olhos baços e ouvidos moucos

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Crônica poético-ambiental.

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MAIS UMA CRNICA DE UMA MORTE MUITO ANUNCIADA

OLHOS BAOS E OUVIDOS MOUCOSFrancisco A. RomanelliDormi mal.Acordei com os olhos ardendo. Arranhados pela secura e pela sujeira do ar. Olho, da janela, a cidade acordando aos poucos, sonolenta ainda. Embaada. Horizontes imprecisos, de cor indefinida. Sero meus olhos, gastos pelo tempo e cansados pela vida, minha viso destruda, que as lentes dos culos no conseguem corrigir? Ou fumaas vagueando insidiosas nas brumas da manh? O cansao da noite mal dormida no um bom conselheiro, nem me permite raciocnio mais claro.Lembranas brotam desconexas miasmas em cantos indefinidos da mente e invadem meus pensamentos. Busco escora nas lembranas de um passado mais ntido. Distantes no tempo, as aulas da D. Ceclia brotam em borbotes dentre mirades de recordaes. Em manhs sonolentas como esta, ecoavam no silncio de uma das salas de aulas do Grupo Escolar Aphonso Pena, aquela que, com orgulho, chamvamos de nossa, onde alunos bem-comportados se atentavam dico perfeita da mestra: O cu azul marinho. E era. A gente via, comprovava. Era o bvio, indiscutvel o azul do cu era a abboda do universo que nos abrigava.No crebro ainda meio entorpecido pela insnia, vagam recordaes daquele passado mgico (ser que o presente no pode e deve ser ainda mais mgico?). Lembranas, quantas lembranas / dos tempos que l se vo. Lembrana puxa lembrana e sopra versos nostlgicos do poema de infncia: ... vai para o cu a fumaa / fica na terra o carvo. A fumaa foi para o cu. Ficou por l e o cu deixou de ser anil. A memria infantil reala detalhes. O azul marinho seria apenas uma aquarela a reforar a memria de criana? Uma iluso dentro de uma outra iluso, da iluso distante de uma perdida felicidade plena de juventude?

Para os jovens de hoje eu garanto: meninos, eu vi! Vi de fato um cu anil; azul profundo, lindo e comovente. Manhs como esta, dias claros e limpos, ficvamos em algum ponto alto olhando o perfil da Serra da Mantiqueira, compondo e recompondo as linhas mgicas, divisas de uma utpica Shangri-l de maravilhas incalculveis, olhos postos longe no horizonte que sonhvamos ganhar e ultrapassar. Hoje, nossos horizontes so ambiciosos e valiosos, so expectativas de conquistas palpveis; so projetos e sonhos que j realizamos, estamos realizando ou ainda procuramos realizar. Mas, os horizontes fsicos, naturais, hoje esto prximos e indistintos. No se prestam a embalar sonhos das crianas aventureiras....Criana! / No vers nenhum pas como este! / Olha que cu! Que mar! Que rios! Que floresta! / A natureza, aqui, perpetuamente em festa... Em s conscincia, poderia eu atiar a imaginao das crianas de hoje? Olha que cu, que mar?! Iluso v. Nas lembranas de um passado real h cu azul anil, h mar de guas claras, verdes brilhantes e belezas cristalinas. Agora, que cu sujo! Que mar poludo! Difcil me encorajar com o patriotismo do poeta. Onde est o cu declamado? E o mar que fascina, de to belo que ? Onde se podem ver rios e florestas que festejam perpetuamente as ricas belezas naturais? Santa Clara, clareai, mais um eco no meio de tantos outros. Clareai o anil de nossos cus, mas tambm e principalmente a mente e a alma de nosso povo. Com sabedoria, diz o popular que pior cego aquele que no quer enxergar. Horizontes opacos so ideais para quem no quer enxergar. Algum divinamente sbio e justo j disse: quem tem olhos, veja; quem tem ouvidos, oua. Eu me pergunto: quem quer enxergar? H quem se disponha a ver, a ouvir? O carro passa acelerado na rua, dispersando meus devaneios no rudo do motor desregulado e barulhento. Solta rolos de fumaa escura e fedorenta. Vai para o cu a fumaa... L dentro, um equipamento de som executa, to ou muito mais alto que o motor, uma sequncia de batidas fortes (que me disseram se chamar funk): Agora pra ficar legal / Quero ver as gatinha / Arrastando a geral / Na dana da bundinha / Oi! Dana, dana da bundinha / Na dana da bundinha / Oi! Dana, dana da bundinha.Respiro fundo, mas o ar sujo incomoda, irrita de alguma maneira a garganta, arranha alguma coisa no fundo do peito. E essa lgrima, teimosa, que insiste em correr? a secura do ar?