido,oculto

    deNànápossuiinteressanteexpressividadenoterritórioocidentalafricano,cujas

    tradições chegaram ao Brasil. Embora não seja possível afirmar que se trate

    sempredamesmadivindade,certoéqueNànáouNẹ̀nẹ́ surgecomoumprefixo

    relativo a uma identidade divina, mesmo que os termos Buruku, Bùkùú ou

  • JOÃOFERREIRADIAS 33

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    Brukung pareçam constituir-se como corruptelas linguísticas, adaptações

    fonéticas de um termo original ao sabor da geografia da linguagem. O que

    importanotarnestareferênciaaNànáBuruku,queIkenga-MetuhchamadeNana

    Buluku (sabemos que em fon o r se transforma em l) é o seu papel de «ser-

    supremo»numvastoterritório,sobmatizeslinguísticas,nãoestandoemrelação

    com Mawu-Lisa. Aliás, o próprio autor refere que Nana Buluku seria uma

    divindadeanterioraocultodeMawu-Lisa,fatoqueteráfeitocomqueadivindade

    anteriortenhasofridoalteraçõesporformaacaberdentrodeumanovaestrutura

    religiosa,ajustando-seaumpanteão local/regional/nacional,quercomoesposa

    quercomomãe,ouatécomodivindadesecundarizada.Essecaráterdedivindade

    totalizadora(supremebeing)deNànáéexpressoemalgunsversossagradosem

    Yorùbá, embora estes surjam emmenor quantidade do que nas línguas Fon e

    Guang, representando a menor expressividade do culto de Nàná entre os

    primeiros,ondeopapeldedivindadetotalizadora femininaéocupadoquerpor

    Ọ] ṣunquerporYèmọnjá,consoanteaáreageográficaqueétomada(ex.Òṣogboou

    Ọn yọ́):

    ENànáOlúwàiyéẹpaẹpa

    ENànáOlúwàiyéẹpaẹpa

    Nanã,aSenhoradaterraquemata

    Nanã,aSenhoradaterraquemata

    -ọríntiNàná(cânticodeNàná)

    (Oliveira,2002:146)

    Compreende-se que o termo «Olúwàiyé» denota o sentido de «ser-

    supremo»aocompor-sedajunçãodeOlúwá(senhor/a)eàiyé(terra/mundo).O

    elemento‘terra’constitui-secomomatériafundamentalparaavidadospovosda

    África Ocidental, concebido como lugar de origem, como fonte de alimento

    atravésdoplantio,lugardosancestrais,enfimúterodaexistência.Nãoéporisso

    de estranhar que ‘terra’ e ‘mundo’ se confundam conceptualmente. Aomesmo

    tempo, o ọrín deNàná citado contém outro elemento fundador da experiência

    religiosa: a morte. A morte é um mistério inevitável, razão pela qual as mais

    variadas tradições religiosas teceram mitos acerca da origem da morte,

  • JOÃOFERREIRADIAS 34

    atribuindo-lhe formafísicaantropomórfica(comoéocasoYorùbáemrelaçãoa

    ikú), vontade e personalidade. Aomesmo tempo o conceito demorte naÁfrica

    Ocidental difere do conceito de morte no Ocidente Europeu. A morte entre

    aqueles africanos associa-se à vida de formadefinitiva, umanão se dissocia da

    outra,uma“morteboa”–emidadeavançadaesemsofrimento–éoresultadode

    umavidaboa,correta,éticaemoralmente.Umaboamorteé tambémogarante

    doacessoàancestralidade,eaancestralidadeéopatrimôniodocultodoméstico.

    Portanto,apaziguarNànáéogarantedequeamortenãoviráemtempoprecoce

    e de forma violenta. Se apazigua a divindade porque amorte é também o seu

    castigo. Por isso em Yorùbá se diz “sálù báNànáBurúkú”, i.e., “em Nàná nos

    refugiamosdamorteruim”.

    Emsuma,ocasoFonéumexemploparadigmáticodasandançasreligiosas

    dos africanos da África Ocidental. As divindades sobem e descem na

    hierarquização do religioso, novas divindades substituem velhos cultos, e os

    mitosvãosendotecidosporformaacaberdentrodeumalógicaemqueodevir

    históricoreproduzerecriacontinuamentedogmaseliturgia.

    1.3. A Fórmula Pragmática de Olódùmarè

    NasuaobraclássicaOrixás,PierreVergerlevantaoproblemado«ser-supremo»

    Yorùbá, sem,contudo,deixardeodescreverusandodascategoriasdisponíveis,

    naturalmenteocidentais,quepermitiramaconstruçãodaideiadedeusotiosusjá

    expressanapresenteobra.Apesarderefletirumpensamentopresoàscategorias

    operatórias, Verger denota que o sistema expresso em torno de Olódùmarè,

    tendencialmente monoteísta, transforma os Òrìṣà em arquétipos funcionais do

    «ser-supremo»,teoriadifundidaaomáximoporIdowu,jácitado.

    Torna-se evidente, da leitura de Verger, que a fórmula transparente e

    globalizada de um «ser-supremo» que tem nos Òrìṣà os seus intermediários,

    parecebastanteinconsistente.Existemváriosfatoresquepermitemcolocarcomo

    forte hipótese a construção de uma narrativa religiosa moderna – aquela que

    teceuOlódùmarè–aqualsetomaráadiante,depoisdeseexplanaraformulação

    corrente sobre do conceito/sujeito religioso. Observe-se, então, a obra mais

    clássica sobre a figura deOlódùmarè, da autoria de Bọlaji Idowu, proeminente

  • JOÃOFERREIRADIAS 35

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    pastordaIgrejaMetodistaNigeriana:Olódùmarè:GodinYorubabelief. Idowu,no

    momento em que adentra na própria identidade do «ser-supremo», escreve o

    seguinte:

    OlódùmarèéusadonatraduçãodaBíbliaemYorùbácomosinônimopara

    “altíssimo”,“onipotente”(...).Onome,defato,implica“onipotência”;mas

    não se trata de ummero título descritivo daDivindade. É o verdadeiro

    nomeparaEleemYorùbá(...)Onomeécompostodeduaspalavras,com

    uso de prefixo, assim: OL-ODÚMARÈ. O prefixo Ol resulta da elisão da

    vogal“i”deOní,quesignifica“donode”,“senhorde”,ou“oquelidacom”

    (...). Se diz que a palavra será uma contração da palavra-nome Olódù

    ọmọèrè – “Olódù,o descendente da jiboia”. Esta sugestão se baseia no

    mito que deriva do fenômeno natural do arco-íris. Os Yorùbá creem,

    geralmente,queoarco-íriséproduzidoporumaenorme jiboia:o réptil

    liberta amatéria sulfúricaque torna tudoao seu redor incandescente e

    causaumreflexo.Taléoarco-íris(Òṣùmarè)nocéu.(Idowu,1962:34).

    (traduçãonossa)

    Estalongacitaçãoéjustificadapelacapacidadedereunirafórmulacentral

    de Olódùmarè, o «ser-supremo» entre os Yorùbá. Obviamente que Idowu, ao

    pretender formular um discurso coerente em torno de Olódùmarè,

    inevitavelmenteacrescentamaterialparaalongareflexãodaprópriafatualidade

    (se tal é possível conceber) da figura deste «ser-supremo». Primeiro porque

    IdowuapresentaotermoOlódùmarècomoferramentadetraduçãobíblica,oque

    seinscrevenaprópriacorrentehistóricadacriaçãoliteráriaYorùbá,iniciadapor

    Samuel Ajayi Crowther (1809 – 1891), primeiro bispo anglicano africano, e

    responsávelpelaprimeiratraduçãodaBíbliaparaYorùbá,oquepermitesempre

    colocaradúvidadautilizaçãodeumametáforaemnomedeumaplataformade

    entendimentoreligioso.Ademais,nãoédemenorimportância–peseaausência

    dereflexãonessesentido–aexperiênciareligiosacristãtantodeIdowu,quanto

    do seu antecessor Crowther. Segundo, porqueOlódùmarè temmuito de poesia

    religiosaediscursometafórico,particularmenteassociadoao fenómenonatural

    doarco-íris,Òṣùmàrè,questãoqueseretomarámaisadiante.

  • JOÃOFERREIRADIAS 36

    1.4. Olódùmarè, o Deus-Supremo nas correntes externas

    Apesar das tradições atuais, que é o mesmo que dizer, a teologia Yorùbá

    moderna,conceberemadiversidadedasdivindadessobreumprismahierárquico

    vertical(panteão)nocimodoqualestáum«ser-supremo»chamadoOlódùmarè,

    do qual todos os Òrìṣà derivam (por criação ou desprendimento), há também

    alternativas teológicas que consideram que a figura do «ser-supremo»

    corresponde a uma dinâmica histórica impulsionada pela presençamissionária

    cristãepelasinvasõesislâmicas,aindaantesdossécs.XVIIIeXIX,alturadeforte

    missionação.WillemBosmansubcomandanteholandêsdaCompanhiaGeraldas

    Índias,em1705(148-49)escreve:

    13

    Os negros que vivem na Costa em geral acreditam em um único e

    verdadeiroDeusaquematribuemacriaçãodocéu,daterra,domarede

    tudoqueelescontêm...Mas,nãopossuemestacrençaporelespróprios,

    nemasmantêmpelatradiçãodeseusavós,masapenaspelafrequentação

    doseuropeus,quetentaramimprimir-lhesestascrençaspoucoapouco...

    ElesnuncaoferecemqualquersacrifícioaDeusnemsedirigemaelenos

    momentosdenecessidade,masimploramaoseu ‘fetiche'nosmomentos

    deaflição.(Verger,1996:24).

    Se é verdade que os relatos dos viajantes são pródigos em fabular as

    tradições e os costumes africanos, tambémé certoque, graças à uniformização

    dosdiscursos, vai sendopossível compreenderuma lógicadiscursiva acercada

    religiãodospovosquevieramaserchamadosdeYorùbá.Seofetichismopovoao

    imagináriodosviajantesemissionários,baseadosemterríveisinterpretaçõesdo

    uso ritualístico de imagens, a crença num Deus irmanado com o Deus bíblico

    parece agradar sobremaneira, gerando uma relação dual (desaprovação–

    aprovação) face ao pensamento religioso africano. Essa dificuldade em

    compreenderumaestrutura conceptual amplamentediferenteestáexpressana

    incapacidadedeapreenderumafilosofiareligiosaausentedoMaledoDemônio.

    Graças ao povoamento do imaginário ocidental de imagens do demônio e da

    13 Consultou-se a tradução francesa da época; a primeira edição do original holandês é de 1704.

  • JOÃOFERREIRADIAS 37

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    tensãoBem/Mal,nãorarasvezesosÒrìṣà foramvistoscomorepresentaçõesdo

    demônio,emparticularÈṣù,oÒrìṣàdacomunicaçãoedas trocas,noscasosem

    queabordagensmaispositivastraduziramosÒrìṣàpor“anjos”ou“santos”.David

    VanNyendaal (por vezesNyendael),mercador holandês, numa carta publicada

    emVoyagedeGuinée, expressa na perfeição o olhar europeu sobre as religiões

    africanas,ondeDeuseDemôniosãoosconceitos-operatórios:

    A religião deles é ridícula e confusa, tal que não sei por onde começar

    para a descrever. Eles fazem-nos crer que adoram Deus e o Diabo ao

    mesmo tempo, bem como figuras humanas, e até figuras loucas de

    animais,comocomdentesdeelefanteepésdeanimal.(...)Étristedever

    como se envolvem em coisas de nada, eles que têm uma boa ideia de

    Deus;(...)equeeleéinvisível,oquelhesobrigaafizerquenãoépossível

    representarDeussobrequalquerfigura;umavezqueeleéimpossívelde

    serrepresentadoumavezqueelesnuncaoviram.Époressarazãoque

    eles têm muitas imagens dos seus falsos Deuses, que eles consideram

    como Tenentes do Deus soberano. (...) acontece que numa vez farão

    sacríficos a Deus diante de uma imagem, e noutro momento farão ao

    Diabo, diante da mesma imagem. (Nyendaal, 1705: 148-49). (tradução

    nossa).

    Ora, o relato de Nyendaal se trata de uma clara colagem do imaginário

    judaico-cristão,polvilhadopelatensãoDeus/DiaboàrealidadeYorùbá,aqualnão

    comporta tal dicotomia. Mesmo lidando com ilações de viajantes cujas

    observações se construíram a partir dos seus referentes culturais, importa não

    deixardeterpresentequeestasobservaçõesviriamaservircomojustificativas

    para a afirmação de ‘Deus’ em África, i.e., como velhas provas cabais da longa

    existênciadoconceito,aindaquesobdiferentestermos.Mastambémquenativos

    convertidos operaram a partir de dentro para a afirmação do «ser-supremo»

    onipotente e criador, pelo que é natural verificar-se uma cristianização do

    discursosobreo«ser-supremo»,Olódùmarè.

    Entreos trabalhosdoReverendo (mais tardebispo)SamuelCrowthereo

    eminentepastorBọlaji Idowu,vãomaisdecemanos (1852-1962)de trabalhos

    sobreareligiãodosYorùbá,comparticularenfoquenafiguradeOlódùmarèena

  • JOÃOFERREIRADIAS 38

    suarelaçãocomosÒrìṣà, agora tidoscomomensageiros,querpormissionários

    protestantes,porcatólicos,quermesmoporpastoresdenacionalidadeYorùbá.A

    ajudar ao argumento do empréstimo teológico do «ser-supremo», cite-se o

    primeiropadrecatólicodahomeano,ThomasMoulero(1888-1975):

    A razãoporqueosFonseosGuns (Daomeanos)possuem tantosnomes

    para Deus é que essas populações se entregam apenas ao culto dos

    fetichesenãoconhecemDeus.DevemosfazerumaexceçãoparaosNagôs

    (Iorubás), que pela influência dos muçulmanos, adquiriram um

    conhecimento de Deus que se aproxima da noção filosófica e cristã.

    14

    (VERGER.1996:30)

    Poder-se-ia dizer que a afirmação de Moulero seria uma ilação do tipo

    verificado comWillemBosmanouDavidVanNyendaal.Noentanto, algodifere

    consideravelmenteentreoprimeiroeosdemais.MouleroeranaturaldeKétue

    membrodalinhagemrealMàgbò(Drewal,2008),oquesignificaqueoprimeiro

    dahomeanoordenadopadrehaviacrescidonointeriordatradiçãoFon-Yorùbáde

    Kétu, o que denota que as suas ilações religiosas comportam a consciência dos

    dois universos. Amplamente, portanto, diferente dos casos de Bosman e

    Nyendaal,europeusaobservarumfenómenoreligiosoquelheseraexterno.

    Valeapena,ainda,fazerreferênciaàobradeA.B.Ellis(1894:17-18),equeé

    umdos trabalhosmaisantigossobreosYorùbá,noqualeleafirma,de Ọ] lọ́ọ̀rún,

    queesteéapenasumdeusdofirmamento,umapersonalizaçãodocéu,equeos

    missionários, tal como haviam feito com Nyankupon, Nyonmo e Mawu,

    confundiram Ọ] lọ́ọ̀rún com Jeovah, considerando que tais entidades se tratavam

    deuma sobrevivênciadeuma revelação feita à humanidadenosprimórdiosda

    existência. Mais acresce Ellis que Ọ] lọ́ọ̀rún é apenas um deus dos fenômenos

    naturais ligadosao firmamento.Negligenciadapelaanálisehistóricae teológica

    emnomedeumaunicidadediscursivaemtornodo«ser-supremo»deconstrução

    unívoca,orelatodeEllisreforçaaimagemdaconstruçãonarrativadeOlódùmarè-

    Ọ] lọ́ọ̀rúnfaceànatividadedoconceito.Entreosepítetosdosdeuses,apluralidade

  • JOÃOFERREIRADIAS 39

    NostrilhosdopensamentoreligiosoYorùbá|

    de divindades e o sistema construído em narrativa pró-bíblica e corânica,

    assentamosalicercesdaideiade«ser-supremo»entreosYorùbá.

    1.4.1. O fator islâmico

    OIslãjogoutambémumpapeldefinitivonaconstruçãodoconceitode«ser-

    supremo»entreospovosdaÁfricaOcidental,particularmenteentreosYorùbá.

    ComorefereParrinder(1959:132),quandooreinoYorùbáseextinguiuem1830

    eem1890seestabeleceoprotetoradobritânico,estesreconheceramostatusquo

    queditavaqueasregiõesdoNorteYorùbáeramgovernadaspelosmuçulmanos.

    Ocristianismoeoislamismo,particularmenteesteúltimoemmaiorescala,

    setornaram,desdeaquedadoimpérioỌn yọ́-Yorùbá,emsinónimodecapacitação

    deinfluências,modernidade,prestígioeacessoaumaeducaçãoelevada.Poressa

    razão, Parrinder refere que tais fatos levaram a que milhares de nativos de

    Ibadan de declaram-se cristãos ou muçulmanos. Ser cristão ou muçulmano

    passou a figurar entre os Yorùbá como sinônimo de modernidade e cultura

    superior,aopassoquecultuarosvelhosdeusessetornousinônimoderuralidade

    e descrédito. Todavia a questão não pode ser posta em contraposição no caso

    nigeriano. Ser cristão ou muçulmano não significa abandonar velhos cultos e

    crenças. Pelo contrário, raras vezes se encontram islâmicos ou cristãos

    desenraizadosdocultoaosÒrìṣà.O“ecumenismo”15fazpartedoshábitosYorùbá

    oqueexplicabemqueareligiãotradicionalnãoseconfinasobresimesma,antes

    dialoga permanentemente com as demais religiões existentes no territóri